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O GATO QUE RI DO MEU EGO ESQUIZOFRÊNICO

José Luiz Dutra de Toledo

www.ebooksbrasil.org


 

O Gato Que Ri do Meu Ego Esquizofrênico
José Luiz Dutra de Toledo
(22.12.1951–03.07.2004)

Edição
eBooksBrasil

Copyright
©2000,2006 José Luiz Dutra de Toledo


 

O Gato Que Ri
do
Meu Ego Esquizofrênico

[imagem]

José Luiz Dutra de Toledo


 

 

Í N D I C E

O Autor
A presença homossexual na história e na literatura brasileiras
Bitware, Hardware e Software
Cartografia das interseções entre a minha alma e a do pintor irlandês Francis Bacon nascido em 1909 e finado em 1992
Confluências entre as escritas de George Bernanos, César Vallejo, José Lézama Lima e Virgílio Piñera
Deconcertant et Sublime — Premier Prodige et Dernière Merveille! L’Homme Créateur et le Capitaine Satan
Katiúcia tropeçava nos astros desastrada mas ainda conseguiu chegar lá
Manifesto a favor das elites
Os cavalos cavalgam, logo os cães ladram
Reflexões pânicas durante a minha viagem aérea entre São Paulo e Lisboa em 13 de Janeiro de 2000
Viver sem um pai é viver sem desejo?


 

 

 

O Autor

 

José Luiz Dutra de Toledo, historiador, professor, cronista, calabora desde 1969 com vários suplementos culturais mineiros, paulistas, cearenses, sergipanos, fluminenses e do exterior.

Mestre em História pela UNESP-Franca-SP (1990), Prêmio Clio (1992) da Academia Paulistana da História. Professor da rede municipal de ensino de Ribeirão Preto-SP, apreciador da música contemporânea de Zeca Baleiro, Chico Science, Banda Nação Zumbí, Tom Zé e Milton Nascimento.

Capricorniano, nasceu em 22 de Dezembro de 1951, em Tabuleiro-Minas Gerais, filho de Joaquim Ribeiro de Toledo Netto e de Sílvia Dutra Toledo; estudou no Grupo escolar Menelick de Carvalho (escola estadual de Tabuleiro-MG), no Ginásio Comercial João XXIII (escola comunitária de Tabuleiro-MG), na Escola Agrícola Federal de Rio Pomba-MG, no Colégio Estadual Sebastião Patrus de Souza de Juiz de Fora-MG; na Universidade Federal de Juiz de Fora e na Universidade Estadual Paulista — campus de Franca-SP (tempo de escolaridade: 23 anos interruptos, sempre em escolas públicas, nunca estudou em escolas particulares); trabalhou em Juiz de Fora-MG, Chácara-MG, Porto Alegre-RS, Gravataí-RS, Sobradinho — Joazeiro-BA (CHESF), São Paulo-SP, Altinópolis-SP, Franca-SP e em Ribeirão Preto-SP; presidiu o Diretório Acadêmico Tristão de Atayde do Instituto de Ciências Humanas e de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG e na mesma época (1972/1975) venceu concurso para a monitoria da disciplina História das Idéias Políticas I no Departamento de História do mesmo Instituto acima citado.

Já viveu em Rio Pomba-MG, Juiz de Fora-MG, Porto Alegre-RS, São Paulo-SP, Sobradinho-BA, Altinópolis-SP, Ribeirão Preto-SP e em Piumhí-MG em variados e diversos endereços nestas mesmas cidades, repetindo as famosas sinas de Fernando Pessoa e de Dostoievski.

Mora em Ribeirão Preto e região desde 1984. Acumula mais de 1500 textos publicados mas até hoje não tinha conseguido publicar sequer um dos seus 23 livros inéditos mas encadernados e guardados numa vulnerável arca de pó de madeira colada (compensado).

Publicou entre 1969 e 1999 mais de dois mil textos em jornais, fanzines, suplementos culturais e revistas literárias de pelo menos doze estados brasileiros e Distrito Federal; professor em escolas públicas e particulares entre 1973 e 1995; organiza desde Abril de 1995 a Hemeroteca da Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto - Ribeirão Preto/Estado de São Paulo/Brasil.

Seus dois volumes de coletâneas de textos publicados em jornais brasileiros nos 7 primeiros meses de 1998 foram incluídos no acervo da Biblioteca Nacional do Uruguay em 18 de Janeiro de 1999.

Aprecia muito moranga cozida com rodelas de cebolas e ovos cozidos, abóbora d’água com quiabo, carne de porco, arroz, feijão e angú..."não posso comer doces mas adoro pudins dietéticos de coco, figos secos da Turquia, bolos dietéticos, gelatinas, etc.. e sou narcisista, por que não haveria de sê-lo??..."

Ama os animais e as plantas, não é esotérico, nem direitista, nem centrista, nem esquerdista, nem extremista, nem anarquista, irrotulável, mas apoiou Fernando Henrique Cardoso para o mandato presidencial (1999/2002).

Atualmente tenta implantar o seu projeto de um Centro de Expressões e Estudos sobre Imaginários, Mentalidades e Tendências Contemporâneas, um desdobramento das projeções de Ivan Illitch, educador mexicano que no CIDOC — Cuernavaca anteviu uma sociedade sem escola, na qual o conhecimento seria cultivado em pequenos grupos de interesses específicos. Mais ou menos como hoje ocorre em torno de sites e home-pages da internet. No caso, busca-se intercâmbios e formas de divulgação e registros de reflexões, estudos e manifestações inspiradas ou suscitadas por questões atinentes aos nossos imaginários, mentalidades e tendências contemporâneas. O Centro está, provisoriamente, instalado à rua Vinte e Um de Abril, número 77 - Vila Tibério - Ribeirão Preto - Estado de São Paulo - Brasil 14050460 e-mail: dutol@netsite.com.br, para o qual o leitor está convidado a contribuir.”

O professor José Luiz Dutra de Toledo faleceu em 03 de julho de 2004, aos 52 anos de idade. [N.E.]


 

 

 

A presença homosexual na história e na literatura brasileiras

 

Acá não venho denunciar sodomitas ao Santo Ofício da Inquisição. Foi por um desvio da frota de Pedro Alvares Cabral que a Cristandade Portuguesa viu o Brasil, nos lembra João Silvério Trevisan. Também escreveram, disseram e cantaram: não existe pecado do lado de baixo do Equador.

No entanto, em numerosos autos de visitadores do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, ante as buscas eróticas das almas brasileiras, desde a primeira visitação, à Bahia, em 1591, até a última, a Belém do Grão Pará e Maranhão, entre 1763 e 1769, são fartos os casos de sodomia e de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Sobre o perfil humano de Zumbi, líder dos quilombolas de Palmares, persiste como considerável a hipótese suscitada pelo antropólogo Luiz Mott, da Universidade Federal da Bahia, pela qual este guerreiro da Resistência Negra ao escravismo (século XVII) tenha vivido suas tendências homoeróticas. As relações homossexuais de caráter sado-masoquista extrapolavam os muros da vida monástica fazendo das relações entre senhores e escravos um ritual barroco de iniciação mística de dominação e submissão erótica e mental, uma vertiginosa e orgiástica forma de prazer e dor.

Nos autos da visitação do Santo Ofício ao Grão-Pará e Maranhão, entre 1763 e 1769, destaca-se o caso do senhor-de-engenho Francisco Serrão Filho, que estuprara em torno de vinte negros, alguns deles pais de vários filhos e casados. Entre os estuprados dois morreram e vários padeceram de infecções e bicheiras no canal “prepóstero”.

Ao longo do século XIX, com a desativação do aparato repressor e institucional da inquisição portuguesa no fim do século XVIII, cessaram os autos de devassa da vida privada no Brasil, mas persiste o ímpeto e a mania de alcovitar, bisbilhotar ou fofocar sobre as intimidades alheias.

Mas é no fim do século XIX que começa a prática de se explicitar a fama de pederasta deste ou daquele sujeito. O Brasil também vivia a era vitoriana e também teve os seus oscarwildes. Por exemplo: no início do século XX, nas rodas de intelectuais cariocas, eram conhecidos os reais motivos pelos quais fora vedado ao escritor João do Rio o acesso à carreira diplomática: era homossexual, negro e gordo ou desengonçado. Mas nem os diplomatas brasileiros ficaram imunes à homofobia reinante na terra de Santa Cruz: uma prova disso foi o assassinato do diplomata Décio Escobar há mais de 50 anos. No Brasil, não só os homossexuais pobres são perseguidos e assassinados, ricos empresários homossexuais também são eliminados. Além de artistas e profissionais liberais.

Ainda no fim do século XIX é lançado o primeiro romance com trama nitidamente homoerótica, Bom Crioulo, de Adolfo Caminha. Um romance no qual um marujo negro é amado e traído no final por um louro oficial da Marinha brasileira.

No caso da literatura jornalística de João do Rio também podemos notar a forte influência da escrita de Oscar Wilde, cuja obra tentou traduzir para o português.

Mas não foram só os inquisidores que molestaram e desrespeitaram as preferências homoeróticas dos denunciados como desviantes, sodomitas, pederastas e, mais tarde, bichas, veados ou vinte e quatro. Ainda no século XVII o poeta barroco Gregório de Matos, cuja vida e obra também fora alvo da Inquisição, agredia em sua poesia satírica os que amavam pessoas do mesmo sexo. Não era só a branca e poderosa elite carioca que desprezava e ridicularizava o escritor homossexual João do Rio mas, também, o mulato e romancista Lima Barreto, figura secundária num cenário cultural no qual o mestiço Machado de Assis era idolatrado.

Lembremos ainda que na Revolta da Chibata, no início do século XX, o seu líder foi o Almirante Negro, o marinheiro João Cândido, homossexual que até era prendado nas artes, àquela época femininas, do bordado. Mais tarde o tão cantado insurreto da Marinha apoiaria as teses da Ação Integralista Brasileira e, em suas inúmeras entrevistas, nunca assumiu publicamente sua homossexualidade e, muito menos, o seu gosto pela aristocrática arte de bordar.

Na Semana de Arte Moderna paulistana de 1922, despontava e causava polêmicas (algumas de caráter persecutório ou difamatório) a obra do escritor também homossexual Mário de Andrade. Num de seus poemas, sobre seus funerais, Mário estipula o largo do Paissandú (praça da cidade de São Paulo com grande número de cinemas com freqüência gay na segunda metade do século que se encerra) como o lugar no qual queria que deixassem exposto o seu falo. Em várias fotos o autor de Paulicéia Desvairada apareceu em poses ostensivamente desmunhecantes.

Depois de Mário de Andrade, falecido em 1945, o nome literário mais importante da literatura brasileira com perfil biográfico homossexual é o romancista e ensaísta Lúcio Cardoso. Também notamos a temática homossexual presente desde o início do século XX nas obras O Atheneu de Raul Pompéia, Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos e até nos contos e romances de João Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Nos anos 60 e 70, no embalo da Contra-Cultura, da onda underground, junto com a ousadia tropicalista e o vanguardismo cinematográfico de Glaúber Rocha e de Rogério Sganzerla e do pós-Maio de 1968, e em plena geração do desbunde afloram em vários pontos do mapa literário brasileiro escritores e expressões com vivências e temáticas homoeróticas ostensivas mas não pornográficas, a saber:

— No Rio Grande do Sul, Paulo Hecker Filho, autor da novela Internato e Caio Fernando Abreu, contista e cronista.
— No estado de Pernambuco o contista e novelista Aguinaldo Silva.
— Em Minas Gerais o contista José Afrânio Moreira Duarte e a poesia de Osvaldo André de Melo.
— No estado de São Paulo o romancista, ensaísta e cineasta João Silvério Trevisan (autor de Testamento de Jonathas a David, Devassos no paraíso, Em nome do desejo e agora, há uns 3 anos, um dos mais elogiados escritores brasileiros com o lançamento de seu romance sobre a vida da mãe do escritor alemão Thomas Mann em terras brasileiras) e a poesia de Roberto Piva (autor de Coxas).
— No Rio de Janeiro, muito antes dos anos 60, já era destacada a literatura homossexual de Walmir Ayala. Nos anos 70 e 80 muitos escritores e escritoras contribuíram com jornais gays, como o mensário Lampião, mas depois preferiram desvincular suas escritas do rótulo gay preferindo distanciarem-se de todas as formas de dominação, seja heterossexual ou homossexual. Entre os escritores que assim procederam cito a poesia de Leila Miccolis. Atualmente, no interior do estado do Rio, destaco a poesia de Jorge Domingos, responsável por uma página gay no jornal sergipano de Ilma Fontes, O Capital.

No fim dos anos 70, no esgotamento do chamado “boom” literário latino-americano e ainda num contexto político gravemente marcado pelas ditaduras e autoritarismos acirrados pela “guerra-fria”, ganha ousadia e foros de empreendimento empresarial a imprensa gay no Brasil. Além da indústria de revistas pornôs gays, dos contos eróticos de Darcy Penteado, nasce o primeiro jornal mensal para militantes das causas homossexuais, Lampião, com sede no Rio de Janeiro e que tinha como editores Aguinaldo Silva, João Antonio Mascarenhas, Francisco Bittencourt, Darcy Penteado, Antonio Crysóstomo, Jean Claude Bernardet e João Silvério Trevisan. Um jornal que circulava em todo o Brasil, vendido em bancas e que durou de 1978 até 1980. Uma tribuna para militantes gays que contava com as contribuições de intelectuais acadêmicos como Edward Mc Rae e Peter Fry.

À mesma época do jornal Lampião, com o qual tive a honra de colaborar, vem a lume a literatura sado-masoquista e podólatra do paulistano Glauco Mattoso, autor de clássicos como: Jornal Dobrabil, O Calvário dos Carecas — História do trote estudantil, Manual do Podólatra, Centopéia, Paulisséia ilhada e Geléia de Rococó — Sonetos Barrocos.

Os respingos difamatórios do hipócrita autoritarismo latino-americano atingiram alguns dos membros do Conselho Editorial do Lampião (como nos casos do jornalista Antonio Crysóstomo e do crítico belga-brasileiro Jean Claude Bernardet). Mas o que abate o ânimo desta nascente e crítica imprensa cultural gay e a disseminação de grupos homossexuais por todo o Brasil são os processos discriminatórios e estigmatizantes agravados com o advento da SIDA/AIDS, cujos primeiros casos começam a pipocar no Brasil a partir de 1982.

A partir d’aí o maior empenho da militância gay no Brasil se dá no embate ideológico para se dissociar SIDA/AIDS da orientação sexual ou comportamental dos atingidos por esta epidemia, uma vez que o HIV não ataca preferencialmente nenhum grupo social mas, sim, a todos aqueles que viverem situações de risco considerável.

Quando digo que, num primeiro momento, o advento da AIDS abateu ou deteve o avanço e proliferação dos movimentos em defesa da cidadania dos homossexuais não estou dizendo que seja esta a única razão para tal abatimento.

Na verdade, a SIDA/AIDS e as questões da pós-modernidade ou da globalização trouxeram a necessidade de se buscar novos paradígmas que motivem ou reorientem a militância homossexual dirigida a adolescentes apáticos ou indiferentes a todos os tipos de retóricas militantes. Também a militância que tem como alvo um público mais maduro, calejado ou não disposto a incorrer em ousadias que o tenha feito sofrer, tem como obstáculo ou dificuldade maior para o seu ativismo político a tentativa de resgate da dignidade perdida entre os muros da sensatês, da privacidade e da intimidade inviolável dos que adotam estilos mais discretos de viver sua orientação sexual.

Por outro lado, a presente crise dos paradígmas diluiu conceitos, inviabilizou centralismos ou unitarismos e aprofundou processos fragmentantes. As especificações das preferências eróticas individuais nos universos homossexuais, fetichismos, fantasias e tesões por pés, por crianças ou por teens ou por kids, sadismos, masoquismos, busca de corpos lisos ou peludos, gordos ou magros, persistência e superação de dualismos maniqueístas como passivo e ativo, atração de homossexuais masculinos viris por travestis e toda uma gama indescritível de taras e de excitações selvagens, bizarras, além da questão do bissexualismo e da preferência sistemática pelo sexo grupal assim como buscas românticas e sentimentais de namoros rigidamente monogâmicos — tudo isso, em suma, estilhaçou os perfis, estígmas ou/e conceitos de homossexualismo no mundo contemporâneo. Até a proliferação dos guetos para homossexuais dividiu-os. Uns só vão a bares e buates, outros só são encontráveis em saunas e muitos só caçam em ruas e praças.

Retornam aos campos e perspectivas individuais o que antes era classificado como genericamente homossexual ou, pela internet, explicitam-se desvairadamente todas as fantasias passadas e presentes e futuras. Também se busca a articulação entre o erótico e o místico. Tal busca já era praticada no início do século XX na escrita de George Bataille, na dança de Nijinski e agora na poesia do brasileiro e capixaba (natural do estado do Espírito Santo) Valdo Motta, autor do livro de poesias Bundo, editado em 1997 pela editora da Unicamp, Universidade Estadual de Campinas.

Tudo isso e muito mais vem inviabilizando macro-projetos políticos unificantes ou mais abrangentes.

No Brasil, já se pode falar em Feminismo nos anos 30, com a extensão do direito de voto às mulheres (luta liderada por Berta Lutz e por Patrícia Galvão ou Pagú). Também nos anos 30 já ocorriam a organização de movimentos sociais urbanos em defesa dos direitos dos cidadãos negros (movimentos sufocados pela ditadura getuliana do Estado Novo — 1937/1945). Tais movimentos negros dos anos 30 chegaram a ter até jornais culturais para militantes. Estima-se em pelo menos quarenta por cento do total da população brasileira o contingente demográfico afro-brasileiro.

Estes movimentos negros do século XX já tinham o seu lastro histórico nas campanha pela abolição do escravismo, campanhas de brancos e negros travadas durante todo o século XIX.

Reprimidos durante a ditadura de Getúlio Vargas, só no fim dos anos 70 os negros voltariam a se mobilizar e a escreverem a favor dos seus direitos civis e humanos no conjunto da sociedade brasileira.

Durante o romantismo literário oitocentista os índios também tiveram os seus defensores. No início do século XX o marechal Cândido Rondon foi outro baluarte em defesa dos índios, hoje organizados por ongs católicas ou religiosas estrangeiras. Enfim, os homossexuais foram os últimos a aparecerem na cena política brasileira contemporânea. Mas até hoje nossos parlamentares, magistrados e ministros não ousam explicitar suas tendências e impulsos homossexuais.

Hoje temos vagos, ambíguos e contraditórios dispositivos constitucionais que garantem cidadania a todos os credos, etnias, culturas e orientações sexuais, mesmo que interconflitantes. Já discutimos em nossos parlamentos a legalização de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo (discussão considerada não prioritária pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em recente entrevista) e há pouco mais de 2 meses juizes pernambucanos reconheceram como direitos dos presos homossexuais a regularidade das visitas íntimas. Mas, por outro lado, a homofobia, o preconceito e a hipocrisia continuam a fazer numerosas vítimas na provavelmente numerosa população gay brasileira.

Em termos de emancipação civil dos homossexuais, o Brasil parece estar ultrapassando os horizontes passageiros dos 3 dias de Carnaval, o folclore luso-tropicalista do ícone Carmem Miranda e se conscientizando que o preconceito segrega, isola, violenta, indigna e mata. Mas este processo histórico-cultural é lento e só a livre discussão sobre nossas sexualidades nos garantirá uma secular ruminação e posterior expurgo das nossas hipocrisias ou a superação dos nossos conflitos mais íntimos.

(texto das palestras proferidas por José Luiz Dutra de Toledo no dia 15 de Janeiro de 2000 na Opus Gay de Lisboa — Portugal e no dia 22 de Janeiro de 2000 na Opus Gay Norte da cidade do Porto — Norte de Portugal)


 

 

 

Bitware, Hardware e Software

 

Os habitantes das fozes dos rios de la Plata e Tejo são semelhantes em suas melancolias e nostalgias, em seus tangos e fados, bordéis e passionalismos. Fico com a impressão de que, tanto Montevideo quanto Lisboa e seus numerosos antiquários, respiram a tristeza do encontro diluidor da alma de um rio com o infinito oceânico, a foz como o fértil vale do fim!...

Os senhores e patriarcas da Antiguidade foram os primeiros a demarcarem seus domínios instituindo fronteiras. Agora a globalização implode e explode todas as fronteiras e eleva as mulheres a símbolos de discutíveis nacionalidades. Carmen Miranda era portuguesa embora seja um ícone da cultura brasileira. Sarita Montiel era de Montiel, cidade atrelada ao centralismo madrileño. Evita Perón era a padroeira dos descamisados argentinos embora fizesse o jogo das elites portenhas. Brigitte Bardot destronou Edith Piaff e sagrou-se símbolo da França, mas hoje está se comportando como uma mera garota propaganda da extrema direita francesa, que pena! Abaixo Le Pen!... Gina Lolobrígida e Cláudia Cardinalle ainda disputam o cetro de musas da Itália nadando em borbulhantes águas frisantes. Golda Meir disputa no céu, até hoje, com o general Moshe Dayan, os louros da vitória israelense na guerra dos seis dias. Margareth Thatcher disputa com Lady Diana o cetro de mulher símbolo da Inglaterra do século XX. Assim como Benazir Butho em seu Pakistán; Melina Mercury na Grécia pós-coronéis e Jackeline Kennedy e Marilyn Monroe se rivalizam na condição de mulher símbolo da sociedade estadunidense no século que expira daqui a 9 meses. Indira Ghandi foi a mulher que melhor representou a Índia na segunda metade do século XX. Amália Rodrigues, quando tiver seus despojos acolhidos pelo Mosteiro dos Jerônimos, reinará impassível com o cetro de mulher símbolo de Portugal novecentista. A ministra portuguesa da Igualdade Social, Maria de Belém, esteve em Janeiro de 2000 visitando camponesas do Alentejo e delas recebeu uma muito significativa reivindicação para quem sofre os rigores januários do inverno: uma agência matrimonial para trabalhadores rurais das diversas províncias lusitanas. No metrô de Lisboa, em meados de Janeiro deste ano 2000, fui assediado sexualmente pelos olhares nada inocentes de uma menina de 12 anos com uma flor de sífilis aberta num canto logo abaixo do seu lábio inferior. A estas horas deve estar em plena atividade sexual naqueles escuros bosques urbanos dos cinemas lisboetas da praça Restauradores o meu amigo gay cinqüentão Carlos Alberto Pinto.

Se a internet é a medula espinhal da globalização, o computador é a representação tecnológica dos labirintos das nossas entranhas cerebrais e abdominais. O cérebro é software, o intestino é hardware e o coração é bitware.

Um grande amor ou uma grande mentira se confundem nas sensibilidades dos infelizes e inviáveis seres humanos.

Uma forma de transgredir fronteiras é viajar, sonho cada vez mais realizável nestes tempos de globalização. Desde Marco Pólo os registros dos viajantes atraem leitores e hoje, ao lado das biografias e memórias, é um dos gêneros literários mais populares.

Cecília Meirelles, que viajou por todo o Brasil, por vários países europeus e até pela Índia, nos deixou uma inesquecível distinção entre o viajante e o turista. Para esta nobre escritora brasileira, o viajante se entristece ao longo do seu silencioso diálogo com os seres de todos os tempos que pululam ou circularão pelas paisagens e cenários por ele amorosa e profundamente olhados, observados com a sensibilidade dos que não pensam dominar o objeto da sua atenção. O turista é um voraz e alegre consumidor de imagens, fotos, cartões, folders, souvenirs comerciais, colecionados e vaidosamente enviados aos parentes e amigos, repassador de fragmentos fotográficos e iconográficos daquilo que ousa dizer alegremente que conheceu, atravessou, percorreu e dominou. Os turistas são bem aqueles que atualizam a célebre frase militar e imperial romana: fui, vi e venci. Os viajantes são peregrinos em busca de migalhas e relíquias culturais, entrevistas ao longo do profundo diálogo atemporal com o que viram, com o que o coração sentiu e com o que impressionou seu cérebro. De uma janela de auto-bus, de avião ou de trem lemos as paisagens e as memórias a nós sugeridas ou sutilmente anunciadas nos sagrados livros, peças teatrais e filmes ou óperas que nos incitaram, que nos impeliram àquela viagem, àquele ousado sonho transposto para o real. Eu sei que vivi 16 dias de Janeiro do ano 2000 entre dois países europeus. Agora, no dia-a-dia brasileiro, tenho a sensação que, por mais de duas semanas, estive num outro mundo, em sonhos e pesadelos que só agora rumino, absorvo e digiro. Quem se sente num mundo não acredita que estivera em outro. Pisar e dormir do outro lado do Atlântico, de onde vieram nossos ancestrais europeus e africanos há incontáveis anos, é muito comovedor e inquietador. Todo mergulho nas origens nos marca muito profundamente. Viver esta experiência era e continua sendo um dos objetivos mais importantes da minha vida. Um objetivo parcialmente realizado, mas que nunca seria plenamente vivido. Impossível. Eu sei porque o é e até onde devemos ousar. Além do bem e do mal.

O apito de uma fábrica em Ribeirão Preto ainda me lembra aquelas cantigas dolentes de carros de bois. Na noite de quinta feira, 16 de Março, devorei horas de internet e na sexta feira acordei tarde como um Drácula incomodado pela luz solar.

Adoro macarronada com tutu acebolado e angu. Roncar de barriga cheia domingo à tarde não é pecado, mas é deprimente. Dezessete horas e trinta minutos: falta só meia hora para começar mais um fim de semana. Hummm!... Que preguiça!... Valha-me, São Fabrício!... “Acho que a imperfeição é que torna as pessoas interessantes” — nos diz o designer Barry Deck. E eu conclamo: — Idosos de todo o mundo, uni-vos!... São estas as sombras da realidade da sétima idade ou é acaso a realidade a sombra do outro mundo, de um mundo divino codificado no almanaque perpétuo do etéreo olhar faústico sobre o orbe descortinado numa janela de avião em vôo transcontinental? Hiroshima, meu horror. “Eu não sou ateu, ainda que não creia em Deus e nem tampouco reze”. — Emil Ciorán, filósofo e escritor romeno-francês. O mundo ainda é uma zona em obras nos desaparecidos reinos da Indonésia ou na pós-diluviana Moçambique. A guerra da Tchechênia é outro pesadelo do fim do século XX. (...) “O teatro será localizado o mais próximo possível, na sombra efetivamente tutelar do lugar onde se guardam os mortos ou do único monumento que os digere”. — Jean Genet, ladrão, homossexual e teatrólogo francês. (...) “Sei que a tentativa comunista de mudar o mundo foi um fracasso. Mas o fato de constatar o fracasso não me impede de pensar que esta sociedade é injusta e é preciso modifica-la. Mas não sei como...” — Jorge Semprun, escritor e filósofo espanhol contemporâneo. (...) “Querer fugir à globalização é uma receita de caramujo ou avestruz. É uma receita de suicídio”. — Roberto Campos, economista e ex-ministro brasileiro. (...) “Engana-se quem pensa que o capitalismo é o regime do dinheiro. Ele é o regime dos contratos. O dinheiro existiu em regimes não-capitalistas. No capitalismo a moeda circula pelo contrato”. — Renato Janine Ribeiro, historiador e professor universitário paulista. (...) “Aliás, são sempre os outros que morrem. Os homens são mortais, os quadros também. Não creio na palavra “ser”. O conceito de ser é uma invenção humana. Arte é a falta. Gosto dessa idéia, e mesmo que ela não seja verdadeira eu a aceito como verdadeira.” — Marcel Duchamp, anti-artista francês nascido em 1887. “Inútil, a gente somos inútil!... Inútil, a gente somos inútil!" — Titãs. Criado pela Rádio Voxx de Lisboa o primeiro programa radiofônico gay português com edição nacional transmitida por emissoras do Porto, Coimbra e Lisboa. Chama-se Vidas Alternativas. E tem uma seção até para o específico segmento dos gays motoqueiros portugueses. Segundo o jornal The Brasilians, da comunidade brasileira de New York, em seu vigésimo oitavo ano e em sua edição número 294, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan considera o Brasil “a maior atração turística, reflexo de uma cultura da Paz. (página 4 E). Do repertório ibero-americano e internacional da fadista portuguesa Amália Rodrigues, a música que mais me emociona é Barco Negro. Estridentes palmas fecham o filme El último cuplé, o último estrelado por Sarita Montiel, em 1966. Entre todos os seus filmes, este é o que menos me agrada.

Principalmente porque a melhor garota propaganda da barroca melancolia da Espanha franquista mostra cenas sangrentas das horrendas touradas de Madrid. Viva Carlo Saura..! Viva Luis Buñuel e Goya de Aragon!... Viva Pedro Almodóvar!... De tanto sonhar eu agora só quero dormir. Dormir o sono eterno das pedras. Protegido pelas dentadas muralhas que sugaram meus antepassados. Embalado pela terra na qual se enraizaram as mais generosas e labirínticas florestas deste mundo. Dormir o sono atemporal ouvindo o eterno canto das cachoeiras do Universo. Cachoeiras de estrelas, de liquens e de asteróides...E eu, sereno, soluço em paz... aquele alívio reconfortante e regenerador. E, assim, recomeçam os ciclos, os séculos e as bicicletas nos levam às paisagens de outros tempos e de outros mundos.


 

 

 

Cartografia das interseções entre a minha alma e a do pintor irlandês Francis Bacon nascido em 1909 e finado em 1992

“Diferente de Aristóteles, por exemplo, que diria ser a matéria o que preenche o vazio, para Jacques Lacan a matéria é o vazio. O essencial é o buraco.”
Neusa Santos Souza

 

Em busca arqueogenealógica das camadas distorcentes de outras formas essenciais da aparência, fui percebendo e registrando o acidental que, mesclado com o irracional, conduziam-me a uma série de transformações inesperadas. Nem eu nem meus objetos tinham uma existência estática e isto tirava o sentido da minha pesquisa. Às vezes temos que nos contentar apenas com aquilo que tenha chegado mais próximo do que almejávamos. Tento expressar os arrepios e as sensações que correm pelo meu sistema nervoso. Uma expressividade penetrante e instintiva. Quanto mais nítida e precisa melhor. O olhar brilhante que vi nas fotos do ancião Romain Roland me lembrava o visar de uma águia dos Alpes. O máximo que conseguimos é uma precisão muito ambígua. No fundo, estas nossas tentativas desesperadas de sermos completamente livres repousam numa recusa radical da dor de morrer e de ser esquecido. No nosso caso, toda a pintura é fruto do acaso. Prevejo a imagem, mas dificilmente ela será executada como fora prevista. Apenas selecionamos traços e manchas do imprevisto. Selecionamos e preservamos a vitalidade do imprevisto. De repente a coisa se transformou exatamente na imagem que eu estava tentando reproduzir. Como um touro bravio com feno nas aspas, a fenomenológica brutalidade fatual se revelou. Mas tal manifestação ontológica não veio à tona por causa de uma vontade ou de uma intenção consciente. Heidegger ou Jaspers explicam? Só assim penso uma pintura mais profunda, que transmita a essência da imagem. Uma pintura que remete o espectador à vida com mais violência. Algo mais profundo do que o que fora desejado no princípio. Minha maneira de trabalhar é e está cada vez mais acidental. Como recriar o acidental? É algo quase impossível de se fazer. Um problema difícil de ser expresso com palavras. Algo que tem a ver com o instinto. É uma coisa difícil, muito difícil e íntima saber porque certa pintura toca diretamente no sistema nervoso. Trabalho ininterruptamente com esta coisa básica. O quadro exerce um efeito hipnótico sobre mim e eu não consigo ficar longe dele. Quando o termino, tiro-o da minha frente o mais rápido possível para não estragá-lo. Sou como uma porca que devora seus porquinhos. Quando têm algum valor, deixam vestígios na lembrança que nunca consigo reconstituir depois. Antes de começar a pintar não cometo esboços ou desenhos. No caso da minha pintura isso não ajuda muito. Vejo cada uma das imagens em constante transformação, numa seqüência de mutações. Isto explica porque pinto séries temáticas de quadros. Não consigo pintar todos os quadros que desfilam pelo meu pensamento porque eles, evidentemente, desaparecem. Infelizmente ainda não consegui pintar aquela imagem que seja capaz de reunir em si todas as outras. Por isso, uma imagem do lado da outra parece que pode comunicar muito mais. Mais uma vez estamos vivendo uma época muito primitiva e não há como evitar que sejam estabelecidos enredos entre as imagens.

Eichmann, em 1962, foi julgado em Israel, dentro de uma caixa de vidro. Figuras pintadas em três diferentes telas evitam ou dificultam a construção de enredos enganadores. Sempre me tocaram muito os matadouros e açougues da nossa civilização da crucificação que, hipocritamente, sugere elegância em roupas com peles de animais, come vorazmente carnes, bebe incessantes jatos de leite e abomina touradas. Existem excelentes fotos de animais tomadas um instante antes de os bichos serem abatidos. Toca-me o cheiro da morte. Parece que os animais sabem do que vai acontecer com eles e fazem tudo para ver se conseguem escapar. Sou como um animal condenado a um inferno mas que nunca perde a esperança de fugir vivo do suplício eterno. Vivemos muito perto de todo esse lance da crucificação. Para um ateu a crucificação não passa de um ato de comportamento humano, uma forma de comportar-se em relação ao outro. Tenho obsessão por fotografias e vejo o retrato do papa Inocêncio X pintado por Velásquez entre os grandes retratos que já se fez no mundo. No Vaticano entrava em êxtase nas procissões em que carregavam o papa Pio XII em opulentos andores barrocos. A figura única em sua grandeza, heróica e trágica do papa alçada a um palanque para que a sua imagem histórica seja exibida ao mundo. O herói trágico é necessariamente alguém que se encontra numa posição acima dos outros homens. Em Velásquez, o caminho à beira de um precipício deixa à mostra as coisas mais profundas e fortes que um homem pode sentir. Incrivelmente misterioso. Depois que Deus morreu, restou ao homem iludir-se durante algum tempo com alguma maneira de se conduzir, seja tentando prolongar sua vida ao comprar da mão dos médicos uma espécie de imortalidade ou se distraindo nos jogos da vida e das artes. Hoje a arte se transformou totalmente num jogo. E ao artista sobrou a difícil tarefa de aprofundar nesse jogo se quiser ser aceito. Mesmo afastando-se dos modismos místicos, Francis Bacon pintou a máscara de William Blake em 1955. Nosso sentido de aparência é o tempo todo assaltado pela fotografia e pelo filme. Noventa e nove por cento das vezes acho as fotografias mais interessantes do que a pintura. Pela sua proximidade violenta com o fato, as fotos captam mais finamente a realidade e detonam minhas idéias. Corpos radiografados, fotos policiais de perfis de bandidos, bocas durante ou em pleno grito, olhos rompidos por tiros (como o da empregada que deixa o carrinho com o bebê rolar escadaria abaixo em Odessa, no filme O Encouraçado Potemkin de Sergei Eisenstein) ou por uma navalhada (como no filme Un chién andalouz do aragonês Luis Buñuel), ou o olhar pânico na tela O massacre dos Inocentes pintada por Nicholas Poussin, desenhos coloridos a mão sobre doenças que dão na boca em um livro comprado num sebo, retratos 3x4 e tranças de crianças e mulheres expostas em salas de ex-votos, seqüências de fotos de luta de boxe ou imagens e movimentos de animais selvagens valem-me como um dicionário de temas pictóricos. Bacon abominava os templos católicos mas ficou vagando meses pela basílica de São Pedro sem ter coragem de encarar o original retrato de Inocêncio X pintado por Velásquez e por ele tantas vezes distorcido e idiotamente desfigurado. Eu me deslumbrava por longas horas e séculos de expectação piedosa diante dos santos da igreja Matriz da minha aldeia natal e, neste mesmo templo, horrorizava-me com a imagem de roca de Nosso Senhor dos Passos com sua cabeleira humana ensangüentada e sua túnica de veludo roxo escuro e apavorante. Hoje uma foto desta imagem paira sobre os computadores nos quais trabalho várias horas por dia. A distorção pode ser uma forma de resgate da aparência desejada. Pintar é lembrar violentamente. Prefiro fazer essas violências às escondidas. Cada pessoa tem sua própria maneira de transmitir o sentimento e a sensação da vida. Como o artista no mundo atual está distante das tradições, resta-lhe somente registrar seus sentimentos, ficar o mais próximo possível de seu sistema nervoso. Açougue e crucificação, enormes pavilhões de frigoríficos, boutiques e shoppings de carnes atraentes e excitantes, salões cheios de cadáveres com seus suores cheirando adubos nos labirínticos percursos da minha incessante imaginação. Num açougue penso que é surpreendente eu não estar ali no lugar do animal. Senhores e senhoras neuróticas, com grilos e tiques nervosos ou pássaros nos cabelos não são apenas temas surrealistas do nosso mundo. Não consigo esquecer o cheiro da lavanda que o barbeiro de Tabuleiro — minas Gerais passava em meu pescoço de menino quando terminava seu serviço. Nem das emoções de uma Ave Maria entoada numa rádio carioca dos anos 50 e 60 ás seis da tarde. Nunca consegui pintar o riso.

Gosto da impessoalidade da roleta, odeio o personalismo que marca as atitudes dos jogadores de bacará. A pintura é como um jogo de azar. Vivo, pode-se dizer, em meio a uma miséria dourada. O luxo pode ser entediante. A sorte, que eu chamaria de acaso, é um dos aspectos mais importantes e ricos do meu trabalho. Crio só a partir do momento em que conscientemente já não sei o que estou fazendo. Ensejo uma armadilha para agarrar o fato em todo o seu instante de plenitude. Quero construir uma imagem bem ordenada, mas quero que ela resulte do acaso. Eu gostaria que as coisas ocorressem facilmente, mas não se podem impor regras ao acaso. A meu ver a textura de uma pintura parece mais imediata do que a textura de uma fotografia. A pintura parece tocar imediatamente no sistema nervoso. Quanto mais duráveis sejam as imagens, mais elas nos impressionam. A arte brota verdadeiramente e instintivamente de um desejo ordenante de reconduzir o fato ao sistema nervoso de uma maneira violentamente reveladora. De geração a geração, por causa daquilo que os artistas fizeram, os instintos se modificam. E com a mudança dos instintos renovam-se nossas sensibilidades. Quem mais do que o espectador para gostar de casos de amor fracassado e de doenças? Acho que só o tempo diz o que uma obra é. Nenhum artista sabe em seu tempo de vida se existe qualquer sombra de qualidade no que faz. As imagens humanas são rastejantes como uma serpente sobre uma cruz. Busco realizar minhas vontades instintivas. A arte é uma obsessão pela vida. Como somos seres humanos, nossa maior obsessão somos nós mesmos. Se fosse ficar irritado com o que dizem, viveria em estado de constante irritação. Gostaria de proporcionar emoções sem o tédio da comunicação. Uma história é um tédio com começo, meio e fim? Acho que estamos numa posição muito curiosa hoje, porque não existe qualquer tradição, o que existe são dois pólos extremos. Há o depoimento direto que é muito parecido com um relatório de polícia. E há a tentativa de se buscar uma arte maior. Apreenda o objeto em seu estado bruto e pleno e o fossilize. Amizade é o que ocorre quando duas pessoas brigam muito e, no mesmo tanto, aprendem uma com a outra. A crítica destrutiva é a que mais ajuda. As pessoas se envaidecem muito mais pelo que fazem do que pelo que são. As escolas de arte nada têm para dar aos artistas de hoje. Lamento muito não ter estudado grego antigo. Eu era um desses tipos atrasados, há pessoas que são assim, custam a começar. O fato é que nunca me dei bem nem com meu pai nem com minha mãe. O pai de Francis Bacon era um militar treinador de cavalos, o pai de Pier Paolo Pasolini também era um militar italiano e o meu pai era um comerciante, também foi um açougueiro que espancava até matar os cachorros ladrões de filé e chorava cantando músicas interpretadas por Vicente Celestino. Nós dois, eu e Francis Bacon, sentíamos atração sexual pelos nossos pais. Dizem que a gente esquece a morte, mas não esquece. O tempo não cura. Todas as pessoas de quem eu realmente gostava morreram. Por isso me concentro numa obsessão de fazer artisticamente aquilo que motiva fisicamente minha obsessão. O drogado está crucificado e imobilizado por seringas em seu leito de prazeres, amores, dores e pesadelos. Se a vida emociona, a morte — seu oposto ou sua sombra — também deve emocionar. Vida e morte são faces de uma mesma moeda. Sempre me surpreendo quando acordo de manhã. A gente pode ser otimista e não ter esperança. O tempo todo a gente sente que a vida é rondada por uma sombra. Francis Bacon viveu na Irlanda, na Inglaterra, em Berlim, em Paris, em Monte Carlo, entre jogos, perigos, violências... Eu vivi em Minas Gerais, Rio grande do Sul e São Paulo, viajei pelo Brasil e até outros países movido por nostalgias e ousadias. Vivemos encobertos por véus que impedem que vejamos as imagens que se erguem deste planetário rio de carnes. As gordas que me perdoem mas tenho que dizer: o marido de Dorotéa surrou-a até matá-la. As pessoas tentam enxergar enredos escondidos na obra de arte e sentem falta de uma certa ficção na arte que se produz hoje. Minha pintura está preocupada com o meu desespero arrebatador. Poças de sangue, figuras que parecem surgir da carne ou de um pântano de espermas e óvulos, lancinantes como uma crucificação. O que eu gosto mesmo é de espaço. Talvez eu não tenha espírito público. Gostaria que sobrasse alguma coisa de mim depois de morto. Simplesmente por vaidade. Sou um homem espetacularmente barroco. Afinal, ser artista é no mínimo uma forma de vaidade. E essa vaidade pode ser mergulhada na idéia, racionalmente fútil, de imortalidade. Metade do meu trabalho em pintura consiste em romper com aquilo que posso fazer facilmente. O derramar da tinta realmente é aleatório. Gosto da pintura que é altamente disciplinada e, ao mesmo tempo, uma coisa feita ao sabor do instante. A tinta tem uma aparência de imediatismo. Trata-se de usar o acaso para obter um resultado que pareça controlado. O artista é orientado pelo instinto. Ou desorientado? Não se pode falar de instinto porque você não sabe o que é isso.

O tempo todo está acontecendo um mundo de coisas, e é difícil distinguir o trabalho consciente do trabalho inconsciente ou instintivo, se preferir chamá-lo assim. “Eu não preciso jogar jogos de azar, porque o tempo todo trabalho com ele.” — Pablo Picasso. Quase sempre existe no acaso um tipo de inevitabilidade que as pinturas voluntárias da tinta não lhe dão. É impossível falar sobre o acaso quando não se sabe o que ele é. Seria como tentar explicar o inconsciente. Eu sei o que quero fazer, mas não sei como fazer. As melhores obras dos artistas modernos são aquelas que quase sempre dão a impressão de terem sido feitas sem que eles soubessem o que estavam fazendo. Intuição e senso crítico são ingredientes básicos neste amálgama misteriosamente criador. “No ato da criação, o artista passa da intenção á realização através de uma cadeia de reações totalmente subjetivas. Sua luta pela realização é uma série de esforços, dores, satisfações, recusas, decisões, que também não podem, nem ser completamente conscientes, pelo menos no plano estético.” — Marcel Duchamp — Houston, 1958. O mistério da pintura hoje é a maneira porque se poderia reproduzir a aparência. Algumas pinceladas ao acaso, algumas madeleines numa xícara com chá de tília faz milagrosamente com que resgatemos, com uma clareza fenomenológica, o aparente. Pois, como na caverna de Platão, as sombras são reflexos dos seres e da luz. Quando se faz uma imagem absolutamente perfeita não se fará mais nada na vida. Não paro de ver imagens. Viver é ver imagens. Michelângelo e Muybridge se misturam em minha mente. Os movimentos dos animais e dos homens aparecem interligados em minha representação do movimento humano. A aparência é resgatada num momento especialmente mágico. O que chamamos de aparência só se mantém momentaneamente como aparência. É como uma coisa fugaz e continuamente flutuante e caleidoscópica. Algo, ao mesmo tempo, preciso e ambíguo como Deus? Quando a vontade é subjugada pelo instinto configurador do acaso, os níveis mais profundos da personalidade vêm à tona. Os acasos mais frutíferos tendem a acontecer nas ocasiões de maior desespero. Sou voraz para comer, para beber, para estar com as pessoas de quem gosto, para vibrar com as coisas que acontecem... Tenho uma enorme fome de vida. Fazer o que quero significa, se possível, viver. Não tenho nada contra roubar. Ser criado pelo Estado, desde o berço até a sepultura, faria da vida uma grande chatice. Jamais me guiei pela moral do pobre. Nada mais chato do que tudo garantido desde o nascimento até a morte. A instabilidade vital aumenta o instinto criativo. A injustiça social faz parte da própria natureza da vida. Não me sinto tocado pelos sofrimentos decorrentes de injustiças sociais. Eu não fico abatido com o sofrimento das pessoas porque acho que o sofrimento delas e a desigualdade entre elas são o que criou a grande arte, e não o igualitarismo. Tudo o que se pensa até hoje é no que um povo deixou e nunca nos importamos se tal povo viveu feliz. Admiro o dessemelhante miraculosamente semelhante. As pessoas andam morrendo à minha volta como moscas. Sou contra a cremação dos corpos porque acho que daqui a milhares de anos, se o mundo ainda existir, será muito chato não haver ninguém para desenterrar. Tento captar não só a aparência mas também a maneira como ela nos impressiona. “Todos os dias quando olho no espelho eu vejo o trabalho da morte.” — Jean Cocteau. A gente existe por um segundo e depois é varrido como as moscas numa parede. “As moscas para os garotos inconseqüentes são como nós para os deuses. Eles nos matam por esporte.” — Gloucester. Acho que a vida não tem sentido, mas lhe damos um sentido durante nossa existência. O hedonismo atual está deixando nossas vidas cada vez mais chatas. Uma vida religiosa sentindo medo de Deus é mais interessante que uma vida hedonística e inconseqüente. Não posso deixar de admirar e também de desprezar essas pessoas que, com total falsidade, pautam a vida de acordo com suas idéias religiosas. A única coisa que torna uma pessoa interessante é a sua capacidade de dedicar-se. Quando se consegue encontrar alguém totalmente sem religião e totalmente dedicado às futilidades da vida, a gente está diante de uma pessoa bem mais interessante. Penso sempre em mim não como um pintor, mas como um humilde instrumento do divino acaso chamado de sorte. Não é o quadro o que me emociona mas o fato dele abrir dentro de mim as válvulas das sensações que me jogam de volta à vida de uma forma ainda mais violenta. Sinto que sou essencialmente. Cada vez mais estou vendo menos gente na vida. Acho que isto ocorre à medida que vamos envelhecendo.

Entre o real e o artificial procuro o inesperado surpreendente. Sem a intenção nada começamos. A surpresa tem precedência sobre a intenção. Uma fruta ou um pão em cima de uma mesa estão repletos de mistérios. Sempre soube que eu era influenciado por T. S. Eliot. O cinismo verdadeiramente divino e diabólico de Shakespeare sempre me embriagará. O que pode haver de mais cínico que Macbeth no final dizendo: “Amanhã, e amanhã, e amanhã”? Nunca sinto vontade. À medida que a gente vai trabalhando a vontade vai aparecendo. Persigo a realização das possibilidades que estão sempre nos escapando. Nem eu nem ninguém precisa de férias. Isso não passa de uma convenção. Abomino os dias de feriado. Vivo sempre em estado de tensão e só me sento um pouquinho para ler. Durante toda a minha vida tive pressão alta, confidencia-nos F. Bacon. Só com uma dose de morfina F. Bacon, quando era mais jovem, pôde relaxar durante uma forte crise de asma. Talvez, um dia, ainda consiga pintar uma onda quebrando-se na praia. Não gosto de boa parte da obra de Picasso, mas nem por um segundo senti que ele fosse deficiente de imagens. A imagem é mais importante do que a beleza do quadro. A pintura é uma ocupação de gente velha. Van Gogh fala da necessidade de se introduzirem mudanças na realidade que se transfiguram em mentiras mais verdadeiras do que a verdade propriamente. Quando se pinta um retrato o problema é encontrar uma técnica capaz de expressar todas as vibrações de uma pessoa. A aparência e as emanações de uma pessoa estão intimamente relacionadas com sua energia. Você na rua vê de longe uma pessoa que conhece. É capaz de dizer quem é apenas pela maneira como ela anda, como se movimenta. É a isso que Walter Benjamin chamava de aura. A intensidade exige concisão. Uma vez disfarçada a forma, a intensidade seria dada pelo colorido da carnadura. Não existe mais um naturalismo na pintura de hoje. Talvez as imagens acidentais sejam mais reais. Porque não foram modificadas pelo pensamento consciente. Estamos saturados de todas as artes. O ponto de saturação agora abateu tão em cheio que a gente só deseja novas imagens e novas maneiras de criar realidades. O que se deseja é o novo. O tema é a isca. A brutalidade do fato. “Meu pai e minha mãe” — disse Francis Bacon — “nunca estavam satisfeitos com o lugar onde moravam”. Meu pai vivia reformando nossa casa e eu sempre lamentava tais reformas ficando com saudade da casa que tínhamos antes destas incômodas mudanças de cenários. Quando a gente é moço existe sempre alguém que nos ajuda, porque as pessoas sempre gostam de nossa juventude. Inventei minha própria escrita rápida, passei por muitos escritórios fazendo serviços dos mais esquisitos, trabalhei num atacadista da Poland Street e fui cozinheiro de um cara que morava em Mecklenburgh. Sou muito influenciado pelos lugares, pela atmosfera desta sala por exemplo. Adoro viver no caos. Gosto de tudo limpo e não gosto de ver pratos sujos e nem as coisas emporcalhadas, mas gosto de uma atmosfera caótica. Poeira é o que não falta aqui. Incorporo a poeira cinzenta recolhida em meu ateliê às minhas pinturas. A poeira parece eterna, parece ser a única coisa que dura para sempre. Permanece. A poeira pura parece perfeita para um terno cinza de flanela. Não entendo nada de durabilidade. Eu me sinto muito mais solto quando estou sozinho. Trabalho envolto por uma espécie de neblina feita de sensações, sentimentos e idéias. Não estou pretendendo dizer nada, estou só procurando fazer alguma coisa. Trabalho para mim mesmo. Como se pode trabalhar para um público? O que você imagina que um público possa querer? “Em política, voto em geral com a direita. — diz Francis Bacon — “porque ela é menos idealista que a esquerda. Dessa forma há mais liberdade, não se fica tão emperrado pelo idealismo da esquerda. Sempre achei que a direita consegue ser menos ruim”, conclui. A crueldade de Luis Buñuel era um meio de revelar a humanidade em toda a sua grandeza? Qualquer coisa em arte parece cruel porque a realidade é cruel. Não se pode ser cruel no esteticismo atemático e acrítico da arte abstrata. Acho que as pessoas estão tão amarradas a seus egos (camadas superpostas de preconceitos) que preferem o tormento ao aniquilamento.

(Texto criado a partir da leitura e do fichamento do livro: Entrevistas com Francis Bacon — A brutalidade do fato — entrevistas feitas por David Sylvester — São Paulo — Cosac & Naify Edições — 1995


 

 

 

Confluências entre as escritas de George Bernanos, César Vallejo, José Lézama Lima e Virgílio Piñera

 

O que teria a ver entre a catoliqueria do mestre José Lézama Lima, a mística poesia romanesca do escritor católico francês George Bernanos, a indignada ousadia picaresca do poeta anti-lezamiano Virgílio Piñera (possível tentativa de ponte entre o neo-barroco cubano de Lézama e de Severo Sarduy e o sensualismo nostálgico do estilo neo-barroso transplatino de Nestor Perlonguer, Osvaldo Lamborghini, Héctor Piccoli, Emeterio Cerro e, por que não?, Lautréamont) e o andino César Vallejo a nos proclamar, em Maio de 1929, que: “Não sou conservador nem liberal. Nem burguês nem bolchevique. Nem nacionalista nem socialista. Nem reacionário nem revolucionário. Pelo menos não fiz das minhas atitudes nenhum sistema permanente e definitivo de conduta. Tenho, no entanto, a minha paixão, meu entusiasmo e a minha sinceridade vitais. (..) Quer me parecer que, em meio ao que, no meu caso, se poderia chamar de anarquia intelectual, caos ideológico, contradição ou incoerência de atitudes, há uma vital unidade orgânica e subterrânea“?

É no mais ou menos legível envolvimento com os vanguardismos (surrealista e psicanalítico) do início do século XX, é na busca de simbologias de uma solar unidade em meio aos dionisíacos fluxos fragmentantes ou na maior ou menor distância que estes quatro escritores viveram em relação ao pathos católico que percebo, com nítida complexidade, as confluências entre as obras literárias de Vallejo, Bernanos, Lézama e Piñera.

Leon Bloy fez a ponte entre seu discípulo G. Bernanos (de Um cemitério sob o luar) e o pré- surrealista e sádico poeta neo-barroso franco-uruguaio Isidore Ducasse (Lautréamont). A erudição católica de Leon Bloy e a erudição neo-barroca entranhada na catoliqueria de J. Lézama Lima (voraz e obstinado leitor de Paul Claudel de O anúncio feito a Maria), o seu idílio e duelo de amor e ódio com o arrogante e pobre desbocado Virgílio Piñera e o utopismo eclético e ecumênico de C. Vallejo são horizontalidades superficiais e verticalidades espirituais nas tessituras dos bordados barrocos dos lençóis brancos engomados de esperma e suor da riquíssima literatura hispano-americana do século XX. Não nos esqueçamos que Bernanos viveu um setênio de sua vida nas Minas Gerais, cenário de pelo menos três das suas obras.

“Cada homem comendo pedaços da ilha, cada homem devorando seus frutos, as pedras e o esterco nutriente. Cada homem mordendo o lugar desejado por sua sombra, cada homem lançando dentadas no vazio onde o sol se esconde do mar... cada homem no rancoroso trabalho de recortar as margens da ilha mais bela do mundo... a mula, com seus olhares cruzados por vagalumes, tão perigosa como um belo macho, atravessa diariamente os quatro momentos caóticos, os quatro momentos nos quais se a pode contemplar, com a cabeça metida entre suas patas, perscrutando o horizonte com olhar atroz, os quatro momentos nos quais se abre o câncer: a madrugada, o meio-dia, o crepúsculo e a noite.” (Virgílio Piñera, em seu poema La isla en peso).

Entre o aparente dualismo unitário de Bernanos; o caos poético e universalista de Piñera; o gauchismo de Lézama, Piñera, Bernanos e Vallejo; Lézama, em busca de um sistema poético do mundo, citava o abade de Vogler: “Fazer de três, não um quarto som e, sim, um astro.” Um sol eucarístico, símbolo de unidade. E, corroborando o que vos digo, Lézama citava o medieval Nicolau de Cusa: “O máximo se entende incompreensivelmente.” Em Lézama antevejo globalização, uma globalização mistérica num fluxo caótico de citações, um rosário de imagens de todos os cantos do mundo (como costumava fazer Santo Ambrósio ao descrever as vaidades femininas no fim da Idade Média européia): “Isabelle, a irmã de Rimbaud, que tinha o rosto parecido com o destas místicas polonesas que, um dia, dormindo nos trigais, sentiram uma rudeza, uma comoção, ostentando depois o inchamento de seu ventre ou um grande manto azul com espessas estrelas”; a porta aberta de uma mastaba egípcia; o evangelho apócrifo de São Bartolomeu; o escorpião que desliza pelas coxas de Apsara; as irmãs negras mal penteadas; Hakon (o que não quis comer fígado de cavalo); um ovo prateado onde se agita um Eros que se fixará no Caos alado; a primeira razão espermática de Plotino; uma cultura em que o ócio e a maneira de levar o manto distinguiam o sábio; tempo lucífugo; noite órfica; vontade zenital; incitação netúncia; ou quando alude ao tempo no qual “ os homens, através do visível conjurado na poesia, tentam se aproximar do risonho desconhecido dos deuses.” (Cf. in: Oliveira Carmen L. — Ensaios realçam poesia de Lézama Lima — página D-7 do Caderno 2 de O Estado de São Paulo em sua edição de 1 de Fevereiro de 1997 e Costa, Francisco — “Fugados” mostra o melhor neo-barroco de Lézama Lima — página 6-7 Livros da Folha de São Paulo em sua edição de 12 de Dezembro de 1993).

Assim como na passional busca católica da unidade eucarística na literatura de George Bernanos, César Vallejo acredita na unidade orgânica de um poema (e se de um poema amputarmos um verso, uma palavra, uma letra ou um signo ortográfico ele não sobrevive) e sonha com o dia em que todas as línguas se unifiquem e se fundam, “através do socialismo, em um único idioma universal.” Ou seja, o unitarismo globalizador dos socialistas internacionalistas de outrora era humanista naqueles tempos de utopias inexeqüíveis. Este mesmo universalismo globalizante de então é o mesmo que hoje, birrentamente, as esquerdas tentam inviabilizar, opor obstáculos, só por que, agora, atende à dinâmica capitalista.

Exilado em Paris, Vallejo teve contato com o rescaldo da onda surrealista e com a prática literária da “discórdia concors”, procedimento barroco na distinção entre pessoal e individual, a busca da totalidade na desintegração dos seres e objetos ou pelo espírito colecionador dos vaidosos. É por isso que Enrique Ballón Aguirre vê um “barroco industrial” perpassando a obra literária de César Vallejo, poeta que contrapõe uma universalidade barroca ao tradicionalismo anti-cosmopolita e provinciano de suas raízes sócio-históricas latino-americanas. Provavelmente C. Vallejo conviveu com o mesmo universo intelectual parisiense com o qual tiveram contato os modernistas brasileiros Heitor Villa Lobos, Oswald de Andrade, Anita Malfatti e Patrícia Galvão.

Como George Bernanos, César Vallejo também cantou e idealizou a lua, inalcançável e infinita. “Para atingir essa comunhão do inferno e do céu (dois pólos bernanosianos), o poeta desce ao túmulo (sobe ao tálamo) terreal:

“La tumba es todavia

un sexo de mujer que atrae al hombre!”

— César Vallejo, citado por Raul Antelo, em seu ensaio Sermão da Barbárie — publicado entre as páginas 3 e 5 do caderno Folhetim da Folha de São Paulo em sua edição de 13 de Julho de 1986).

“No cristão Bernanos, ecoam fundo as palavras do Apocalipse:”.... porque és morno, e nem frio nem quente, começar-te-ei a vomitar de minha boca. Para ele, a opção entre o pecado e a graça supõe seres passionais, como o santo e a jovem perdida, capazes de gestos heróicos, extremos. Os demais, os indiferentes, são aqueles que, por prudência, bom senso, pretensão intelectual, acomodam-se aos imperativos do século.” (...) “Último baluarte de Deus, anteparo contra Satã, o homem enquanto personagem de Bernanos descobre, na realidade prosaica do seu percurso, a dimensão do sobrenatural.” (..) “Privilegiando a turbulência das paixões, dentro de uma perspectiva realmente cristã de subordinação aos objetivos da redenção, Bernanos situou-se na linhagem de Dostoievski.” (...) “O pecado da carne é substituído pelo pecado da alienação. Somente quem experimenta o desejo de liberdade, de fuga à mediania, inscreve-se na aventura, de que a estrada torna-se um dos símbolos capitais, e pode aspirar à plenitude do ser.” (...) “Em Diário de um padre da Campanha, Bernanos apresenta o conhecimento como um entrave aos movimentos vitais, “mesmo quando empolgado pelo mistério.” Em seu romance Mouchette chama sua personagem de “pequena serva de Satã, Santa Brígida do nada”. E assevera o pensador católico francês Bernanos (que recusou o cargo de Ministro da Educação na França de Charles De Gaulle e expoente da mesma geração do polêmico Céline; amigo e até certa época discípulo de Mauriac e de Charles Péguy): “Lembremo-nos de que Satã sabe tirar proveito de uma oração demasiado longa, ou de uma mortificação demasiado dura.” (...) “ O silêncio divino à súplica do milagre. Na verdade, a luz quase constantemente negra do sobrenatural é que lhe assegura a unidade básica.” (Cf. in: Vomitar os mornos — ensaio de Maria Cecília de Morais Pinto — páginas B-4 a B-5 do caderno Folhetim — Folha de São Paulo em sua edição de 25 de dezembro de 1987).

Esta luz constantemente negra que tece em pomposo veludo católico (como o da capa de São Luiz, Rei de França) a unidade estrelada e fragmentária do céu e do mundo bernanosiano é a mesma e aparatosa capa de referências mitológicas que cobre o solene dorso sacerdotal do corpo literário e da alma erudita de J. Lézama Lima. Ambos de formação católica e não revolucionários. Assumidos.

Para Guillermo Cabrera Infante, Piñera era uma bicha pobre que gostava de transar com homem rude e odiava as vaidades e as pretensões dos mais intelectualizados, era magro e de baixa estatura. José Lézama, para Cabrera infante, almejava a respeitabilidade, era alto e gordo, gostava de ser chamado de Mestre e só transava com rapazes impressionantemente bonitos. Creio que, assim, formaram a clássica dupla Dom Quixote e Sancho Pança, ridicularizada na cultura norte-americana com os filmes de O gordo e o magro.

Lézama, também conhecido como o Leão da Habana Vieja, se rende por escrito aos assombros da poesia e dá as costas às carrancudas e ortográficas academias de sempre. Como Jesus diante dos doutores da lei... Rebola quando dança, ajoelha-se diante do Santíssimo e nos revela delirantes e vertiginosas arqueogenealogias. Nunca foi longe de sua Havana (ao contrário do poeta peruano César vallejo — que viveu em Paris; ao contrário de G. Bernanos que viveu no Brasil e diferente também de Virgílio Piñera que viveu muitos anos em Buenos Aires). Lézama, exilado em Havana, sua pátria, admirado por Julio Cortazar, Octávio Paz, Vargas Llosa e por Severo Sarduy, que numa visão delirante do Leão de Havana lhe acenavam “com vozes amigas, da mesma forma que os trabalhadores que ficam sob a terra se reconhecem uns aos outros dando pequenas batidas na terra que os separa” permaneceu até há pouco ignorado, resultado da indiferença e da censura ditatorial castrista à sua vida e à sua obra. Neste fragmento Lézama se aproxima de Vallejo em sua oposição cardinal entre o “sub” e o “sob”. Mas, ao contrário de Vallejo, Lézama não se identificava nem com os seres inferiores, nem com os poderosos. Identificar-se com qualquer segmento de uma ordem é o mesmo que legitimá-la intimamente.

César Vallejo nasceu no Peru, foi criado numa pequena aldeia andina, escreveu em 1918 os poemas intitulados Os Arautos Negros (obra influenciada pelo poeta centro-americano Rubén Dario. Em 1922 publicou Trilce, obra mais valorizada pela crítica. Desconheço dados sobre sua orientação sexual. Viveu entre os anos de 1893 e 1938.

George Bernanos nasceu em 1888 e morreu em 1948. Sua infância foi vivida no vilarejo de Pás de Calais, no norte da França. Influenciado pela direita católica francesa (leia-se Action Française — liga de intelectuais católicos liderados por Maurras e Leon Daudet, velho amigo de Marcel Proust. Bernanos foi monarquista. Rompeu em 1932 com Maurras e, durante sua vida, assumiu várias posições ou diversas nuances de cores ideológicas.Apesar deste seu arco-íres ideológico, Bernanos não parece ter sido homossexual. Quanto ao seu e ao meu monarquismo, devo dizer que os intelectuais de esquerda (liberais ou marxistas ou social-democratas), em suas condenações às monarquias e aos monarquistas, se esquecem que os reinos das formigas e das abelhas(tão elogiados em seus manuais de biologia) são antiqüíssimas e tradicionais monarquias.

Piñera e Lézama eram homossexuais assumidos. José Lézama Lima viveu menos que Piñera. Virgílio Piñera nasceu em 1912 e morreu em 1979. José Lézama Lima nasceu em 1910 e morreu em 1976.

Bernanos e Vallejo nasceram no fim do século XIX e não chegaram à metade do século XX. Lézama e Piñera nasceram no início dos Novecentos mas não viveram o fim do atribulado século XX.

“A noite invade com seus odores e todos querem copular. O odor noturno sabe arrancar as máscaras da civilização, sabe que o homem e a mulher se encontraram sem falta no pantanal. Musa paradisíaca,ampara aos amantes!” — Virgílio Piñera em poema já citado. O elo entre o sacro e o profano,o erótico e o místico é mais uma confluência entre as escritas de Piñera, Bernanos, Lézama e Vallejo.

As conexões entre o modernismo brasileiro e o surrealismo latino-europeu ou (mais exatamente) franco-hispânico se refletem na poesia “underground” e “pós-beat” dos paulistanos Roberto Piva, Glauco Mattoso, Itamar Assumpção e Arnaldo Antunes, primos, com algumas afinidades, da poesia neo-barrosa dos argentinos Osvaldo Lamborghini e Nestor Perlonguer, poetas portenhos aparentados (em certos aspectos) com os cubanos Severo Sarduy e Virgílio Piñera. “Pra mim, toda metrópole é uma necrópole, um vasto cemitério. O homem é o único animal que armazena seus mortos.” (...) “Não sou xamã de cemitério.” — declarações do poeta Roberto Piva à Folha de São Paulo em sua edição de quatro de Abril de 2000. Piva é o selvagem autor de Paranóia, “Abra a janela e diga: AH!” e de Coxas. Com Piva aprendi a valorizar a livre e espontânea brutalidade animal dos que rosnam, cagam, peidam, espirram e ejaculam ou atingem naturalmente seus orgasmos, sem frescuras, sem solenidades e sem escrúpulos. Sem pulinhos e sem mesuras.

As interseções entre a teologia mística católica e os anseios eróticos universais (tão nítidas nas obras de Teresa de Ávila, João da Cruz, Agostinho de Hipona e na transoceânica literatura mística hispano-americana do século XVII) também são referências paradigmáticas para as freudianas teorias sobre os olhares e os enlaces entre Eros e Thanatos e, quiçá, esclareçam muitos lances dos jogos ideológicos entre direita e esquerda no século XX e na obra literária do católico francês George Bernanos.

Para mim, a literatura e as artes em nosso mundo pós-moderno(a ouvir as músicas sacras interpretadas por Andréa Bocelli em tubarônicos boeings), ainda rastejam atrás da liberdade, nos revelam os nossos medos e os nossos impulsos vitais (vejam as instaurações Teresa do artista plástico brasileiro Tunga).

Os fantasmas e as vertigens do homem barroco se fazem cada vez mais presentes em nossas vidas e até nas procissões das virgens cabeludas (candidatas a mártires) pelas ruas de Teerã ou nos espetáculos do globo da morte num circo de Nüremberg.

Tanto em George Bernanos como na utopia ecumênica de César Vallejo como na catoliqueria de J. Lézama Lima subfluem magmas de ardentes teologias eróticas e em quase todos os escritores franco-hispano-americanos até aqui citados subpaíram teorias e visões esotéricas e místicas, muitas até herméticas e órficas. Outro escritor cuja obra corrobora minha análise: Plínio Marcos. Leiam o seu livro de entrevistas, intitulado Religiosidade subversiva, no qual fala de Madame Blavatsky, Jesus — Homem e em virilidade espiritual transformadora (livro que, em edição do próprio autor, fez circular em 1989). É neste livro que o palhaço Bobo Plin diz: “Essa magia se manifesta quando se resolve fazer a própria alma.” Só os açougueiros seguram nossas genitálias animalescas dicotomizadas, decepadas ou distanciadas de nossos anseios e pulsações eróticas e espirituais. No fundo, este rico veio literário ocidental (tão bem conhecido por Octávio Paz) me lembra a atualidade deste pensamento pinçado da obra filosófica do espanhol Sêneca: “Pensa mais em viver bem, que em viver muito”.


 

 

 

Deconcertant et Sublime — Premier Prodige et Dernière Merveille! L’Homme Créateur et le Capitaine Satan

 

Il free Glatiator y sus souvenirs intimes et gratis!… Dents blanches en l’Exposition do sorriso feliz. Viva la jardiniere! Prenez garde? Tin tin ... On Maigrit. La Gran Via de Madrid en la Chuenca gay... Place des Prazeres. La Via Appia dos soldados romanos e suas sacanas sandálias de couro. Old England!... Le Satan Lutin in Germany. Drácula dançou num forró coladera em Lisboa. Qual la rua de Rouen? La Roue? Aprés-midi... l’orange.. l’oranjade... L’acqua frizante de Itália. Viva la Greece!...

“Quem é Deus? —É um vendedor de gravatas. (...) O que é surrealismo? — É a morte dos séculos projetando uma sombra muito longa debaixo da água do sonho. (....) O que é a pátria? — É uma coisa sem solução. (...) Um lençol com sinais de vômito italiano, uma lágrima de Staline, uma cadeira de rodas ainda com o corpo, uma pulga do mar onipotente, dorme, dorme, meu menino/ dorme no mar dos sargaços/ que mais vale o mar a pino/ que as serpentes dos meus braços. (....) as esguelhas do vizinho e o incólume lixo das visitas, o materialismo histérico das paixões de Jane Eyre (...) a intranqüilidade funcionária pública “contra” as já decorativas tranqüilidades “de classe” (...) Francs, francs, francs... Lê Panamá em Louvre... Bruxelles de la Bélgique!.. Düsserldorff love Théa Rodin, parfum Deo pour femme... (...) Carta ao Egito.A poesia não necessita de “ser salva”. Daí que resultem ridículas as homenagens colarinho-alto ou selecta-de-infância com que é costume, aqui e lá fora, enfaixar o cadáver daqueles que como Fernando Pessoa, Rimbaud ou Gomes Leal foram em vida o mais esforçado testemunho contra o bom-senso-não-deites-a-língua-de-fora. (...) a marcha do desejo necrófilo... o poeta, o fogo e a vela na comunidade das cinzas (...) A poesia está na origem do símbolo. (...) Atenção ao domínio das coisas esquecidas!... (...) O Cálice Romano no ritual da Pedagogia Social e o soutien meia taça de lingerie, estou adorando o creme dental anti- tártaro do supermercado Pingo Doce de Lisboa. Champs, Deo Colônia de Pierre Alexander. BAC Aktiv — Deo 24 h Wirksystem... Pflegt mit Sensiva und… Ohne Alkohol … (...) A vida é dourada como uma gema, como um resplendor de raios solares, como o ouro do cálice do sacerdote... (...) A morte is plúmbea. (...) Manjares aos deuses do Inferno, mexericas ou bergamotas esmagadas num jarro com urina humana. (...) Altura e miséria são dedos de água, são a hélice e as argolas do Castelo de Sade. Nossos impulsos não coincidem necessariamente com qualquer lei moral imposta. A verdadeira ciência é o saber esquecido. O meu cérebro marcha através dos vossos olhares e a atmosfera poética resplandece de milhares de estrelas. Aqui já ninguém busca um séqüito... o caminho lento e incendiário do Amor, o perfume exótico da paisagem petrificada e um jardim com flores de larvas vulcânicas ainda ígneas servem como molduras para meus filmes e passeios em torno do Sol. Eu gangorro e sinto um sopro na barriga do meu coração, um vento gostoso nas pernas... Mas que restaurante mais apertado este no qual nos enfiamos para jantar! No Alto, em Lisboa.. perto da praça do Príncipe Real. My God!... Talvez as salas se desmoronem contigo para revelarem o segredo dos juízes. (...) o teu corpo envolvido em vermes e rosas debruça-se febril nas montanhas (...) a loucura mais lúcida no trânsito da cidade (...) o pássaro vem dançar sobre o teu rosto (..) Começa outra vez o crepúsculo antigo e pressentido... o cinzento das coisas em putrefação... a tua morte acariciada pelas tuas mãos (...) catedrático mendigo comendo vorazmente dulcíssimas canetas esferográficas (...) Congratulações foram esquecidas. Distribuam-se os prêmios de consolação e despejem-se os espectadores nos bolsos da eternidade. Recusamos o consolo moral e o sofá da adjetivação. O mundo não começa às nove e quarenta e cinco. (...) Recusamos a casa da misericórdia, a transfusão de sangue... recusamos a sintaxe, o Alvim, o amendoim... (...) Aceitamos a confusão, aceitamos dinheiro, gêneros alimentícios, cobertores, apitos, gritos, o rock do U-2, conflitos, detergentes, oratórios do século XVIII, antissépticos, anti-histamínicos, alguns anti-bióticos e Boas Festas. (...) Aceitamos também os touros da morte. (...) O que é o amor? —É uma rua muito sossegada onde só se passou uma vez. (...) O que é a nobreza? — É o vento vindo dos bosques. (...) O que é o sonho? — É o simulacro da melancolia. (...) O que é a noite? —É um texto muito antigo entoado por uma multidão de sapos. (...) O que é uma noz? —É um nicho barroco de óleo divino e assassino. (...0 Quem é a tua mãe? —É um mendigo que espera pela noite para rir. (...) Porque vivia? — Porque houve sempre quem o quisesse matar. (...) fixando a vitrine da Sociedade Pancada & Morais (..) uma coleção completa de lápis de cor foi o meu objeto de desejo natalino em 1958 (..) Procedeu-se entusiasticamente à mineralização do osso do guerreiro. (...) Depois da queda do Salazar não se falou mais do romancista Fernando Namora. (...)Uma paz inquieta ondulou, um sangue solidificado cristalizou. Tudo era o ventre da serpente. Dançávamos sobre o sangue da coruja, possuíamos as pedras negras caídas da lua (...) Nossos olhos crateras de lama negra. Éramos fortes. Morríamos cedo. (..) Tomava mingau de aveia e exercitava-me nos crivos de Eratóstenes. (..) entradas e saídas de barcos a pavor me estontearam até despencar-me escada abaixo. (..) Tristana e Viridiana viram a cabeça do sacrificado atada ao badalo do sino da torre mais alta da catedral de Huesca, em el Reíno de Aragon, sentindo-se incluídas num daqueles indigestos pesadelos do glutônico Goya. Viva Luis Buñuel!... (Fim dos diálogos poéticos entre José Luiz Dutra de Toledo, o centenário Luis Buñuel e o poeta e ensaísta surrealista português Mário Cesariny encastelado em seu aristocrático livro Antologia do Cadáver Esquisito editado em 1989, em Lisboa, pela Assírio & Alvim Cooperativa Editora e Livreira C. R.L. — rua Passos Manuel, 67-B e impresso na Tipografia Guide — Artes Gráficas.

Alice, no país das maravilhas, descuidou-se e torceu o pé e agora sente uma dor danada.

Leiamos agora, caros leitores, testículos ou textículos do teatrólogo espanhol Fernando Arrabal, um dos mais importantes escritores espanhóis do século XX e muito desconhecido no Brasil.

Definições, jaculatórias e arrabalescos sobre a moderníssima médica encerrada em um preservativo:

I — Definições:

internófobo — simpático e corretíssimo cidadão que não compreende o poeta quando sussurra: “ Se não tivesse lápis ou canetas escreveria com cinzas.”

especialista em AIDS — moderníssima médica encerrada em um preservativo de dois metros e com uma janela a meia altura para tratar os assuntos urgentes boca a boca com seus pacientes.

Angleton, James Jesús — criador da revista de poesia Furioso, na Yale University, com seus amigos Dylan Thomas, Cummings y Ezra Pound. Poucos anos depois dirigiu a CIA.

A sétima e última tese do Tratado de Wittgenstein diz: “ Do que não se pode falar, guarda silêncio.” (!....) Filosofia do Armário. Embutido.

Humildade — virtude que permite extrair fraqueza e recolhimento de qualquer triunfo.

A-religioso — extravagante agnóstico que nem sequer não crê em Deus.

Lola Montes — Amante inglesa (e muito tesuda!) de Luiz I da Baviera. Apesar de seus devaneios com Liszt, o rei a locupletou de regalos e dádivas, provocando com isto a ira popular e sua própria abdicação, sem necessidade de impeachment.

Inferno — obrigatória etapa subterrânea no caminho para a apoteose.

Beckett, Samuel — jovem admirador de Joyce... a partir de uma crítica da linguagem alcançou uma visão mística atéia.

Profundidade — labirinto não só para burros onde o bípede mais comum pode se extraviar deliciosamente.

Estética — outro nome da Ética. Tolstoi disse: Deus é meu desejo.

Nacionalistas — gigantes perseguidíssimos por fanáticos anões e pelo liliputiano Jonathan Swift.

J. Swift escreveu a Pope em 29 de Setembro de 1725: “ Me causam horror todas as nações, todas as comunidades, meu amor só é dirigido aos indivíduos. Abomino os ingleses, os escoceses, os franceses e todos os demais.”

Diálogo — Dois monólogos sem apoio metafísico nem consolação religiosa. Por exemplo:

Wittgenstein: — Vou à Noruega.

B. Russel: — Lhe previno que lá os dias são muito escuros.

Wittgenstein: — Odeio a luz.

B. Russel: — Vai se sentir tão só!...

Wittgenstein: — Quando falo com seres inteligentes me prostituo.

B. Russel: — Estás ficando louco.

Wittgenstein: — Que Deus me livre da gordura!...

B. Russel: — Isso é o que Deus vai fazer.

Wittgenstein: — E você, o que faz?

B. Russel: — Uma Organização Mundial para a Paz e a Liberdade.

Wittgenstein: — Que divertido!...

B.Russel: — Suponho que prefira que eu fundasse uma Organização Mundial para a Guerra e a Escravidão.

Wittgenstein: — Sem dúvida.

Jaculatórias

— O horroroso egoísta para melhorar o mundo se contenta com melhorar a si mesmo, sem inscrever-se em partido político ou em ONGs.

Pinta quadros por que não tem suficiente caráter para abster-se.

Deus não criou nem o sapo nem o terremoto, porém alguém os criou.

Otto Weininger escreveu Sexo e Caráter e suicidou na casa em que morreu Beethoven pensando que o surdo músico não ouviria os disparos.


 

 

 

Katiúcia tropeçava nos astros desastrada mas ainda conseguiu chegar lá

 

Mesmo peregrinando por todos os jornais cariocas há meio século o ex-seminarista ganhou as graças dos Frias da Folha de S.Paulo/UOL, ascendeu ao Conselho Editorial repetindo o itinerário de Oto Lara Resende, galgou à condição de imortal da Academia Brasileira de Letras. Há muito, esta instituição tão falida e medíocre como o atual establishment “cultural” brasileiro, já era considerada conservadora, retrógrada, depositária de múmias e fósseis mas uma tentação até para os seus críticos mais ácidos (como no caso do falecido imortal Antonio Houaiss). Aliás, entre os seus 40 atuais componentes, eu só respeito como escritores e intelectuais os seguintes: Rachel de Queiroz, Antonio Olinto, Celso Furtado, Murilo Melo Filho, Eduardo Portella e Roberto Campos. Os demais nada mais são que excrescências do poder literário hegemônico. A crônica que o novo imortal Carlos Heitor Cony publicou no caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, edição de três de Março de 2000, na qual escreveu que a Aids é uma doença da moda e que, para contraí-la, basta freqüentar gays, deveria ser amplamente divulgada entre escritores brasileiros e portugueses para que os mesmos sentissem na pele o antro de conservadorismo nojento que cada dia mais e mais se aloja nos já pútridos nichos da Academia Brasileira de Letras, a mesma instituição que abrigou em seus quadros ditador como Getúlio, presidente por acaso como Sarney e o ex-ministro do Exército no período ditatorial Aurélio Lyra Tavares, casa de Machado de Assis (?) localizada na avenida Presidente Wilson, no Castelo, centro do Rio de Janeiro, ao lado do Consulado dos Estados Unidos, cujo presidente brincava com sua estagiária Mônica Levinsky em plena Casa Branca, o que é ótimo, sem dúvida. Aliás, para ganhar mais leitores explorando o filão erótico, entre os imortais destaco o quase escritor João Ubaldo Ribeiro, que em seu livro A casa dos Budas ditosos trafega o tempo todo no fio da navalha, entre a literatura e a literatura masturbatória tão apreciada pelos que não ousam vôos mais altos que os ares empestiados com cheiros de bundas, ventos, gases e ares há muito dominantes na cultura brasileira. O pretensioso Sr. Cony (admirável apenas enquanto merecedor do amor de sua falecida cadela) há muito vem sonhando com um Prêmio Nobel e em suplantar ou se equiparar à estatura literária de um José Saramago!... Coitado! Tem muito chão até lá!... Viva a hipocrisia do poder temporal e dos poderes atemporais dos imortais literatos brasileiros (que até a eleição de Dinah Silveira de Queiroz acreditavam que só homens fossem escritores!...) e viva São José, em cujo dia (19 de Março) os espanhóis comemoram o dia dos Pais!...

Quanto mais desorientada espacialmente ou quanto mais espaçosa for uma pessoa mais mal educada ela é.

Quando perguntaram à cantora portuguesa Amália Rodrigues se ela enquanto cantora expressava a alma nacional portuguesa, ela respondeu: “Eu expresso só a minha alma pois expressar a alma de uma nação é uma carga muito pesada para mim.”

Um vídeo-maker alemão de 31 anos, radicado em Iquitos, no Peru, elogiando-me num chat da internet, chamou-me de fauno lascivo e eu adorei.

Um dos cenários mais pavorosos que eu já vi em toda a minha vida é a capela ecumênica do aeroporto de Guarulhos — Estado de São Paulo, onde passageiros sobressaltados ou parentes de vítimas de acidentes aéreos podem se recolher para rezarem, fazerem suas súplicas ao Altíssimo.

Na noite do primeiro sábado em Lisboa, 15 de Janeiro de 2000, eu e vários associados à Opus Gay fomos jantar num dos super-apertados restaurantes do bairro Alto, um sítio gay lisboeta, e tivemos como vizinhas de mesa duas lésbicas rizonas e cínicas. Uma delas era tão corada que nem me sugeriu a idéia de que pudesse estar usando rouge. Ela lembrou-me aquelas brancas caipiras mineiras que adoram comer aqueles imensos ovos de pata fritos no jantar. Bebiam vinho e, assim, tinham no embriagante líquido dionisíaco mais uma fonte para os seus saudáveis rubores e enredos para novos e incessantes cochichos, rumores que as levavam a estrepitosas gargalhadas. Eu as olhava com simpatia e multiplicava os seus sorrisos sem ao menos saber as causas e os motivos para tão freqüentes risadas. E como comiam!... Gente!... Eram saudáveis demais!... E ainda fumavam, vejam só!...

Cheguei de madrugada em Madrid. Avistamos de longe a enorme paisagem madrilena onde se entrelaçavam espanholamente pelo menos quatro milhões de almas. Uma cidade tipicamente européia, ou seja, onde se coadunam cenários antigos, medievais, renascentistas, barrocos, oitocentistas e o visual néon metropolitano contemporâneo, pós-moderno e cosmopolita. Lojas de vídeos eróticos e pornô-shoppings ao lado de farmácias, livrarias, restaurantes, bares e mercearias ou saunas em ruelas de calçadas estreitas, trânsito de automóveis mais ou menos congestionado, gente gesticulando e conversando pelas ruas ou nos bares que lhes sejam familiares, tudo isso a poucos quarteirões da Porta do Sol e não longe do Museu do Prado. Era 20 de Enero de 2000.

A roupa de cama mais aconchegante que tive em minhas 16 noites européias foi a que me serviram no Hotel Peninsular, na rua Sá da Bandeira, no centro histórico de Oporto, mais exatamente na noite de 22 para 23 de Janeiro de 2000. Eu, nu, entre aqueles lençóis de popeline ou de cambraia e aqueles deliciosos e peludos cobertores inesquecíveis, dormi ali uma das minhas mais paradisíacas noites de lua cheia. Depois de voltar de um concerto de músicas de Bach regido por um maestro holandês oferecido pela Fundação Calouste Gulbenkian no centro de convenções de Santa Maria da Feira, perto de Espinho, no norte português, no vale do rio D’Ouro. Quantas casas seculares, talvez milenares, em ruínas ou abandonadas, meio deslocadas em paisagens cada vez mais seccionadas por viadutos e auto-estradas moderníssimas!

Na minha infância, um dos meus êxtases eu vivia naqueles circos que a meninada da minha aldeia natal armava nos fundos de quintais. Com picadeiro em terra batida pelos pés da molecada, arquibancadas inseguras e um reboliço de tirar o sono da gente na véspera do espetáculo, era ali que virávamos as costas para o que nos rodeava e nos divertíamos prazerosamente. Além dos circos dos meus vizinhos eu organizava procissões com santos de barro que eu mesmo esculpia e com bandas de música improvisadas em nossas sérias e compenetradas bochechas infantis.

Agora há pouco chovia ferozmente e um bravio lobo rosnava ameaçadoramente no infinito. Os trovões mais as lufadas de vento e as trilhões de pedrinhas de gelo assustaram e amedrontaram minhas cachorras. Depois que a chuva passou e as enxurradas minguaram, uma delas quis brincar com o rodo usado para secar a garagem cujo piso ficara forrado de granizo. Bendisse a força da natureza revolta e solucei alívios profundos.


 

 

 

Manifesto a favor das elites

“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”
Fernando Pessoa

 

Qualquer novo engenho tecnológico, qualquer acréscimo ou promessa de melhoria na nossa qualidade de vida custa caro. E quem pode pagar tão alto preço pelo que não existia? Só os mais ricos podem inicialmente pagá-lo. Com o tempo, o novo vai ser acessível aos pobres. Graças aos ricos que pagaram a produção e o uso do novo recurso, mais tarde os mais necessitados a ele terão acesso. Entendes-me agora porque neste manifesto elogio os mais poderosos? Concentrando riquezas os ricos investem parte deste excedente na geração de novas riquezas que, com o tempo, vão sendo socializadas. Isto não ocorre só no Capitalismo. Desde as civilizações da Antigüidade isto vem ocorrendo. Na realidade, pobres e ricos são dois pólos existenciais inseparáveis, constituem um eixo no qual perdura o humano, pleno de ansiedades e inquietações. O que hoje as empresas aéreas oferecem de mais sofisticado aos seus passageiros da primeira classe amanhã será oferecido aos seus clientes da classe comercial. Como quando éramos crianças, as roupas dos irmãos mais velhos acabavam depois destinadas aos mais novos, a moda atual (vestida pelas elites) chegará tardiamente às populações pobres ou remediadas das periferias das metrópoles.

Em Espinho, cidade do norte português, o casal Odete/ Olavo recusa-se a gerar filho tendo como justificativa para tal recusa o atual panorama mundial. O músico e escritor português José Afonso, que morreu em 1987, pouco antes de morrer ficou em dúvida quanto ao título do seu próximo disco: “Galinhas do Mato” ou “Nem o pai morre, nem a gente almoça. ...." Uma das escritoras do século XX que mais me chama a atenção é a franco-indochinesa Marguerite Duras, autora das frases que cito a seguir: “Escrevo para me transferir para os meus livros. Para me aliviar da minha importância. Para que o livro fique em meu lugar. Para que possa massacrar-me, caldear-me, afundar-me na purificação, na parição do livro. Para me vulgarizar. Deitar-me no meio da rua. E isso resulta. Quanto mais escrevo, menos existo.” (...) “Escrever. Uma ocupação trágica, quer dizer relativa à corrente da vida.” (...) “Escrever é construir barragens contra a morte.” Em 22 de Dezembro de 1989, quando eu completava meus 38 anos de vida, morria o teatrólogo irlandês Samuel Beckett, para quem “ o maior delito do homem é o de haver nascido”. Calderón de la Barca no século XVII já dizia o mesmo. Segundo Beckett, “a figura trágica representa a expiação do pecado original”. Entre o óbvio, o absurdo e a esperança opto pela esperança de deglutir o óbvio e o absurdo, me salvar e ainda poder contar esta minha façanha. Reencarno Prometeu. Presos à vida recusamos o descanso da morte. Enclausurados, encurralados, buscamos saídas num infinito desnorteante. Indeterminante. A nossa cômica e beckettiana angústia metafísica. Solidão é imensidão irreversível e corrente. Inevitável. Espero, logo projeto.

“O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento. (...)”
O amor é como o tempo,
Nunca tem finalidade...
—Vem, demora-se um momento...
E o resto é sonho e saudade!” (...)
” Sou como as velas do altar
que dão luz e vão morrendo.” (...)”
Meus olhos que por alguém
Deram lágrimas sem fim,
Já não choram por ninguém,
— Basta que chorem por mim.”

Antonio Botto (1897/1959)
poeta homossexual português

Para mim, o melhor doce é o olho de sogra.

II

O olhar que você me ofereceu foi definitivo e, de agora em diante, a minha vã e inútil barreira contra o tempo (que desbota o brilho deste seu eterno e diamantino olhar) é a razão ou o sentido para a minha existência. Seu olhar prenhe de cumplicidade, sensualidade e hiper-afetividade me fez conhecer a essencial possibilidade do orgasmo por um diálogo de olhares. O seu olhar, efêmero e eterno, me fez imensamente feliz, irreversivelmente feliz e colocou-me à beira do maior medo que poderia viver: o medo de perde-lo. Perde-lo seria o mesmo que me conformar com o abraço da morte. Estar falando com você me leva aos céus. Meus pés roçam um no outro e nos seus e me sinto mais leve que tudo e, assim, ascendo aos céus. Seus peitos rijos e peludos são as colinas que ocultam o labirinto no qual pulsa e bate o seu amado coração. Em seu tórax tenho o meu Olimpo e nunca ousarei profanar o céu da sua boca. O meu corpo pede o seu corpo, chama o seu corpo. Meu coração bate e espera e pede para ficar batendo junto com o seu coração. Eu te amo. Amanhã apararei minha barba para te ser mais atraente. Sonho viver com você um longo amor... atemporal.

III

Eu nunca fui ao Paraguai e nem sei se lá ainda irei.

IV

Quinhentos anos engendrando labirintos insolúveis... Hoje temos um país tão trágico que teremos de nos re-implantar novos corações, novas medulas e novos cérebros para, pelo menos, encararmos nossos desafios e impasses, dilemas seculares capazes de nos inviabilizar como povo ou como país. Em volta de Brasília prolifera um inferno social mais explosivo que os que temos e conhecemos em torno de Belo Horizonte, de São Paulo, do Rio de Janeiro, Salvador, Belém do Pará, Recife, Porto Alegre e Fortaleza. Se Dante Alighieri tivesse a mínima idéia do inferno que estão em gestação nas cidades e nos sertões brasileiros já na Idade Média os hereges já teriam suscitado a hipótese da inviabilidade da espécie humana.

V

Nossas elites têm tanto medo dos desesperados porque certamente sabem que na hora “h” ninguém verá saídas e, assim, vai ser um “deus nos acuda” do qual só sobreviverão os que encararem uma situação de “salve-se quem puder”. Deus não acudirá ninguém. Não agüento mais estas preocupações anuais com minhas declarações de renda e seus prazos, conteúdos e restituições. Todos os anos a mesma coisa. É demais.

VI

Nunca nos esqueçamos: Carmen Miranda, o ícone feminino do Brasil no século XX, era portuguesa. Boquiaberto contemplo as palavras perdidas e as idéias diluídas. (....) Só porque te conheci e pude te tocar e apalpar nu, aninhar-me em seu peito, já me considero eternamente satisfeito. Mesmo que nunca mais volte a vê-lo nunca mais esquecerei os momentos que juntos ficamos. Seus cheiros e a consistência física e metafísica dos nossos corpos e os ímpetos e anseios que nos enlevavam nunca poderão ser esquecidos ou banalizados. “Há efetivamente sonhos que elevam a matéria, outros que a adormecem ainda mais “. — Afonso Botelho.

(...) “Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar,
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.”
— fragmento do poema Mensagem — Invocação a D. Fernando — de Fernando Pessoa.

Não devo me preocupar com a durabilidade, mas, sim, com a intensidade do que sinto, aqui e agora, meu amor!... Um sheik com uma camisola de organdi azul celeste, uma doceira ao lado de um tacho de cobre cheio de doce de leite fervilhante como larva vulcânica, um museólogo veneziano e um entregador de frangos me convencem que Eduardo Waack é um impressionante cronista de Matão / S. P. mas não me convencem de que seja melhor ser alguém de mentira do que ninguém de verdade. Ninguém é comum, já cantava Caetano Veloso.

VII

O caráter crônico da dor que separa o eu e o nós se aprofunda ainda mais numa época na qual não cremos nem no indivíduo nem que a massa salva. O nosso pão dos anjos é mais metafísico que água e trigo triturado. Os dirigentes do Partido Comunista Português e seu líder máximo, o intelectual Álvaro Cunhal, duvidam que muitos dos seus militantes possam resistir à tortura e à prisão. Os comunistas de hoje recusam o martírio e a dor. Devem adorar um air-bus, um shopping e um pub, não? Se eles não acreditam em pecados porque não gozariam hedonistamente os sofisticados prazeres do capitalismo?

(...) Ele não me deu seu telefone nem seu endereço (ou direção, como dizem os portugueses) ... Mas eu só sabia que morava numa rua central na qual trafegam alguns ônibus. Eu vivo a esperar algum telefonema seu. Algum sinal de vida dele, alguma manifestação amorosa de sua parte. (...) “É impossível ficar sem nenhum amor, mesmo que só existam as palavras, o amor vive-se na mesma. A pior coisa é não amar, penso que isso não existe”. — Marguerite Duras.

Torero y Manola, mariquita e marimacho, bofe e bichonca (a bicha que ronca) viviam um crepúsculo de metamorfoses. Em cima da montanha do sonho. Badalona e Conxita testemunharam a celebração de núpcias gays dos cisnes num lago com águas cor de cobre. E eu admirei a arte de Antoni Clave, catalão. É belíssimo o trabalho Maculatura (92 x 73 cm.) Vivace, feito/ pintado (?) criado em 1960 por J. J. Tharrats, também artista plástico nascido na Catalunha. Impressionou-me muito o trabalho Divissa — técnica mista — criado em 1982 pelo catalão Joan Pere Viladecans (dimensões:102x90 cm.). O mesmo ocorreu-me diante do objeto escultórico Cap concebido em 1983 (com ferro — 60x32 cm.) por Jaume Plensa, nascido em 1955 em Barcelona. Tharrats nasceu em 1918 em Girona. Estive por 11 noites em Lisboa e não fui a nenhuma coladera!... Como perdi!.. Mas, numa madrugada de domingo nadei numa piscina de águas frias. Querias engatar-te a mim? Eu conheço o seu sorriso Colgate, maroto.

VIII

Desnuda teu corpo de toda norma. Ata-te ao prazer. “Perdi. Apostei no ser humano. Acreditei que nele havia uma parte de Deus. Hoje me encontro doente e só. Ao menos uma coisa me ficou clara e certa nesta situação: a desilusão. Prepara-te para os dias que virão, para o tempo que me exige: adestre-se a não ser. Morte que forma parte da vida e vida que forma parte da morte.” — Severo Sarduy — escritor e intelectual cubano, homossexual, neo-barroco, que morreu exilado em Paris em 1992 padecendo de SIDA. Não se pode impedir o sofrimento, me disse James... Algumas vidas são mais importantes que outras. Umas mortes impressionam, outras são invisíveis. Nós somos gente em apuros. Não lutamos. Então saímos do hospital Saint Vicent porque tudo já estava dito. Era o princípio do fim do mundo, porém nem todos se davam conta. Uns morriam. Outros andavam muito ocupados. E outros limpavam suas casas e viam na televisão um filme de guerra. “Não é a consciência a que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. — Karl Marx, citado pelo psicanalista materialista-dialético Wilhelm Reich. No umbral da minha vasta nave, detive-o, mas, num golpe imprevisível e sem aviso, adentraste-me. Depois acendi um charuto, abri uma cerveja e fiz amor durante o resto dos meus dias, me contou José Frias de Madrid. Na Espanha, os imunodeprimidos receberam a curiosa designação de “sidosos”. Os preços do corpo e da vida são inestimáveis, impagáveis. O sado-masoquismo é uma arte teatral erótica na qual senhores e escravos esforçam-se ao máximo para satisfazerem-se. [fragmentos pinçados aleatoriamente do Analzine — de um Plumazo — el fanzine de La Radical Gai de Madrid, em sua edição de Mayo de 1994, cada exemplar custava 250 pesetas. “Meu corpo é meu lado errado/ minha voz é meu esquecimento/ meu peito é o maior momento/ da vida que hei pecado. / Minha alma é que é degredo / dano de mim e tormenta/ fera bruta, se alimenta/ da danação e do medo./ Mas como alcançar resguardo/ do sonho se ele escapa/ e foge de qualquer tapa/ da sorte ou destino tardo?” (Cf. in : Auto do Descobrimento: o romanceiro de vagas descobertas — Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz — Bahia — 1997). (...) “Difícil olhar para a origem, difícil vê-la com clareza”, os vestidos de minhas bisavós sumiram no chão dos nossos quintais, seus broches reluzem nos céus noturnos da nostalgia silenciosa e irrevogável dos vaga-lumes, seus temperos e segredos permanecem em nossos livros de receitas e seus perfumes subiram aos céus na hora em que o padre incensava o Santíssimo Sacramento... “A origem insistentemente se esconde, ela estranhamente resiste à luz, parece sonho, parece neblina, parece sombra, tudo que não quer se entregar, tudo que se desfaz perante a mão, tudo que flui perante a presença, tudo que escurece quando outro entra, a origem não fala sequer consigo mesma, se insistimos em falar dela, falamos de nós mesmos, do que pensamos pensar que é a origem, porque no fundo não pensamos, porque no fundo nos sabemos enredados no trágico silêncio da origem, impossibilitados de pensar, fadados a imaginar: a origem nos liberta.” — Anelito de Oliveira, editor do Suplemento Literário Minas Gerais — Belo Horizonte — Fevereiro de 2000. Os vultos das centenas e milhares de almas dos nossos ancestrais retomam os seus trajetos e estradas e levam balaios de cravos orvalhados, dálias semi- murchas e rosas desabrochadas e efêmeras para as cruzes que margeiam estes seus percursos e que, desde outrora, encontram-se emersos numa densa neblina. Cenário nebuloso e indevassável.

IX

Como consumidor diabético e cidadão brasileiro, reivindico junto a todas as redes brasileiras de supermercados a oferta, em suas gôndolas, do saboroso doce de morango sem sacarose, com frutose, tolerado por diabéticos, da marca Da Terra, encontrado por mim numa loja do supermercado Pingo Doce na Estefânia, bairro de Lisboa, agora em Janeiro de 2000 e dos bombons diatt argentinos da marca Duitt. Delícias inesquecíveis, gente diabética do meu Brasil!...

Uaauu!!!! Que surpraise!!!!! Ai que altura, my God! Não acredito! A Catedral de Toledo é tão alta como os edifícios das nossas maiores metrópoles!... Os edifícios medievais chamados catedrais eram tão comuns na península Ibérica que é difícil encontrar uma cidade medieval espanhola ou portuguesa que não tenha a sua. Outra coisa que me estarreceu: como conseguiram restaurar tão bem estes prédios da Idade Média e até românicos depois da dilacerante e destrutiva guerra civil espanhola entre 1936 e 1939!.... Um dia desses, li no Estadão que o emblemático Luis Buñuel era aragonês e, como tal, tão obstinado e irônico quanto o seu povo. Vivendo e aprendendo... Além de Zaragoza ser a capital de Aragão, também fiquei sem entender porque nomeei a nossa cadela vira-lata de Lanúcia quando soube, há poucos meses, que o aragonês Juan de Lanussa no fim do século XVI se insurgiu contra o imperador Filipe II e por sua ordem centralizadora foi decapitado em Zaragoza. E ainda mais gozado era o lance de eu chamar o amado finado (e totêmico) Aragão de Múrcio, ou Murcinho, meu ursinho... e, lá na Espanha existe a cidade de Múrcia.... Inconsciente coletivo? E vejam só mais estas: Goya, o profeta fantasioso dos pesadelos de Tristana e de Viridiana, também era aragonês. E Amália Rodrigues, a maior fadista portuguesa, idolatrava Fred Astaire!...

X

Não me sinto atraído apenas pelo seu corpo, amo-o por inteiro. Amo-o com o mesmo ardor místico dos amores vividos na clausura monástica por São João da Cruz e por Santa Teresa de Ávila. Seus olhares, a maciez aconchegante e muscular do seu corpo, seus cheiros, seus pés com talco, seus pêlos e seus carinhos me cativaram pelo resto da minha vida. Acredite.

“O pai que desejei exilou-se num retrato. O pai que em outros persigo é saudade a que me entrego” .— Augusto Massi.

“Pois o delito maior do homem é haver nascido”, sentenciou Calderón de La Barca.

“Paixões sem verdade, verdades sem paixão, heróis sem heroísmo, história sem acontecimentos; desenvolvimento cuja única força motriz parece ser o calendário, cansativo pela repetição constante das mesmas tensões e das mesmas calmas”. — Karl Marx in : 18 Brumário.

Não agüento mais consultar a toda hora o nosso lunário, visto que me é difícil encarar e optar entre ser alguém de mentira e ninguém de verdade, pois entre to be or no to be, entupi-me de tupi e só o nada consigo engolir. Cadê a minha lira dos vinte anos?

“Parece, infelizmente, que sentimos uma cega atração pelo devoramento do que nos resta e nos sobra e nos envolve: a vida. Eis uma de nossas pulsões de morte”.— Luis Eustáquio Soares in : O pós-humano — S. L. M. G. — Fevereiro 2000 .

As eternas gargalhadas das caveiras, em busca dos botões e abotoaduras perdidas no patético gesticular fascista dos seus punhos, impossibilita-as de varrerem as grades das suas costelas, o nosso primordial claustro ou original ninho ou baú de ossos e perceberem o que possa estar alojado além ou debaixo das frestas de nossas portas ou das nossas muralhas visigóticas ou sarracenas.

Castraram-nos, tiraram o nosso pau Brasil!... Fizeram de nós um país eunuco. Atentemo-nos para o legado caveirístico desde a aurora da modernidade osso e dental: “Necrofilia: colonizar é instituir um amor mortal à morte, à mãe que vai morrer, ao outro que pode morrer. O genocídio de sempre, de ontem e de hoje, também se mata. Somos todos assassinos. Nada é circunstancial. Com Edward Said, o implicado transforma-se em implicante, o assassinado em assassino. Todo mundo morre com a morte alheia, nos assevera Luis Eustáquio Soares, Sebastião Nunes, Sartre e José Luiz Dutra de Toledo et allii. Descobri Eros em Thanatos e vice-versa. Não ser ninguém é ser tudo. Ser anti-código, já que o que é pode não ser. Já não escrevo mais cartas. As destinatárias e os destinatários das minhas epístolas sucumbiram num jardim de cinzas e eu nele fiquei pasmo como um morto-vivo incrédulo diante das proezas sorrateiras da morte. Saudades de Severo Sarduy!... Oh anjos marinheiros servos dos Templários no alargamento dos horizontes da Cristandade!.... Um nariz de cera anasala a minha narrativa do que só se passa em meu interior e, comovido, reclamo: —Nem sei dizer, Senhor, o espanto e o pasmo e os medos e a comoção....” — Manuel Alegre in : Nova do Achamento — Atlântico — Lisboa — Dom Quixote — 1989. O orgasmo espásmico da descoberta do Outro e a volúpia ante o preço dos corpos dos outros, corpos sem cabeças nas imagens eróticas da internet me sugeriram a embriagues com os perfumes das flores do mato. As elites descobrem, agem, atravessam oceanos, possibilitam e destroem novos mundos.. pulam pelos ares de uma margem à outra os maiores ou todos os oceanos deste planeta em air-bus poderosos e trovejantes. As elites ruflam seus tambores tribais numa dança mortal. O marinheiro negro João Cândido, o Almirante negro, liderou a revolta contra as chibatadas impostas aos marinheiros do seu tempo, era viril mas gostava de bordar como uma mulher ou como Antonio Bispo do Rosário? Era revolucionário e insubmisso e aderiu fervorosamente aos postulados integralistas. Até Dom Helder Câmara foi enfeitiçado pelo totalitarismo medieval dos discípulos de Plínio Salgado!... Nossos textos e nossas artes são cópias mais ou menos fiéis dos modelos imaginários e estéticos que compulsivamente, obstinadamente, recitamos. Cópias criativas e distorcidas pelas nossas memórias. Além de o homem europeu ser quase um fóssil morto-vivo numa placenta bio- tóxica, a Europa é a própria falta de espaço. Falta espaço nos pequenos restaurantes e nas residências, nos museus, no metrô, nos comboios, nos cemitérios e nos bares, livrarias e praças públicas. E até nas casas de banhos as banheiras são tão pequenas como as antigas bacias usadas pelos pobres brasileiros há cinco décadas!... Nós somos índios e nossas banheiras são nossos rios e córregos encachoeirados, nossas banheiras são nossas praias. Aqui os índios deixaram de existir, aqui os negros se desafricanizaram e os europeus se deseuropeízaram. Assim, acreditou Darcy Ribeiro, surgiu o mestiço, fruto da terra arrasada pelo vazio de identidade, a tabula rasa na qual operaram os jesuítas. E eu, filho desta lâmina laboratorial de cruzamentos étnicos e culturais, voltei 500 anos depois ao cenário de onde partiram os litros de sangue, as carnes e os ossos que me originariam séculos e gerações depois. O meu tio português César Miranda, ao chegar a estes Tristes Trópicos, foi atacado por uma horda de saúvas enquanto cagava no mato e, sem saída, gritava: “—Comam tudo, desgraçadas! Comam tudo, desgraçadas!...” . Após séculos de migrações transoceânicas me sinto um sobrevivente, um Drácula quase devoto. Temi o lastro bactericida das pombas infelizes do lisboeta Largo Martim Muniz. Também senti o mesmo pavor diante das que esvoaçam na praça Marquês de Pombal em Lisboa, claro!... (...) Basílio da Gama foi um esteta sofista? — indago-lhes, caros e extenuados leitores. O Marquês de Pombal foi o arrimo de família da Coroa Portuguesa. O nosso Marquês de Pombal anti-clerical foi Monteiro Lobato, arauto da nossa conservadora e aconchegante identidade de netos da augusta e enciclopédica dona Benta, a sábia. Abaixo o autoritarismo europocêntrico e pseudonacionalista dos modernistas brasileiros!... O cheiro do amor é indescritível. Tudo que é gostoso é intransferível.


 

 

 

Os cavalos cavalgam, logo os cães ladram

texto collage

 

De repente, o motorista espanhol do auto-bus que nos levava de Lisboa a Madrid, passando pela província espanhola da Estremadura, na noite de 19 de Enero de 2000, parou o coletivo e foi lá atrás e ordenou que os imigrantes chineses que faziam folia no fundo daquele coche se sentassem em poltronas separadas no meio do veículo, caso contrário seriam postos para fora. Assanhada pelo ataque xenofóbico do motorista, uma loura madame luso-peruana chamou os chineses de delinqüentes e bradou: — “Ai de vocês se encostarem em mim!...”

Feéricamente iluminada, La gran via, à noite, ainda fervilhava. Corro à loja El Corte Inglês e compro um pacote com todos os filmes de Sarita Montiel. Mesmo com a advertência da lojista que mo vendia de que no Brasil os vídeos funcionam noutro sistema, diferente do europeu.

Li uma noite um interessante ensaio sobre o direito consuetudinário dos celtas. Sabedorias minimalistas milenares.

Apesar de Barcelona me ser mais atraente que Madrid, julguei que na capital catalã teria muito mais problemas de comunicação com meus circunstantes espanhóis que em Madrid dado o dialeto ainda praticado em toda a Catalunha. Além do mais, a inflação espanhola murchou dramaticamente meus bolsos, assustando-me, fazendo com que eu batesse em retirada rumo ao norte de Portugal.

Entramos num longo túnel na região montanhosa adjacente a Àvila, Valadollid, Los Toros, Tordesilhas e talvez Salamanca... um túnel estreito, perigoso mas bem sinalizado. Achei as estradas espanholas menos modernas que as de Portugal. As auto-estradas portuguesas são notavelmente mais dotadas de equipamentos e recursos tecnológicos, espaciais e humanos mais eficazes e avançados.

Passei há quase um mês pelos campos espanhóis crestados pela neve, que até hoje queima e umedece Ávila, onde a mística Teresa sentiu o frio dos mares da Lua e, colhendo dos poros o pó e a areia coalhada após silencioso suor das suas peles, entregou-se ao universo pulsante do seu divino corpo. Untado com o mais artesanal azeite de oliva.

Este texto será uma espanhola colcha de retalhos (collage), um arranjo estético- literário por mim feito com fragmentos pinçados do romance A virgem vermelha do teatrólogo espanhol Fernando Arrabal, autor da conhecida peça teatral Cemitério de automóveis (encenada nos anos 60 em São Paulo pela empresária Ruth Escobar) . Este romance de Arrabal foi editado em Portugal pelas Publicações Dom Quixote — Lisboa — em 1987. Aliás, na chegada a Madrid, na manhã de 20 de Enero de 2000, vi um enorme cemitério de pesados e longos caminhões.

(...)” É a tremer com todo o meu corpo que te escrevo. Com que imensos escrúpulos relatei aos polícias e aos juizes, desprovida de artifício e de fingimento, como fui obrigada a sacrificar-te. Desde então, confidente única do meu próprio tormento, sou assaltada por tantos tumultos que não existe dor que eu não tenha abrigado no meu coração, nem tortura que não tenha sofrido. Conheci tantos infortúnios! (...) Era tão vital que os motivos do sacrifício aparecessem à luz na grande praça do mundo! Jogava-se ali muito mais do que a minha vida. (...) Mas quando a estrela da manhã se preparava para te saudar, tu escolheste precipitares-te no abismo. (...) Ninguém é profeta na sua terra. Escrevo-te agora que tu habitas tão longe deste mundo. O teu invólucro desvaneceu-se e eclipsou-se. Só brilha e vem à superfície a tua recordação. Como eu sofro! (...) A minha vida começava com essa fuga!.. (...) Antes de festejar os meus vinte anos descobri na biblioteca os livros secretos que me transformaram. (...) Sempre raciocinei com a cabeça e não com o ventre como fazem tantos homens e mulheres. Não iria forjar mais um elo na cadeia da ignorância composta de escravos apáticos e insípidos senhores. Era essa a razão por que eu seria mãe e não uma galinha poedeira. (...) Sonhei que um moço cego coberto de escamas conduzia uma menina fascinada pelos raios do sol. No ar esvoaçava um pajem, com uma bússola na mão. (...) Sou o consolador dos desconsolados. (...) Do teu nascimento, só me separava o curto choque da concepção. (...) No caminho da certeza não havia lugar para divagações nem deambulações no labirinto caprichoso da imaginação. (...) Eram os meus instintos a aranha que tecia a minha natureza. (...) Tantos poços secretos e escondidos penetram o espírito como estrelas ocultas no firmamento. (...) Eu imaginava que o Sol e a Lua se banhavam no líquido original composto pelo suco do sémem. O fogo exterior do enxofre acabou por se dissolver, sublinhou-se e por fim calcinou o líquido, transformando-o em mercúrio. (...) Eu soube que tu já existias, desde a eternidade, antes ainda de seres concebida. Tu adiantavas-te ao rebentar das torrentes originais da terra e às primeiras nuvens, cisternas do céu. (...) A minha filha será a palma da paciência, a flor entre os espinhos, a rosa mística, o vaso espiritual. (...) Peço-lhe apenas que introduza durante alguns momentos a sua carne na minha para depositar em mim as gotas de sémem que exige o meu projeto. (...) Para uns, eu surgia do caos, louca, sombria e tenebrosa; para outros, à beira de um abismo em chamas, eu apresentava-me como depravada e sem moral. (...) Sinto as entranhas cheias de punhais e de espanto. Sou um vagabundo louco e maldito no meio dos cisnes de lata. (...) Sem a menor sombra de fé, penetrava no santuário, errava em caminhos falsos, mas a sua alegria desencadeava-se, contagiosa. Como o relato das suas próprias peregrinações o estimulava!.. (...) Como era bom quando nos abraçávamos. Eu farejava a lama das suas pernas e apercebia-me da matéria fresca do canto nupcial. (...)

Depois vieram os seus êxitos, como chefe de orquestra, e o esquecimento. (...) Este desengano tão doloroso que eu julgava encerrado e apodrecido fermentava ainda com uma acidez enjoativa, exalando um fedor de sepulcro. (...) A morte surpreendeu-me tanto, a mim, que a tinha sempre considerado como um sinal da obra regular da Natureza. Saber que não tornaria a ver meu pai muito amado, encheu-me de uma pena profunda, tóxica, pútrida, infecta, tenaz, uma dor que não era perceptível pelo olfato mas pela razão. (...) O tempo mais luminoso da minha vida, tanto nos caminhos estreitos das minhas agitações como nas avenidas largas das minhas prostrações, passei-o pensando apenas em ti. Os meus sacrifícios foram sempre isentos das lepras do interesse deslocado. (...) Um dia saberás que a semente da terra se mistura com a areia do deserto, durante a noite, num triplo símbolo de morte. (...) Tu queres ter comigo uma ligação carnal numa cama de pedra do tamanho de um transatlântico no meio dos lânguidos arcanjos do sonho? (...) O meu náufrago não sabe levantar a sua cimitarra e descarregar os seus ardores senão no corpo peludo de um homem. (...) parece-me que vens a voar por entre as árvores penduradas das estrelas. Irmãzinha de olhos noturnos, amo-te com lírios molhados. Mas não exijas de mim o que não te posso dar. (...) Como eu ficaria fora de mim ao ver surgir das minhas entranhas, entre as minhas coxas de homem, uma magnólia de sangue que surgisse como um jovem touro selvagem! Que encanto ser mãe! (...) Que sobrecarga inútil de miséria!.. (...) um elefante levando uma torre às costas flutuava no ar. (...) Salta como uma rã mecânica no meio dos espelhos e das melancolias. (...) Josué teve de dar sete vezes a volta a Jericó antes de lhe ver cair as muralhas. Os cisnes também deram sete vezes a volta a Delos e Apolo nasceu na oitava volta. E eu perguntava a mim própria que volta estava a terminar, e quantas negativas tinha ainda de suportar antes de encontrar teu progenitor. (...) Já não há homens. Morreram todos no século XIV. Só restam borboletas de monóculo. (...) Sonhei nessa altura que um Conselho de professores me fechava num caixão de pedra para me castigar pelas minhas doenças. Esquilos sorridentes aproximavam-se para roer os ossos e a carne. (...) a moral era uma figura estranha tão desconhecida como a fidelidade. (...) um cordeirinho reclamando a sua chávena de orvalho! Quando às escondidas, eu o trespassei com o meu punhal musculado, ele estava de gatas, felicíssimo. Gemia baixinho, pedindo-me para que eu lhe enfiasse até lhe atingir o interior da alma. (...) o orvalho onde se encontrava encerrado o espírito de uma menina assassinada. (...) As coisas não são como são. Não se devem procurar grinaldas sujas na ausência. (...) O tempo esteriliza, corrói, gasta e elide as minhas recordações. Elas perdem a nitidez, mas o sentido permanece. No espelho da memória, como rebrilhavam a doçura e a simplicidade do seu pai!... (..) Eu sonhei que um enorme lagarto fêmea fugia de um forno onde se coziam bolos para abrasar no meio das chamas, uma menina que era uma rainha com três coroas: a mais volumosa correspondia à sua situação de bastarda. O lagarto fêmea envolveu-a em várias faixas. Depois meteu-a como se fosse uma fava num bolo- rei gigantesco. Quando o animal pediu açúcar para o polvilhar, uma pianista levou-lhe um pequeno boião com estas palavras escritas: “sal dos filósofos”. (...) O luto só é bom para os espantalhos. (..) A morte os elevou à dignidade de relíquias invisíveis. (...) Eu atenuava a minha extensão da minha impaciência com o bálsamo das previsões. (...) Estudei este assunto à luz da verdade clara, foi por isso que perguntei a mim própria se devia conceber-te de cabeça para baixo e de pernas para o ar, como uma crucificada. (...) Eu levei tempo a considerar que a ausência de luz aparece como uma exigência indispensável a qualquer fecundação. A Natureza engendra na plena escuridão. Os cogumelos, por exemplo, nascem, crescem e desenvolvem-se durante a noite. Graças ao meu repouso noturno, o meu próprio organismo restaurava-me as forças, renovava as minhas células que a luz diurna me subtraia e deteriorava. (...) uma águia lutando com um dragão, um guerreiro esmagando uma serpente ao pé de um carvalho, um gigante cortando as cabeças de uma hidra, uma víbora vermelha estrangulando um escorpião verde, um cavalo espezinhando uma salamandra e uma menina crivando de setas um tigre enraivecido. (...) um geômetra pescava a linha de um peixe de porcelana, que na realidade era o Sol, mas tão pequenino!... (...) Juro-te pelo que tenho de mais sagrado, agora que tu vais oscilar entre o vácuo e a vertigem profunda. (...) colocando-me sob a virtuosa tutela da serenidade. (...) deixei arrastar-me pela felicidade. (...) é tão lindo, uma borboleta a rodopiar no seu tutu de renda. (...) o meu pai contemplava com tristeza o eclipse da sua própria vida. (..) não queria espiar o cortejo de mistérios que povoava as noites do seu amigo. (...) Esta rixa, tão paradoxal, libertava, apesar do seu furor, um cheiro a podre, a sepulcro e a flores murchas. Eles atacavam-se como duas personagens vindas de uma humanidade desaparecida, de um mundo esquecido. (...) abatido ensombrou-se sozinho como um sol de raios negros transformado num astro frio. (...) A Espanha da minha infância foi a Espanha de Marcelino, pão e vinho e de El Cid . (...) uma leoa de aço aproximou-se de nós, deu um estranho salto e por fim tomou uma atitude heráldica. Uma amazona minúscula ofereceu-nos um pequeno barril atravessado por uma flecha. (...) Nunca esquecerei o último olhar a mim dirigido pelo meu cachorro Aragão. (...) A língua usada por Adão para nomear todas as criaturas, a linguagem das aves, uma língua que era o instinto e a voz da Natureza.(...) Viam-se nela três Incas, exatamente iguais, mas com três inscrições diferentes: “ linguagem diplomática”, “linguagem de corte” e “linguagem universal”. (...) a linguagem original que a tua filha conhecerá, os animais já a compreendem. Que loucura!.. (..) Esta secreta fraternidade entre a medicina e a bruxaria horrorizava-me. (...) A paciência é a escada que sobem os filósofos e a humildade a porta do seu jardim. (...) o meu pai entrava num velho castelo em chamas para ser incinerado. (...) Um leão e uma leoa olharam-se fixamente. Cada um deles tinha entre as patas uma máscara humana incandescente, como dois sóis. (...) A luz e as trevas misturadas anunciaram-me que tu eras já a imagem do mundo. (...) Ao ver-te, eu sentia que progressivamente a dor insuportável se transformava em verbo incarnado. (...) Viva Santa Teresa de Ávila!.. (..) Antes de mais, é preciso que eu retire a minha estrela do lodo. (...) Arrasto um ventre de lata desdentado e aranhas roucas. (...) duas mulheres- juizes coxas coroaram-te de flores, folhas e frutos para te transformarem em imagem da natureza fecunda. Outra macaca pôs no meio da folhagem situada à tua direita, o Sol, e na da esquerda, a Lua. Uma serpente com a cabeça humana surgiu, ameaçadora, enroscada no tronco de um pinheiro. (...) a via do sábio desembocando no mar dos Filósofos. (..) suas conclusões sectárias e exaltadas. (..) conhecimentos mais rançosos do que o toucinho da arca de Noé. (..) Tu não passas de um velho pássaro recheado de filosofia que voa acompanhado do filho num infinito seco e murcho. (...) não consegui encontrar espantalho capaz de assustar o rebanho das minhas recordações. (...) Nessa noite sonhei que um dromedário fêmea com asas e focinho de lebre preta reinava sobre o mundo noturno da Lua. (...) Liberta do jogo dos preconceitos, tu recebeste diariamente lições particulares dos professores menos contaminados pelas artimanhas e intransigências contemporâneas. (...) Como eu estava desnorteada! Ignorava até que ponto a educação é incapaz de arrancar as ervas ruins da hereditariedade. (...) uma águia voando com sua presa tinha uma inscrição que dizia: “O espírito eleva-se quando a matéria se precipita.” (...) Eu própria me sentia tão vil, tão disforme, tão enferma na vulnerável fortaleza da minha vida. (...) Quando nasci, comecei a morrer. — O caixão é a razão de ser do berço. (...) A Espanha cheira a sebo de boi, a azeite de oliva, a sémem de toureiro. (...) Sonhava que me via a um espelho. A porco e pouco, o meu rosto desfazia-se até se transformar numa cara de corvo. O meu corpo segregava uma gordura oleosa e soltava um cheiro pestilento. (...) Sarita Montiel sobrevive. (...) Vocês marchavam sobre as vagas do mar desencadeado. (...) São infinitas as filas de visitantes ao Museu do Prado onde está exposta a impressionante tela do Triunfo Eucarístico de Rubens. (...) Para eles, tu eras uma menina prodígio, um fenômeno de barraca de feira. (...) Tinha chegado para ti o momento de conhecer os mistérios que têm o ventre por sepulcro. (..) e a terra inteira seca e cheia de gretas. (...) as plumas do seu jardim das trevas. (..) O ensino universitário não consegue atingir os verdadeiros mistérios. (...) Ele é mais velho que Matusalém. (...) Tenho a cabeça cheia de piolhos. — Atiro-os nos jardins públicos para cima das mães e dos seus pimpolhos. (...) Uma menina gladiadora rachou em duas com a espada uma colmeia sem se assustar com o enxame de abelhas irritadas. O mel derramou-se devagar até escorrer a teus pés. (...) Era uma via sem perspectivas, barroca, e sem outra saída a não ser a singularidade. (..) Caia com ele nos lagos tão afastados da eterna sabedoria. (..) Nessa noite sonhei que navegavas num veleiro sacudido pelas ondas. A areia do deserto alcatifava a ponte do navio. Abandonaste o leme para plantar ossos junto de um pinheiro enraizado no castelo da proa. (...) Enquanto os brasileiros se emocionam cantando com os imigrantes italianos da novela Terra Nostra, a extrema direita nazista austríaca inicia, bem no coração da Europa, um novo ritual de ódio aos imigrantes de outros países europeus, asiáticos e africanos. Numa Europa crescentemente racista e xenófoba. (...) Não posso viver com um viúvo enrolado em musselina de chumbo. (..) Na sua opinião, tu devias ser acólita da igreja, filiada no sindicato, militante de um partido, devota de uma seita e militarista incondicional. (...) Fechou mãe e filho numa arca e atirou-os ao mar. (..) mas enviou-os à Terra dos Sábios, onde passaram o resto da vida a contemplar milagres. (...) Não são muitos nem percentualmente significativos os números de europeus que se deslocam entre e/ ou conhecem os vários países do seu continente e alegam fatores sócio- econômicos para explicarem seus enichamentos. Será que o racismo xenófobo na Europa contemporânea não é mais uma tentativa extremada de auto- defesa da identidade do Velho Mundo Ocidental num contexto internacional pós- humanista? (...) A dor se esgotou com uma monotonia cansativa. A consolação deslizou entre as mãos de Abélard. (...) e a porta da prisão caiu com enorme barulho. (...) Tu eras uma velha mas com feições de menina. (..) Não somos todos iguais. (...) Tenho o dever de ser doida pelo que é mais repugnante. (...) a tua felicidade nunca soube imaginar a falsa glória. (...) Tu lançavas-lhe sobre os ombros uma capa filosofal enquanto espezinhavas uma serpente que rastejava a teus pés (...) O racismo xenófobo que acende humores de ódio em todos os países da Europa é a resposta não necessariamente nazista de uma das regiões mais tradicionais e mais acossadas por seus vizinhos em todo o mundo... uma resposta à possibilidade de se desfigurar com a invasão de povos africanos e asiáticos. Até hoje Átila, Gengis Khan e os sultões árabes e os imperadores turcos apavoram e embalam os milenares e seculares pesadelos europeus. (...) Uma noite, vi em pleno vôo a pomba da arca de Noé, com um ramo de oliveira no bico. Quando passou por cima de mim deixou cair uma lágrima de líquido branco. Eu provei-a com delícia. Era na realidade uma gota de leite imortal das aves. (...) Atirava 7 pedras contra um enorme rochedo isolado no mar. O teu rosto estava delicadamente esculpido na rocha. (...) Com que esplendor resplandecias na escuridão do mundo em que vivíamos. (...) não me denuncies à tropa por causa do meu estado de saúde. (...) perdida na contemplação, distraída e entregue a tão grandes vertigens. (...) Pertenço à raça dos que assobiam quando torturam. (...) Os golpes da foice da agonia puseram termo à sua aventura terrena, e morreu nos meus braços com um rictus de sofrimento que lhe deformava o espírito. (...) Chevalier proclamou que queria tomar um navio para partir sozinho para a Abissínia, como se Abélard tivesse deixado de existir para ele. (...) como se árvores secas tivessem podido insuflar-te a menor vitalidade. (...) o seu espírito elevou-se reencarnado num anjo, até chegar a uma estrela que brilhava no firmamento junto de uma árvore coberta de frutos. (...) fazendo mil rodeios, como se te emboscasses no hieróglifo da longa vida. (...) perdida no labirinto, ficavas desprovida do fio de Ariana que permitiria materializar a unificação sintética. (...) Sonhei que desenhavas na praia o labirinto de Salomão de três entradas e nenhuma saída. No ar, suspensa de uma nuvem, balouçava-se uma estrela-do-mar . Por cima dela, no céu quatro terrenos lavrados compunham a agricultura celeste. As espigas de ouro e as sementes de enxofre brilhavam, recheadas de mercúrio. (...) Benjamin e Abélard, como dois cavalos de Átila, queriam devastar o nosso território. (...) não podiam cobri-lo de vulgares emplastros. (...) Tu brilhavas como uma estrela, mártir, laboriosa e imoral. (...) Vou sepultar a honestidade. (...) uma tempestade furiosa vergastava uma rocha cristalina e frágil, ameaçando deixar que o mar a devorasse. (...) acetinavas sob a influência do ferro a brancura das matérias. (...) tenho a sensação de encher completamente a redondeza do universo. (...) a menina ressuscitou os mortos. (...) Deves saber que os filhos não são propriedade dos pais. (...) não posso ser toda a vida uma boneca sem vontade própria nas tuas mãos. (...) caminhavas majestosamente em direção a um vergel. (...) queimou-te as mãos com as labaredas que deitava dos pulmões. (...) a traição dissimulada na própria opacidade pintava a abóbada do céu com sombras de luto. (...) Sonhei que uma peça de artilharia do século XVI disparava um tiro de canhão. O projétil caiu numa lagoa, assustando os cisnes. (...) via o teu esqueleto com as doze chaves... via o teu cadáver devorado pelos vermes no interior de uma esfera transparente. (...) vermelho, a flor do pescador. (...) o mercúrio filosofal recebe o seu esplendor do enxofre como a Lua a sua luz do Sol. (...) Protege-me debaixo da figueira. Referias-te à figueira do faraó que abrigou os sábios durante a sua fuga, dando-lhes os seus frutos para se alimentarem e a humanidade das suas raízes límpidas e frescas para lhes matar a sede. (...) Levaste dez anos a extrair o ouro do enxofre e vinte e sete dias a extrair o mercúrio de Saturno. Mas a resolução de morrer, tomaste-a apenas nalguns minutos. (..) A angústia com que eu pensava no fim do mundo, num cataclismo universal que trouxesse a ruína total ao planeta e o extermínio de todos os seus habitantes. (...) Como é infinitamente mais doloroso matar uma filha do que traze-la ao mundo!... (...) Acumulava na minha carne, nos meus ossos e no meu espírito, todas as penas do universo. (...) Sofria tanto que não consegui chorar. (...) Tu correrás no Sol e eu caminharei sob a terra. (...) Habitando no meio das estrelas, com vertigem nos olhos, como eu me senti de repente feliz!...


 

 

 

Reflexões pânicas durante a minha viagem aérea entre São Paulo e Lisboa em 13 de Janeiro de 2000

 

Uma estrela tão distante se faz presente em minha intimidade, na paisagem noturna e celestial da janela do meu quarto de dormir. Até de longe se está presente, brilha a mensageira estrela.

Se lá embaixo, no oceano, enormes ondas se elevam e se debatem, porque não haveríamos de viver turbulências cá em cima?

Como são horríveis e chatos os filmes que nos mostram a bordo!... Como são repetitivas e enjoativas as músicas clássicas que oferecem aos nossos ouvidos cansados!... Argh!...

O “entre-e-sai ” dos banheiros do “air-bus” é entediante. Estou de frente para um destes movimentados lavabos. Até agora só precisei ir a um deles uma só vez em quase 5 horas de vôo.

As turbulências equatorianas não são apenas econômicas mas também meteorológicas. Os tubarões estão lá embaixo. Refresco-me com uma toalha perfumada. A primeira vez pode ser mais difícil. A segunda pode ser menos.

Chegarei com olheiras a Lisboa. A chic Oeiras está a 10 km. De Lisboa.

Até o prelúdio em dó menor de Bach ficou chato ao som das descargas nos lavabos do “air-bus” da TAP. Sean Connery estava em todos os filmes exibidos a bordo. Como são fanáticos!...

Abaixei o volume mas não tirei o fone do ouvido. Dependo de música, principalmente agora. Se eu não estivesse com relógio de pulso eu já teria incomodado a vários companheiros de viagem. Me contenho e até faço exercícios respiratórios. Exijo água e lanches nos horários dos meus remédios. Ao menos isto!...

Ultrapassamos as ilhas de Cabo Verde, beiramos as costas africanas, recupero a esperança de chegar vivo ao além-mar. Como salmão defumado, pão com manteiga, arroz integral sem sal, tomo água com limão e os meus remédios e fico melhor, com boa aparência e com bom astral.

Mas os tubarões continuam abaixo dos nossos pés. Sem dúvida. É só olhar o mapa com a evolução da viagem exibido aos passageiros do vôo 1564. Será que viça muito funcho nas Ilhas Funchais?

O avião voa a 1013 km por hora mas vejo-o parado sobre a névoa das nuvens, zuando há quase 7 horas sem parar. Já estamos perto de Tenerife, Canárias, Las Palmas, Casablanca e Gomera, Hierro e Marrakech. Lisboa está na mesma posição de New York, só que em margens opostas do Atlântico. Altitude do avião agora: 11300 metros. A seguir passaremos perto de Ceuta. As nuvens brancas do hemisfério Norte parecem um mar de espuma de gelo, uma coalhada de neve sob e sobre um céu azul pálido. Estamos chegando no Velho Mundo. Passamos ao largo do deserto do Sahara. Quanto mais adentramos ao hemisfério Norte mais o azul celeste se acinzenta. Ilhas Lanzerote... Ilhas da Madeira... O sol se põe. Deixarei penas do papagaio da mamãe aos pés do altar de santo Antonio de Lisboa. Isto para acentuar o contraste entre o colorido desta ave tropical com o cinza invernal europeu. Os últimos raios solares incidem nas turbinas e extremidades das asas do avião.

Pânico na chegada

Chegamos a Lisboa dentro do previsto: 19 horas e 17 minutos. Longa e morosa fila para carimbar os passaportes me impacientou. Corri a buscar a minha bagagem e custei a encontrar a esteira que trazia a bagagem do nosso vôo. Depois fui à saída do desembarque internacional para encontrar os amigos Sandro e Antonio, que lá não estavam me esperando como prometeram. Entrei em pânico de novo. Não havia comprado a moeda portuguesa e custei a achar uma casa de câmbio para comprá-la e, assim, poder adquirir um cartão para telefonar aos meus atrasados anfitriões. 30 dólares compraram 5150 escudos. Chegaram Antonio e Sandro depois que eu tentava em vão telefonar-lhes. Cheguei ao apartamento que me destinaram e comecei a organizar as minhas coisas. Folheei a interessante revista gay portuguesa Korpus — número 6 — 1998, com uma interessante entrevista com o antropólogo Luiz Mott da Universidade Federal da Bahia.

Primeira segunda-feira em Lisboa — 17 de Janeiro de 2000

Se você se exaltar ao olhar até às alturas a bela paisagem urbana de Lisboa, em alguns dos seus bairros, como, por exemplo, Arroios, Estefânia e Saldanha, corre-se o risco de pisar em bostas de cachorros. Saudades do meu cachorro, recém- falecido, Aragão!... Afinal, são os cachorros e os gatos os únicos seres vivos que emitem (com seus corpos) sons audíveis nesta invernal e sombria Lisboa, seca e úmida. Dores nos ossos.

Parece-me que a Europa virou um aquário de formol para múmias humanas pretensamente vivas e ambiguamente desorientadas entre as possibilidades e as impossibilidades, a rigidez e a flexibilidade, o peso e a leveza, o fim das certezas e a ampliação das incertezas e perplexidades multiculturais, cosmopolitanas e pós-modernas.

Talvez para não pisarem em bostas de cachorros, muitos europeus andam cabisbaixos e com as mãos ocultas em capotes e em casacos. Um forte cheiro de murrinha de gatos e cachorros impregna ruas, ruelas e sobrados frios e úmidos de Lisboa. Apesar disso, aqui também é a terra que define o aéreo sabor dos seus frutos numa dança gustativa entre o seio maternal e os perfumes e os cheiros dos ventos paternais. Ai que saudades do Brasil!... Daqui a 2 dias amanhecerei na Espanha, em Madrid e de lá prontamente seguirei para Toledo.

Inverno — Janeiro de 2000, reflexões ao cair da tarde

Aqui tudo que é secular ou milenar tem aspecto sepulcral, mas os edifícios sofisticados e novos também me asfixiam. Uma das coisas mais chatas é você ser interrompido em pleno orgasmo estético-musical por um trim- trim telefônico desencadeado por estudantes à cata de entrevistados e em pesquisas. O homem europeu é o ser humano que mais me impressionou até hoje. Numa das igrejas barrocas do Chiado — Lisboa, não sei se na Encarnação, na Virgem de Loreto ou na dos Mártires — toquei em duas caveiras desdentadas e com patas de águias, esculpidas em mármore com cores hiper-realistas. Tais caveiras estão sobre uma sepultura de algumas dessas dignidades ou príncipes eclesiásticos ou mesmo de autoridades temporais que ali ganham repouso junto aos santos, mas estrategicamente postadas ao lado de uma pia batismal. Próximo à porta de entrada daquele pomposo e patético cenário do teatro barroco católico português. Nascimento e morte lado a lado.

Também em uma destas 3 igrejas citadas encontrei a mais lancinante e impressionante imagem de roca de Nossa Senhora das Dores de toda a minha vida. Creio que esta imagem está na igreja de Nossa Senhora da Encarnação. Quantos mendigos nas ruas, no metrô e nas portas das igrejas de Lisboa, meu Deus!... Muitos deles anciãos com terno e gravata e um chapéu de moedas. E olhar pedinte.

O silêncio ou a rispidez humana ou o alvoroço de algumas boas vidas no inverno lisboeta se me afiguram como macabras cenas do cemitério europeu. O inverno é a estação da morte, do frio da morte.

A fachada do Asylo de Arroios — Casa da Sociedade da Infância Desvalida de Lisboa, construído em 1894 com os legados do cônego Luzindro e de J. J. Alves Monteiro, tendo ao fundo os espectros de árvores desfolhadas com galhos nus e esqueléticos, afigura-se-me como a entrada de um bege e marmóreo mausoléu.

Sopa de ossos ocidentais

“Se bebes para esquecer, pague antes de beber”, eis um belo exemplo da grosseira ironia portuguesa. Os franceses seriam mais diretos: para não esquecer de pagar o que bebes para olvidar, antecipe-se ao esquecimento e pague a bebida ou o que beberás. Nós, brasileiros, diríamos: “fiado, só ontem.”

Nossa história brota perpetuamente do rumor silencioso dos séculos, das intermináveis tramas voluptuosas e barrocas das ondas do mar de histórias no qual somos ilhas, oásis e icebergs. Rochedos.

O que vejo nas igrejas e museus portugueses são mensagens do passado. Navegar pelos céus até Lisboa me está sendo tão perigoso quanto as travessias oceânicas entre os séculos XV e XVIII. Antes agradecia-se ao sagrado pela chegada sem naufrágio confeccionando-se ex-votos, hoje o mesmo faço nestas linhas, letras e imagens. As mensagens do passado não deviam estar sendo tão ignoradas. Ou esquecidas. Isto é trágico. Não estou acostumado a me sentir tão só como me sinto aqui nesta soturna Lisboa. Julgava-a menos européia e me enganei.

Me disseram para ver tudo. Eu também quis ver tudo. Mas é impossível ver tudo. Umas vacas amarradas em estacas debaixo de uns viadutos que se cruzam sobre a avenida Valladollid, na saída de Madrid, às 22 horas do dia 21 de Janeiro de 2000, tentavam pastar capins crestados pelo frio numa noite de lua cheia.

Uns cachorros bravos me cercaram em Zamora, na garagem da Ledesma, onde tentávamos um novo coche para nos levar ao Porto, visto que o auto-bus que nos trouxera de Madrid estava com o seu dispositivo de abrir e fechar suas portas estragado. Praias de neve cobriam os campos e bosques do oeste espanhol e extremo nordeste português. Um cemitério com alamedas de ciprestes estava alcatifado por um gélido manto invernal numa daquelas numerosas aldeiazinhas na beira da estrada que nos levou de Madrid a Valladollid, a los Toros, a Tordesilhas, a Salamanca, a Zamora, a Bragança, a Macedo de Cavalheiros, a Mirandella e, depois de uma longa descida de serra, ao Porto, berço de Portugal e capital do norte lusitano.

Na rua Augusta, na tarde do Domingo 16 de Janeiro de 2000, na Baixa-Chiado, um menino com cara de mexicano cantava pedindo esmola enfrentando ventos gelados. Tinha ao seu lado um franzino e mal alimentado cãozinho cor de doce de leite queimado que sustentava em sua trêmula boca um velho e amarrotado chapéu salpicado de moedas. Estrelas da miséria lisboeta.

Um cardume de gaivotas dança como um bando de sardinhas orquestradas pelas ondas do estuário do Tejo. Em Toledo, onde também passa o Tajo, que em Portugal é o Tejo, o “Conde” de Orgaz morre de orgasmo entre tesudos nobres castelhanos saborosamente revelados por El Greco. Entre o Porto e Lisboa vi campestres tapetes de musgos aloirados por um sol dominical de 23 de Janeiro de 2000. Numa madrugada fria de fim de semana, nem uma bem abastecida lareira aquece papagaios brasileiros que se arrepiam numa enorme gaiola colocada ao lado de uma enorme televisão na sala de jogos e snooker da saúna gay Viriato de Lisboa.

A Espanha é uma numerosa família desunida. Em Madrid, capital centralista da monarquia espanhola, nada encontrei, nas várias livrarias em que estive, sobre a história do reino de Aragon, ao sul do qual nasce o rio Tajo. A Catalunha é um outro país dentro da Espanha e sua capital Barcelona sempre foi antagônica frente a Madrid. Algumas cidades da Galícia espanhola querem ser agregadas ao norte português. A província Basca luta há séculos pela sua autonomia política.

Desta ruidosa e desunida família hispânica, há quase mil anos, Portugal apartou-se com sucesso e autonomia, suscitando até hoje mal estar nas relações entre Espanha e Portugal, vista pela primeira como um mal exemplo bem sucedido para os seus filhos separatistas catalães, bascos e galegos. A cidade do Porto me foi mais acolhedora que Lisboa. Em Madrid fui indelicadamente atendido pelo garçom do bar gay Figueroa e pela lésbica que gerencia a libreria Berkana da calle Gravina, 11, na Chuenca — centro gay da capital espanhola.

Na manhã do dia 21 de Janeiro do ano 2000, no hotel Hispano, calle Hortaleza, 38 — segundo andar — em que me hospedei em Madri, levantei-me sobressaltado com os informes da televisão espanhola sobre os dois atentados terroristas bascos na capital espanhola. Por falar em televisão, tanto na Espanha quanto em Portugal a qualidade dos programas é muito precária se comparada às demais televisões européias. Em Portugal tentam imitar programas da televisão brasileira e caem no ridículo.

Hoje comprei uma enorme bandeira de Portugal para estendê-la na entrada da minha casa em Ribeirão Preto, estado de São Paulo — Brasil. Uma família pobre de Lisboa, composta por um vigilante, uma faxineira, uma operária e um jovem técnico em informática, moradores na ruela João do Outeiro, na Mouraria, me ofereceu de lembrança um litro de azeite de oliva feito por seus parentes na zona rural de Castelo Branco, próxima à fronteira de Portugal com a Espanha, sem adulterações industriais. Como são amorosos e generosos os genuínos espíritos do condado de Portu-gaia!... O rio Douro visto cá de cima da ponte, da janela do auto- carro em que vou para Lisboa, me apavora, como se de cima desta altíssima ponte- penhasco fossemos nos precipitar. Ai que saudades da Ilda e da Maria Ângela da cidade de Espinho, nas cercanias do Porto!... Saudades do casal lésbico-gay Cristina/ Marina do Porto!... Saudades do hotel Peninsular da rua Sá da Bandeira, na cidade do Porto, de onde levo um saco com amostra de sua amável e inesquecível terra! Ah! Acabou!...

Ah! Ia me esquecendo: sabem quem encontrei no restaurante do Centro Hare-Krishna de Lisboa? Foi a Iara Fernandes, neta da Mulatinha de Araxá, filha do Chico do Elídio que empreitou todos os carroceiros para as obras do pântano milagroso no qual edificaram o balneário mais famoso do sudoeste de Minas. Descendente de benzedeiras daquela região, Iara trabalha com Manoterapia (a cura pelas mãos) em Lisboa. Mas muitos a acusam de vigarice e charlatanismo. E lá também dedica-se às Artes Decorativas.

Africanos, muçulmanos, indianos, paquistaneses e chineses estão cada vez mais presentes nas ruas, no comércio e nas estações do metrô de Lisboa e de Madrid, despertando iras xenófobas nestes dois países ibéricos.

Desunião portuguesa

Carlos Alberto Pinto me contou que as portuguesas não querem mais se casar pois para terem um chouriço têm que levar para casa um porco inteiro.

Os portugueses do norte chamam os de Lisboa de mouros, ou seja, não afeitos ao trabalho.

O Centro Comercial da Mouraria só tem lojas de paquistaneses, indianos, muçulmanos, chineses e africanos. Confira. O antigo bairro lisboeta da Mouraria é um dos temas da fadista lusitana Amália Rodrigues, amada pelos homossexuais portugueses da mesma forma que aqui no Brasil as bichas amam a cantora Ângela Maria.

A igreja da Pena, na calçada de Sant’Anna, foi construída em 1722 e foi uma das poucas não destruídas pelo terremoto que arrasou Lisboa no ano de 1755. É uma das igrejas mais impressionantes de Lisboa e no seu retábulo-mór temos até anjos de pernas cruzadas como se estivessem a dançar cancan em pleno século XVIII!... Fui até esta pouco conhecida e barroca igreja de Lisboa entre as 17 e as 18 horas do dia 25 de Janeiro de 2000 e lá vi estandartes de madeiras que eram levados em procissões do século XVIII, imagens de arte sacra do século XIV incorporadas ao museu paroquial da Pena, um sacrário já deteriorado e de origem desconhecida e o rico mobiliário da sua sacristia.

O frio intensifica-se em Lisboa.

A Fundação Cultural Bracara Augusta e a Biblioteca Pública de Braga, no segundo milênio da cidade de Braga, tradicional Sé episcopal do norte português, promovem uma série de exposições sobre a cidade dos Arcebispos e sua história. Uma multinacional canadense de strippers investe em espetáculos eróticos noturnos na capital do tradicionalismo católico português. As procissões da Semana Santa em Braga extrapolam o caráter religioso tradicionalista e já foram incluídas no calendários de eventos turísticos portugueses. Site sobre a história de Braga: http://www.bpb.uminho.pt/

No lagar de azeite, as azeitonas salgadas são esmagadas e o suco destas frutas verdes lançado em caldeiras com água fervente onde, depois aflora e é recolhido o azeite de oliva. A massa das azeitonas esmagadas para fazer azeite servem de alimento para o gado. Os que apreciam azeitonas curtem-nas em água com sal, cascas de laranja picadas e orégano.

Os pés dos machos que pisoteiam uvas no lagar de fazer vinho devem ser lavados a cada pisoteio. Pés com chulé não servem para fazer vinho nos lagares mais tradicionais, só prestam para excitar o tarado podólatra paulistano Glauco Mattoso.

Me disseram que o governo português pensa em sepultar no mosteiro dos Jerônimos os despojos de Amália Rodrigues, depositados há pouco mais de 3 meses num gavetão do cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Aliás, os restos de Fernando Pessoa também foram para os Jerônimos. Este histórico convento lusitano está se convertendo no maior panteão dos ídolos portugueses.

Sabe-se lá, também digo mais

Os de Lisboa dizem que o Porto é uma cidade muito suja, principalmente na Ribeira, à beira do rio Douro, onde estão as maiores casas que comercializam o tradicional vinho do Porto. Ou seja, na parte baixa do Porto, capital do norte português. Vi até pichações com estas alusões aos do Porto na fachada da igreja da Graça de Lisboa. Na verdade, estas pichações é que são uma porcaria.

Realmente a igreja da Graça de Lisboa é belíssima e impressionantemente barroca. Já a monumental igreja de São Vicente de Fora nem tanto. Visitei ambas na tarde do dia 27 de Janeiro de 2000. No dia 28 visitei a incendiada igreja de são Domingos de Lisboa, da qual pouco restou.

O meu imaginário sobre a Europa era brasileiro e isso lá me deixou com a sensação de estar sem pés. Meu barrococentrismo me deixou estupefato diante do românico, do gótico, do medieval e das ruínas da civilização romana na península Ibérica.

O senhor de Orgaz não atingiu o orgasmo mas eu entrei em êxtase na Catedral da Sé de Toledo ao ver a tela La Flagelación de Cristo de Strozzi, pintor do século XVII. Inscrição em Latim na deslumbrante Sala Capitular da Sé de Toledo — Espanha: “ IVSTITIAE CVLTVS SILENTIVM”.

A onda esquerdista na Europa está corroborando, quase justificando o avanço das forças políticas de extrema- direita na Europa. Exemplo: o caso da Áustria.

Sabem como os portugueses chamam guarda-chuva? É chapéu de chuva.

Em vez dos homossexuais portugueses freqüentarem suas impressionantes igrejas medievais e barrocas, eles se sentem cada vez mais atraídos pela vida gay em Havana, cenário do sanguinário ditador Fidel Castro.

Alguns intelectuais portugueses acham que os livros brasileiros são mais baratos mas a qualidade das traduções feitas por brasileiros deixa muito a desejar.

Lisboa é uma foz para o espírito melancólico ibérico. O fado é a melhor expressão disto.

Comprei uma enorme bandeira de Portugal por 3000 escudos numa loja para turistas, situada na rua Augusta de Lisboa. Comprei bacalhau, alimentos dietéticos, vinhos, postais, muitos livros sobre história da Arte, história de Lisboa, história da Espanha, literatura portuguesa, sobre o barroco português, sobre Toledo — Espanha e sua história, arte catalã contemporânea, El Greco, livro do teatrólogo espanhol Fernando Arrabal, livro do escritor surrealista português Mário Cesariny, livro sobre os Templários em Portugal (para o médico amigo Gilberto Valle — de São Paulo) e ganhei o livro Bichos de Miguel Torga (presente da amiga Cristina, da cidade do Porto) além de revistas de ensaios gays.

500 anos depois da viagem de Pedro Alvares Cabral, descubro Portugal e a Espanha. Gostaram?

Poemas do escritor lisboeta Carlos Alberto Pinto:

Saudade

Olha meu amor...
Nem sei como começar!...
Pois é imensa a saudade
Que tua ausência me está a causar
Não a ausência de teu corpo
Que é idêntico a tantos que já conheci
Mas dessa emanação que sai de ti
Bela e terna que me dá confiança
Sim : dessa tua doce fragrância
Como eu tenho saudade
De te rever e sentir
E mais uma vez vou falar
O quanto te desejo possuir
E ao mesmo tempo me entregar....

Novembro de 1982

Hino à Criança

Ó criança inocente e bela
Quisera ser de novo como tu és
Para ver tudo de forma singela
E crer no Mundo como tu crês

II

Que isto de ser adulto satura
Num Mundo com tanta maldade
Dá-me o teu manto de candura
Para sentir mais felicidade

III

É que minha Alma quer viver
Mas não pode respirar!.....
O meu corpo quer morrer
E os dois vivem a lutar

IV

Por isso oh criança celeste
De quem todo o Mundo murmura
Não queiras crescer tão depressa
Saboreia esse tempo com doçura

V

Pois a batalha para ti vai chegar
E lutarás para sobreviver
Voltarás a Ter saudades
De em criança inocente renascer

VI

Porque a verdadeira felicidade
Não está nos prazeres do Mundo
É-nos dada desde a maternidade
É Algo de súbtil pessoal e profundo.

Flor

Uma flor!.......
A expressão do mais belo amor;
Uma Rosa!....
É das flores que conheço a mais formosa;
E pela manhã com suas gotas de orvalho,
Como é sublime o seu odor!....
Todos gostamos de a cheirar, admirar....
É uma bela expressão da Natureza
De Deus Omnipresente
Do qual fazemos parte,
Mas não queremos aceitar!...

Portanto, se queremos agradar
Temos que deixar desabrochar essa Flor
Que está dentro de nós.......
Sempre à espera que a deixemos manifestar....
E então vamos ser felizes,
Pois, iremos ser como uma flor
Que imparcialmente vai agradar.

14 de Junho de 1982.

Carlos Alberto Pinto é funcionário público português aposentado; 56 anos; homossexual; sofre de solidão e depressões e mora à rua João do Outeiro número 51 — terceiro andar — Mouraria — Lisboa — Portugal 1100-291


 

 

 

Viver sem um pai é viver sem desejo?

 

“Andro” é macho e “Gines” é fêmea e os andróginos são seres duais, barrocos, luminosos e velados, machos e fêmeas, sagrados e profanos. Meu prepúcio são meus lábios vaginais e seu clitóris é seu pênis. Eu sou, em mim mesmo, meu pai e minha mãe, meu macho e minha fêmea, Deus e Satã, uma perna esporrada, uma perna cabeluda, uma perna com meia de seda negra ejaculada, panturrilha e calcanhares voluptuosamente barrocos, escada e deserto, mar e rochedo, convexo e côncavo, olhar e cegueira, céu e inferno, Amália Rodrigues e Caetano Veloso, eu sou lesbiano e travesti a um só tempo) como o foi Pierre Molinier (Bordeaux, 1900-1976). Meus pés cheiram a queijo parmesão. E meus calcanhares cascorentos e animalescos provêm do doce de leite e de outras delícias por mim vorazmente sorvidas, guloseimas que devorei sem paciente saboreio e com apressado paladar, insaciável como um Prometeu, que não queria só a caça, mas também o fogo para assá-la. Não há representação inocente. Entre o real e o simbólico não é mais necessário estar, basta que se deseje. O mercador babilônico de perfumes surpreendeu sua mulher traindo-o com um negro e decepou as cabeças dos amantes adúlteros e colocou a do negro no corpo de sua finada mulher e a de sua insatisfeita esposa no corpo acéfalo do seu amante. Celebrava-se, assim, a verdadeira lua de sangue que paira sobre o Velho Mundo. Eu desejo penetrar-me, eu desejo ser penetrado por mim mesmo, felar a mim mesmo e ejacular em mim mesmo ou, se possível, dentro de mim mesmo. Eu sou macho e fêmea e sei tudo sobre a minha mãe. Estudo sobre a paterna geometria de uma tensa constelação paternal ouvindo tristes fados em uma invernal Lisboa. As escuras igrejas barrocas de Lisboa e do Porto levaram-me a sentir-me em mouras cavernas de tesouros reluzentes. Não existe mito sem delito. Não existe o corpo. O corpo não é real. O corpo não é só real. O corpo também encerra uma dispersão de exaustos órgãos num platônico labirinto de lugares viscerais, distâncias introspectivas, percursos de peregrinos, funções e nichos de dejetos, sêmen, enzimas, resinas e hormônios desarmônicos entre naves e colunas ósseas. E no fundo de tudo isto um caótico magma ardente de uma totalidade confusa. Existe também um corpo imaginário sem órgãos. Um corpo virtual. O corpo é, ao mesmo tempo, unidade de ação e pensamento. A dolente agudeza, que arrepia-me como um raio a perpassar fulminantemente minha medula virtual, encontra aconchego e sereno embalo em meu autônomo e universal espírito. Toda enfermidade pertence a uma época. Toda época é um depósito ondulado de nossas vidas psíquicas e de nossas almas penadas. Toda doença é, assim, um acontecimento de ordem técnica e que, portanto, expressa um momento, inclusive é a manifestação de um “progresso” civilizatório. (Cf. in: BREA, José Luis — SIDA : El cuerpo inorgánico — Revista Acción Paralela — España — 2000). Os cerimoniais terapêuticos dos imunologistas no tratamento dos imunodeprimidos, bem como o estágio do desenvolvimento de uma tecnologia cyber para a relação do humano com a vida, são fontes reveladoras do imaginário mítico de nosso mundo pós-moderno (CF. in: SCHAMA, Simon — Paisagem e Memória — São Paulo — Companhia das Letras — 1996), ou do nosso mundo neo-barroco. A enfermidade é um fato social. Toda doença não é outra coisa que uma pura e efetiva produção de sintoma, escritura fragmentária de um desnudamento. Um transbordamento ocorrido sob a ação de uma pressão centrípeda que move e amplia nossa constelação significante. Nossas paixões e anseios de perenidade marcam nossos imaginários com traços e linhas pateticamente expressivas. A enfermidade é uma propensão ao inorgânico; assevera José Luis Brea. As dimensões sociais e simbólicas das doenças de cada momento histórico legitimam as reivindicações dos afetados contra o corpo social, contra os representantes da sociedade na qual vivemos (e morremos). Câncer, SIDA ou AIDS, acidentes automobilísticos, video-internetmanias compulsivas, paixões nostálgicas em tardes domingueiras, obsessão por visitar museus em manhãs de domingos, cartorialismos e burocracias curriculares ou escolares, calos nos pés ou mania de políticos que escondem em seus bolsos suas mãos sujas, desnutrições e carnificinas na África e na Ásia e na Europa e nossos instintos violentos e assassinos são enfermidades contemporâneas e policlassistas. Todo o nosso mundo está mergulhado numa imunodeficiência adquirida que se alastra por toda a ordem inteligente deste planeta e em seus impulsos civilizatórios viróticos. “Imunodeficiência: carência de argumentos para vencer o impulso desagregador. Incapacidade do sujeito para regenerar suas forças de coesão interna. Incapacidade do sujeito para autoproduzir-se. Incapacidade do sujeito conservar-se em si. SIDA: autêntica enfermidade da espécie humana, de nossa época. Doença ocasionada pela impossibilidade do indivíduo sentir-se parte de uma espécie, de um gênero 9o humano). SIDA: um patrimônio da humanidade, talvez em seus últimos dias”. — José Luis Brea. Falhas generalizadas em nossas ordens simbólicas, sintomatização da impresença do outro. A inidentificabilidade do outro. A ruptura da sociabilidade. Aí nasce a praga, a peste... aí dorme e pulsa Drácula, o eterno recluso. Uma indefinição cultural e seus terríveis efeitos em nossas vidas... Eu quero comer o queijo cascorento dos seus calcanhares. Também a globalização é a contaminação de todos os lugares. “A SIDA liquida a ilusão de uma linguagem que não seja ideológica.” (Cf. in. BREA, op. Cit.). Sejamos divulgadores como Voltaire o foi. A peste global traz a dissolução dos laços sociais e das noções de lugares. Não é casual que a AIDS seja transmitida durante os rituais nos quais o sujeito (pela droga ou pelo sexo) socializa seu gozo limite, sua experiência de pertencer a uma coletividade. Socializa-se a morte do sujeito. Inviabiliza-se mais um projeto de subjetividade. Inoculações suicidas, inconseqüentes ou irresponsáveis? Não!... Saiamos do universo da culpa e do pecado mas não caiamos nas galáxias da permissividade. Eros e Thanatos convidam Charles Darwin para a próxima dança no baile do Apocalipse, em plena praça de San Marco, em Veneza. Não sendo é que somos. Vivemos e morremos sacrifícios cerimonializados. Aferro-me à vida. Não cremos mais em nenhuma palavra. Voltaremos a gritar? AIDS/SIDA: a enfermidade das cadeias, a doença do nihilismo europeu, a peste da impunidade hedonística e anarquicamente mafiosa, o sinistro cinismo dos santos e dos demônios. Manifesta tragédia do incalculável e do imprevisível. Ninguém traz uma estrela na testa, ninguém é anjo em nossas histórias. Nem o de Paul Klee... Um autêntico estado de emergência. Alavanca propulsora para uma nova cultura? O fim das aventuras misteriosas? O naufrágio do monumental e heróico erotismo ocidental?


 

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Maio — 2000

©2000,2006 José Luiz Dutra de Toledo

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