capa

eBookLibris

Amor Fraterno

Dunyazade


 

Amor Fraterno
Dunyazade

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
Documento via e-mail

© 2002 — Dunyazade
duny_y@yahoo.com


 

ÍNDICE

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7


 

 

AMOR FRATERNO

(duny_y@yahoo.com)

 

– 1 –

 

Desde que me lembro de ser me lembro de a amar.

Não tenho culpa que ela seja a minha irmã.

Recordo-me do dia em que os meus pais a trouxeram para casa. Era uma coisinha mirrada, um embrulho recebendo paternais cuidados e sorrisos. Não senti inveja ou ciúmes. Tinha quatro anos e meio e ainda hoje me lembra o estretor que percorreu o meu corpo ao ver os ralos cabelos ruivos e os olhitos fechados.

— Olha a tua irmã – disseram-me. — É Linda. Pusemos-lhe o nome Laura. Gostas?

— Gosto – respondi.

Mas por dentro a perturbação permanecia, imorredoira, abrindo-me a alma e o livro que ela continha. E nesse livro acabara de se escrever a palavra «Amor».

Não amor fraterno, mas amor de amante.

Apesar da idade era precoce na leitura das pessoas, dos sentimentos reprimidos, dos valores inaltecidos e impraticados (porque impraticáveis), de tudo o que não se tolerava e que eu sabia identificar à primeira vista.

Por isso sempre soube que não podia amar a minha irmã, apesar de amá-la; que me estava negado o prazer de a estreitar nos braços como homem, como macho, com afecto mesclado de desejo.

Mas eu sou como sou, não desisto, e nem a impossibilidade das coisas me detém.

Portanto cedo aprendi a ocultar a paixão que nutria por Laura debaixo do véu fraterno, paternalista, sob as brincadeiras e traquinices normais permitidas entre irmãos. Fiz mais. Tratei-a com a indiferença comum aos irmãos mais velhos, como uma criancinha a quem eu afectuosamente desprezava. Mas que no fundo, longe de olhares e julgamentos alheios, amava.

E dissimuladamente, como um gato astuto, preparei durante anos a consumação desse amor proibido.

E agora estou prestes a realizar a minha paixão.

Avanço no tempo, conto agora a primeira vez que a tive. Que a beijei na boca do corpo, quando a boca do corpo me beijou e sugou a mim.

Esperei tremendo, tremente, que ela chegasse. O temor tomou conta de mim. De quê? Prazer, frio quente morno, medo? Que coisa era? Que ela me rejeitasse, considerando o acto hediondo e abominante, apesar de não o ser como lhe explicaria depois? Estava decidido a fazê-la amar-me.

Chegou ao fim da tarde. Cansada, o cabelo ruivo de pequeninos caracóis desgrenhado, a roupa em amachucos. Sentou-se no sofá e descalçou os sapatos.

— Vou tomar um duche – declarou.

Voltou meia-hora depois a cheirar a amaciador. Comemos. A seguir Laura arrumou a loiça na máquina, eu fui ver televisão e ela recolheu-se ao quarto, para estudar um bocado antes de ir dormir, inda que o corpo todo lhe rogasse tréguas. Laura, todavia, é responsável, não dorme sentindo-se culpada por não cumprir o dever.

Eu? Retorqui «Boa noite» e comodamente esperei. À meia-noite desliguei o televisor e tomei um duche rápido. Frio. Para me despertar a razão e amainar os sentidos. A lucidez impunha-se.

Esperei novamente. Até às duas da manhã. Por essa hora calculava que Laura dormisse um sono profundo, sendo mais fácil dominá-la.

Às duas e seis abri a porta do meu quarto, deslizei pelo corredor, parei em frente do quarto dela, abri a porta, fechando-a atrás de mim e... preparei-me para cometer o monstruoso acto da minha apaixonada e lúcida loucura.

Não odeiam quando certos escritores param na melhor parte? «Elipse» suponho que se chama a tão pérfido acto, o sádico prazer de deixar o gostinho na boca e depois deixar à imaginação de cada um o desenlace do que se passou.

Querem que descreva, não é?

Imaginem electricidade, pura, a percorrer-me o corpo, o latejar do coração e baixo ventre, parecendo expandirem-se ambos além do limite possível, em que o prazer já não era prazer, era dor, e depois também isso mesmo já não o era. Contraí-se e expande-se, o meu ser, em simultâneo, para além de tudo cogniscível.

Estava nu. Ela costumava usar camisa de dormir. Parei perto da cama, a respiração galopava-me. Então fiz um esforço, concentrei-me e consegui por fim dominar-me. Para o que ia fazer o controlo era imprescindível.

Laura dormia profundamente, os lábios ligeiramente entreabertos, os lençóis cobriam-na pela metade, desde menina tivera o hábito de se destapar inconscientemente. Quando era pequena eu costumava voltar a aconchegá-la, mas ela, dormindo, arremetia-os de novo para baixo. Desisti de a corrigir.

Sentei-me sem barulho, devagar, à beira da cama. Aproximei o rosto do seu, bebi-lhe a respiração, o húmido fragor que vinha dos lábios e nariz entrou-me na boca. Senti o odor da face, do pescoço, do cabelo, dos braços nus. Peguei nos lençóis, embebido ainda na recordação da infância e... puxei-os para cima.

E de novo ela os arremessou. Sorri. Minha Laura...

Afastei-os até ao fundo da cama. Tinha parte da coxa descoberta até ao meio. De novo fui assaltado pelo ímpeto dos sentidos e mordi os lábios. Passou. Senti o odor quente das pernas. Puxei-lhe a camisa de dormir para cima, devagarinho, não a queria despertar cedo demais, desejava gozar o momento.

Não tinha roupa interior. Melhor. Os pêlos eram vermelho vivo, formando um triângulo perfeito. Aspirei o seu sabor. Fechei os olhos e finquei as mãos no colchão.

Abri-os e olhei-a. Dormia, linda e inocente, à imagem de um anjo. E depois, o que fiz? Querem que diga?

Subi para a cama e aninhei-me no meio das suas coxas, afastando-as. Sem a despertar mergulhei o rosto na cona de Laura.

Coloquei as mãos suavemente no cimo das coxas semelhando seda e com a cara no meio da boca do seu corpo aspirei o tépido odor desprendido dos encaracolados cabelinhos ruivos púbicos. Toquei-os com o rosto e depois com a língua, ao de leve. Passei a língua pelos grandes lábios exteriores, primeiro com suavidade e em seguida com fervor. Julgo que estremeceu. Lambi-lhe a cona inteira, de cima a baixo, várias vezes, notei que as suas pernas tremiam ligeiramente. Chupei-a e então apercebi-me que o mel lhe começara a escorrer. Sorvi o elixir dos deuses.

Laura já não dormia profundamente, estava semi-desperta, o corpo dava conta de acordar a qualquer instante, sentia-a mover-se pouco a pouco sob mim.

Antes de despertar por completo aproveitei para chupar, sorver, acariciar, lamber, foder com a língua todos os minúsculos recantos da sua outra boca, da perolazinha até aos lábios interiores, até à cova que se prolongava para dentro e iniciara movimentos de contração ritmados.

De súbito Laura acorda por completo e vê, horrorizada, o que eu, o próprio irmão, lhe faz.

— Nuno! – grita estarrecida (ai que força me deu aquele grito! Que prazer!). — Pára! Não!

E debate-se, contorce-se debaixo de mim, puxa-me os cabelos (mas eu não lhe largo a cona), arranha-me os braços e as mãos com que a seguro, o medo transforma-se em fúria e em raiva. O meu próprio irmão!, deve pensar cheia de nojo. Nem sonha o esforço, o auto-domínio, que tive de exercer para não a violar, a rasgar. Controlei-me e concentrei o trabalho na língua. Continuei a chupá-la e, confesso, o mel não parava de escorrer, a vagina contraía-se com crescente ímpeto. Sabia que lhe dava prazer, mesmo que fosse um prazer odiado, nojento, ignóbil e, portanto, aumentado.

Laura não cessava o debater físico, a recusa, as arranhadelas, apesar de não proferir palavra, grunhia de ódio como um animal selvagem. Tive dificuldade em mantê-la presa, naquela posição. Assolou-me o desejo de lhe berrar: «Ou ficas quieta ou fodo-te toda!», todavia permaneci calado, fazendo-a vir-se repetidas vezes. Os grunhidos de ódio misturaram-se aos do prazer, até as mãos que me batiam e arranhavam pararam de o fazer e, ao invés, massajavam-me o cabelo, puxando-o com força, contudo já não a força do horror, do nojo, e sim a do desejo.

Fiquei ali, na boca do corpo de Laura, transportando-a ao êxtase não sei quanto tempo. Uma hora? Duas horas? Quando a deixei o sol não nascera ainda. Apesar disso adivinhei-lhe o corpo vermelho, as faces rosadas, injectadas de sangue, a pele suada. Ela não me olhou. Encarava a parede do lado, ofegante, quando me levantei da cama.

Fechei a porta atrás de mim e, no meu quarto, masturbei-me até à hora de ir para o emprego.

Não tinha dormido a noite inteira.

Os colegas notaram o meu cansaço, o meu ar abatido. Disse que trabalhara em certo problema laboral noite adentro (escondendo cuidadosamente as mãos para que não me vissem os arranhões), sem, no entanto, obter resultados.

No resto do dia mergulhei na doce lembrança de Laura.


 

 

– 2 –

 

O passado acode-me à memória cada vez que penso em Laura. Sempre me comportei com ela como é usual o irmão mais velho se comportar. Condescendente, paternalista, dando-lhe a entender por meio de actos mais do que por palavras que as suas opiniões, sentenças, sentires, vivências, enfim, o seu próprio ser não eram importantes nem para mim nem para ninguém; e que apenas a nossa ligação de sangue me permitia suportá-la.

Nunca usei violência, nunca lhe bati, simplesmente optava pela a opinião contrária à sua em qualquer assunto, mesmo que concordasse com ela, e ao longo dos anos o meu comportamento fez Laura não ser íntima comigo, nada me confidenciar, tudo me esconder. Nunca nos aproximámos verdadeiramente – e desde o início foi esta a desejada consequência dos meus actos.

Porque por dentro borbulhava de desejo, admiração, o brilho dimanante de Laura parecia só a mim cegar. Porque por dentro sempre a amei, à loucura, ao devaneio, ao êxtase. Mas como sei fingir! Poderia ter sido actor! Aliás sou-o, fui-o cada dia passado ao lado dela como irmão. Interpretando o papel sem o ser de alma.

Porque por dentro sabia que não daria argumentos a ninguém de forma a nem de leve suspeitarem do meu amor oculto.

Porque por dentro borbulhava de vontade de devorá-la com beijos, longos, lascivos, suaves, sabendo a mel e canela, tocando-lhe as coxas com as minhas, grudando as mãos nas suas nádegas, colá-la a mim. Salivar os inúmeros caracóis ruivos com a língua e aspirar o doce néctar emanado do pescoço.

Só à noite dava rédea livre aos sentidos, masturbando-me na sua evocação.

Estando com outras mulheres usava do mesmo estratagema. Palavras docemente sussurradas aos ouvidos delas tinham sempre a mesma invisível destinatária: a minha irmã amada.

Sou um hipócrita por natureza e vocação, dissimulo sentimentos e intenções consoante as minhas conveniências. Laura é o meu exacto oposto e acreditou piamente na imagem que ao longo dos anos fabriquei e construí.

Mal sonhava que as incontáveis namoradas que tive não me tiveram e nelas apenas buscava a tua figura. Jamais suspeitaste que eu fechava os olhos ao beijá-las, não por vergonha, embaraço ou sequer respeito pelo acanhamento da rapariga que comigo na altura se encontrasse, mas para te ver a ti, para te sentir a ti, para te ter só a ti. No entanto o odor da sua pele, dos seus cabelos e roupa perenamente denunciavam não seres tu.

Pelos céus!, endoideço! Escrevo como se estivesses do outro lado, lendo-me, sôfrega de minhas confidências. Parvoíce. Não estás, sei-lo. Desde o dia em que te violei no quarto sei que te posso, e hei-de, possuir mil vezes, mas temo ter apenas de ti a carne, que tu só o corpo me dês.

Confiança! Um dia, Laura, hás-de pertencer-me por inteiro: de corpo e alma. Mesmo que o ignores.

Como ignoraste o primeiro prazer proporcionado inconscientemente por ti, deleite físico, sensual, à idade dos doze anos, tendo eu dezasseis. No sotão. Lutámos os dois, rebolando no chão, e ficámos sujos de poeira. Já não me recorda bem os detalhes do que provocara o conflito. Um diário, suponho, que te surpreendi a esconderes, para eu não ler os teus segredos. Pedi que mo mostrasses, recusaste peremptória. Tentei tirá-lo à força, então, num gesto brusco, lanças-te-o para uma pilha enorme de tralha, impossível localizá-lo. Joguei-te por terra, não por zanga, mas porque me deras a perfeita oportunidade de tocar-te, inda que obrigado a usar do embuste da fúria violenta. Rolando pelo chão, cobertos de terra e poeira, eu estava no meio de ti, a puxar-te os cabelos, e tu nem reparaste na excitação a tomar conta do meu corpo. O provável foi teres explicado o vermelho da face devia à luta e não a outro motivo, escuso e lúbrico. Larguei-te, dando uma justificativa qualquer, menosprezando os teus possíveis segredos, e saí do sotão. Tomei banho, vesti-me rapidamente e fui ter com a namorada de ocasião com quem perdi a virgindade – de olhos fechados, rememorando vezes sem fim o teu rosto encarnado de raiva, os dentes cerrados, o cheiro da cabeleira fluva e as pernas abertas de par em par.

Anos à tua espera, à espera que crescesses, sem te poder tocar, cada vez experimentava maior dificuldade em conter-me. Amava-te e estava consciente que não te podia ter por seres nova, tinha medo de traumatizar-te, eras também jovem demais para perceber os meus sentimentos e muito menos compreenderias a perfeita tolice que é a manutenção do tabu do incesto entre irmãos, nos nossos dias. E por ti, pelo teu amadurecimento, esperei.

Aos dezoito anos, enfim, a realização do meu sonho estava perto. Entraste para a universidade e vieste morar comigo. A faculdade fica a dez minutos de Metro donde eu habito. A casa dos pais estava a duas horas e meia de distância por auto-estrada, finalmente tinha-te unicamente para mim, sem receio de ser supreendido por eles. E o disfarce!, o conveniente embuste que a sociedade me proporcionava! Eu, o irmão mais velho, por norma responsável, vinte e três anos, acabadinho de formar, engenheiro, óptimo curso, o estágio pago principescamente, eu – o natural protector da maninha. Melhor do que isto seria impossível. Ver-te todos os dias, estarmos os dois na mesma casa, sem possibilidade de intrusões, aos meus colegas não permitia grandes intimidades (era tido por sério) porque desejava manter-te secreta, os parentes não tinham (graças aos céus!) tempo para nos visitar, e tu a timidez sempre agiu como um escudo que te impediu de formar novas amizades. O único perigo provinha dos pais. Mas adverti-os que era previdente avisar a sua chegada pelo menos no dia anterior, já que do emprego eu não tinha hora certa de sair e a Laura, declarei, estuda até às tantas da noite na biblioteca da faculdade.

Problema resolvido.

Bastava-me esperar o dia certo e até lá aproximar-me de ti, pouco a pouco, como um irmão verdadeiro. Não. Como um amigo, confidente. Como a única pessoa em quem pudesses confiar neste novo mundo hostil que pela primeira vez conhecias.


Desde aquela noite que Laura me repele, afasta-se de mim exibindo nojo, repulsa. Sentimentos que eu sei que ela, no fundo, não nutre. Somente os usa como máscara do enorme desejo que lhe despertei. Mas a sociedade, plena de hipocrisia, prenhe de valores que não cumpre, feliz pela barriga que a toda a hora mostra orgulhosa (permanecendo, todavia, os valores inascentes), a sociedade, ensinou-lhe que é a repulsa e o nojo as expressões reservadas ao incesto. Que é esta a única forma de o julgarmos. A sociedade não compreende – ela teme – o amor. O amor derruba muros invisíveis, e contudo por séculos e séculos insuperáveis. O amor gera caos e anarquia, está-se nas tintas para as regras e as normas, abomina a ordem instituída, logo, é uma séria afronta ao poder que a rege.

O amor anula o poder. Por isso a razão de tantas regras regulando o maior, e mais rebelde, sentimento humano. Por isso tantas invenções, tantas mentiras, máscaras. O «verdadeiro amor», declaram categóricos, «só o é nestas condições.» Tretas! Sei do que falo. Intuí desde pequeno a falsidade latente dos indivíduos, sei distinguir tão bem a máscara que a pessoa usa a cada altura ou ocasião particular, que esse dom especial permitiu-me desvendar as estruturas fantasiosas, impostoras, da própria sociedade. A larga maioria dos sujeitos nem se apercebe que circulam nela funcionando através de esquemas pré-estabelecidos. E nem que tais esquemas englobam a mínima expressão humana.

Como o amor.

Ora, argumentam os meus “pares”, o incesto é dos piores actos humanos! Abominável, mosntruoso!, quando na verdade se trata apenas doutro esquema social pré-instituído para nos manter todos enquadradinhos, compreensíveis, frágeis, indefesos e, sobretudo, não ameaçadores.

O tabu do incesto, e falo do existente entre irmãos (em certas tribos africanas há-o até entre primos), é somente uma construção social. Nada mais. Não é imposição imperativa do instinto. Não é tão natural como a necessidade de beber água – e não morrer de sede; ou a de comer – e não morrer de fome. Não há constrangimento físico que explique a sua existência.

E a Laura, inocente, ingénua, funciona com todos os esquemas morais pré-determinados e sancionados (ou não) impostos pela sociedade. É novinha, aos dezoito anos não se é um adulto, a infância está ainda muito no centro de nós, apesar de pensarmos que não. E ela, para mais, é uma criatura cândida, inexperiente, pura. Crê em quase tudo o que lhe dizem. O meu perfeito inverso. Dois seres tão diferentes originários do mesmo útero, parece impossível!

Com tempo e paciência acabarei por desconstruir todas essas palermices em que foi ensinada a acreditar sem primeiro perguntar porquê. E está este anjo do céu em Filosofia! O curso que menos lhe assenta ao carácter. Mas, enfim, o mal está feito.

Laura acabará por entender a realidade da vida. A verdadeira. Acabará por concluir que no mundo as regras são feitas por cada um – e não impostas pela ditadura da maioria. Depois de o compreender o amor será inevitável. E viveremos os dois como amantes – sem pecado. O pecado é fruto da ignorância. Eliminada a última cessa o primeiro de existir.

Mas por enquanto... não há maneira! Recusa-se a falar comigo. Sai de casa cedo e só volta à noite. Já nem comemos juntos, como antes. Fecha a porta do quarto à chave e evita-me o mais que pode.

Conheço-a. Não disse nada a ninguém. A vergonha subjuga-a. E sei que não tem amigos suficientemente antigos ou importantes, sobretudo aqui, exilada de casa, a quem confidenciar. Tem uma amiga de longa data na Alemanha com quem se corresponde, mas estou seguro que não lhe contou nada. Percebi, porém, ter a correspondência entre as duas redobrado.

Nas raras oportunidades em que a vejo aproveito para a tocar e a beijar, mas sem a forçar em demasia. Mal lhe acaricio os braços, lhe cheiro o cabelo, lhe toco nas costas ou lhe deposito um virginal e casto beijo na face – foge de mim a sete pés, vermelhíssima. Dá-me cá um tesão...

Antes de fugir porta fora como um coelhinho assustado, tento falar com ela, convencê-la que não houve nada de mal no que fizemos (digo fizemos de propósito porque se de início a forcei, no fim fomos os dois participantes voluntários). Tento persuadi-la que o tabu já não tem razão para existir, que é coisa de velhos e antigos modos e que na época moderna não faz sentido a sua manutenção. Laura encara-me de olhos esbugalhados durante escassos segundos – e sai em redemoinho.

Mas as oportunidades de a ver e tocar, noto, multiplicam-se, e ela demora mais tempo a repelir-me.

Estou próximo, muito próximo.


 

 

– 3 –

 

Linguado com Xerez e Estragão

Ingredientes: meio quilo de filetes de linguado

duas colheres de sopa de azeite

e uma colher de sopa de sal

pimenta

cerca de 50 gramas de miolo de amêndoa moído

um cálice de xerez

duas colheres de sopa de estragão

O essencial no linguado é que seja fresco – bastante fresco. O resto mais ou menos se acrescenta de olhos fechados. A primeira providência é aquecer o forno a 200°c. Quentinho, portanto. A seguir unta-se bem untada a terrina de ir ao forno com azeite.

Depois lavam-se as mãos.

Os filetes são dispostos na terrina de modo a cobri-la por inteiro. Em seguida não esquecer os temperos de sal, pimenta e mais um pouco de azeite. Por fim cobre-se o preparado com as amêndoas moídas e rega-se com o cálice de xerez (eu por vezes abuso e ponho dois).

Leva-se ao forno durante meia-hora. É bom banhar com o próprio molho algumas vezes. Quando estiver quase feito acrescenta-se o estragão e espera-se cerca de cinco minutos até estar no ponto. Serve-se acompanhado de legumes, mas eu prefiro servir o prato sem nada.

A Laurinha anda demasiado esquiva. Decidi confeccionar duas das suas receitas favoritas. Sempre se afirmou que o caminho para o coração passava pelo estômago. E para sobremesa fiz pudim de laranja – que ela adora!

Se não vem pela doçura das palavras, certamente a doçura da comida a atrairá.

O segredo para o pudim de laranja é a paciência. Depois de feito demora três a quatro horas a solidificar no frigorífico. Na infância Laura apanhou meia-dúzia de palmadas por insistir em provar o pudim às escondidas, antes que estivesse pronto. Numa ocasião tinha ela onze anos e acho que foi a primeira altura em que me permiti ter uma fantasia erótica com a minha irmã. Fantasiei saborear a língua de Laura no céu da minha boca, por entre o sabor da saliva e do pudim gelado. Já passava das dez da noite e ainda não regressara. O seu comportamento, francamente, além de me irritar, tornava-se ridículo.

Resignava-me a ficar à seca porventura até à meia-noite quando o telefone tocou. Dei um salto. Pela mente passaram-me, frenéticas, imagens de acidentes vários, roubos, catástrofes naturais. Laura! Algo sucedera, temi. Corri para o telefone e quase berrei:

— Laura!

— Nuno? Não, é o tio Manel. Ela não te disse nada?

— Dizer o quê? Ela está bem, aconteceu alguma coisa, um acidente?

— Não, rapaz, ‘tá descansado! Mas... a Laura não te disse que pediu para ficar na nossa casa da praia durante uns tempos?

Empalideci. Tinha fugido! Tinha-se escapado! Fui obrigado a exercer todo o auto-domínio para não explodir de raiva e partir o telefone em mil pedaços.

— Nuno? Estás aí?

— Hã... sim, estou. Peço desculpa, destraí-me com a comida ao lume.

— Ainda não jantaste?

— Não. Problemas no trabalho, tive de demorar-me lá mais tempo. A Laura... – suspirei, similando resignação de irmão mais velho, preocupado com a estroinice da sua jovem e irresponsável irmã. — Sim, ela perguntou-me se eu não me incomodava de ela ir para a vossa casa. Perguntou-me, não! Praticamente limitou-se a dizer-me que ia estar uma temporada em casa dos tios, alegando silêncio e calma para estudar... – declarei, usando o tom de quem na crê na óbvia peta pregada pela irmã caçula. — Ela já foi há algumas horas e telefonou-me depois de ter chegado, para evitar preocupações, tudo estava bem. Por isso tive receio de que algo tivesse acontecido ao telefonarem-me a esta hora. Já passa das dez da noite, passou-me logo pela cabeça que fosse um problema grave. Que quer, inquieto-me!

— Sim, sim. Tens razão, rapaz. Ela é jovem, está aqui na cidade há poucos meses, não é verdade? Bom, telefono-te é para saber se vai tudo bem, se se zangaram para ela se querer ir embora assim, de um momento para o outro!

Ri-me.

— Não nos zangámos, que ideia tio! Não foi nada disso – suspirei outra vez. — Sabe como é, tem dezoito anos, está na universidade, pensa que é só isso para ser adulta! Os nossos pais não estão aqui para a vigiarem e eu, francamente, trabalho demais, estou muito tempo longe de casa. A Laura subitamente vê-se sozinha, cheia de liberdade e, claro, quer fazer aquilo que lhe der na veneta.

O meu tio pareceu convencido.

— Pois é, pois é... a juventude de agora. Até a Laura, vê lá, tão atinadinha desde pequena. Mas... não estás preocupado?

— Não, tio! Também, tenciono dar lá uma saltada de vez em quando e verificar como é que andam as coisas. E duvido que fique por lá demasiado tempo, sozinha, sem ninguém a cozinhar para ela. Sim, sou eu que preparo a comida! Até gosto. E da sua casa até à faculdade demora bem uma hora e meia de transportes públicos. Não vai durar muito, o capricho. Mas... sabe? (Novo suspiro fraternal.) Tenho de lhe permitir esta liberdade de movimentos, para não sentir que eu a oprimo, entende? Fazer-lhe a vontade. Assim demorará menos tempo a voltar para casa. Se a contrariasse faria uma tolice qualquer, como é próprio da sua idade. Desta maneira acaba, também, por ser mais responsável e entender que as coisas não são tão fáceis como parecem.

— Irmãos como tu já não se fazem, Nuno.

— Não diga isso, tio. Deve haver milhares como eu. A gente é que não sabe...

— Bom, telefonei-te para obter a tua confirmação de que a tinhas autorizado a ir.

— Sim, sim, claro que a autorizei. E peço desculpa por não lhe ter falado antes a combinar os detalhes, mas o trabalho não me dá espaço para respirar.

— Eu entendo. Então não sei como é?! E a Laura veio cá hoje de manhã buscar as chaves.

— Ah sim...?

Pela calada, afinal não é tão parva como pensei. Sempre tem tino. Somos mais parecidos do que julgara.

— Sim. Bom, é tarde. Vai comer e vai dormir! Que amanhã... começa tudo outra vez!

E um suave riso alarve inunda o telefone. Tento rir-me da mesma estúpida maneira, apesar da raiva omnipresente. Despeço-me e desligo o aparelho. Furioso corro ao quarto dela e em cima da secretária nua vejo um bilhete dobrado: «Vou para a casa da praia dos tios. L.» é a curta mensagem que eu rasgo em bocadinhos.

Abro os armários, as gavetas, o guarda-fatos. Levou tudo: a roupa, os livros, tudo.

Não é preciso ser génio para perceber o que Laura pensara. Visto os tios só utilizarem a casa da praia durante os meses de Verão, o resto do ano estando inabitada, Laura pretende viver lá. E durante a época veranil alojar-se em casa dos pais. Talvez o plano resultasse durante este ano escolar, as férias da Páscoa aproximavam-se e os exames estavam à porta, ela deve ter calculado que até ao fim de Junho não a incomodariam. O pretexto do estudo era perfeito.

Muito bem, por agora a jogada foi brilhante. Brilhante, Laura! Que orgulhoso me fazes! Descubro em ti um antes ignorado dom para a dissimulação! Não te vou incomodar esse tempo que tu tão cuidadosamente calculaste. Até ao fim de Junho deixo-te em paz, livre. Decerto contas com o dinheiro que os pais, todos os meses, depositam na tua conta. Dá para a comida e o passe, foi o teu ingenioso cálculo.

Concedo-te este período para pensares e... também porque quero apanhar-te de surpresa, desprevenida. Ao fim de dois meses sem contacto meu de certeza pensarás que te deixo em paz para sempre. Mas não, permaneço na sombra, à espera. Esperei dezoito anos por ti, uns meses a mais não me farão mossa.

O tempo perdido nas conjecturas foi suficiente para estorricar o linguado. Joguei-o no lixo e ia para comer uma fatia do pudim de laranja quando, numa súbita explosão de cólera, o lancei à parede formando uma figura que um crítico experimentado facilmente tomaria por pintura contemporânea.


Os meus pais telefonaram. Souberam do paradeiro de Laura pelo linguarudo do tio. Os homens, quando embarcam no coscuvilhice, são piores que as mulheres, porra.

Assegurei-lhes, em termos bastante semelhantes aos utilizados para o meu tio, que Laura se encontrava bem. Para os tranquilizar em absoluto garanti que se ela ficasse lá mais de uma semana ia a correr buscá-la e viria quer quisesse quer não.

Desligaram, de consciência tranquila. Porque telefonaram mais pela paz de espírito – a sua – que por outro motivo, percebem?

Eu sempre fui independente dos meus pais. Isto é, criei-me sem necessitar de grandes cuidados parentais. Uma espécie de erva daninha que se dá em qualquer terreno. A Laura, pelo contrário, necessitava da atenção dos progenitores. A mim a sua indiferença subtil marcou-me a existência que com eles passei. Jamais fui fonte de problemas para que reparassem em mim, Nuno, seu filho varão, com olhos de ver. O facto, contudo, não me incomodava. Ao invés permitia-me liberdades inimagináveis, das quais soube usufruir.

Mas Laura... era linda demais, frágil demais, carente em demasia. Ela precisava mesmo dos progenitores. Ou de uma figura análoga. Dediquei-me à doce imagem e durante a infância protegi-a. Mas chegada à adolescência desliguei-me dela por motivos que todos conhecem.

O meu pai invejava Laura, por ser tão bela e indefesa, invejava-a pois a mulher dava-lhe atenção excessiva. Cuidados usufruídos por Laura não eram negados ao marido: antes o esposo os via como roubados, extorquidos. A mãe metamorfoseava-se por completo na função materna (como borboleta transformando-se em lagarta), negligenciado os deveres conjugais e os de amizade. Lembro-me apesar da escassa idade de quatro anos. Laura foi crescendo e pouco a pouco a mãe regressou ao convívio do marido, amigos e às actividades em que participava fora de casa. A perene falta de desvelo por parte do pai à filha foi por ele justificada como atitude normal e antiga, já que os bébés sempre tinham sido função entregue às mulheres. De modo que, em breve, estava ao meu cuidado. Não em termos materiais, refira-se, não a alimentava, vestia ou lhe dava banho (apenas a partir dos meus oito, nove anos o passei a fazer) – velava por ela espiritualmente, alimentando-lhe as brincadeiras, os primeiros sorrisos, as primeiras sílabas. (A primeira palavra que disse foi «nun»). Era quase o único que lhe falava. O tipo de coisas que aos pais nem ocorreu.

Assim não constituiu grande surpresa que, ao informá-los de Laura ser bem «capaz de tomar conta de si», não se tivessem mostrado indignados com a minha fraca prestação enquanto irmão e protector. Mostraram-se medianamente irritados, com um exótico indício de sobressalto. A promessa de a ir buscar daí a uma semana bastou para lhes sossegar os hipócritos ânimos, pois sabia bem que eles não tornariam a telefonar, em fingidas ralações. O dinheiro creditado na conta de Laura apagava quaisquer remorsos ou culpa.

O ressentimento do pai em torno de Laura jamais se dissipou e a mãe, por instinto de conservação, tomava o seu partido em tudo. Esta conduta conjugal, quase luta de guerrilha dos pais em desfavor dos filhos, decididos a fazer prevalecer a sua unidade contra a própria descendência, benefeciou-me. Primeiro porque nunca pus em causa quem é que lá em casa estava primeiro (eles); segundo porque a atitude que tomei desde o início da adolescência de Laura de a contradizer e humilhar em tudo (subtilmente, quase parecendo que a corrigia), não encontrou travão em nenhum dos nossos progenitores. Era, portanto, caça livre, crescendo fragilizada, pois não beneficiara do meu tipo de carácter. (Ou julgava eu até acontecimentos recentes mo haverem desmentido.)

De maneira que não me espantei ao saber que ela, poucos meses depois de estar em minha casa, se tinha apaixonado. A fragilidade, carência, necessidade do afecto tantos anos negado moldaram um carácter sensível e influenciável.

E, sendo de extremos, não fugindo à regra deste género de personalidade, enamorou-se de um desvalido da sorte, à margem do sistema, um desgraçado que nem tinha onde cair morto. Alguém com que ela, desconfio, se identificara (mais do que se enamorara).

Laura certa noite não contem o choro, tentando camuflá-lo desde que entrara em casa, e, mercê da minha insistência, confessa-me o seu amor por um arrumador de carros toxicodependente.

O coração quase se me fragmentou em pedaços. E, no instante seguinte, bateu desenfreado, louco. Em angústia de morte. Tive presença de espírito para esconder a reacção e abracei-a, consolando-a. Tratei-a com respeito, como adulta e não como uma criança. Ela estranhou, mas o seu estado não a fez manter-se de pé atrás durante muito tempo. Respondeu-me a todas as perguntas e sorriu, débil, às minhas tentativas de a animar, abrindo-se, no fim, num sorriso generoso quando lhe prometi ajuda.

Deitei-a e aconcheguei-lhe as mantas como lhe fazia na infância. A confiança que depositava em mim não beliscou em nada a firme decisão que, no íntimo, planeava pôr em prática.

Beijei-a no cabelo ruivo e apaguei a luz do quarto.

«Não vão roubar-ma», era a recorrente frase assaltando-me o espírito. Decidi agir.

Dissera-me que ele parava na Avenida da Liberdade, perto do cinema de São Jorge. No dia seguinte fui lá.

Já antes, três anos atrás, Laura tinha decidido apaixonar-se! Aos quinze anos! Resolvi a questão poucas semanas após a primeira tentativa falhada de a afastar do namoradinho bexiguento (um idiota cheio de acne e com linguagem binária no cérebro). Julguei que através do riso, do constante motejo, além da proibição do namoro que consegui obter do pai com razões espúrias (que ele foi célere a aceitar), Laura, à força da humilhação e interdição, acabaria por deixar o rapaz. Pensei que a faria ceder, levando-a às lágrimas, facilmente. Em dias.

Às lágrimas a levei, de facto. Mas de raiva e cólera. Teve a primeira e única violenta discussão em casa. Furiosa, gritando e esperneando, chamou-me todos os nomes e mais alguns, berrando que eu não tinha nada a ver com a sua vida e ser mais velho não lhe dava o direito de mandar nela – e nem ela o permitiria. Depois informou a família que continuaria a namorar Jorge (céus, nome de mordomo inglês panasca) com ou sem a autorização de ninguém. Nem que fosse a do Papa!

E marchou decidida para o quarto, batendo a porta.

O pai já ia com ideias de lhe ministrar um correctivo físico quando eu e a mãe o impedimos.

— Deixem-me resolver o caso – disse.

E calmo, conciliador, entrei no quarto. Pedi desculpa, admiti que ela tinha razão, que eu não devia interferir nos seus assuntos, e se realmente gostava do rapaz – pois bem, que namorasse!

Um perfeito cínico!

Ela ainda hesitou uns segundos, mas depois, cândida, confiou inteiramente em mim.

E eu acabei-lhe com a paixão. Ponderado analisei o caso e concluí que só indo ao encontro do fedelho, tornar-me aos seus olhos mais necessário e cativante que Laura, tanto que Jorge acabaria por dar preferência à minha companhia, é que alcançaria os meus intentos ocultos.

Em breve Jorge e eu éramos unha e carne. Pouco depois eu afastava Laura, com mentiras a ambos, de nós os dois. Com o campo livre e compenetrando-o de que fora Laura que escolhera não ter vindo, convenci-o a engatar uma miúda (a quem pagara antes para se deixar «conquistar»). Jorge divertiu-se uns tempos, negligenciou a minha irmã e ela acabou por saber do sucedido.

Acabou tudo, plantando lágrimas meses a fio pelos cantos da casa, e eu suspirei de alívio.

Se um bexiguento Jorge me dera mínimos problemas, não seria um «controlador de tráfego» adicto, que nutriria pela seringa a única paixão, quem me iria causar sérios problemas.

E, de facto, consegui livrar-me dele mais cedo do que esperava.


 

 

– 4 –

 

Porcaria da suspensão, os amortecedores estão a dar o badagaio não tarda nada.

Tempos atrás foram os travões. O carro chumbou à inspecção e só depois de o levar ao mecânico é que passou.

Lembro-me da altura. Foi dias após ter conhecido o rapaz por quem a minha irmã tivera o mau-gosto de se apaixonar.

Fazem a mais pequena ideia da dificuldade em encontrar estacionamento na Avenida da Liberdade às três horas de um dia útil? Ou se conhece o dono da Emel – ou se recorre aos serviços de um prestável arrumador de carros, o que custa apenas cinquenta cêntimos.

No dia em que cheguei à fala com ele já o conhecia por o ter observado, dentro de um carro de um amigo que pedira emprestado (por suposta necessidade laboral), dias seguidos. Calculei que devia fazer cerca de dez contos, às vezes quinze, por dia, dependendo do movimento. A horas certas desaparecia e ao ressurgir parecia calmo, sereno. Por vezes ao sair reforçava a marca no poste com merda de cão. Deduzi ser limite territorial e a mancha assinalava a outros indivíduos de semelhante ofício que a área já estava «ocupada».

Vestia invariavelmente jeans coçadas e sujas, camisa azul ou verde e um blusão de ganga debotado, quase branco. Os ténis estavam meio rotos, mas dias depois mudou-os para outros novos. Às vezes usava boné. Era alto e escanzelado, suponho que se esquecia de comer. Tinha o cabelo loiro escuro oleoso e em cachos dando-lhe pelo pescoço. Notei evitar ele o olhar dos clientes, mas estes não reparavam porque faziam o mesmo. Davam os trocos de cara fechada, sem refilar, e iam à vida. Poucos se detinham em saudações.

Quando o conheci de perto vi que tinha os dentes podres e os olhos azuis. Lembro-me de ter pensado que se fosse mais gordo seria bonito e que me recordava vagamente alguém. Por vezes tento forçar a mente, mas não consigo fazer a ligação entre a sua figura e a desse outro oculto.

Já esquematizara a acção. Só me podiam ver com ele uma única vez, senão tudo estaria perdido. Laura amiúde me interrogava se eu já lhe falara, mas usava o excesso de trabalho como desculpa e prometia procurá-lo no dia a seguir. A sua insistência, além de me enervar, encolhia-me o coração. Tanto amor que ela tinha e escolhia desperdiçá-lo num janado! Nem uma migalhinha para mim.

Salvador – era o seu nome – não estranhou a moeda de dois euros. Estranhou, sim, que eu metesse conversa. Ao princípio deve ter julgado que eu queria engatá-lo, mas quando disse ser jornalista a trabalhar numa peça sobre arrumadores de carros em lisboa e que estaria interessado em entrevistá-lo – a primeira coisa que me pediu foi dinheiro.

Na verdade já o esperava.

Fiz fita. Subtil, aproximei as sobrancelhas, encarei-o com espanto moderado, titubiei, proferi uma ou outra palavra com desagrado – mas no fim acabei por «ceder». Não tinha, contudo, disse, dinheiro comigo ali. seria conveniente, para ele, no dia seguinte, às tantas horas em determinado local (quase deserto, assegurei-me antes)? Sim? Óptimo! Na mesma altura daria a entrevista. Rápida, claro! Entendo, naturalmente, todos temos de trabalhar.

Nem sequer me perguntou o nome. Fingi ir aos meus afazeres e só retirei o carro quando calculei ele já ter partido para onde quer que fosse que dormisse.

Ao lerem o resto, caros leitores, terão de levar em conta o estado agitado dos meus sentimentos e o terror crescente de que Laura me fosse para sempre roubada.

Nunca o havia feito na minha vida. E, até hoje, foi a única vez em que o pratiquei. Para me espevitar a coragem inundava o espírito de imagens de Laura sendo tocada, explorada, trabalhada, fodida em todos os ângulos e sentidos por tal pálida figura de ser humano. O coração quase me explodia de ódio ao sentir o cheiro imaginado dele, do seu corpo nojento, mal-cheiroso, impregnando o de Laura, bonequinha de porcelana sardenta e odor a bébé.

Tudo isso me deu coragem e ganas suficientes para adulterar a heroína obtida duas semanas atrás. Com quê não revelo. Confesso apenas ter sido o bastante para Salvador aparecer morto dois dias depois, num prédio em ruínas usado por muitos para pernoitar. Encontraram-no, li, encolhido a um canto e com a seringa ainda espetada na veia.

Fora fácil demais. Aleguei não ter dinheiro, apenas uma dose, para consumo próprio. Não, não o fazia todos os dias, só uma a duas vezes por mês. Ele aceitou e a sua candura, a sua confiança imediata, fez-me lembrar a inocência de Laura. Nesse fugaz instante senti-me o mais torpe dos homens.

Felizmente passou. Fiz as perguntas da praxe e, no fim, vendo-o afastar-se tive o pressentimento lúcido que em poucas horas Salvador estaria morto.

No dia seguinte, à noite, disse a Laura ter tentado falar com ele, mas que o rapaz não se encontrava já no sítio habitual e ninguém sabia para onde se mudara. Ela, em pânico, correu para lá no outro dia. Não o viu. E as perguntas às pessoas dos arredores apenas confirmaram o que lhe dissera. E, visto não ler jornais, não notou a notícia isolada sobre um corpo de um jovem de cerca de vinte anos, descoberto cadáver num prédio condenado. Pedia uma identificação, que nunca chegou.

Laura pensou que ele mudara a «loja» para outra freguesia e acredito que ainda hoje julga que é vivo.


A desconsolação da minha irmã parecia não acabar. Consolei-a primeiro timidamente fazendo-lhe festas nas costas, roçando ao de leve as mãos pelo cabelo fluvo, em seguida abraçando-a já e por fim, sentados no sofá da sala, Laura estendida ao comprido e encolhida, repousava a cabeça no meu colo, em soluços, eu permitia-me dar-lhe o conforto físico proporcionado pelas carícias de uma mãe, avó ou tia velha.

Naturalmente, em simultâneo, deleitava-me em pensamentos lúbricos e nem sei como ela nem notou que os saltinhos do seu corpo me davam uma massagem de cariz assaz escabroso. Sentia-me cada vez mais atesoado. O júbilo perene vivia dentro de mim ao pensar que, logo após a refeição feita com tanto amor e em que Laura mal tocaria, ela se iria aninhar no meu corpo, semeando lágrimas na roupa, e com lubricidade imaginava migrarem-me até à pele.

Tentei, com esse tratamento quase diário de conforto fraterno, o mais distante possível de qualquer desejo lúbrico, fazê-la reaproximar-se, fazer renascer no seu peito a quase adoração que me dedicava na infância quando me comprazia a cuidar dela nos mínimos aspectos. Após esse reunir a pouco e pouco planeava transportá-la até uma nova forma de afecto. A temida fronteira do amor sublime a que, apenas por sermos irmãos, nos impedem o acesso, e que recebe o estúpido nome de incesto.

Nada a fazer. Laura só me via como o ombro amigo onde chorar e apoiar-se. Cada vez experimentava maior dificuldade em esconder o desejo físico, o meu odor a macho e o caralho completamente teso debaixo das calças, tão cheio que gotículas se acumulavam no aguilhão – a ponto de temer estar à beira de ejacular quando a abraçava. De nenhum destes factos Laura parecia aperceber-se. A tristeza conquistara-a e o planeado amor que eu pretendia fazer brotar do seu peito tornava-se um projecto impossível e todos os dias mais distante que a linha do horizonte.

Certa noite, findo o jantar, foi tomar o duche e juntou-se a mim na sala, de pijama, deitada no sofá, repousando a magnífica cabeleira ruiva nas minhas pernas. Eu acariciava-a enquanto assistíamos ao telejornal.

Cheirava a hidratante. Sei que não era óleo de amêndoas doces porque conheço o cheiro característico e sei que só o usa uma vez por semana (ao Sábado). Não o apreciava por aí além. Preferia Allure, Shiseido, Chanell. Tudo hidratantes caros pois se faziam pagar pelo estatuto da marca. Mas valia a pena: ficava com a pele fina e macia, quase veludo, e cheirando divinamente.

Nessa altura esperava que ela, mais cedo ou mais tarde, se pussesse a lagrimar. O que aconteceu. Se, ao princípio, a antecipação de poder tocar-lhe, cheirá-la, de sentir o calor do seu corpo junto ao meu, me punha com um tesão doido e a cabeça tresloucada; ao fim de certo tempo a sua indiferença aos meus sentidos enchia-me de raiva. Nessa noite, num género de vingança, enquanto lhe acariciava a cabecinha laranja e os ombros sacolejantes, pus-me a fantasiar que a violava com a pior das perversões.

Imaginei conduzi-la no carro até a um velho edifício abandonado, longe de tudo e de todos, com o falso pretexto de que Salvador se encontraria lá.

Eu estacionaria num ermo local resguardado de olhares inconvenientes. Iria à sua frente, com vista a indicar-lhe o suposto sítio de pernoite do amado. Ela talvez usassse sapatos rasos e mini-saia acima do joelho, quiça até meio da saborosa coxa. Penetraríamos nas entranhas do edifício. Calabouço, masmorra? Não, mas com definitiva aparência de o ser. Ela tropeçaria e eu evitaria a queda, amparando-a nos braços. Cabelo em desalinho, olhar assustado, tremendo um pouco, sentindo frio, humidade, Laura desconfiaria de algo? Pensaria que a trouxera por outros motivos? Desceríamos escadas, o escuro a dominar a luz, seria obrigada a dar-me a mão, para não se perder em pânico. Então, por fim, o nosso destino: uma pequena divisão sem janelas, iluminada por candelabros, velas e tochas ao longo da parede (e um pequeno buraco de ventilação fora de vista).

Entraria, espantada pela quantidade de luz, demandando-se intimamente: Salvador? Ele fez tudo isto? Porquê? Porquê ficar aqui, andar aos trambolhões no escuro para cá chegar, quando podia ter ficado lá em cima?

Embrenhada em pensamentos Laura não notaria que eu acabava de fechar a porta, aferrolhando-a (talvez tivesse passado óleo para não haver ruído). Só quando me aproximasse por trás de si, ofegante, quase não me contendo, só nessa altura decisiva notaria grilhetas descendo do tecto, grilhões emergentes do chão e um chicote em repouso na parede. Talvez abrisse muito os olhos e sufocasse um grito, compreendendo num relâmpago a razão de tudo aquilo, no exacto momento em que eu a agarrasse por detrás e, mercê da força bruta, a empurrasse à parede, de costas para mim e ventre colado ao cimento.

O resto seria rápido. Sem uma palavra rasgar-lhe-ia a roupa, deixando-lhe só os sapatos (para os pézinhos frágeis não se magoarem no solo frio) e Laura, desnorteada, nada diria.

Depois, veloz, punha-lhe os grilhões nos pulsos. Aqui talvez ela já resistisse e grunhisse em desespero, mas, sendo mais forte, anularia a recusa. Então seguir-se-iam os tornezelos e... voilá! O esboço do quadro estaria completo!

Ela, nua à excepção dos pés, pernas afastadas em «V», tal qual os braços bem erguidos ao alto. A extrema vergonha ruborizando-lhe a face, depois o colo, depois os seios, vermelhos como carvão incandescente, como pôr-do-sol. Era uma obra de arte, uma tela viva, mexendo-se apesar de presa, tentando uma vã libertação, por entre lágrimas e bramidos de impotência.

Impotência não partilhada por mim. Eu estava completamento vestido, sem ser distinto, mas com o tipo de fato que tanto fica bem numa reunião social ou profissional como para passear no parque, ao Domingo.

Ela nua – eu vestido; ela presa – eu livre; eu de chicote – ela impedida de usar sequer as mãos.

Não há maior prazer do que este, confiem amigos – não há.

Eu não diria palavra, não responderia nem a palavras nem a rogos nem à mais feroz das súplicas e nem a lágrimas, mesmo que fossem de sangue. Só a urros, murmúrios, frémitos de prazer.

De chicote na mão, longo, usado para domar cavalos, iria empenhar-me em domar a minha bela irmã, fazê-la ceder aos meus caprichos. Passaria a mão pela cabeleira cheia, os minúsculos caracóis ruivos tocando-lhe os ombros. De seguida pegaria no cabelo com a mão fechada forçando-a a encarar-me, a receber o meu hálito, apesar de não estar nos meus planos beijá-la tão cedo.

(Por esta altura acabou o telejornal e começou um programa onde a jornalista-estrela pontificava todas as semanas entrevistando Alguém Importante. As minhas calças já não aguentavam a pressão, senti-as justas, mas decidi erguer-me apenas ao terminar a fantasia. Laura sacudia o corpo, apoiando-se nas minhas pernas, e eu com a mão esquerda afagava ao de leve a curva dos seus rins enquanto fincava com toda a força a direita no sofá, escondida por debaixo da perna.)

Continuo.

Aproximo (já estou farto de usar o Condicional) o seu corpo do meu, a mão esquerda na sua nádega direita e, por mais que ela se debata, isso não impede de com a mão direita – o chicote pu-lo de parte – explorar-lhe a vagina e seus secretos encantos. Quando lhe punho um dedo na abertura e o forço até ao cimo, ela fecha-se, como que me engole e eu sorrio. Mas, de cabeça baixa e a chorar miudinho, não me vê. Tiro o dedo, largo-lhe a nádega e com a mão assim liberta, agarro-lhe a cabeça para me ver cheirar o dedo e, depois, levá-lo à boca e lambê-lo. Laura avermelhou-se! Parecia o sol a despedir-se do dia. Com o crânio ainda firmemente preso levo o dedo aos seus lábios e ela, num repente, morde-me. Rio-me e largo-a. Chupo o indicador com evidente satisfação.

(A entrevista começou há dez minutos. Não aguento mais, a qualquer segundo corro o risco de ejacular os testículos inteiros, o sémen de vinte anos. despeço-me atabalhoadamente, limpo-lhe um pouco as lágrimas e vou para o quarto onde na casa-de-banho descarrego o esperma.)

Estava tão contente por a ter ali, em tais preparos, ao alcance da minha mão e vontade. Ao alcance da minha boca, membro, dedos, pele.

Tão contente que comecei a saltitar à sua roda, doido girava ao redor de Laura! Em êxtase dionísiaco principiei a saltar, a galgar pelo chão e paredes. Ia de uma parede à outra, num pulo.

Laura rodava a cabecinha, espantada, a boquinha era um só buraco, o fim de um ponto de interrogação.

Parei à sua frente. Olho-a. De repente baixo-me. Mordo-lhe a cona.

— Ai!

Trinco-lha mais. E mais e mais e mais. De início não ouso provocar dor, depois a dor parece-me imperativa, necessária, já não ao meu prazer – mas ao dela.

Ferro-a, abocanho-a, rato-lhe a rata. Dói-lhe, tenta fugir com o corpo, mas eu engancho-lhe as mãos no rabo e forço a boca de baixo a entrar em contacto com a minha.

Páro de morder. Lambo, devagar, lentamente, passando-lhe a língua nos pêlos, nos lábios exteriores, em movimentos largos e vagarosos. Enfio o nariz para o meio. Beijo-lhe as ninfetas. Ela estremece. A pele está eriçada. Beijo-lhe a campainha do amor, o botãozinho rósea. Ela chora. Miro para o alto e ela morde os lábios e lacrimeja de olhos fechados, as convulsões do corpo aparentam ter duas causas: o pranto e o prazer.

Sugo-a com força, como-a e ela gosta. Cessou de chorar. À medida que a língua a trabalha por dentro, e a saliva se mistura à humidade dela e o seu leite me escorre para a boca, as nádegas movimentam-se sem que Laura o possa evitar. Eu, extasiado, finco-lhe as mãos na carne redonda, se pudesse enfiaria por ela adentro o crânio, o corpo – a alma. Se pudesse vestiria a sua pele. É-me impossível parar. Não quero. Vou chupá-la para sempre.

Ela vem-se e fico com a cara coberta do seu esperma.

Roço o cabelo na abertura, na ferida vermelha. Quero atapetá-lo com o seu leite. Erguo-me. Observo-a. Evita-me. Esfrego a cara na dela, no cabelo incendiado, no colo, nos seios, no ventre.

Recomeço. De súbito, em retaliação pelo prazer forçado, Laura mija-me em cima.

Oh, prazer supremo! Ambrósia, ambrósia dos céus de Laura! Bebo-a toda e ainda espremo as gotinhas presas no púbis. Rojo-me no seu sexo e ele deseja sugar-me para o interior de si.

Depois do prazer o chicote.

Coloco-me de lado e as vergastadas zurzem o seu adorável, perfeito rabo. Ela grita, chora, berra. Fustigo o chicote repetidas vezes. Faço-a bramir outras tantas.

Tem as nádegas e as coxas marcadas de linhas vermelhas, que se enlaçam. Páro e agacho-me por detrás. Passo a língua na parte ferida. Ela treme e geme baixinho. A cabeça pende descaída. Que dor maravilhosa que me dá tanto prazer! Deixo de lamber porque ela sente o carinho como sal em chaga aberta.

Coloco-me à sua frente e dou-lhe o primeiro beijo. Ela, enojada de provar o seu mijo na minha boca, repele-me, mas insisto. Sugo-lhe a língua, não a deixo respirar, encaixo uma das mãos na nádega e aperto-a de propósito de modo a que Laura, para diminuir o desconforto físico, encoste o seu ventre despido contra o meu coberto. A outra mão agarra-lhe a nuca.

Impeço-a de aspirar. Forço-lhe a língua por entre os dentes. Tenta morder-me outra vez. Estaco. Estou zangado, dou a aparência de conter fúria transbordante. Mas rio de súbito, muito alto. Mostro os dentes todos, porém não a largo. Ela murmura baixinho o meu nome, encarando-me com o pasmo que lhe tirou todas as minúsculas comissuras do rosto:

— Nuno...

Eu rio, rio. E cresço. Todo eu cresço nesse riso. Os meus joelhos dão-lhe pelo ventre e a breguilha está lhe já ao alcance da boca. Tiro o pénis pronto para o ataque.

Meto-lho na boca e ela mama como se fora um bezerrinho, todavia por pouco tempo. A seguir retira-o e diz que a salsicha está crua.

Eu fico chateado porque não o tinha previsto. De imediato asso a salsicha e boto-a novamente dentro dos seus lábios mimosos. Laura come-a, mastiga-a, aos pedaços pequenos. Papa-a inteira.

E eu fico tão feliz!, tão satisfeito que espigo mais ainda e enrolo-me à volta do seu corpo preso como uma serpente e Laura sente-se quente. E de barriga cheia.

Então acordo. Tenho a cama inundada de sémen. Escorro de suor.

Que sonho tão estranho...

Foi nesse instante que decidi agir. Não poderia continuar a permitir que Laura me ficasse indiferente e com o pensamento ocupado em Salvador.


 

 

– 5 –

 

Tudo é distante e perfeito.

Quero fodê-la até ao limite.

Quero tê-la para além do limite.

Saboreá-la nas imensidões proibidas, desconhecidas (inda que exploradas mil vezes no território fértil da imaginação, o reino onde eu e ela reinamos.)

Aguentei, estoicamente, dois insuportáveis meses. Afoguei-me no trabalho, óptimo para esquecer as chatices e contrariedades do mundo exterior. Fui lisonjeado, mais estimado pelos empregadores e a cotação de «homem sério e trabalhador» subiu tanto ante os colegas que quase rebentou a escala.

Mas aquilo não podia durar.

Dois meses após a partida de Laura sucumbi a uma gripe horrível, quase pneumonia, fui parar ao hospital. Consegui manter o episódio desconhecido da família. Tive alta pouco depois, mas, mercê da consideração recentemente adquirida, o meu superior fez-me a benesse de me oferecer uma semana para recuperar em casa. Agradeci, no particular tom que os chefes apreciam e sendo assim, adiantei, irei convalescer para casa dos meus pais.

Ele não fez objecção. Nos olhos notei o perpassar, rápido, do meu exame psicológico: um miúdo que precisa ainda do amparo da mamã. (Mal sonhava que no dia seguinte eu estava na casa de praia dos meus tios.)

Laura abriu-me a porta e suponho, pela cara de espanto que fez ao ver-me, nem lhe passara pela cabeça a possibilidade de uma visita minha, tanto mais a um dia de semana, durante o expediente.

A mão tremeu-lhe um pouco enquanto segurava a porta.

— Deixa-me passar – pedi.

Parece que o ter-lhe falado a tirou bruscamente do estupor a que sucumbira durante breves segundos.

Não vou maçá-los com pormenores do que foi dito. Basta saberem que eu levava um saco com alguma roupa na declarada intenção de lá passar uns dias. Laura pouco falou, proferiu balbuciante desculpa e pôs-se a milhas, referindo a eminência de um exame. Pegou na mala e na carteira e saiu, com fogo no rabo.

Juro que não lhe toquei.

Efectivamente, descobri por um mapa afixado no frigorífico, a época de exames iniciara-se. Tinha cinco testes escritos num mês. Atarefadíssima!, portanto.

Estirei-me no sofá, descontraído. Aborreci-me. Arrumei a roupa no armário já ocupado por Laura, dei um jeito ao cabelo, absti-me de remexer nas coisas dela (embora ardesse de vontade) e, finalmente, fui esquadrinhar a cozinha com detalhe apurado.

Assombro... prodígio...!

Laura conseguira organizar-se. A comida era decente e ela chegara ao ponto de preparar um menu para cada semana onde incluía também todas as despesas. O dinheiro dado pelos pais bastava para a comida e o passe e ainda sobrava para qualquer (mínima) extravagância.

Fui ao quarto. Tinha os cadernos em ordem, os livros organizados e mesmo um pormenorizado mapa de estudo.

O que o pânico faz!

Tudo isto por minha culpa! Pelo terror que lhe causei! E, adivinho, pela dor provocada com a perda de Salvador.

Laurinha fizera justamente o mesmo que eu: mergulhara no trabalho, afadigara-se no estudo. Única real forma de esquecer os problemas, olvidar o mundo.

Chegou a casa altas horas da noite. Eu já tinha desistido de esperar e comi o jantar confeccionado para ambos.

— Há comer no forno. Está quente. Guardei-o para ti – informei-a.

— Já comi na cantina – disse sem me olhar.

Foi directa ao quarto e trancou-o. Podia ter retirado antes a chave, mas preferi não o fazer. Não naquela noite.

O dia seguinte era, no entanto, outra história.


Falo-lhe descaradamente, fazendo uso dos piores termos, palavras de arrepiar frades, beatas ou mesmo libertinos bem batidos na vida. Não a deixo em paz, não lhe permito um minuto de descanso (até durante o estudo), abstendo-me, todavia, de a tocar.

Ela tranca-se no quarto e eu, do lado de fora, através da porta, digo-lhe:

— Laura, somos irmãos não somos monges! O que eu fiz, o que fizemos, nada tem de pecaminoso. Foi bom, não foi? Ai como eu adorei chupar-te! E a tua cona pareceu apreciar-me, deu-me tanto mel! Acreditas que guardei um pouco dele na boca e o depositei num frasquinho? – (era mentira) – Quando sinto saudades de ti, do teu cheiro, abro-o e delicio-me no teu odor secreto. Laura, tu nem imaginas o que eu tive de conter-me durante anos e anos, à espera que tivesses entendimento suficiente para perceberes que a foda entre irmãos é perfeitamente razoável. Eu não te quero por seres minha irmã, nem porque o gozo do tabu quebrado é a maior das delícias, mas porque sempre gostei de ti. Enamorei-me de ti ao ver-te no primeiro momento, tinhas acabado de nascer. Lembro-me como se fosse hoje.

Ela – nada. Prossigo:

— Laurinha, – sussurro encostado à porta, morto de tesão – Laurinha, abre a porta, matas-me de desejo. A tua recusa é uma tolice, bem sabes que mais cedo ou mais tarde acabaremos juntos, é a lei. Não da natureza, pois nós já a ultrapassámos, mas a lei da nossa razão. A nossa lei. Também é a tua, mas cega, recusas-te a vê-la, a enxergá-la como eu, sem hipocrisias ou falsos moralismos. Porque ages assim se a tua cona concordou comigo no primeiro encontro que tivémos (e, juro-te, não o último)? A tua cona, além de deliciosa, é ajuizada, sensata. Não encarreira em preconceitos estúpidos. Se a natureza estivesse realmente certa não achas que ela me recusaria? E foi tal o caso? Não, nem por sombras.

Ela – calada.

Continuo:

— Laura, abre a porta. Quero foder-te. Quero que me fodas. É bom, juro-te que é fabuloso e durante anos e anos eu treinei com imensas mulheres só para estar preparado para ti. Sou óptimo, acredita. Não te vou magoar, não te vou fazer mal. Só te quero foder mil vezes, até ficares inconsciente, até perderes os sentidos de prazer; só pretendo ir à tua bichaninha e apresentá-la ao meu lindo caralhinho, mostrar-lhe os recantos da casa, dar-lhe luz, fazê-lo penetrar no teu antro amoroso. Juro que é bem educado e usa babete. Sim, Laura, se a gravidez te preocupa, prometo que nesse aspecto estou em total acordo contigo. Teremos de usar preservativo. Embora um filho teu me fizesse o mais feliz dos homens, infelizmente, apenas nesse ponto a natureza discorda em absoluto de mim.

Nada respondeu.

Murmuro:

— Tenho tantos planos – (faço voz de cama). — Imaginei mil variantes no amor, a ser praticadas por nós dois, na cama, no chão, no chuveiro, encostados à parede e na bancada da cozinha que, mal cheguei, vi ser óptima para te dobrar e possuir à canzana, tu deitada nela de barriga para baixo, a saia puxada até à cintura e as cuecas pelos tornezelos, os pés assentes nos chão. Eu de pé atrás de ti, agarrado às tuas ancas e enfiando-te o mastro aceso na tua bela ratinha. Hum? Sim, embora nada digas, adivinho que consideras a bancada um tanto fria e temes que os nossos movimentos de vaivém te arranhem o ventre. O problema é facilmente solúvel com um toalhão colocado sob ti, evitando que te magoes.

Silêncio.

— Laura, a nossa pele nasceu para estar junta. Gostaria que tivéssemos sido gémeos, poderíamos ter começado a fazer amor logo na barriga da mãe. Laura? Fala, diz qualquer coisa. Laura? Laura...?

Muda e queda, a minha bela irmãzinha.

Gastei duas noites nisto.

Considerei ser preferível mudar de táctica.

Fui dormir cedo para estar fresco para a batalha.

Amanhã, pensei. Amanhã.


Cedo verifiquei ter Laura levado a chave do quarto consigo.

Infelizmente, sendo o único quarto, não havia outra chave. Não pude recorrer a outra divisão com chave idêntica (o que costuma acontecer) nem mesmo à da casa-de-banho, que se cerrava com uma espécie de botão grande: rodando-o, a lingueta rectangular alcançava o trinco.

E quanto à entrada da casa? Bom, aproveitei uma rara distração de Laura (no ínicio, encontrando-se ainda estupefacta, sem saber como reagir) para lhe tirar a chave da carteira deixada solitária na bancada da cozinha e fui, lesto, fazer uma cópia a um estabelecimento distante cerca de quinze minutos por carro. Pura sorte! Assim não me tornaria prisioneiro – da rua, bem entendido. Se à primeira me dera entrada, devido ao desconcerto extremo, à segunda a lucidez seria a mestra sussurrando-lhe ao ouvido:«Não! Não abras!» Tive sorte. Talvez, numa abordagem psicológica, alguém argumentasse ter sido o esquecimento de Laura um lapso freudiano, convidando ao mútuo desfrute. Considero, no entanto, que apesar da ocorrência de tão deliciosos e labirínticos «acasos», existem não raras vezes reais esquecimentos, que se agudizam perante um estado mental confuso e atormentado.

Bastava, pois, solucionar o caso da chave do quarto da mana! Se chegara ao ponto de a transportar consigo e estando-me vedado o óbvio recurso de dirigir a solução do problema para a fechadura (corria o, senão grave pelo menos sério, risco de ser descoberto, pois um minúsculo indício que, cumulado a posteriores descuidos por falta de paciência, fariam ao mais imbecil formar a imagem comprometedora de um puzzle pouco visto...), decidi confrontar a própria Laura.

A única maneira de aquirir a chave seria tirar-lha.

À terceira noite, quando arribou, tarde como hábito (ingénuo estratagema para me escapar), atraquei-me a ela com doçura e solicitude.

Mal entra em breves segundos está a meio caminho da oculta câmara. Páro-a, pondo-me na sua frente. Desvia-se. Imito-a e, num gesto decorrente, tiro-lhe a mochila do ombro.

Tenta recuperá-la. Impossível. Já a abri, já vi a carteira e já desencantei a chave. Deixo os dois itens cair no chão, de propósito e perto de mim. Enquanto gozo o azul-escuro dos olhos dardejando-me em silêncio frechadas certeiras e observo a fina linha dos lábios comprimidos pela raiva, ponho com gestos lentos e calculados a chave no bolso de trás das calças de ganga.

Aguardo.

Súbita acontece leve e incrível alteração no rosto: descontrai-se e observa-me de um modo curioso – como se eu fora o objecto de estudo de outro planeta e ela a cientista destinada a revelar o meu mistério.

Não gostei desse olhar, fora a primeira vez que lho vira. Quero recuperar o domínio da situação. Avanço um passo. Ela entreabre os lábios. Agora parece que está a ver um ovni ou um templo. Algo antigo e grandioso. É um olhar alvoroço esmagador, um quase absorvimento. Dá a aparência de sonhar acordada. Já nem me vê. Cessou de estar ali. Começo a ficar farto da brincadeira.

Agarro-a pelos ombros e sacudo-a.

Acorda de supetão, estremecendo, e de imediato recua, rodeia-me, baixando-se para recolher a mochila e carteira caídas.

Naturalmente erguo-a no ar pela cintura e deito-a de costas no sofá.

Estrebucha, luta, não fala porém, tenta libertar-se, não deixo, arranha-me, urra e dá gritinhos raivosos de impotência.

Adoro-a! Com o cabelo a irradiar de laranja, os olhos a brilharem de ira, a face corada e os dentes brancos cerrados.

É a minha vez de a estudar como uma tela de inestimável valor pendurada no Louvre. Como é esplêndida...! Ela cessou o guerrear e observa-me observando-a. A leve junção das sobrancelhas dá-me a entender que Laura não percebe a causa ignorada dentro de mim, o propósito que me move para a sua «posse». Não, posse não. Complemento. Juntos criaremos a unidade que é devida.

Tem os punhos frouxamente seguros à minha camisa. Sinto-lhe o corpo descontraído, a respiração calma e a curiosidade de se descobrir reflectida nos olhos do irmão. «O que estará ele a pensar?», julgo ser a pergunta que se faz.

Não tenho coragem de a tomar à força. Amo-a demais para isso. Quero que ela venha a mim, aceitando-me de bom grado, a palpitar de desejo e enamoramento.

— Quero fazer amor contigo, Laura.

De repente o corpo retesa-se-lhe e quer fugir, mas impeço-a.

— Nunca fiz amor com ninguém – prossigo, imune aos puxões e às desalentadas tentativas de escape – apenas sexo. Fodi, tive relações sexuais ou íntimas se preferires um termo menos cru, hipócrita e moralista. Mas amor, amor a sério, dar-me a alguém, receber alguém por estarmos ambos apaixonados, nunca o fiz. Como será?, pergunto-me, tocar a pele que, por amor, quer ser tocada pela minha?

Falava-lhe calmamente e ela estava tão atenta que nem se apercebera ter parado de novo de debater-se.

— Como é encostar a face, por amor, a outra face que quer encontrar-se com a minha?

E aí baixo-me devagar até estar a centímetros do rosto de Laura, o hálito banhando-se no meu em pequeninas ondas. Ela não tenta escapulir-se. Olha-me directamente nos olhos, em mudo espanto, expectativa, curiosidade. Parecia estar a ver, juro, um filme de mistério, à espera da revelação final.

— Como é receber o sopro da pessoa que se ama dentro da boca – e aspiro longamento o seu, cerrando ao de leve as pálpebras – apenas porque ela deseja que eu o receba?

E, devagarinho, com o joelho descerro-lhe as coxas. Ela não protesta. Encaixo o meu corpo no seu, uma perna no meio dela e a outra ao lado. Temos o rosto muito próximo, mas não quero ainda descansar a cabeça no ombro dela. Ainda não.

— Como será tocar suavemente os braços – desta vez não faço nada – com a ponta dos dedos, acariciar a face, devagarinho, e o cabelo, como se fosse delicada teia de aranha?

Continuo a não esboçar qualquer gesto. Ela, atenta, escuta-me, a soberba cabecinha virada para mim, continuando a fitar-me sem aparentar medo. Não te sabia tão corajosa... julgava-te tímida e aqui estás...

— Como será apertar o corpo da mulher amada e ter mais prazer, sentir que não há nada no mundo comparável a esse abraço? Que é mais embriagante que mil orgasmos?

Repouso a cabeça no seu ombro, fecho os olhos e, respirando devagar porém profundamente, cinguo-a nos braços, um premindo-lhe a cintura e o outro ao redor da cabeleira ruiva.

O morno fogo que me habitava irrompeu em fogueira que a custo consegui reter, mas de que Laura se tinha apercebido.

Mesmo assim não tentou fugir. Desviou o semblante e fixou o tecto. Mergulhara em secretas conjecturas.

Ficámos os dois enlaçados não sei quantas horas. Sussurrava-lhe doces coisas, dava-lhe epítetos tolos (sem jamais lhe surpreender um sorriso), acariciava-lhe o pulso com a mão que repousava em torno da cintura, disse-lhe tudo o que me passou pelo espírito, tudo o que sempre desejei dizer-lhe. E nem um palavrão ou termo escuso ultrapassou a fronteira dos meus lábios. Nem sequer me lembrei disso. Não queria, sem ter essa consciência, excitar a sua lubricidade. Desejava, antes, partilhar um perene momento de ternura. Um segundo – que durasse horas – roubado ao tempo. Estar junto de Laura.

Só isso.


 

 

– 6 –

 

Até que, sem saber bem como, alcancei os meus intentos.

Quando foi? Na manhã seguinte, dois dias depois, quando, alguém me dirá?

É que nem me lembro, tamanha a alegria!, o imenso júbilo a contagiar a própria memória.

Não tive de a convencer, Laura permitiu o meu toque, a minha carícia, o doce mergulho na sua tenra carne. Todavia permanecia rara em conversações. Pouco me respondia, mas a atenção ao que lhe era dito tinha redobrado.

Céus!, como me examinava!, me pesquisava o rosto, as mãos que a estudavam a si.

Não vou ser fiel à cronologia do tempo simplesmente porque não recordo nenhuma, nem aos factos porque desconfio que não me estão dispostos na mente na sua natural ordem, e sim consoante foram marcados no coração.

Narro. Narro o meu passado-eterno-presente.

Com brandura, sentados no sofá, toco-lhe a face com os dedos. Acaricio-lhe o cabelo e afundo o nariz no pescoço. Ela estremece. A pele eriçou-se. Ensaio comedido sorriso enquanto a olho, ela não o retribui, mas examina-me o rosto atentamente. Tenta, noto, reprimir a respiração.

Passo-lhe as mãos pelos braços e pelas costas, devagar. A seguir avanço para o ventre e os seios. Treme. Não sei porquê também não tinha vontade de falar. Apalpo-lhe as coxas, levantando-lhe a saia para cima. Ela não se opõe. Observa-me, as faces afogueadas, a respiração acelerada. Tento chegar-lhe ao yoni sagrado dos hindus, mas aqui recusa-se e junta firmemente as pernas. Não insisto e dirigo a atenção para os lábios vermelhuscos.

Encosto os meus aos seus. Ela não recua, cerra imperceptivelmente as pálpebras, o peito salta-lhe. Coloco uma das mãos a envolver o seio direito e com a outra seguro com delicadeza a nuca.

Antes de a beijar dou, de repente, conta do estado agitado do meu coração, aos pulos. Estou ofegante e estrias de electricidade povoam-me o corpo, frenéticas.

Perturbado retiro o esboço de abraço, finco as mãos nos joelhos, contemplando-as e fechando por breves momentos os olhos. Respiro fundo, conto mentalmente até dez. Estou calmo.

Miro-a. Laura tem a cabeça um pouco de lado e uma leve expressão interrogativa. Sorrio e retomo o abraço inacabado.

Continua sem se afastar, a minha Laura...

Suavemente primo os lábios nos dela, várias vezes, sem forçar. Roço o nariz no seu, em jeito de brincadeira, começo a beijá-la a sério e, milagre dos milagres – Laura corresponde.

Altero a posição das mãos só para lhe sentir o coração. Está aos pulos. Cada vez nos beijamos com maior avidez, comendo, chupando, sorvendo a língua um ao outro. A saliva indo reciprocamente para a boca dos dois, misturando-se, divina, nos dentes, na língua, no palato.

Abraçamo-nos com desejo, o beijo é tão maravilhosamente longo! Longo, longo, eterno!

Afastamo-nos procurando ar, aspirando o ar um ao outro.

Ela está encarnada, os olhos húmidos de desejo. Ergue a mão que antes me agarrava a camisa e toca-me na face.

— Está quente – diz.

E eu não consigo responder. Pela primeira vez não tenho resposta.

Sorri e dá-me um sonoro e rápido chocho.

Desatamos a rir à gargalhada sem despregar a vista um do outro.

O riso pára.

Continuamos a encararmo-nos, sem uma palavra, em silêncio, como que estuporados.

Depois, com lentidão, beijamo-nos repetidas vezes, por vezes premires rápidos de lábios, outras suculentos e devoradores beijos e por fim beijos lentos que nos dão espaço para respirar.

Era tão bom e delicioso! Nunca beijara assim. Dava-me a impressão de ser tal o primeiríssimo momento em que o fizera e que nada poderia suplantar tanta emoção.

Com relutância de ambos abandonei-lhe a boca e passei às coxas. Nelas demorei-me bastante, apesar de Laura as conservar unidas.

Deslizando a língua e os lábios por elas, apertando-as em simultâneo, Laura acariciava-me com certa força o couro cabeludo, e suspirava não raras ocasiões.

Sei, porém, não ter sido naquela altura em que a possuí.

Em que nos possuímos.

Em que, pela primeira vez, alguém me recebeu.


Foi no quarto da casa da praia. Na antiga oculta câmara.

Conto, a partir daqui, no presente por ser nesse tempo que vivo mil vezes a recordação passada.

Tenho a cabeça a andar à roda, embriagado de paixão e luxúria. Laura tem dificuldade em encarar-me e foge com os olhos. Estamos na cama, vestidos e descalços. Tenho tudo preparado: a caixinha dos preservativos aberta e um já convenientemente a espreitar, curioso, para fora do invólucro. Quando por acaso a vista de Laura cai sobre a embalagem, torna-se escarlate e não sabe onde pôr o olhar. Afago-lhe o cabelo e ela encolhe os ombros. Receia-me. Páro. Estamos sentados à beirinha.

— Vem aqui para o meio – peço e desloco-me para o centro do colchão.

Ela segue-me devagar e tímida. A cama é de casal. Pego-lhe nas mãos. Ela deixa, mas não corresponde e continua a não me olhar de frente.

— Olha para mim.

Não obedece.

— Olha-me – repito. Continua sem obedecer. Largo uma das mãos e acaricio-lhe o cabelo. O corpo treme-lhe de medo. O meu também: tenho medo do medo dela. Não quero que me fuja, quero fazer tudo certo, como o melhor e mais paciente dos amantes e prendê-la pela ternura (não tanto pelo desejo).

Prossiguo a carícia. Laura resta imóvel, sei que está num pânico mudo ou bem perto disso. A sua outra mão repousa na minha qual passarinho morto ou inconsciente. De súbito noto que as lágrimas estão prestes a irromper.

Em mim. Controlo-me, severo. As lágrimas recuam.

— Só fazemos o que tu quiseres – digo-lhe e inclino-me para guardar a caixinha de preservativos, incluindo o curioso observador, na gaveta da mesa da cabeceira.

Laura solta um suspiro quase inaudível. Alívio. E um peso que desconhecia solta-se e parte, leve, do meu corpo.

Zango-me comigo próprio. Estúpida massa! Tanto discurso àcerca da imbecilidade de manter o tabu do incesto e tu, monte de carne e ossos, comportas-te como pecador! Obedece à razão! Parece-me incrível que tenha ainda de o persuadir.

Ela fita-me de lado, os lábios trementes.

— Estás com frio? – pergunto e reconheço logo que é uma questão tola.

Ela sorri e abana a cabeça negativamente.

Beijo-a. Encolhe-se. Prossigo em lentos beijos que vou semeando nos lábios, face, cabelo, pescoço. Sinto o corpo dela a descontrair-se ao de leve. Beijo-a na boca, primeiro devagar, depois a língua entra nessa suave valsa e em pouco tempo estamos a sugar com fúria a língua um ao outro. Laura já me olha. Sorrimo-nos ambos e desta feita é ela que reinicia o bailado bucal. Tombamos na cama, os corpos enlaçados. Passeio as mãos pelas suas pernas, desde a curva interna dos joelhos até às ancas. Primo-lhe as nádegas. Laura geme e sem me largar a boca encosta o seu ventre ao meu. Por esta altura já me encontro tão desvairado que o temor de minutos atrás se eclipsou por entre as franjas do prazer. Amachuco-lhe o cabelo, deambulo pelo seu corpo inteiro, sugo-lhe a língua e sinto-me às portas do paraíso. Tento, então, como quem não quer a coisa, chegar-lhe à andorinha ruiva, à bainha da minha espada.

Laura pára e olha-me áspera.

Eu ali tão perto – e ela pára. Estou à beira da loucura e, para ser franco, a paciência ameaça esgotar-se. Mas tenho o ânimo para esconder a reacção. Ela erguera-se e sentara-se à beira da cama.

— Só a quero sentir, mais nada – digo.

As costas estão direitas, os braços caídos ao longo do corpo. Assemelha-se a uma parede de granito intransponível. Aproximo-me da nuca e murmuro:

— Deixa-me vê-la ao menos...

Esperava que desse um salto olímpico e fugisse porta fora. Mas não. Vejo-a, atónito, estender-se lentamente na cama.

E mirar-me expectante, o corpo tenso.

Para a fazer descontrair decido recorrer ao nosso jogo de infância, aquele que praticámos até atingir os nove, dez anos.

Cócegas. Quando lhe fiz cócegas na barriga mirou-me com ar interrogador, mas ao renovar o ataque, a expressão foi substituída por um abalo de riso.

— O que é que tu estás a fazer! Não! Páa... ah... ra! Ai!

E contorcia-se enquanto lhe cocegava a barriga, os sovacos e a nuca. Agitava-se no leito (não adoram estas palavras medievais?), tentando desviar-se. O riso saía-lhe transbordante do fundo da garganta e nele transportava para o alto o receio. Parei. Laura arqueja.

Tiro-lhe a saia, ela mal dá conta. Quero tirar-lhe a camisola. Não deixa. Faço-lhe mais cócegas, nos sovacos, na nuca, e aproveito o agitar desordenado dos braços para lha retirar. Fica em roupa interior. Pela face escarlate sei que morre de vergonha, mas apercebo-me de uma força interna desconhecida, ordenando-lhe a imobilidade.

Tiro a minha camisa e Laura entreabre os lábios. Aí lembro-me deles e beijo-a de novo. Forcejo a língua para dentro da sua boca, recebe-a impassível. Noto que contempla o meu peito.

Devagarinho toca-me, um toque como asa de borboleta roçando a pele.

Demora-se na admiração dos mamilos, escuros e rijos.

— Parecem amoras – diz, num tom bastante científico que me arranha o coração.

Recomeço a beijar-lhe o corpo, quero percorrer-lhe a pele inteira, homenageá-la com os lábios, a língua, o hálito. Estremece. Chupo-lhe o ventre e ele dá saltinhos como se vergastadas céleres o zurzissem no interior. Tenho o membro mais do que pronto, mas sou capaz de aguentar.

Ela arrulha quando ponho a mão esquerda debaixo do soutien, de modo a sentir o pomo suave e hirto. De imediato a boca arrepia caminho para o monte-de-vénus. Sinto-o na face, cobro-o de magra saliva. Com a mão direita liberto-a das calcinhas. Laura une de imediato as pernas. Mas não desisto. Com a mesma mão e auxiliado pelos joelhos consigo descerrá-las o suficiente de modo a alcançar a pérola da ostra. Atarefo-me a manusear o clitóris. Transporto-a ao delírio da volúpia. Laura vibra e suspira de prazer. Abre mais as pernas. Continuo a manejar o botão de carne.

— Ai... ahr... ah... ooh... – oiço, doido, a cabeça a andar à roda, e não páro.

— Ahrr... ooh!...

A mão esquerda, entumescida da sua mama, desliza célere para as costas e desembaraça os seios, desprendendo num bem treinado movimento o suporte. Arremesso o estorvo para longe e ela mal se dá conta. Tem os olhos fechados e a cabeça move-se em todas as direcções, as mãos estão cravadas à cama, os punhos abrindo-se e fechando-se alternadamente. De repente o aguilhão da suspeita enterra-se cá no fundo.

Ela pode estar a pensar no Salvador, a vê-lo, e não é a raiva que este pensamento doloroso me traz, mas o desespero.

Rápido, sem parar os movimentos em baixo, agarro-lhe a nuca e digo, em voz que tento ser firme:

— Laura! Abre os olhos. Olha para mim!

Com espanto obedeceu-me e contemplou-me plena de lascívia. Notei que desejava que eu a beijasse. À aproximação do êxtase os seus olhos ameaçaram fechar-se, mas com um forte puxão do cabelo e nova ordem severa obrigo a que me encare.

— Diz o meu nome.

— Ahh!... ahh! Arrh...

— Diz o meu nome!

O orgasmo está iminente.

— Diz!

— Nuu... noo... oohh...

Veio-se.

Tenho a mão toda encharcada do seu leite.

Laura está exausta, o doce cansaço inunda-lhe os membros.

Aproveito para um exame atento há muito adiado. É de dia e a luz está acesa. Há, pois, claridade suficiente para esclarecer as minhas dúvidas.

Desço até ao animalzinho satisfeito a repousar e afasto-lhe bem as pernas. Laura não opõe resistência.

Estudo a geografia da sua cona.

Ponho-lhe uma almofada debaixo dos rins. Cá está, levantada ao meu olhar, a fonte divina, a primordial matriz. As pernas estão erguidas em ângulo agudo, os pés apoiados no colchão. A pele interior das coxas é macia e sem rugas. Pele de bébé. A ferida que as separa apresenta pêlos púbicos apenas no topo, as bordas não o têm. As bordaduras são suaves (toco-as ao de leve e ela estremece). No interior há, em cima, logo após o velo, o clitorís erecto, a seguir para baixo vêem-se duas minúsculas pelezinhas (fraca imitação das bordas exteriores) que delimitam a fronteira do buraco. São, portanto, dois pares de lábios verticais. Lábios que escondem outros lábios. O exterior da cona é branco, o interior húmido contendo as pequeninas ninfas e a pérola é rosada, tom de coral.

Perpassa-me um sentimento religioso ao observar o conjunto. Estarei a olhar a Cona de Deus? Estará Deus escondido nesse sorriso vertical que só as mulheres possuem? Por um momento tão pequeno quanto a décima parte do segundo, julgo estar face a uma imagem sagrada que acabou de me conceder a sua graça.

Aproximo a cara do buraco e com ambos os polegares afasto as curtas linguetas. Espreito o fundo. Procuro o hímen. Nada vejo. Sei que nada significa. Estou cônscio que a materialização da virgindade numa pelezinha interna, espécie de selo que o pénis quebra, é um mito masculino, forma de manter oprimidas as mulheres. Mas não é só isso: é a «coisa» física que explica parte do fascínio da mulher. Mas, que ao mesmo tempo, torna a mulher não tão misteriosa, reduzindo-a a um nível concreto, tirando-a do abstracto, do transcendente.

A maioria das mulheres não tem hímen nenhum. Mas tal não me impede de crer, sem sombra de dúvida, que Laura permanece virgem. O imbecil Jorge não teve tempo de tomar tais liberdades e desde então Laura não teve outro namorado. E ela não é do tipo que vai com qualquer um, só pelo prazer do conhecimento. Conheço a minha irmã.

Mas, penso, porquê então se abre a mim e me concede o deslumbramento da visão do seu tesouro? Dou voltas à cabeça, mas não chego a qualquer conclusão. Súbito o desejo, a luxúria atravessa-me de lado a lado. O cheiro vindo do mar profundo que estudo põe-me doido e num ápice renovo as minhas homenagens com a língua: chupando, comendo a boca oculta da mana.

(Não diz o Talmude: «beberás o cálice da tua irmã»?)

Venho-me ao mesmo tempo que ela e fico embaraçado por Laura testemunhar a minha falta de controle. Sujei os lençóis da cama (a colcha tinha sido retirada) e, vermelho de vergonha, vou célere buscar algo com que limpar o esperma. Ela impede-me que use a toalha antes de examinar muito bem as secreções. Faz um asgar de nojo ao aproximar o narizinho do quente sémen.

— O que é? – pergunto.

— Não gosto do cheiro.

Noto-lhe a pele com bolhinhas de suor.

Rapidamente limpo tudo e deito-me ao seu lado.

Laura adormece e aproveito para a observar dormindo, tal como quando era criança.

Eu próprio tenho sono, mas combato-o só para usufruir deste prazer.

Repousa como um anjo, doce. Bela, linda. E minha.


Acordamos os dois juntos, o meu braço ao redor da sua cintura. Nem me dei conta de ter adormecido. Já é noite, vê-se pela janela. A luz continua acesa. Ela quer ir à casa-de-banho tomar um duche, impeço-a.

— Ainda não terminámos – digo, puxando-a com doçura de volta para a cama.

Não foge, não diz nada, deixa-se ficar imóvel enquanto a seguro pela cintura. Olha-me serena. De relance percebo que são três da madrugada.

Recomeçamos, por minha iniciativa, que Laura não repele, mas que também não incentiva.

Só quando a como outra vez em baixo, lhe devoro a concha e a jóia que a adorna, é que Laura me aperta voluptuosamente as pernas em torno da cabeça. Mas permaneço nas terras baixas por pouco tempo. Num gesto coloco o caralho teso no meio da racha e roço-o lá, várias vezes, em lúbrico vaivém. Ela tenta debilmente afastar-me, mas está a gozar demais para que as suas tentativas sejam verdadeiras. Morde os lábios, revira os olhos, quando a beijo a serpentezinha húmida enrola-se na minha, põe os braços ao meu redor e arranha-me as costas, emitindo lascivos urros de prazer que me impelem a movimentar-me mais depressa até que atinge o clímax, ficando depois parada, como morta, de olhos fechados, a suar e ofegante.

De repente o corpo fica-lhe tenso e esbugalhando os olhos diz, aterrada:

— Posso engravidar!

Eu rio.

— Parvinha, claro que não. Eu não me vim.

— Mas posso à mesma! – exclama e com o medo tenta descolar do vaso o meu pau erecto.

Pego na deixa e logo retiro da gaveta o preservativo que antes espiava cá para fora através da pequena abertura que anteriormente fizera ao invólucro.

Saio do meio dela, ponho-me de joelhos e acondiciono-o na haste tesa. Laura olha-a, fascinada, a boca entreaberta, o lábio superior apresentando uma leve faixa húmida.

Acomodo novamente a almofada debaixo dos seus rins e rabo, alçando-lhe o ventre, de modo a penetrá-la com maior facilidade. Dou-lhe mais umas lambidelas para a pôr no ponto, mas Laura sente demasiado receio. Diz, tiritando, e encarando-me quase em pânico (e lança de revés um temeroso olhar ao meu altivo instrumento):

— Não... não quero – a voz sumida, quase estrangulado titubeio.

Não respondo.

Pego nas pernas e levo-as para cima dos meus ombros, onde ficam a repousar.

Com dois dedos da mão direita ponho o estreito buraco à vista e logo a cabeça vermelha do membro, como se se tratasse de um outro animal a viver separado da minha vontade (inda que a partilharmos ambos o mesmo espaço), começa a abrir caminho pelo canal.

Ela cerra os olhos e morde os lábios com força. Não está a gostar. É normal. A vagina encontra-se bem lubrificada, mas isso não impede a dor.

Lentamente vou enfiando o aparelho na apertada gruta. Laura arqueja.

— Dói – geme e começa a lagrimar.

Páro. Digo-lhe:

— Respira fundo e acalma-te – num tom neutro.

Não me responde.

Deito-me completamente sobre ela e beijo-lhe o pescoço e os seios. Quero beijá-la na boca, mas repele-me, dando dolorosos e minúsculos suspiros, como se estivesse doente. Insisto. Beijamos-nos com vagar. Murmuro-lhe ao ouvido:

— Gosto de ti.

E levanto-me, retomando a anterior postura. Continuo a enfiar o pénis na vulva. Devagarinho até o ter todo lá dentro.

Até sermos os dois um.

Temos os pêlos entrelaçados, os dela arruivam os meus castanhos-claros.

Laura arqueja e engole em seco. Encara-me temerosa.

Tiro o pénis e de novo o enfio, já sem tantos cuidados, mas sem excessiva força.

— Ai! – exclama e fita-me de dentes rilhados e lábios semiabertos. Tem os punhos hirtos.

Inicio os movimentos de ir e vir e ela parece apreciar cada vez menos o que faço.

— Pára! – diz. — Pára!

Mas ignoro-a. Diminuo os impulsos. Ficam tão vagorosos que assemelham faca quente em manteiga morna. Noto que os seus punhos se descontraem, o corpo está menos tenso e que diminuiu os suspiros.

Não renova o apelo.

O buraco apresenta-se menos apertado e ela tem menos reticências aos avanços da tora.

Aumento o vaivém, Laura põe a cabeça de lado e começa a gozar. Até que ao cabo de várias umbigadas sinto a cona apertar-me a haste e, seguido a um série de gemidos lúbricos, o enlanguescer súbito da sua carne.

Depois é a minha vez de saborear o estático instante divino.

Tombo em cima dela e mergulhamos juntos na sonolência.

Infelizmente ela afasta-se e eu resto sozinho na cama, abandonado, destroço de um barco antes indestrutível e que após andar à deriva no oceano encalha numa praia deserta.


 

 

– 7 –

 

— Porquê?

Quando lhe perguntei a razão de ter cedido respondeu-me que era para finalmente ter paz e terminar os exames.

Depois foi a minha vez de ceder. Voltámos para o meu apartamento e concordei em não a incomodar durante o dia (que Laura, aliás, passava a sua maior parte na faculdade, estudando), esperando por ela no meu quarto. Disse que sim desde que viesse todas as noites.

Não falhou uma.

Mas quanto mais eu me dava, menos ela se entregava. Gozava o meu corpo pelo prazer do gozo, unicamente. Já não se abria em confidências, como antes, nem o olhar que tinha para mim em pequena (que, um pouco, conseguira restaurar) eu agora lhe conseguia surpreender. A única comunicação estabelecida era feita através dos corpos. Consegui por algum tempo controlar a fúria, a raiva, o medo. O desespero. Mas certa noite explodi. Agarrei-a pelos cabelos, estando ainda dentro dela, e com núvens de lágrimas a taparem-me a vista, exigi que me explicasse o seu comportamento.

— Porque me magoas tanto! Porquê?! – gritei furioso, alagado em choro.

Confusa e aterrada com a súbita ira correu a esconder-se no seu quarto, trancando-o. Bati na porta, aos murros, as lágrimas correndo pelo corpo nu. Não abriu.

No dia seguinte não sei bem como fizemos as pazes. Pazes? Desconheço como se chama quando uma parte ama e a outra não. Arrependido titubiei, tímido, um pedido de desculpas que Laura aceitou de bom grado, sem uma expressão no rosto denunciado os verdadeiros sentimentos. Senti uma faca invisível a rasgar-me o peito.

Prosseguimos os encontros nocturnos, eu dando-lhe tudo, tudo o que jamais dera a ninguém; ela tudo recebendo e oferecendo-me em troca a certeza do prazer físico, mas só isso, nada mais. Quando tentava puxar conversa, dizia que não lhe apetecia falar; quando a abraçava correspondia, mas sem o meu fogo, a minha paixão, a minha ternura...

Seria este o castigo? O orgulho que me fez crer estar acima das leis humanas cegou-me para as consequências dos meus actos?

Tê-la, mas só em parte?

De repente o seu corpo já não me interessava, pois descobri que através dele não lhe chegava à alma nem ao coração. (E esta percepção lançou-me num pânico mudo.) Contudo todas as noites tentava possuí-la mediante a posse do seu corpo, sem resultado. E estava longe de querer apagar nele, definitivamente, o fogo do desejo.

As notas sairam. Laura passou. Em Agosto está livre. Planiei ir passarmos as férias a Paris. Perante os pais proclamo solene ser o meu presente por se ter portado tão bem na faculdade. Ficámos lá uns dias antes da partida para França. Tinha esperanças de a conquistar a sério durante esse período livre. O mês inteiro. Sem deveres profissionais ou escolares. Noite e dia.

Nunca pensei que o amor fosse assim.

Esta dor.


 

 

O Anjo

Preparou as coisas de maneira a não pôr ninguém de sobreaviso, mantendo a rotina, indo às aulas e estudando com afinco. A pouco e pouco desfez-se da roupa (só ficou com as estritamente necessárias). E dos objectos pessoais, até das cartas enviadas por amigos, alguns perdidos de vista, de outros afastara-se sem saber bem porquê, até dessas cartas se desfizera-a, reduzindo-as a cinzas.

Aproveitou a curta passagem na casa dos pais e numa altura em que eles e Nuno se ausentaram (Laura apelou para velha táctica feminina – dores menstruais, ao que Nuno soergueu o sobrolho, mas não se atreveu a contestar), resgatou os velhos albuns de família do baú de madeira e escolheu as fotografias onde aparecia. Acendeu o fogão a lenha e queimou-as todas e devolveu os albuns ao lugar de origem.

— Que calor! Para que é que foste acender o fogão com este tempo?! – refilou a mãe.

Laura, sentada defronte a ele, encolhida, as mãos à volta da barriga, retorquiu:

— Estava com frio...

— Com este calor?! Esta rapariga...

E Laura agitava-se devagarinho de trás para a frente, pálida.

Os livros de que dispunha, da faculdade e recreativos, conservou-os para não despertar as suspeitas do irmão. Pelo mesmo motivo não se pôde desfazer dos brinquedos de infância.

Durante os dois meses que estivera longe dele conseguira obter os comprimidos com que pretendia suicidar-se. (Escondera-os tanto na casa da praia como no apartamento de Nuno, aqui na escravaninha, num recanto secreto, acondicionados para se manterem durante um longo período.)

Retrocedo no tempo, tempo que visito a bel-prazer, sem possuir a capacidade de o alterar. Descubro o estratagema que Laura utilizou na obtenção dos comprimidos. Custaram-lhe quatro visitas ao médico (que teve de custear com o seu próprio dinheiro).

Na primeira visita queixa-se de ser incapaz de dormir, as insónias são terríveis. O clínico geral receita, já o esperava, sedativos fracos.

Acompanho Laura a sair do consultório. Rasga a recita. Espera vários dias e renova o assalto. Argumenta não fazerem efeito. O médico receita outros, mais fortes, mas não os que ela secretamente desejava. Aguarda poucos dias e regressa com as mesmas queixas. Supôs que desta vez fosse tiro e queda, mas o doutor pergunta-lhe se tem tido problemas na escola, com o namorado, a família, se há alguma outra fonte de ansiedade. Laura estranha o questionário, mas não desarma. Não existe problema algum – volve, calma –, é das melhores estudantes, tem pais compreensíveis e um namorado amoroso. Imaginava que lhe daria os sedativos (os que, na proporção correcta, matam em meia-hora sem dor), mas o médico desconfiado, ainda por cima sendo ela tão jovem, alterou a raceita para outros iguais, mas de marca diferente.

Laura ficou furiosa.

Demorou menos tempo a regressar ao consultório. Manteve-se acordada, combateu o sono para aparecer com olheiras do tamanho de colinas. Resultou. Conseguiu as ansiadas pílulas.

Laura aviou logo a receita e apressou-se a escondê-las.

Quando Nuno apareceu na casa da praia Laura já planeara matar-se nas férias de Verão.

Acabou por ceder aos desejos do irmão por ver a sua morte mais do que certa.

«Ele começou o mal, eu terminei-o. Quero saber o que é, se este nojo que sinto de mim pode crescer e eclipsar-se ao atingir os limites quando eu dormir com o meu próprio irmão. Não tenho forças para lutar.»

Laura ia todos os dias à igreja deserta, antes de regressar a casa, esperançosa que os vitrais lhe transmitissem fé, transportada nos coloridos raios de luz.

«Não acredito. Não acredito. Se acreditasse a morte seria mais ou menos fácil?»

Ainda vive. Posso dissuadi-la, colocar-lhe a mão em concha sobre o peito e inspirar-lhe a observação de qualquer coisa bonita. Transmitir-lhe vontade de viver.

Mas como, se eu perdi o interesse de consolar os homens?

E quem me consola a mim por tal perda?

Deus?

 

 

Fim


 

©2002 — Dunyazade
duny_y@yahoo.com

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

__________________
Dezembro 2002

eBookLibris
© 2006 eBooksBrasil.org

Proibido todo e qualquer uso comercial.
Se você pagou por esse livro
VOCÊ FOI ROUBADO!
Você tem este e muitos outros títulos
GRÁTIS
direto na fonte:
eBooksBrasil.org