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FRAGMENTOS PÓS-BOUDELAIRIANOS

José Luiz Dutra de Toledo

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Fragmentos Pós-Baudelairianos
José Luiz Dutra de Toledo

Edição
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©2000,2006 José Luiz Dutra de Toledo


Fragmentos
Pós-Baudelairianos

[imagem]

José Luiz Dutra de Toledo


 

Í N D I C E

 

O Autor
Fragmentos Pós-Baudelairianos reaproximados numa perspectiva mais contemporânea e atualizada da "Modernidade" no fim do século XX
A música retorcente e requebrante que vem do carrinho do pipoqueiro
A palidez da dignidade em diálogos com os céus transtemporais
Enjoado de tanta lasanha, ouço Duke Ellington num fim de tarde de domingo
Banquetes funerários e Missas para Defuntos numa Cultura de Luto e Luxo, perdas e prazeres
Algumas pessoas do século XIX por mim conhecidas
Las cabelleras de los difuntos de Montevideo
Aquí tem Jesús Cristo. 15 Reais o quilo!...
Com rima rica, rifas e tudo mais, o michê Michel lá vai prú beleléu
Orfeu desceu aos escuros infernos de uma sauna gay da Corrêa Dutra — Catete — Rio de Janeiro
Para não dizerem que não falei da morte
O vídeo about Ovídio
A impotência do narrador
Além das fronteiras
Ladainha da Bernarda Alba ou de Federico Garcia Lorca?
As belas lembranças de mamãe
A sabedoria dos que sabem que vão morrer
A Mendiga Bilíngüe
Galinhas assustadas no meio da feira de fim-de-ano em Piumhí — M.G
Ela só conhece o Paraguay e leva a vida na gozação acreditando que nasceu de uma gozação
Impressões sobre a história da cidade de Piau — Minas Gerais
Imagens oníricas captadas no último mês de 1997
Sobre a suntuosidade (decadente ou delirante?) de Montevideo


 

O Autor

 

 

José Luiz Dutra de Toledo, historiador, professor, cronista, calabora desde 1969 com vários suplementos culturais mineiros, paulistas, cearenses, sergipanos, fluminenses e do exterior.

Mestre em História pela UNESP-Franca-SP (1990), Prêmio Clio (1992) da Academia Paulistana da História. Professor da rede municipal de ensino de Ribeirão Preto-SP, apreciador da música contemporânea de Zeca Baleiro, Chico Science, Banda Nação Zumbí, Tom Zé e Milton Nascimento.

Capricorniano, nasceu em 22 de Dezembro de 1951, em Tabuleiro-Minas Gerais, filho de Joaquim Ribeiro de Toledo Netto e de Sílvia Dutra Toledo; estudou no Grupo escolar Menelick de Carvalho (escola estadual de Tabuleiro-MG), no Ginásio Comercial João XXIII (escola comunitária de Tabuleiro-MG), na Escola Agrícola Federal de Rio Pomba-MG, no Colégio Estadual Sebastião Patrus de Souza de Juiz de Fora-MG; na Universidade Federal de Juiz de Fora e na Universidade Estadual Paulista — campus de Franca-SP (tempo de escolaridade: 23 anos interruptos, sempre em escolas públicas, nunca estudou em escolas particulares); trabalhou em Juiz de Fora-MG, Chácara-MG, Porto Alegre-RS, Gravataí-RS, Sobradinho — Joazeiro-BA (CHESF), São Paulo-SP, Altinópolis-SP, Franca-SP e em Ribeirão Preto-SP; presidiu o Diretório Acadêmico Tristão de Atayde do Instituto de Ciências Humanas e de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG e na mesma época (1972/1975) venceu concurso para a monitoria da disciplina História das Idéias Políticas I no Departamento de História do mesmo Instituto acima citado.

Já viveu em Rio Pomba-MG, Juiz de Fora-MG, Porto Alegre-RS, São Paulo-SP, Sobradinho-BA, Altinópolis-SP, Ribeirão Preto-SP e em Piumhí-MG em variados e diversos endereços nestas mesmas cidades, repetindo as famosas sinas de Fernando Pessoa e de Dostoievski.

Mora em Ribeirão Preto e região desde 1984. Acumula mais de 1500 textos publicados mas até hoje não tinha conseguido publicar sequer um dos seus 23 livros inéditos mas encadernados e guardados numa vulnerável arca de pó de madeira colada (compensado).

Publicou entre 1969 e 1999 mais de dois mil textos em jornais, fanzines, suplementos culturais e revistas literárias de pelo menos doze estados brasileiros e Distrito Federal; professor em escolas públicas e particulares entre 1973 e 1995; organiza desde Abril de 1995 a Hemeroteca da Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto - Ribeirão Preto/Estado de São Paulo/Brasil.

Seus dois volumes de coletâneas de textos publicados em jornais brasileiros nos 7 primeiros meses de 1998 foram incluídos no acervo da Biblioteca Nacional do Uruguay em 18 de Janeiro de 1999.

Aprecia muito moranga cozida com rodelas de cebolas e ovos cozidos, abóbora d’água com quiabo, carne de porco, arroz, feijão e angú..."não posso comer doces mas adoro pudins dietéticos de coco, figos secos da Turquia, bolos dietéticos, gelatinas, etc.. e sou narcisista, por que não haveria de sê-lo??..."

Ama os animais e as plantas, não é esotérico, nem direitista, nem centrista, nem esquerdista, nem extremista, nem anarquista, irrotulável, mas apoiou Fernando Henrique Cardoso para o mandato presidencial (1999/2002).

Atualmente tenta implantar o seu projeto de um Centro de Expressões e Estudos sobre Imaginários, Mentalidades e Tendências Contemporâneas, um desdobramento das projeções de Ivan Illitch, educador mexicano que no CIDOC — Cuernavaca anteviu uma sociedade sem escola, na qual o conhecimento seria cultivado em pequenos grupos de interesses específicos. Mais ou menos como hoje ocorre em torno de sites e home-pages da internet. No caso, busca-se intercâmbios e formas de divulgação e registros de reflexões, estudos e manifestações inspiradas ou suscitadas por questões atinentes aos nossos imaginários, mentalidades e tendências contemporâneas. O Centro está, provisoriamente, instalado à rua Vinte e Um de Abril, número 77 - Vila Tibério - Ribeirão Preto - Estado de São Paulo - Brasil 14050460 e-mail: dutol@netsite.com.br, para o qual o leitor está convidado a contribuir.”

O professor José Luiz Dutra de Toledo faleceu em 03 de julho de 2004, aos 52 anos de idade. [N.E.]


 

Fragmentos Pós-Baudelairianos reaproximados numa perspectiva mais contemporânea e atualizada da “Modernidade” no fim do século XX

 

José Luiz Dutra de Toledo

Primeiras Memórias da Unidade Especial para Tratamento de Doenças Infecciosas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo — Ribeirão Preto-SP — Dezembro — 1996

Necessariamente a contemporaneização (não só) do conceito e da vivência mais efetiva das posturas da modernidade neste fim de século (e fim de milênio) são perpassadas pela reflexão e busca de políticas mais profundas na contenção dos processos históricos racistas, de agressão ao meio-ambiente e superação ou controle com vistas à superação gradual de todas as formas de beligerâncias, belicismos e autoritarismos.

As baronesas de ralas cabeleiras, da suíte hospitalar vizinha, só se dão a conhecer, quando, pela manhã, nos permitem vê-las, em suas discretas saídas, em cadeiras de rodas, numa fresta da paisagem hospitalar mini-multi-quadriculada por telas de grossos e firmes fios de ferro semi-aramificado afixadas acima da meia-parede, num dos corredores ao qual tenho acesso por um ângulo que lá atinge a visão dos meus olhos dispostos em cima da cama na qual lhe escrevo.

Se a vida é frágil, a morte (sua contrapartida?) também o seria. De preferência tão leve, tão frágil e tão susceptível de alterações profundas e repentinas quanto a vida.

As enfermarias do século XVII agregavam às suas paredes os gritos de dor, o sebo e as secreções dos seus doentes. Agora os doentes, por extensões tentaculares de borracha, vão do seu leito ao vaso sanitário tomando Oxigênio-dois e até antibióticos. Por aqui, todos os móveis têm pés com rodinhas e não são alegorias setecentistas da deusa Fortuna. No hospital reina a alvura da geométrica deusa Razão enriquecida por subsídios arquitetônicos modernistas engendrados desde o início do século que daqui a quatro anos chega ao seu fim.

O silêncio da morte é monumental. Decadência, solidão, velhice, estágios terminais são degraus, vértices e registros fundamentais numa visão pós-moderna do mundo no fim do século XX.

O castiçal do absolutamente silencioso quarto ou suíte da baronesa adolescente é um painel aceso indicando que a paciente e aristocrática moça está a tomar medicamentos. Seus pertences se resumem ao copo de água e ao rolo de esparadrapo, fita que cobre o seu rosto e testa, servindo de afixador de sondas e de outros recursos medicamentosos. Um copo d’água e um rolo de esparadrapos, naturezas-mortas que jazem sobre seu criado-mudo. No cabide metálico atrás da porta, só um jaleco branco, quase uma mortalha para o seu corpo magérrimo e sua fisionomia indistinta, de uma mulher que dorme há milênios. Não percebo seus movimentos respiratórios. A baronesa ostenta um semblante apático e quase fúnebre.

Quase todos os médicos (corporativamente considerados competentes autoridades em questões patológicas) assumem feições patológicas ao analisarem o seu quadro clínico. Osmose ou nojeira existencial com elevado patamar hierárquico de “saber acadêmico”?

Acaba de “transpirar” a notícia da morte da baronesa. Sem detalhes. Detalhar o ocorrido seria considerado “falta de ética”. O único lance diferente foi o ar salgado que exalava por uma das janelolas acopladas ao portal da suíte até então ocupada pela baronesa, portal este que a conduzia à área de tomar sol e ar, área comum à sua e à minha suíte. A porta de vidro liso e fosco, com colunas de ferro colorido por um marrom ferruginoso, estava fechada hoje de manhã. Quando, em trecho acima, falava em baronesas, uma era a moribunda e a outra era a morte. Ponto final.

Os bem-te-vis cantam em regozijo pela chuva matinal... A terra encharcada, exultante, regurgita o frescor que o seu chão oferece às suas filhas da fauna e da flora. Uma pequena fresta foi aberta na janela da suíte que até ontem estava ocupada só pela baronesa. Agora, há pouco, vi uma enfermeira inspecionando aqueles aposentos... Mas, até agora, por aqui, não conheci ninguém que me lembrasse aqueles sábios médicos-mestres chineses. É tudo ocidental, osso e dente.

* * *

As enfermeiras que aqui trabalham parece terem sido selecionadas pelo seu elevado grau de delicadeza, equilíbrio e humor, naturalidade e solidariedade no trato com os doentes. Longas rampas e dependências hospitalares guarnecidas por guaritas burocráticas (chamadas “balcões”) e colunas de ferro interligadas por paredes de malhas quadriculadas de ferro tipo arame grosso, carrinhos-mesas quase sempre estacionados em meio a um silêncio absurdo, equipamentos com rodinhas nos pés, alarmes não, sinais eletrônicos luminosos e coloridos em paredes “inteligentes” indicando em quais quartos os pacientes chamam... Neste hospital, do fim do século XX, vejo tantas semelhanças com os cenários de academias de musculação (academias de fisiculturismo e ginástica) — ironias arquitetônicas? — e até semelhanças com os cenários de penitenciárias, açougues, conventos, recintos policiais-militares para torturas e asceses, purgações místicas, ideológicas e comportamentais. Às vezes também me lembram os cenários do filme O Ovo da Serpente, dirigido por Ingmar Bergman. Uma alegoria arquitetônica e imaginária ao autoritarismo médico-hospitalar? Uma transposição da estética modernista ao cotidiano agônico e supliciado dos doentes? Uma aplicação de injeção de arte na vida daqueles que, para continuarem vivendo, necessitam mais que tudo de beleza, graça e poesia (logo num mundo tão acelerado e conturbado?!...). Enquanto isto, prospera no teto da área de relax da suíte onde vivo uma voluptuosa e redonda caixa de marimbondos.

Reflexões hospitalares em meio ao período pré-Natalino de 1996

Quando criança sentia pavor diante de uma imagem-de-roca de Nosso Senhor dos Passos, lá da minha cidade-natal. Sua túnica de veludo roxo, seus cabelos longos e cacheados e o sangue escorrendo da coroa de espinhos apertada sobre a sua cabeça e sua fisionomia expressando dor e cansaço pelo peso da cruz que traz nas costas, além do fato desta imagem estar encerrada num nicho em forma de arco e porta de vidro... O Sr. Dos Passos ainda tinha uma testa longa e pálida, um olhar triste e, apertando a cintura da túnica roxa, uma grossa corda (ou cilício) como aqueles cordões grossos usados por diversas ordens missionárias de frades, freis e monges.

Temia tanto esta imagem que, para atestar a superação deste medo, ostento em meu escritório uma foto desta assombrosa criatura do meu reino fantasmático de criança.

Durante mais da metade do tempo que durou a chamada “guerra-fria” temi o comunismo, mas ao mesmo tempo escrevia para as embaixadas da URSS, dos países do Leste europeu e da China em busca de publicações sobre tais países comunistas. Para melhor superar o meu medo “guerra-fria” do comunismo, ainda lacerdista, aproximei-me de grupos de esquerda, li Marcuse e tornei-me comunista.

Em plena luta contra o autoritarismo de Direita, temendo processos golpistas da direita “linha-dura” percebi que igualmente perigoso era o autoritarismo de esquerda. O meu pavor diante do autoritarismo não me impediu de reconhecer a importância histórica das várias formas de “Modernização Autoritária” em marcha nos países mais pobres. Aliei a tônica libertária a postulados clássicos e pós-clássicos do liberalismo e vi cair os muros entre “direita” e “esquerda” erguidos durante a “guerra-fria”.

Exacerbei ilimitadamente minhas obsessões e fantasias eróticas enquanto lia fotonovelas de mártires católicas sacrificadas porque não admitiram “pecar” contra a castidade. Superando os delírios sádicos que me impuseram meus pais em suas diárias chicotadas, beliscões, puxões de orelhas e surras a mim aplicadas com correias de moinho-de-fubá (de borracha e aço) tornei-me um homossexual sadomasoquista paranóico, irreverente e não-catalogável. Odeio rótulos, inclusive as pechas e estigmas lançados aos homossexuais, direitistas, comunistas, grupos marginalizados, etc...

Com o advento do sinistro e amedrontante poder letal e fatal da AIDS, mudei-me de São Paulo com meu amigo Walter como se estivesse fugindo da hecatombe bíblica que se abatera sobre Sodoma e Gomorra. Colecionava pastas com recortes de jornais sobre a síndrome, olhava nas janelas dos ônibus que se dirigiam a São Paulo os passageiros corajosos que rumavam para a perigosa capital brasileira da AIDS. Mas, como nos processos anteriores, nos quais só vencia o medo aproximando-me, tornando-me mimeticamente algo semelhante ao espectro temido ou incorporando o objeto dos meus medos, continuei assumindo (mesmo que em menor proporção) riscos de contágio pelo HIV e, ainda neste caso, repetindo a dinâmica infantil medo&superação, assimilação ou processos miméticos acercando o objeto do meu medo... Tornei-me um imunodeprimido. Quando, como, com quem, não me perguntem. Nem eu sei. E de que adiantaria saber após o leite derramado?

Festa pré-Natalina do dia 16 de dezembro de 1996 na Unidade Especial de Tratamento de Doenças Infecciosas

Refrigerantes, bolos, balas, presentes, pães-de-queijo e um gordo Papai-Noel animaram a festa hospitalar dos pacientes de AIDS atendidos pelo Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Entidades da sociedade civil de apoio e prevenção desta doença estiveram presentes na promoção e organização do evento também animado por músicas difundidas por caixas de som. Só os funcionários da unidade, assistentes sociais e enfermeiros ou enfermeiras animaram-se e dançaram. Muitos doentes (dezenas) ficaram assentados nas cadeiras de espera para o atendimento ambulatorial, pouco conversaram entre si, poucos riam, ninguém participou das danças mas comeram e beberam e aceitaram os presentes oferecidos neste ato de suave e saudável espírito natalino. Embora lá estivessem vários mascarados, o evento não chegou a ser um baile de máscaras. Disseram-me que o cachorro-quente não estava lá tão quente mas, mesmo assim, estava delicioso. A assistente social voluntária Conceição, negra gorda e atarracada, vestia indumentárias usadas em algumas culturas tribais africanas.

(16/12/1996)

A Duquesa Olívia e as típicas reações de uma galinha choca

A duquesa Olívia chorou e gritou e verteu lágrimas de H2O e cloreto de sódio ao ser submetida a uma biópsia no fígado e, ainda, a uma endoscopia. Só aqueles que nunca sentiram tais dores diriam que a duquesa reage em seu ninho de enferma como uma galinha choca na defesa dos seus pintinhos.

As pombas cantam, no final da tarde, na árvore das corujas. Os grilos das moitas de capim e matos orquestram uma música de trinados rústicos e aleatoriamente singelos.

O conde Luiz Augusto antes de dormir disse-me que, durante o seu sono, desejaria ter sonhado com a “musa da enfermaria” Drª Dóris. Diante do fato de que tal conde tivera um período de abstinência alimentar prolongado por dois meses por causa das fortes dores e queimações desencadeadas por suas úlceras no esôfago, estômago e duodeno, lembrava-lhe, sempre que oportuno fosse, de que esquecesse as dores do passado e só se lembrasse do que não havia comido em tão longo e forçado jejum. Abatido e debilitado, muito magro, conde Luiz começou a tomar alimentos sólidos ontem e, hoje à tarde, por insistência dos familiares que lhe visitavam e, naturalmente, também pela minha, comeu vários pedaços de bolo de cenoura trazidos por sua condessa Lúcia, jantou bem, tomou o lanche noturno e dormiu com os anjos que o ajudariam a se encontrar, nas brumas do seus inconscientes labirintos e complexidades soníferas, a encantadora Drª Dóris.

A calma ou o esvaziamento pré-natalino da Enfermaria da UETDI se alastra com o silêncio e os poucos movimentos observáveis em seus corredores e dependências. A enfermeira Aline nos falou um pouco da sua boa vida, seus momentos em barzinhos e as reuniões com seus amigos, em sua casa, ao som de um bom teclado. Tudo parecia calmo menos a escalada da minha taxa de glicemia.

(18/12/96)

A árvore das corujas

Sonhava com um vendaval circulando e levantando cortinas de poeira e ciscos além de um forte cheiro de terra seca transtornando-me em um apartamento dos últimos andares de um alto edifício destas grandes metrópoles do nosso mundo globalizado, quando uma enfermeira veio colher o meu sangue (para vários exames que requeriam jejum do paciente). Logo em seguida verificou pulsação, pressão e temperatura. Fiz a higiene bucal matinal e tomei meus medicamentos. Por mais um jejum de uma hora pós-medicamentos pude chegar ao regrado desjejum lá pelas dez horas da manhã.

Para ver um pouco do mundo do qual estamos provisoriamente apartados fui para uma área para repouso, tomar ar e sol mas, que delícia!: chovia. Num resto de capoeira ainda resistiam três árvores bem em frente ao gradil que separava esta área (onde me sentei numa cadeira) e a paisagem que agora começo a descrever. Uma destas árvores era jovem e seus galhos dançavam com a chuva. Mas a maior delas abrigava um número indeterminado de pombas, bem-te-vis, assanhaços (?) e algumas corujas exultantes com a chuva. Cantavam na chuva aquelas ocultas e lacônicas rainhas da noite e, agora, para a minha agradável surpresa, poetisas dos dias chuvosos. A passarada fazia uma festa orquestrada pelos vaticínios das corujas.

Lá no fundo do cenário uma reta estrada asfaltada ligava Ribeirão Preto a Barrinha e Sertãozinho, cortando lavouras bonitas, campos sulcados e ainda em preparação para a semeadura.

(17/dezembro/1996)

O suplício de Jó e o inferno de Dante

Ele nasceu há quatro meses e já está em tratamento contra a AIDS no hospital-dia da Unidade Especial de Tratamento de Doenças Infecciosas do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo — campus de Ribeirão Preto-SP. Ele chora muito quando lhe aplicam os medicamentos. Sua mãe também luta contra a AIDS, está desempregada, está com o aluguel atrasado, cortaram a energia elétrica em sua casa e seu marido (pai do seu nenê de 4 meses) a trata com violência, está com AIDS e não quer se tratar. Esta “sagrada família” é de Barretos-SP.

Fábio tem 11 anos, é hemofílico e contraiu AIDS numa transfusão de sangue. Para minorar seu sofrimento sua tia levou um aparelho de televisão para a suíte que ocupa (com mais um) na UETDI. Disseram-me que Fábio atingiu tão precocemente a maturidade que aqueles que com ele conversam se sentem conversando com um adulto.

(19 de dezembro de 1996)

A história de Eugênio

Ontem à noite, em minhas animadas conversas com o conde Luiz Augusto (ex-heterossexual “galinha” com experiências com drogas) — conversa vai, conversa vem — lembrei e comentei a história de Eugênio, filho da tia paterna Anita Tolêdo e do Júlio, moradores da fazenda do Quinca Lianô, na localidade do Córrego dos Almeidas, entre os municípios de Piau e Tabuleiro (Minas Gerais). Desde o seu nascimento até as vésperas do seu casamento Eugênio dormia no quarto dos seus pais num pequeno berço (útero gradeado pós-parto). Após os 12 anos o berço tornara-se pequeno demais para o seu corpo mas Eugênio emborcava-se como um feto e naquele exíguo leito continuou dormindo ao lado de sua Jocasta e do seu Laio... Até que uma mulher separou Eugênio de sua sagrada família, levando-o do paraíso ao mundo da sexualidade “civilizada” e consentida: a sexualidade da reprodução que garante a continuidade da história demográfica, social, econômica, cultural e política.

Quem quer casar com a dona Baratinha?

Um pequeno coleóptero, com formas alongadas como a de uma baratinha, anda desnorteado pelo lustroso e limpo corredor da enfermaria, nas imediações da mesinha onde as médicas controlam os dados que vão entrando nesta instância da UETDI. Lá embaixo, no ambulatório, um paciente tosse convulsivamente de forma semelhante às tosses de vaqueiros grosseiros do sertão.

(19.dezembro.1996)

Tarde feliz

Dia 21 de dezembro de 1996, 16 horas, estou tão feliz!... Mamãe, minha irmã Margarete e meu irmão Carlos Antonio viajam quase mil quilômetros de Tabuleiro-MG a Ribeirão Preto-SP para passarem comigo o meu 45º aniversário. Walter e Aragão também estão ótimos e felizes com a minha volta para casa e com as visitas que já nesta noite chegarão. Hoje à noite chegam meus familiares, amanhã dia 22 — a data em que nasci — virão os amigos. Agora mesmo, lá do alpendre, eu e Walter víamos uma fita de vídeo-“colagem” (feita ou editada pelo meu irmão Marquinho) com “flashes” de minhas mais recentes visitas aos meus familiares em Teresópolis-RJ, Rio Pomba-MG e Tabuleiro-MG. Rimos muito e em vários momentos achei tudo tão bonito, tudo tão bem: é tudo uma questão do ângulo que escolhemos para ver o mundo. O meu sobrinho Rafael dançando com o meu irmão caçula (cego após a extirpação de um tumor maligno no cérebro), o Marcus Vinicius. Ri e gostei muito não só dos dois mas também da vovó Guiomar cantando hinos à Virgem Maria, da vovó Argelina pondo a língua pra fora e, lógico, o Narciso aqui adorou se ver no vídeo dançando músicas interpretadas por Caetano Veloso em seu CD Fina Estampa.

(21/dezembro — 1996)

A AIDS e a nossa “Civilização”

Desde o início da história da civilização ocidental esteve em curso um embate entre dois estilos de ser humano: um jeito rústico, selvagem e natural — sincero e espontâneo — e uma coleção de artifícios, retóricas e formalismos esteticistas e pomposos, solenes e convencionais. Durante este duelo histórico modas e concepções de elegância e beleza foram sendo engendradas pelas tendências efêmeras e passageiras das épocas e gerações e das simbologias que melhor representassem espiritualmente o mundo e as coisas daquelas gentes. No conflito entre a natureza animal e as máscaras artificiosas e humanas interveio uma vez mais a peste. Uma peste que desmonta não só o corpo humano (transformando-o num esqueleto vivo escuro e pálido em diversas partes) explodindo a elegância da perfidez de gays, drogados e outros tipos dramáticos e pomposos de dandismos no fim do século XX. Aqueles dândis que no século XIX abandonavam-se preguiçosamente à brisa dos passeios em suas carruagens, hoje circulam com olhares humilhados de supliciados em suas cadeiras-de-roda.

O apavorante emagrecimento dos imunodeprimidos, numa guerra histórica entre os vírus da natureza e as buscas de prazer e de reconhecimento estético, erótico, político, intelectual e vital para o indivíduo, constitui o mais profundo e radical desnudamento do humano na pós-Modernidade. “Figuris terminum, oh res mirabilis, pauper, servus et humilis...” A maior agressão natural à vida do Homo Estheticus. “A coragem e o espírito de colher a nobreza em toda a parte, mesmo na lama... Ora vemos se destacar sobre o fundo de uma atmosfera onde o álcool e o tabaco misturam seus vapores, a magreza inflamada da tísica ou as curvas da adiposidade, essa hedionda saúde do ócio... O olhar do demônio emboscado nas trevas... A beleza particular do Mal, o belo no horrível”. (Charles Baudelaire)

O vampirismo (postura mítica secular) na anônima sociedade de massa (ninguém que esteja com o vampiro correndo em suas veias traz estrela na testa) torna o bailado erótico deste fim de milênio uma pérfida, sinistra e solene dança ou baile dos vampiros (como no filme de Roman Polanski). A confluência histórica dos rituais ao deus Baco/Dioniso com os expedientes sinistros e malditos dos atores que circulavam pelos labirínticos corredores das Cortes européias; a nudez nas casas de banhos da Roma Antiga, de New York, San Francisco, Milão ou São Paulo; o amor que eliminou a Dama das Camélias; Mephisto decretando a efemeridade das relações eventuais; a promiscuidade condenada pelos moralistas hipócritas (os verdadeiros autores ou deflagradores dos processos afetivos que nos levam a tal estágio de exposição do nosso corpo, do nosso coração e dos nossos órgãos genitais ao desconhecido, ao destino irreversível): todos estes míticos processos confluíram para a mais patética tragédia humana nestes derradeiros anos novecentistas.


 

A música retorcente e requebrante que vem do carrinho do pipoqueiro.

 

No desespero da sede, o último caudilho dos Pampas, engenheiro Leonel de Moura Brizola esqueceu-se de que, em 1950, o seu patrono político Getúlio Dorneles Vargas se elegia presidente da República com o apoio da máquina administrativa do governo federal, à frente do qual estava o ex-ministro da Guerra de Getúlio, o marechal Eurico Gaspar Dutra. (...) Outro que anda com a memória curta ou apostando na precária memória dos brasileiros é o senador bahiano Antonio Carlos Magalhães. Vocês se lembram de que nas articulações políticas dos principais líderes do PDS para impedirem a vitória de Paulo Maluf na convenção nacional do partido governista de então, o senador Antonio Carlos Magalhães chamou o sr. Paulo Maluf de corrupto em Outubro ou Novembro de 1984? E, no entanto, agora o líder ou o Leão da Bahia vem pedir os votos dos paulistas para a candidatura de Paulo Maluf. Dá para entender este lance, no qual o líder pefelista que vem marcando sua trajetória política com um perfil de político moralista venha a apoiar alguém que um dia chamou de corrupto. Estranho, não? (...) E por falar no candidato Paulo Maluf dos louváveis Cingapuras, vocês se lembram que durante a gestão da prefeita Erundina foram implodidos mais de seis conjuntos habitacionais construídos numa das administrações encabeçadas por Paulo Maluf e que ofereciam riscos aos seus moradores ou aos que passassem por perto porque suas paredes continham muito pó de gesso?

Não me esqueci do quanto para uns foi divertido e, para outros, era humilhante: moços e meninos entrando há 40 anos em minha cidade natal carregando montes de folhas secas de bananeiras do morro do Anjo para a venda na qual matariam porco na próxima madrugada. A molecada ia atrás daquele monte de folhas secas de bananeiras andante gritando: — “Ao bicho folharada!.....Ao bicho folharada!...” E o bicho folharada rumava para o açougue das almas de Abel Silva, em Tabuleiro — Minas Gerais.

Mas, além disto, até hoje, como almas penadas, czares, czarinas, adoráveis príncipes e princesas russas, feios membros do Politiburo Soviético (hoje eu sei que os comunistas não comiam criancinhas mas que eles metiam medo nas criancinhas ah isto eles metiam, porque eles eram feios e fantasmagóricos homens carecas ou de grossas pestanas e muito carrancudos, meu Deus!...) se arrastam em procissões que se deslocam na praça do palácio do czar, em São Petersburgo, indo do Hermitage ao Grand Hotel Europe até os túmulos de Dostoievski, Sergei Paradjanov, Leon Tolstoi, Andrei Tarkovski, Catarina a Grande,Nicolau II e Stalin. Sob uma prateada e amedrontante lua cheia se refletindo nos espelhos palacianos daquela monumental porta russa para o Ocidente!...

No meio dos seus cheiros sapecas de chulé, peido ou de genitais mal lavados, os seres humanos se interessam muito por detalhes de taras dos tarados, das loucuras dos maníacos apocalípticos, por dramas do tipo churrasquinho de mãe ou Coração Materno de Vicente Celestino, melodramas moralistas das operetas trash dos programas mundo-cão da tv, escândalos sexuais de vizinhos e até na White House, detetives parlamentares da corrupção nacional procurando sonsamente mortas de Brasília em shoppings de New York, a luta contra o crime e as drogas, etc...mas, até hoje, prostitutas e homossexuais são barbaramente assassinados e suas famílias, com vergonha, muitas vezes nem querem comentar o assunto e acaba ficando tudo por isto mesmo e os assassinos,soltos, continuam andando livres pelas ruas até que derramem de novo no asfalto o sangue alheio, eliminando vidas. É uma podridão só.

Monsueto Menezes e Arnaldo Passos, na letra da música Mora na filosofia, cantaram: “Eu vou lhe dar a decisão.... botei na balança e você não pesou... botei na peneira e você não passou... mora.. na filosofia, prá que rimar amor e dor? mora na filosofia, prá que rimar amor e dor? .... Se o seu corpo ficasse marcado por lábios ou mãos carinhosos eu saberia, mulher, a quantos você pertencia!.. “Um hino de contestação ao sentimento de culpa... linda canção reatualizada pela interpretação feita nos anos 70 por Caetano Veloso!...

E, em 1998, no ano internacional da Dança, comemoramos o centenário de Gershwin, autor de Rapshody in Blue e de Um Americano em Paris. Segundo Ruy Castro, o nosso Gershwin foi Tom Jobim. Com Villa Lobos, Zequinha de Abreu, Ernesto Nazaré, Luiz Gonzaga, Lupiscínio Rodrigues, Ary Barroso, Lamartine Babo, Pixinguinha, Tom Jobim e Cartola nossa música erudita e profana ganhou foros de universalidade que ultrapassam os limites do chamado Primeiro Mundo, abrindo as portas orientais e ocidentais para Gal, Ellis, Betânia, Caetano, Milton, Gil, Naná Vasconcellos, Sérgio Mendes, Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal e Sivuca e outros... muitos outros de merecidas celebridades.

O excitante hálito salgado da pipoca e o ácido rock de circo assanham a molecada nas tardinhas do passado, com banho tomado, cabelos penteados pela mamãe ... e no céu uma assustadora e misteriosa lua cheia!... Detesto a carinha desonesta da Sandrinha da novela das oito, Torre de Babel!.. Mas, vejam bem, eu nem sou filho do César Toledo... Nossos sobrenomes são meras coincidências... O céu continua azul cinzento (de tantas queimadas) e ventanias se desencadeiam para todos os lados das rosas dos ventos, ventos sem sequências lineares, ventos caóticos e não — aristotélicos, ventos desconexos, ventos de fogo de palha, muitos ventos e nenhuma chuva para esverdear o arco triunfal da ressequida Primavera de 1998!... Jogos Florais... Ainda existem Jogos Florais?


 

A palidez da dignidade em diálogos com os céus transtemporais

 

Pier Paolo Pasolini, artista, cineasta e intelectual italiano assassinado por um adolescente há quase 25 anos na praia de Óstia, está entre as personalidades que mais marcaram a minha trajetória pessoal neste mundo. Principalmente por sua reivindicação do direito ao escândalo. “O desejo é um criador de realidade”, afirma a poeta mexicana Coral Bracho, aquela que me levou a descobrir cápsulas de orquídeas em minhas rotinas oníricas. E o hálito do seu toque, caro(a) leitor(a)!.. “Preciso estar escuro para eu poder dormir em paz mas eu tenho uma luz que não sei como apagar. Lua cheia na varanda. Rio da mente a deslizar... Ai! Estrelas, me respondam como eu posso descansar?!!...São Paulo! Não há saídas: só ruas, viadutos e avenidas!.. “(Itamar Assumpção em suas músicas Sexto sentido e Não há saídas).”Pai, afasta de mim este cálice (cale-se!) de vinho tinto (e de sangue)!..” (Chico Buarque de Hollanda). Antes de chegar ao Horto das Oliveiras devolvi ao mundo todo o azeite de oliva que dele suguei em minha passada engorda. “A poesia sopra onde quer.” (Murilo Mendes, o mozartiano). Abaixo as classificações didáticas!.. Na devoração da vida sensível arde a utopia da eternidade. (...) “A terra inquieta abate a tiro o silêncio em volta. As coisas (sempre as coisas) se entregam sem pausa à ciranda dos barulhos.” (Fernando Paixão). Os barulhos de Guarulhos me sugerem gorjeios de gorgulhos e até arrulhos ninantes para o meu eu ruminante. Águas que fluem da memória do nada encaminham-se para os orvalhados pastos celestiais, onde reinam barbudos pastores com pés vermelhos e fálicos (quase queimados por vítreos gravetos de geadas matinais). Estes penhascos ou fiordes sertanejos ainda ganharão uma igreja de Nossa Senhora da Penha e, ao seu redor, se arrastarão lagartos verdes com suas línguas vermelhas, a se locomoverem como relâmpagos chicoteantes. Você não está voando com o espírito tranqüilo. Nem parece ser um devoto de Nossa Senhora de Monteserrat!.. Será? Ou o excesso de cera em seus ouvidos impede-o de ouvir os gritos daqueles que, contaminados pelo vírus HIV, tiveram, precocemente, suas mortes sociais decretadas pelo Santo Ofício da Excomunhão? Humilhados e desacreditados, sem horizontes profissionais, são abafados e executados pelo clamor preconceituoso dos hipócritas, seres abjetos que vivem morrendo com suas bocas fétidas a atraírem moscas antes da hora. Invista na vida, desmascare os engenhos moralistas da morte, apoie o Grupo de Apoio e Prevenção da AIDS de Ribeirão Preto-SP!... A solidão da discriminação levou muitos a assumirem comportamentos de risco e assim se contaminarem por obra e graça do isolamento (gueto) ao qual foram circunscritos. A ignorância social agrava e amplia o raio de extermínio da AIDS. Nossas escolas reproduzem estigmas e reforçam discriminações. Nossos médicos submetem os doentes, obrigando-os a se conformarem aos estatutos da passividade de paciente.. E o Bug do milênio e a possibilidade de um suicídio da espécie humana em todo o planeta não te preocupam? “Tudo é incerto, derradeiro e disperso, nada é inteiro. Ninguém conhece que alma tem.” (Fernando Pessoa). Os luminosos dos postos de gasolina, motéis, restaurantes e fábricas que margeiam a rodovia Anhangüera me suscitam sensações pós-modernas. Corre-se. Multiplicam-se colisões e envenenantes ou cínicas irrisões estonteantes e desesperantes. A crise dos valores manifesta-se principalmente entre os educadores que só pensam em seus carros, apartamentos e carros e nada lêem e nem se preocupam com a qualidade crítica dos seus afazeres escolares. As classificações pseudo-científicas e didáticas matam ou sufocam o espírito indagador, curioso e especulativo. Não se ensina como se constroi conceitos, mas, sim, mais comodamente, se tenta impor conceitos prontos e questionáveis. As escolas deixaram de ser casas de idéias e passaram a ser medíocres panacéias de uma Paulicéia enfarada de tanta goiabada com fondue e cheiro de pneu Pirelli. Mexericos e cochichos.


 

Enjoado de tanta lasanha, ouço Duke Ellington num fim de tarde de domingo

 

(..) “Os vagalumes seguiram tranqüilos o préstito das estrelas numa noite que tinha medo de si mesma.” (Zanoto- Correio do Sul — Diversos Caminhos — Varginha-MG.

O pânico diante do desamparo do vazio se sucede à mais profunda desilusão pela inexistência de garantias e da impossibilidade de certezas. Uma conseqüência da invasão de excitações da libido não devidamente representadas e correspondidas num plano mental? Sei lá... Para Lacan, este desamparo, pós-impotência psicomotora do bebê e no ulterior desenvolvimento de suas estruturas subjetivas, constitui um horizonte insuperável da vida psíquica. Tomando-se aí a vida psíquica, em grande parte, como um recheio de linguagem para os nossos seres. Tal desamparo engendra uma dependência absoluta da criança em relação aos seus pais. A sensação de uma falta fundamental que nenhum cuidado pode suprir, uma perda ou uma separação irreversível, o mais pesaroso e antigo desmame de um ser humano ou um drama que nenhum cuidado materno evitaria ou compensaria. Uma brecha impossível de ser apagada. A desistência em buscar objeto de importância vital e, irreversivelmente, perdido. Intratável e irremediável falta!.. Espelhar-se no descontínuo ou no Outro, a inexperiência infantil de um corpo unificado, a terrível sensação de ruptura exposta pós-parto, do ventre materno expulsa, tudo isso deixa visível a constituição imaginária do eu. Imagem do eu formada sobre a do/ou em relação ao Outro. Diálogo com o espelho que torna o indivíduo um ser para o Outro. Desestabilizada a imagem do eu, um desabamento psíquico se torna muito provável. Quando não mais traz a satisfação aguardada a mãe se torna um ser à parte, torna-se “Real”. E a criança, desmamada e desesperada, percebe que nada pode fazer. Em quem incide a falta tudo passa a ser visto como dádiva ou negação de dádivas. Nas culturas do interior da África oferecer dádivas a alguém é humilhá-la reconhecendo-a em apenas em suas carências. Dádivas enquanto símbolos de uma ausência materializada nos pedidos de amor. A realidade brutal da independência materna em relação aos desejos de um filho é insuportável para qualquer criança. D’aí a necessidade transicional de zonas de ilusão, oásis restauradores da vida desidratada e esquálida sobrevivente nos desertos da rusticidade dos afetos primários e frágeis do ser humano. Consumindo obsessivamente o objeto da necessidade quase morremos de exaustão niilista. Lasanha é carne, leite e trigo com água. E sal. Quando a criança descobre ou percebe que perdeu o seu único poder em relação a sua mãe (o de lhe conferir ou não/ou o de lhe reconhecer ou não o papel de mãe a quem de tudo e de quem tanto depende) ela se recusa a comer, numa atitude de confronto e de contestação da onipotência de uma mãe que invade suas vísceras pelos alimentos que lhe cozinhou e lhe trouxe. A mãe se vinga na sua criança, transformando-a em objeto da realização imaginária dos seus desejos. Meu cachorro ancião materializa meu desejo de imortalidade e longevidade. E ele sofre porque foi convertido impotentemente no objeto incontornável da realização dos meus desejos. Lacan também viu o desamparo que desde cedo sentimos como decorrência da opacidade do desejo do Outro. Em Totem e Tabu, livro escrito em 1912, Sigmund Freud afirmava: “O cadáver, o recém nascido e a mulher atraem por sua impotência em defender-se o indivíduo que já atingiu a maturidade e que vê neles uma fonte de novos gozos. Eis o motivo pelo qual tais indivíduos e tais estados são tabus: não convém favorecer, encorajar, a tentação.” A criança protegida pela civilização, sacralizada entre os hebreus, cristãos e indígenas brasileiros, protegida ou preservada com a criação de um tabu. A criança como um ser preservado perante os desejos excessivamente vorazes do Outro!... Defendendo-se dos imprevisíveis desejos obscuros do Outro superpotente, a criança inventa seus objetos fóbicos (proteções contra invasões de seus próprios desejos) e veste uma máscara de fisionomia desconhecida e sem conhecer sua própria aparência apresenta-se ao Outro para a continuidade dos sinistros jogos da vida, tão bem filmados por Ingmar Bergman. Em estado de abandono diante do desconhecido desejo do Outro onipotente, instala-se em nós o estado da angústia, pensava Jacques Lacan. Para ter a ilusão da superação desta angústia e tentando vencer seu pânico diante do irremediável desamparo, o homem usa e constrói o seu eu para escudar-se nele de todas as vicissitudes desencadeadas no intermezzo entre os fluxos concomitantes de sua vida e os de sua própria morte. Defende-se com a angústia contra o terror. O eu, enquanto sede da angústia (conforme sugestão de Freud) e instância imaginária, referencia e barra o desejo do Outro. A angústia é o sinal do desejo do outro. Confrontar-se, face a face, com o próprio desamparo atravessando o coração do eu com a flecha apontada na direção curativa do “além-eu”, onde não mais esperamos ajuda de ninguém. Relacionar-se consigo mesmo é sua própria morte. Não sou um jogado-no-mundo. A angústia é uma das formas de revelação do nada. A angústia humana incide sobre um objeto que escapa a toda simbolização e que se afirma como causa motora do desejo. “A organização simbólica do mundo repousa, portanto, sobre uma base de desamparo.” — concluiu o psicanalista lacaniano Mário Eduardo Costa Pereira, professor da UNICAMP, em seu útil e esclarecedor artigo intitulado O pânico e os fins da Psicanálise, publicado em meados de 1998 pela revista de Psicanálise Percurso.
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Em outros extremos, confrontados com a castração de nossas mães, o afeto despertado é o do horror. Mas, mais uma vez citando Mário Eduardo Costa Pereira, “nada e sobretudo ninguém pode garantir de forma absoluta e imutável os alicerces simbólicos do mundo.” É este desamparo que escoima a própria linguagem. Ou o vazio do desamparo nos leva a suprí-lo com linguagens relacionadas aos sujeitos e objetos dos nossos mundanos e humanos jogos de desejos. Nossas mães não nos livraram deste desamparo mas nos deu uma básica palavra de mãe, autoridade guardiã dos significantes. A portadora dos conteúdos significativos. Insultar a sua mãe é insultar o sentido da sua própria vida? Eu me torno minha própria muralha contra o meu pânico diante do meu irremediável desamparo. Buscar-me inteiro, recolhendo os pedaços do meu ser no quebra-cabeça do desamparo de cada um de nós, desfecho a flecha da cura do meu pânico Maior: no jardim das Oliveiras, iluminado por um atemporal luar, em minha orfandade cósmica, encaro a minha Morte que, aos poucos, irá se consumando. Meu eu é o meu sintoma, aduziu Freud. Meu desamparo e razão do meu pânico é a minha fragmentação e desintegração em partes e partículas independentes e não integradas. Meu pânico dá início ao processo no qual eu vou me reconstruindo, me reintegrando e chegando além do meu eu, ao lugar ou ao estado no qual não sentirei mais a necessidade de pedir ajuda a ninguém. Fazer do desamparo primordial um início de viagens criativas e de auto-construção poética, estética e ontológica de uma partícula notável e brilhante no universo humano. Intensificar e aprofundar o pouco de liberdade que temos para amamentar nossos inesgotáveis desejos, ninando nossa transitoriedade desamparada e aconchegando-nos em nosso berço universal. O Real é a configuração mais concreta deste desamparo irretocável.


 

Banquetes funerários e Missas para Defuntos numa Cultura de Luto e Luxo, perdas e prazeres

 

Nos últimos cinqüenta anos, nossas comoções fúnebres mobilizaram ou perplexaram amplas massas populares na derrota da seleção brasileira de futebol na partida final da Copa do Mundo de 1950 em pleno Maracanã (templo maior do futebol brasileiro), nos enterros de Carmen Miranda, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, das crianças mortas no incêndio do Gran — Circus Norte — Americano em Niterói-RJ. (em 1962, se não me engano), do cantor Francisco Alves em 1951, de Ayrton Senna em 1994, de Ellis Regina em 1982, do cantor Leandro agora em Junho de 1998, do messiânico Frei Damião no Recife, da Irmã Dulce em Salvador, da Mãe Menininha do Gantois, do deputado Luiz Eduardo Magalhães, do médium Zé Arigó em 1971 em Congonhas do Campo -M.G., nos remetendo a reflexões sobre nossas sensibilidades e matrizes barrocas.

As pompas fúnebres de príncipes do Estado e da Igreja, o culto barroco aos santos mártires, a reverência totêmica às relíquias, assim como os soturnos e assombrantes cortejos funerários de figuras da vida cortesã — tudo isto deve ter impressionado ou inspirado as fantasias da tuberculosa moribunda da peça teatral A Falecida de Nelson Rodrigues ou Oswald de Andrade ao escrever e definir o perfil emocional dos personagens de sua peça teatral A Morta, montada na Assembéia Legislativa do Rio Grande do Sul pelo grupo da Ana Maria Taborda, no fim dos anos 70.

Conheço muitas pessoas que gostam de ir em cemitérios, onde se impressionam com fotos de mortos, ao mesmo tempo que calculam se venceram ou não as idades dos mortos, informadas em suas lápides sepulcrais. As alamedas de túmulos e jazigos de mármore ou populares azulejos, com suas cantadas flores de plástico, crucifixos, anjos acolhedores e misericordiosos Corações de Jesús formam autênticas galerias de arte tumular, reveladoras das nossas estruturas sociais.

Na sensibilidade e nas alegorias barrocas sobre a morte (como o velho Saturno com sua capa de veludo e punhos rendados roxos e sua foice de prata, a ampulheta (tão incorporada em nossas navegações pelos labirintos e nichos das linguagens da Informática e da Internet), caveiras e murchos botões de rosas), nas missas de defuntos e nas sepulturas abertas nos assoalhos e nas paredes das igrejas, a morte consumava uma paradoxal e inevitável tragédia: a aliança entre Eros e Tanathos. Comendo e escondendo pedaços de rapadura debaixo do travesseiro, minha bisavó Ritinha morreu numa de suas crises de diabetes.

Conheço alguns relatos de suntuosas e graves solenidades fúnebres ocorridas, entre os séculos XVII e XVIII, em Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Belém do Grão — Pará e outras vilas do Brasil Colonial. Relatos que mereceram edições sob a forma de livretos ou extensas crônicas sobre tais eventos pomposos e fúnebres. O grau de luxo no luto é uma forma social de conformação e consumação de uma perda irreparável e traumática. Destes impressos e avisos fúnebres seiscentistas e setecentistas se originaram os santinhos com efígies dos mortos e distribuídos em missas de sétimo dia.

Os banquetes fúnebres em velórios de pobres e ricos nos mostram que a piedade e a prodigalidade barrocas passavam ao largo dos atritos entre classes sociais. São eventos com participação policlassista.

A literatura cartorial dos testamentos de pessoas poderosas e ricas eram verdadeiros exercícios de humildade, fraternidade e dadivosidade, afirmação de virtudes, honestidade perante credores e prévio pagamentos de missas e rezas que por suas almas viessem a ser proferidas ou ritualizadas. São Miguel, ministro da Guerra de alguns Estados e Exércitos Absolutistas, ao lado de São Jorge e de São Tiago, teve acrescido ao seu nome o atributo de protetor e bom encaminhador de almas.

Desde a minha infância ouvia a Marcha Fúnebre de Frederic Chopin nos avisos de mortes e féretros emitidos pelo auto falante da Casa Paroquial de Tabuleiro, cidade mineira em que nascí e onde terei sepultura. Os dobres de sinos durante o deslocamento das procissões para os mortos são inconfundíveis e melancólicos. A caminhonete negra que trouxe de Juiz de Fora o cadáver do meu bisavô Cícero Antonio Dutra para ter sepultura em Tabuleiro tinha, em sua fantasmagórica carroceria, além do caixão, seis colunas salomônicas pretas com frisos dourados e, dos seus capitéis, plumas roxas, salpicadas de purpurina, ejectavam — se esvoaçantes.

Embora nossa barroca visão sobre a morte esteja marcando profundamente a história dos eventos fúnebres no Brasil contemporâneo, o fim da vida é tabu ou tema para códigos ou doutrinas religiosas e postulados psicanalíticos. O filme que Glauber Rocha fez durante o velório do pintor modernista Dí Cavalcante foi interditado pelos seus familiares que, judicialmente, reivindicavam a morte como instância do íntimo e privado. Isto ocorrendo num mundo no qual se morre cada vez mais longe de casa e dos parentes e quando os velórios se dão em espaços não mais particulares mas comunitários, após a extinção da vida em frios e estranhos hospitais. O crítico mineiro e carioca Antonio Carlos Villaça, por ocasião da morte do seu mestre Alceu de amoroso Lima, teve assunto para escrever seu livro O nariz do defunto. Impressionante livro que se beneficiou esteticamente dos 3 momentos mais patéticos da literatura clássica universal sobre a morte nos últimos cem anos, quais sejam, Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, a morte de Esperança durante uma benção do Santíssimo sacramento no fim da novela Um coração singelo de Gustave Flaubert e a inesquecível novela de Leon Tolstoi, A morte de Ivan Illitch.

Na primeira metade do século XIX, Salvador sublevou-se contra as autoridades médicas e contra o poder público municipal que haviam proibido enterros nas igrejas e que acabavam de impor os cemitérios como único repouso legal para os falecidos. E, mais ou menos um século depois desta rebelião bahiana conhecida como Cemiterada, em Piumhí, no sudoeste mineiro, idêntica resistência se manifestava na população que teimava em ter seus mortos sepultados atrás de uma igreja. as autoridades locais justificaram a mudança do cemitério para lugar afastado para evitar maus cheiros que poderiam fazer alastrar pestes como a que nos acometeu no início do século XX (gripe espanhola, malária e febre amarela). Agora, por conta das nossas fantasias e zelos fúnebres, nossas máscaras mortuárias e nossas miméticas e escamoteantes fugas e estrebuchos diante da dama inevitável, fracassa a lei da pretensa doação de órgãos.

Coluna Eu bem te ví na rua
(para o jornal Bonfim Notícias)

Brilha a estrela do maestro Roberto Minczuk da Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto-SP.

Mudou-se para a nossa calorenta Ribeirão Preto a serrana e serena cronista Teresinha Peron Bueno de Santa Rita do Passa Quatro.

Ao telefone, ela se queixou comigo do calor que se abate sobre os que vivem no centro da outrora São Sebastião do Ribeirão Preto, hoje ilhada por um imenso mar de canaviais.

Estou querendo reunir pessoas interessadas em fundar e em fazer funcionar um Centro de Estudos sobre os Imaginários Barrocos, Neo-barrocos e Pós-Moderno. Para tanto, já disponho de biblioteca especializada além de hemeroteca particular, videoteca, fototeca e discoteca. E dezenas de artigos publicados sobre os temas acima explicitados e já encadernados.

Como cidadão favorável à reeleição de Fernando Henrique Cardoso, participei de uma recepção ao firme e resoluto Ministro da Educação, Dr. Paulo Renato de Souza, ex-Reitor da Universidade Estadual de Campinas.

Até a próxima semana!.. Esgotei, por hoje, o meu repertório e o meu latinório. Abraços do José Luiz Dutra de Toledo.


 

Algumas pessoas do século XIX por mim conhecidas.

 

Não vi Nietzche, nem Wagner, muito menos Gustave Flaubert ou Guy de Maupassant, não os vi mas os li, os ouvi. E, além do mais, vivi em vários pontos do Brasil e, assim, pude conhecer várias pessoas nascidas no século dezenove (entre 1801 e 1900) e que morreram entre os seus 85 e 105 anos de vida. Os conheci muito mais na condição de sobreviventes, de resistentes sem causa. Foram vivendo até se esquecerem de morrer e até virarem pessoas deslocadas dos contextos nos quais ainda existiam vivos mas, muitas vezes, tratados como fantasmas e vozes de outro século, do passado. Quando o meu século expira e, daqui a alguns anos posso ser tratado como um homem do século passado, começo a rever estes sobreviventes d’outros tempos, movido pelo instinto da preservação da espécie pelo exercício da memória, numa necessidade não -teleológica de estabelecer elos e perceber texturas e camadas e recolar fragmentos com os quais venho polindo ou erodindo a minha história e a minha aura-alma.

É por isso que ouso inverter os papéis e fotografo, na úmida sombra de mangueiras do seu quintal (onde floresciam inesquecíveis lírios brancos), o fotógrafo Aliaúdes Dias de Oliveira em seu atellier fotográfico e os retratos impressionantes de seus oitocentistas genitores.

Meu bisavô Cícero Antonio Dutra nasceu em 1866 e o meu bisavô paterno Joaquim Ribeiro de Toledo um pouco depois. Os conheci já com mais de 85 anos de idade. Conheci as bisavós do lado materno Brígida Azevedo Neto e Rita Gonçalves Dutra, já com seus 90 ou quase isto. Os conheci já doentes, quase moribundos. Deles nada sei falar além do impacto do contraste entre a minha infância e as suas alquebradas velhices.

Conheci ainda a dona Maricota, mãe da ‘vovó Lilica’, parteira que auxiliou no meu parto, há exatos 47 anos. Parece que nesta hora vi uma lágrima escorrendo da lâmpada acesa que iluminou o meu nascimento. Sem maiores Iluminismos, dona Maricota tinha duas camas com suportes, pés e cabeceiras adornados com volutas de ferro. Na casa da dona Maricota, mais exatamente na porta da sua cozinha, uma cisterna de água pura e fresca guarnecida por pedras escurecidas pela umidade e pelos tempos me foi apresentada como um lugar perigoso, onde eu poderia me afogar. Como a água da vida poderia representar algum risco à minha existência, meu Deus? — indagava-me infantilmente. Ali também abri uma arca repleta de revistas do início do século XX, com aquelas fotos azuladas e marrons de crimes do passado, da Intentona Comunista de 1935 (usada e abusada no proselitismo das idéias integralistas por seus filhos milicianos no exército fascista de Plínio Salgado). As colchas de retalhos, travessas para cabelos algodoados e seus serenos suspiros nutririam a minha presente veneração pelos anciãos. E anciãs, claro. Minhas andanças e vivências em outras regiões não obliterariam as lembranças que reavivo freqüentemente desta gente do século passado. Pessoal com o qual converso de vez em quando, até hoje, mesmo depois de mortos fisicamente, mas até hoje vivinhos lá dentro da minha memória.

Minha riqueza e repertório são inesgotáveis, tenho mais conhecidos do século XIX, conterrâneos, tais como a negra Marcolina, o trêmulo benzedor João Pimenta, a mendiga de nobre linhagem Maria Cristina (que a molecada chamava aos berros: — Ô Maria Botinaaa!!!!...), o vigoroso e vetusto maestro negro Delounay Faustino da Rocha, o suave sr. Antunim Neves e sua dona Olívia (que parecia uma italiana sardenta)... e muito mais gente que aos poucos foi se deslocando para um penumbroso limbo de esquecidos.

No sudoeste de Minas Gerais, em Piumhi, conheci dona Antonia, morta há poucos dias com 105 anos e que, para alguns moradores desta cidade sertaneja de benzedeiras e rezadores, exercia mágicos poderes sobrenaturais. Ingenuamente lhe pedi receita de longevidade e ela apenas me disse que tudo é uma questão de comer laranjas junto com as principais refeições e ter muita paciência. Mas, segundo outros, dona Antonia não foi tão calma como pensou ser.

Em 1969, ou em 1970, na condição de repórter da Gazeta Comercial, jornal de Juiz de Fora, publicado por Theo Sobrinho e Paulo Lenz (hoje extinto), conheci no Museu Mariano Procópio o brigadeiro Eduardo Gomes, que lá ia para inaugurar uma exposição sobre os dezoito do Forte de Copacabana (rebelião militar ocorrida em 1922) e entre os quais se incluía e se destacava, junto com Juarez Távora, como líder. Na mesma condição de repórter do mesmo jornal, na mesma época, assisti o famoso ator Procópio Ferreira encenando Deus lhe pague e, antes de vir ao palco para o seu show de tardio teatro rebolado intitulado Tem banana na banda, Leila Diniz dar a sua receita de homem ideal para uma ingênua repórter do Diário Mercantil dos Diários Associados:”  que tenha pau e cuca.” Leila não é do século passado, claro, mas aqui a cito como famoso ícone da história cultural carioca nesse expirante século vinte. Tive a feliz oportunidade de ser fotografado ao seu lado no camarim, durante a coletiva na qual não ousei lhe perguntar nada.

O crítico Stephen Greenblatt, ao escrever e publicar em 1988, fundando a tendência teórica conhecida como New Historicism, seu super-citado livro Shakespearean negotiations: the circulation of social energy in Renaissance England, alardeou a sua vontade de falar com os mortos. O New Historicism vê a história como um amplíssimo e abrangente discurso que inclui todos os tipos de ocorrências físicas e espirituais, políticas, econômicas, sociais e culturais, artísticas e literárias no interior de uma pequena ou grande comunidade e as manifestações plurais de suas diferenças internas, suas diversidades e desigualdades.

Aqui falei dos mortos e com os mortos que vivem em minha memória discutível. De vez em quando eles me chamam e ficam horas falando comigo.. Eles estão vivos, talvez até mais vivos do que alguns que andam por aí...aliás, nem sei quem foi que disse que os mortos dominam o mundo dos vivos... Vai entender isso, cara!...


 

Las cabelleras de los difuntos de Montevideo.

 

Seta narina amarela e estática

aponta para uma floresta de cabelos tombados no fim.

Uma testa impávida e serena não afasta o meu particular pavor diante dos mortos.

Flocos de algodão nas fossas nasais protegem os mortos da fétida evolução do mundo dos vivos....

Roupas... para que?

O defunto leva em seu caixão as marcas absurdas do mundo que acaba de abandonar!...

Alguns nomes de Intendências y Departamientos de la República Oriental del Uruguay

— Florida

— de los 33

— Rivera

— Punta del Este

— Canelones


 

Aquí tem Jesús Cristo. 15 Reais o quilo!...

 

Para um gay, nada é impossível. (...) Boquete, que palavra tão vulgar!... Uma diretora de escola me confidenciou que, todas as semanas, os alunos da sua escola hasteiam a bandeira nacional sob um forte cheiro de esgoto a céu aberto. Estão ridículos os discursos e atos diplomáticos do presidente Fernando Henrique Cardoso nos jardins do palácio da Alvorada numa explícita imitação das poses de Bill Clinton nos jardins da Casa Branca. Horroroso!.. O presidente da República e toda a nação estão pagando caro por não terem enquadrado juridicamente as ações ilegais e anti-Estado-de-Direito do guerrilheiro neo-Zapatista M.S.T.... O M.S.T. quer tomar, pela força, o poder, mas o seu projeto de poder não daria certo nem a cem anos atrás. Se o M.S.T. tomasse o aparelho de Estado no Brasil, o Brasil seria isolado no gueto formado por Cuba, Iraque, Irã e Coréia do Norte e viveríamos um suicídio econômico fatal e irreversível. nossos problemas sociais seriam enormemente agravados, seria um desastroso e sinistro triunfo da lógica revolucionária desmascarada há mais de cem anos por Baudelaire, a estratégia do quanto pior melhor, ou, sendo mais explícito, a consagração da supersticiosa via da revolução pelo sacrifício. Nem sei se o M.S.T. teria um projeto de poder. Só um país culturalmente tão acrítico como o nosso aceitaria um discurso político-ideológico tão superado e defasado como o blá-blá-blá terrorista e chantagista do M.S.T., que usa e abusa das atuais circunstâncias democráticas e pré-eleitorais brasileiras para cometer seus desatinos e escleroses retórico-eleiçoeiras pró-petistas e pró-P.S.T.U.!... (..) Com a casa vazia, depois de criar 7 filhos e não ter sorte em criar cachorros, mamãe, agora, solitária, cria um grilo verde debaixo da pia do banheiro social de sua casa. Nesta manhã fria, ví uma mulher com um vestido tubinho cor cinza e meias de seda cinza, parecia ter saído das cinzas matinais de um fogão a lenha. As janelas de vidro fosco e liso da ambulância me sugerem uma paisagem gelada. “Do jeito que as coisas caminham, não tenho condições morais para dizer que sou deputado para meu próprio cachorro, que me espera com uma festa cada vez que volto para casa”. Esta frase, por incrível que possa lhe parecer, não é do Roberto Carlos mas, sim, do deputado federal verde Fernando Gabeira, que, como eu, é um autêntico carioca do brejo lá da região de Juiz de Fora mas eleito pelo Rio de Janeiro eternamente insurrecto e sujo. Veja sua crônica na Ilustrada Folha de S. Paulo de primeiro de Junho de 1998. Página 9. (...) não sei até que ponto Wilson Martins tenha razão ao afirmar que o teatro de Nelson Rodrigues é demagógico e sensacionalista, mas, num ponto, muito enfatizado em sua recente entrevista ao O Estado de S. Paulo de 30 de Maio de 1998 — caderno 2, claro, eu concordo com ele: “Os pesquisadores têm a tendência de encarar a pesquisa literária como se ela fosse objeto de ciência. Isso é uma tolice. O que salva a crítica, se é que ela pode salvar-se, é a variedade de opiniões.” Se compararmos esta sua entrevista ao estadão com a que concedeu no início deste ano à revista República, constata-se tranqüilamente um mal indício: o crítico mais rigoroso no brasil de hoje está se tornando repetitivo e pouco argumentativo. Quando lhe perguntaram por que não gosta de Raduan Nassar ele veio com essa: “Não tenho explicação para isso... tentei lê-lo e não conseguí gostar.” Ainda que tudo ou nada, dona Quêquêta do senhor Zequinha Anselmo já deve ter ido para o outro lado da vida, o lado da desconstrução, mas, até hoje, seus broches de ouro e óculos borboleta de fazendeira rica nos anos 50 não sumiram nas minhas imaginações pós-modernas. Tomara que esteja certo o especialista que no último fim de semana, em entrevista a um jornal conceituado, incluiu a imaginação fértil como um dos quesitos importantes para se conseguir uma vida longa... sei que não viverei tanto quanto um Winston Churchill mas uns sessentinha estaria ótimo para mim.. quem sabe?.. Com os amplexos do independente e intrépido José Luiz Dutra de Toledo, 46 anos, historiador e hemerotecário na Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto e ex-líder estudantil em Juiz de Fora nos anos 70.


 

Com rima rica, rifas e tudo mais, o michê Michel lá vai prú beleléu

 

Ela toma champagne numa taça preta de mármore de Carrara. Mas ela não é Scarlet O’Hara. Não lembro mais da minha primeira noite de condenado à morte. Só sei que nesta noite dormi numa verde cama patente de solteiro. Este é o enredo da minha história em quadrinhos: flores, vermes, músculos e ossos. Os mistérios das riquezas estão nas rotas do ouro do mapa do caos. Feijoada é uma perigosa delícia. Junte os cacos das nossas histórias fragmentadas para montarmos ludicamente o quebra-cabeça das nossas incompletas identidades. Os candidatos a governador de São Paulo mais votados no primeiro turno das eleições de 1998 foram os dois que disputavam o apoio do presidente candidato à reeleição. Candidato que um publicitário ousado chamou de Liza Refogado Cardoso. Tomara que esta maioria eleitoral não seja tão efêmera como nossos parâmetros e paradígmas...nem episódica e eventual apenas. As árvores, açuladas pelo vento, balançam e, em seus movimentos, confundem-me: não sei diferenciar o trânsito das metamorfoseantes nuvens das sutis danças dos seus galhos. O mormaço me derrete. Minha camisa rosa está encharcada. O som do ventilador me lembra O ser e o nada de Jean-Paul Sartre. Ou A Náusea do mesmo autor? Uma carta manchada de sangue. Sexus, nexus, plexus. Um longo e amplo amplexo para todos vocês. Sinto vertigens e nojo diante dos bajuladores. A maior vergonha para um ser humano é ser levado à bajulação. Eu não agüento mais esta cultura da reclamação, diria Robert Hughes...

Ainda não aprendi como costurar nexos entre parágrafos. Afinal, nossos cérebros vagueiam em tantas e dispersivas direções que as fragmentações desconexas destes meus textos nada mais revelam que nossos humanos universos são irreversíveis e caleidoscópicos labirintos proliferantes do desconhecido e da insatisfação.

Em minhas incessantes e compulsivas trocas de e-mails, acabei fascinado por um filme a mim sugerido por Olavo de Carvalho, ensaísta e crítico das revistas Bravo! e República. Ele me indicou o filme Aurora, dirigido em 1927 pelo diretor expressionista alemão F.W. Murnau. Para o jornalista Olavo de Carvalho o filme Aurora “é um filme sobre o destino e a providência: metafísica da melhor qualidade, onde até o cenário natural — chuva, bichos, pedras, árvores — se torna personagem e tudo é tremendamente impregnado de sentido. Nunca vi uma coisa tão densa, tão viva, e ao mesmo tempo tão simples e direta. Murnau elevou o cinema à mais alta dignidade. Era um artista profundo como Bergman e simples como Rosselini. Na juventude, estudei cinema, pretendia mesmo ser cineasta e esperava me tornar F. W. Murnau quando crescesse.”

Entusiasmado por este convite à profundidade estético-metafísica ví, boquiaberto, o filme Aurora. Além de admirar suas técnicas cinematográficas vanguardistas e expressionistas com jogos de luz e sombra, este filme de Murnau me pareceu um documento artístico da transição do espetáculo teatral-operístico para o espetáculo cinematográfico. Espetáculo reflexivo e filosófico precursor da resistência contemporânea à avassalante cultura de massa ou indústria cultural manipulativa e mediocrizante (popularesca) daqueles e dos nossos tempos. Percebi e senti tudo aquilo que Olavo de Carvalho me anunciara e, ainda mais, notei como na arte expressionista alemã do início do século XX continuava insolúvel o dilema ou a dialética fundada na própria gênese da alma germânica: o conflito entre a sinceridade e a pureza rústica do homem rural (sensivel e selvagem) e a mentirosa e mortal artificialidade modernosa do homem urbano. E, frente a este dilema civilizatório, F. W. Murnau deu a sua resposta estética e metafísica: o seu filme Aurora, um dos vinte filmes mais expressivos e representativos do humanismo ou do pós-humanismo ocidental no século XX. Neste filme, Murnau antecipa elementos agregáveis às teses defendidas pelo historiador Simon Schama, em seu livro Paisagem e Memória, no qual, entre muitas outras coisas, aprendi que em cada árvore, cada pedra, estão depositados séculos de memória refeitos e reformulados por uma instigante sobrevivência de mitos e arquétipos. Este livro de Schama foi editado no Brasil em 1995 pela Editora Companhia das Letras. Entre estas idéias de Schama ressalto uma: a germanidade se delineou no confronto com a latinidade. A brutal e robusta compleição física dos povos teutônicos, suas puras e rígidas disciplinas de árvores/soldados de um exército/floresta (conforme o símbolo-de-massa proposto por Elias Canetti em Massa e Poder) ou a perseverança inquebrantável e estóica dos homens de sombrios pântanos e florestas versus a retórica e a finesse das cínicas essências venenosas e mortíferas do latino urbano e charmoso, desde Roma até as mundanidades parisienses.

A única e torturante claustrofobia que sinto é quando viajo em ônibus com ar condicionado, no qual você não pode abrir a janela e sentir aquela sensação de liberdade com o vento e o tempo erodindo eroticamente sua esfinge personal. E, vamos e venhamos, nossas estradas esburacadas e estes falsos aviões rodoviários com naves herméticas nos proporcionam uma autêntica tortura de terrores e fedores. E roncares de pessoas ressonantes ou cochilantes e descabeladas. Agora, só para por um ponto final provisório neste texto: o filme Aurora de F.W. Murnau é um filme redentor, que nos sugere esperanças.

Já que estou comentando um filme, vou registrar aqui a minha decepcionada impressão ao assistir ao filme Ponto de mutação, baseado na obra de Fritjof Capra e com belíssima música de Philip Glass. As reflexões trocadas pelos personagens ou pelas personagens (uma física, um candidato derrotado numa das sucessões presidenciais estadunidenses e um poeta) nada de novo me trouxeram: só queixas ingênuas e pueris, terminologias holísticas e ecológicas chatas (reajo como a adolescente filha da personagem cientista), citações esquerdistas que vão desde críticas ao capitalismo até poemas do stalinista chileno Pablo Neruda e frases do tipo: “As pedras falam e eu me calo.” ou “É poeta, tem permissão para ser melancólico.” Horrível e sem graça... decepcionante... quase uma música de Raul Seixas versão anglo-saxônica. Isto é que é crise de percepção: ingenuidades e generosidades ecológicas e atrações fatais pela morte, como lobos famintos atrás de ovelhas...

Outra hipótese que quero agregar a este texto: a música Coração Materno, interpretada por Vicente Celestino e, depois, por Caetano Veloso, documenta a transição entre o espetáculo operístico do século XIX para a música melodramática da cultura de massa vigente e crescente ao longo do século XX.


 

Orfeu desceu aos escuros infernos de uma sauna gay da Corrêa Dutra
Catete — Rio de Janeiro

 

Minha mãe me quer mais magro ou mais doente do que eu já esteja!... Minha cachorra quer me comer. Fui à casa de uma tia que mora no meio de uma boca de fumo da favela do Buraco Quente do Olavo Costa de Juiz de Fora e lá vivi com o seu grupo familiar uma psicoterapia ingmarbergmaniana com uma modelar ciranda de choros, mais ou menos soluçando sentimentos de culpa. Ouço o ótimo CD Rabo de Lagartixa com o melhor da música popular carioca contemporânea, no qual divinamente canta Elza Soares a antológica música Formosa e no qual temos arranjos de chorinho erudito do juizdeforano Bilinho Teixeira. Quem foi a poetisa paulistana e professora de Jardim da Infância Zalina Rolim? Lagarto de carne bovina recheado com legumes, Jesús Cristo na Hóstia Consagrada, maionese, arroz, tutu, um chester assado, sucos de frutas, pudim diet de baunilha, salivação hipócrita e outras iguarias compunham as refeições do dia das Mães de 1999 que vivi com a minha respectiva e respeitável, em minha cidade natal, na zona da Mata mineira. Me apliquei insulina nos jardins do Palácio do Catete, onde há 44 anos Getúlio Vargas suicidou-se, sob os olhares estarrecidos das vovózinhas que lá passeavam com suas netinhas no cair da noite de dez de Maio de 1999. Dei pão com queijo Minas fresco para as pombas do Museu da República... Ansiei pelo fim da missa das 7 da noite das Mães para que as piolhentas pombinhas da Matriz do Senhor Bom Jesús da Cana Verde de Tabuleiro — Minas Gerais dormissem em paz e na escuridão, com o Santíssimo Sacramento e o Divino Espírito Santo!.. Ele tanto buscou encrencas que as teve. Em alto estilo e com escândalos ruidosos. Comi quase vinte frutas conhecidas pelo nome de eugênia. Barcos cariocas ancorados em fétidos mangues são sedes de milionárias empresas. Voei serenamente como um monge medieval, do Rio de Janeiro até Ribeirão Preto. Achei ótima e belíssima a providência do governo Fernando Henrique Cardoso de restaurar, com esmero e refinamento estético, o palácio da Ilha Fiscal, na baia da Guanabara, rente à qual passam os aviões que decolam ou pousam no aeroporto Santos Dumont. Oh Imaculada Concepcione, ajoelhado aos vossos pés eu lhe rogo, Maria Santíssima: me dá uma das batatonas de um dos seus dedões dos pés!.. Nossa Senhora, me dá a mão e um pedaço de pão!.. Dá o pé, louro, dá?!... Amarraram o louro no pelourinho e o surraram surrealistamente!.. Conheci no interior mineiro um escritor tão pouco ou nada comunicativo que, para ter os seus textos publicados em jornais da sua região, usava como subterfúgio ou escudo o nome de alguma pessoa interessada em aparecer como escritora e que tivesse algum tipo de status social apresentável e, com a sua autorização ou aquiescência, que longe estão de serem escritoras, publica seus textos com estética literária setecentista ou rococó e, o mais gozado, este escritor é psicólogo formado em licenciatura plena de Filosofia. A abundância e o vazio redundam em um oco só. O tudo é o resumo do nada, ou vice-versa.. O silêncio é o resumo de tudo. O negão me pediu uma eugênia e eu lha dei. E ele chamou minha fruta eugênia de abil. Elifas Andreato, editor do Almanaque Brasil de Cultura Popular, publicado em sua Segunda edição em Maio de 1999 pela empresa aérea TAM, num minimanifesto expressa amor pelos brasileiros de “qualquer cor, qualquer olho, qualquer tamanho de pé..” E, na página 2, na qual está o tal minimanifesto, começa com fragmento de Monteiro Lobato o seu rosário de citações: “Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira — mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.” Confira no livro “Mundo da lua” de Monteiro Lobato. Meu idiota irmão, Deus mentiu para você: em vez de me castigar com doença pior que o câncer, Deus lhe impôs a pior das doenças: as amarras do recalque e a imaginação dos ignorantes!.. Tenho um amigo semelhante fisicamente a um monge medieval comedor de leitões assados ou costelas bovinas no bafo e, embora seja filho de juiz, adora lamber e chupar botas e pés chulézentos de machos!.. Tem gosto para tudo e Monteiro Lobato tem razão, tudo é loucura, até a nossa mania de limpeza e as nossas prescrições de higiene, tão bem investigadas pelo historiador Simon Schama, em seu precioso livro-tratado intitulado O desconforto da riqueza — A cultura holandesa na época de ouro, Editado no Brasil em 1992 pela Companhia das Letras. Este meu amigo lambedor de botas de machos busca situações nas quais seja humilhado e, depois de humilhado, quase morre de depressão!.. Tia Margô, carrapato não tem pai porque ninguém quer criar... Margô, não fique amargando depressões rebatidas com Prozac...veja, querida, tu já estás aposentada, tem os seus com saúde e sua casa está tão bem arrumadinha!..

I

Não sei se posso concordar com o dramaturgo francês Bernard — Marie Koltès (1948/ 1989) quando disse que “as coisas são mais belas na penumbra, precisamente porque não as reconhecemos. E uma maior liberdade é dada à imaginação.” Mas, sem dúvida, as condições de luminosidade ou de trevosidade ambiental interferem em nossas percepções e emoções estéticas de natureza mais ou menos metafísica e, como homem barroco, devo dizer que é no jogo de luz e sombra que ocorre o flash — relâmpago da revelação ontológica do mundo. Como diria o crítico literário uruguaio Hugo Achugar, “por suerte la realidad y el deseo no son enemigos irreconciliables.” O lance é olhar tudo de dentro para fora e de fora para dentro e, no máximo, por todos os ângulos possíveis. O grande inimigo público da sociedade carioca nos anos 20 era (Pedro) Febrônio Ferreira de Matos Índio do Brasil, negro, homossexual, pobre, assassino de alguns dos meninos que amou ou estuprou, oriundo do interior mineiro, personagem destacado na crônica policial carioca ao longo dos anos 20 e 30, autor do livro neo-barroco e místico intitulado As revelações do Príncipe do Fogo (livro recolhido e queimado pela polícia e encontrado por pesquisadores na biblioteca de Mário de Andrade), se autodenominava “filho da luz”.

Concordo com Umberto Eco: “os progressos da ciência permitem até mesmo tocar naquilo que antigamente era invisível” E eu diria que hoje toco à distância os internautas que comigo teclam e deles sinto até os cheiros!... Embora Honoré de Balzac tenha sido conservador, seus personagens eram insurgentes e inquietos, desestabilizadores da paisagem social. É que Balzac foi um privilegiado observador dos conflitos sociais sem ter sequer um conceito ou sem acreditar em algum conceito de “classe social”!... Mas Baudelaire o via mais como um visionário do que um observador realista. Suas intensas imaginações incluiriam no rol de seus personagens seres irreais e hermafroditas!.. Balzac era um espírito aristocrático. Até monarquista. Mas na rivalidade narcísica entre Flaubert e Balzac, fico tranqüilamente com o primeiro. Saint Beuve também nutria indiferença pelas obras de Stendhal, Balzac e Flaubert!.. O jornalista carioca Sérgio Augusto tem razão: “raros são os gênios que desprezam o próprio umbigo.” Como seria o cinema sem a criação literária?

Parei de correr atrás do tempo. Agora os meus dias e as minhas noites são cada vez mais longos e interessantes. Estou feliz, creia!.. E este não é o caso do rabugento governador mineiro Itamar Franco, que agora ameaça gastar com um túnel sob a praça da Liberdade para que os carros que passem pelas imediações do palácio do governo mineiro não tragam barulho e confusão aos seus brilhantes neurônios. A população belorizontina está pedindo, seis meses após a sua posse, que o irascível governador das Alterosas comece a governar, caramba!... Embora relativize aquele ditado cristão ‘digas com quem andas que eu te direi quem és’, convido-os a cantar com as beatas que, todos os anos, acompanham as procissões do encontro entre Nosso Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores na Quarta-feira santa:” Oh minha mãe dolorosa!.. Aos pés da cruz tão chorosa!..” ..Porque será que os cristãos vêem pé em tudo, até na santa cruz, hem? Minhas paisagens são até certo ponto escolhidas por mim. Ignoramos nosso chão e insistimos em não enxergar nossos pés. Temos vergonha de dançar e numa sociedade que se ruboriza diante dos rebolados e que, no passado, delirava nos chamados espetáculos de teatro rebolado, grassa a praga da dança da boquinha da garrafa, dança do tcham e a dança da galinha. Estamos longe de ser as águias de Haia que um dia pensáramos ser!..

II

Um negro marinheiro gordão, na hora do ritual sexual, desejou que seu parceiro assumisse o aconchegante papel de amante paternal e o protegesse dos seus infernais medos de moço de 24 anos pré-desempregado. Queria conversar para se aliviar em pleno pesadelo. Mas os livros didáticos nunca mostram por inteiro os perfis dos poetas, só mostram aquilo que a esterilidade escolar não censura. Diante desta abominável postura, eis o poema Rondó do Palace Hotel do pernambucano Manuel Bandeira, amigo do célebre Carlos Lacerda:

Rondó do Palace Hotel
Manuel Bandeira

No hall do Palace o pintor
Cícero Dias entre o Pão
De Açúcar e um caixão de enterro
(É um rei andrógino que enterram?)
Toca um jazz de pandeiro com a mão
Que o Blaise Cendrars perdeu na guerra.

Deus do céu, que alucinação!
Há uma criatura tão bonita
Que até os olhos parecem nus:
Nossa Senhora da Prostituição!
— “Garçom, cinco martinis!” Os
Adolescentes cheiram éter
No hall do Palace.

Aqui ninguém dá atenção aos préstitos
(Passa um clangor de clubes lá fora):
Aqui dança-se, canta-se, fala-se
E bebe-se incessantemente
Para esquecer a dor daquilo
Por alguém que não está presente
No hall do Palace

Nesta fresca e sonolenta tarde de Maio de 1999 cochilo em um claustro monacal e imagino os cheiros das pernas dos pernambucanos e de todos os brasileiros que joguem ou não joguem futebol, os cheiros de pernas e de pés de todos os brasileiros e brasileiras e também os cheiros tesudos que exalam sob as saias das mulheres e dos travestis de todo o nosso Brasil que dança, pula, deixa fluir secreções e cerumes, sacode a poeira, passa gordura nas canelas, dá a volta por cima e volta de novo para a beira do abismo. Como, bebo, durmo e ostento saudável sonolência de um criativo e operoso servidor da cultura brasileira não -reconhecido e pouco premiado.
Atormentado pela perda involuntária da minha cálida e corada Eurídice, desço e subo as ladeiras patéticas de Congonhas do Campo — Minas Gerais, com suas palmeiras esvoaçantes, e seus fantasmas barrocos, e, sabendo que a minha amada está nos braços do robusto Carmelo, desesperado, viajo ao Rio de Janeiro onde me lanço numa infernal sauna gay, em busca de consolos eróticos da era pós-industrial, e só sinto pestilências e tediosos companheiros inseguros em suas prospeções no fundo oceânico da ineficácia erótica dos fluxos promíscuos dos anos 70.


 

Para não dizerem que não falei da morte.

 

texto inédito de José Luiz Dutra de Toledo,
dedicado ao instigante Hiiris Lassorian de Capinzal — Santa Catarina — Brasil.

Quem me ensinou a morrer foi Leon Tolstoi, com sua novela A morte de Ivan Illitch. Concordo com John Kenneth Galbraith, são quatro os motivos que garantem a continuidade da história: primeiro: a luta pelo poder; segundo: a busca do conhecimento; terceiro: a luta contra a morte e quarto: a busca do prazer. A vesguice míope-marxista só enxerga um motor para a história: a social oficina geradora das lutas de classes.

Mas, voltando à novela de Tolstoi, eu diria — na condição de imunodeprimido ou doente de AIDS — que a consciência sobre a fragilidade da vida e a emergência da morte me fizeram viver mais intensamente, mais profundamente. Outro dia, a infectologista que me atende me confidenciou que eu não sou o único dos seus pacientes que lhe disseram que vivem muito melhor hoje (com um diagnóstico de AIDS) do que antes de terem a certeza de que estavam com a doença. Viver é morrer. Um simples e até inexplicável desarranjo entre bactérias, vírus ou fungos que coabitem em nossos corpos pode nos levar ao óbito. Com ou sem AIDS.

Nascemos sozinhos. E morreremos só. Do início ao fim estaremos sozinhos. Individualizados em nossas lúdicas, pródigas, dadivosas travessias da vida. Viver é se fragmentar e se esparramar, se dividir entre tudo e entre todos os lances e aspectos deste mundo.

Sei que as jabuticabas dos meus olhos cadavéricos, apodrecidas, estourarão. Lautréamont pode ter razão quando viu morar no oco das suas finadas axilas uma família de sapos que, ao se mexerem, lhe provocavam cócegas. Sei que as fibras musculares dos meus braços entrelaçados sobre a minha putrefante caixa torácica do meu corpo morto se romperão e cairão, de qualquer jeito, ao lado do meu inchado e fétido abdome e que os tendões dos meus pés, descarnados, não resistirão à fúria devoradora dos vermes, fungos e bactérias e que o fogo fátuo que dançará sobre o pó dos meus ossos celebrará com beleza a minha extinção.

Antes, tudo isso me causava desespero. Hoje eu só me preocupo com o destino que os “vivos” darão aos meus preciosos textos, livros, objetos de arte, álbuns de fotos e cartões, filmes, fitas cassete, cds, discos de vinil, meus amados cachorros Aragão e Saragoza e para onde levarão meus despojos. Não quero, como todo homem civilizado, ser devorado pelos abutres. E só, nada mais.

Quase todos os anos, acompanho e choro nas procissões do Senhor Morto na Sexta-feira Santa. Após o conhecimento do meu diagnóstico de AIDS, fui evitado por muitas das pessoas que fingiam não me ver nesses fúnebres cortejos da Semana Santa. No entanto, posso listar (aliás, esqueci de incluir a parcela do dentista na minha lista de dívidas a solver) um número considerável de pessoas que assim procediam ante o meu veredicto ou condenação que já se foram dessa vida e das quais não sobraram mais que podres ossos ou cabelos encharcados de lodo e gosmas pestilentas com as quais a morte plenifica e coroa a sua irreversível destruição.

Com Edgar Allan Poe, em seu conto O retrato oval, aprendi que a morte é sublime e a todos, igualmente, fascina, atrai, amedronta e preocupa e que as nossas pérolas dentais são os nossos mais indestrutíveis símbolos de eternidade material. Na novela Um coração singelo, de Gustave Flaubert, entendi a morte como um clímax redentor. O mesmo pude sentir na novela A morte de Ivan Illitch, de Tolstoi. No filme Di Cavalcante, Glauber Rocha desmascara a morte. No filme Gritos e sussurros de Ingmar Bergman vi como é sinistra e encurralante a morte, que nos isola ainda em vida. Com a Marcha Fúnebre de Frederic Chopin, o auto-falante da paróquia do Senhor Bom Jesús da Cana Verde de Tabuleiro — Minas Gerais anunciava a morte de um ou mais paroquianos. Com esta peça musical de Chopin (do qual aprecio muito também seus Noturnos), desde criança, me instaram a pensar e a viver a minha morte. Com os negros das bandas de jazz de New Orleans e de Saint Louis aprendi que podemos festejar e dançar durante cortejos fúnebres, como, aliás, procedem alguns povos da Indochina e dos arquipélagos que separam a Ásia da Oceania.

A minha morte estava às minhas vistas nos caixões dos meus parentes e amigos mortos. Meu medo da morte e da AIDS me levou a um extravagante e mórbido acúmulo de informações sobre a peste e, assim, traiçoeiramente iludido pela super- informação, expus-me aos riscos e, por fim, ao contágio.

Assim como nossas vidas, nossas mortes têm uma história. Aprovo os cursos que estão sendo desenvolvidos em escolas norte-americanas e européias sobre como morrer e a ver ou encarar a morte como o inevitável. A angústia gongórica ou a consciência barroca de que a vida é sonho e a sensação de que a morte nos espreita me conduziram ao mais espetacular e dantesco fascínio mórbido e horror da minha existência. O filme Drácula de Francis Coppola é magistral na encenação de nossas dramáticas existências multisseculares de mortos-vivos. Este fascínio, ainda lamuriento, diante da morte me contaminou em minha adolescência, quando li Álvares de Azevedo. E, mais tarde, quando li Baudelaire, Lautréamont, Antonio Carlos Villaça, padre Antonio Vieira, Maiakovski, Casimiro de Abreu, Antonin Artaud, Freud, Camus, Sartre, Emil Ciorán, Jean Cocteau Federico Garcia Lorca...e muitos mais.... cujas obras literárias estão eivadas pela pungência patética da inevitável partida... Meus caminhos ofereceram aos meus olhos aquelas tristes cruzes cravadas à beira das estradas para lembrarem mortes ou os mortos que deixamos para trás em nossas caminhadas. Desde criança sempre via os cemitérios como pontos de atração turística.

Os vivos e os mortos, um lindo filme de John Houston, baseado numa novela de James Joyce, me deslumbrou quando um dos seus personagens, numa carruagem atravessando um cenário coberto pela neve, aludiu a um morto que dormia em seu gélido túmulo enluarado. Georges Bernanos, escritor e pensador católico francês que se exilou em Barbacena, Minas Gerais, na primeira metade do século XX, escreveu um livro por ele intitulado O luar sobre o cemitério. Me disseram (nem me lembro quem) que os mortos nos governam. Porque os enterros e as procissões até hoje são os eventos que mais formam multidões nas cidades do interior brasileiro?

À meia noite vi uma procissão se dirigindo a um campo santo e, duas horas depois, ouvi uma briga entre o coveiro e o defunto mais fresco daquele cemitério. O criador de casos era um comunista acostumado àqueles longos discursos de seis horas (que deveriam ser ouvidos com a atenção e a mais acurada análise dos seus espectadores) que, mesmo depois de morto, insistia em seus intermináveis e barrocos sermões labirínticos, antes dirigidos aos seus diminutos cenáculos ou politiburos.

A morte é só isso.. nada mais.. Mas A Falecida de Nelson Rodrigues, herdeira da nossa cultura de pompas fúnebres, queria que fosse mais.. e, assim, como os românticos, (às vezes me sinto como a tísica Dama das Camélias) investiu no avanço da sua tuberculose enquanto poupava para ter o mais espetacular enterro da zona norte carioca. E cantando o samba de breque do carioca Moreira da Silva, o Pepe Morengueira, “a mulher que o trem matou morreu; morreu pela primeira vez...”

Extravaganza Italiana
Poema de Gregory Corso

O filho de um mês da Sra. Lombardi está morto.
Eu o vi na sala da funerária “Rizzo”,
Uma coisinha enrugada, de tom roxo

Terminaram a missa solene
há pouco; estão saindo agora
....puxa, um esquife tão pequeno!
E dez cadilaques negros para levá-lo embora.

 

Psicanálise: uma fruta deliciosa do moralismo vitoriano?

...”A Educação é, em grande parte, uma escola da renúncia.” (Peter Gay).

O distanciamento do homem vitoriano em relação ao seu próprio corpo o fez esquecer que suas mãos são seus talheres. Para Freud, a natureza humana e a sua alma mais profunda são tempos e espaços de conflitos. Seus desejos e os meus são inconfessáveis e obscenos. Até criminosos... porque não?

Meus cabelos eriçados são o termômetro do pavor que intermitentemente abala minha humana alma. “Na vida psíquica do indivíduo, o outro aparece freqüentemente como modelo, como objeto, como aliado e opositor e a psicologia individual é, assim, desde o princípio, também psicologia social, num sentido geral, mas muito justo.” (Sigmund Schlomo Freud).

Não sei o que me aproxima da constatação ou da hipótese freudiana de que as mulheres mentem mais que os homens. Mas as mentiras das mulheres são tão frágeis!... Já os machos se guiam apenas pela desconfiança calculista fundada e engendrada pelo frágil mentir feminino. Então, as verdades masculinas, estão enganadas pelas mulheres. Embora vitoriano, Freud não condenou os homossexuais como seres abjetos e criminosos. O marxista Wilhelm Reich condenou fascistamente o homoerotismo aos limites recessivos da fase anal.

“Os conflitos que transformam o indivíduo em um opositor da família, da sociedade e de si mesmo são incuráveis. Para fugir desse terrível fato, os homens buscam o esquecimento em sonhos diurnos, tóxicos, isolamento, no amor ou na vã esperança de superar a morte.” (Peter Gay no artigo Sigmund Freud, para sempre controvertido, publicado nas páginas centrais do caderno 2 Cultura — do jornal O Estado de S. Paulo em sua edição dominical de 28 de Fevereiro de 1999).

“Eu não tenho a coragem de surgir como profeta à frente de meus contemporâneos e me curvo às suas acusações de que não sei lhes dar consolo, pois no fundo todos exigem isso, os revolucionários mais selvagens não menos apaixonados do que os mais bem comportados devotos.” (Sigmund Freud — in: O Mal estar na Civilização — 1930).

“Minha maneira de pensar é o fruto das minhas reflexões; está, pois, em relação com minha existência, com minha estruturação. Não tenho o poder de mudá-la; e mesmo que o tivesse, não o faria. Esta maneira, este modo de pensar que censurais, é o único consolo da minha vida, alivia-me de todas as penas do cárcere, constitui todos os meus prazeres no mundo, e me importa mais do que a vida. A causa de minha desgraça não é minha maneira de pensar, mas, isto sim, a maneira de pensar dos outros.” (Alphonse — Donatien — François — Marquês de Sade — 1740/1814). “O inferno é o outro.” (Jean Paul Sartre).

“Agora o pai sou eu. Estou sozinho diante de mim mesmo e já não odeio ninguém. Estou só e o céu se limpou. Aquele que empreende uma biografia está comprometido com mentiras, dissimulação, hipocrisia, bajulação; a verdade biográfica não existe. Eu amava meu pai e sentia ciúmes dele... o acontecimento que conta mais na vida de um homem é a morte de seu pai.... Felizmente se acaba por morrer.” (Sigmund Freud). “O paraíso só é possível quando se olha para trás.” (Stefan Zweig). “...a cada dia uma experiência de prazer para justificar o vazio de ideais... Você se constrói à medida que constrói o mundo.” (Jurandir Freire Costa). “Os pessimistas são covardes e os otimistas são uns tolos.” (Heinrich Blücher, marido de Hanna Arendt). Para mim é forçação de barra a dicotomia dualista entre fato e valor na conceituação do amor ocidental. Para mim o valor é um fato e um fato é evento constituinte de valor.

Freud incumbiu sua filha Anna de gerar toda uma psicanálise para crianças. Vitorianamente, Sigmund Freud atribuía a uma mulher a tradicional tarefa (no caso trabalho terapêutico) de cuidar de crianças. Que conservadorismo mais machista, Sigmund!..

Lourdes está nos Pirineus, cadeia montanhosa que separa abissalmente a Espanha da França. Lourdes está perto de Port Bou, vilarejo perto do qual Walter Benjamin, num quarto do hotel de Eva Ruiz, se suicidou, na noite de 25 para 26 de Setembro de 1940, após ser barrado na fronteira da Espanha e ser entregue à Gestapo. Porque Nossa Senhora de Lourdes, ali tão perto de Port Bou, não salvou Walter Benjamin? Meu Deus, porque deixou ocorrer esta tragédia? Só a Rapsódia in Blue de Gershwin me acalenta ao ler e pensar sobre este infausto desfecho!..


 

O vídeo about Ovídio

 

O testamento erótico dos corpos humanos ilimitados é quase ou mais que místico em sua busca do Eterno enquanto superação do efêmero, o humano galgando o patamar do Divino. Num trajeto da condição perecível ao êxtase atemporal de Deus. Georges Bataille foi um dos mais instigantes e arrebatantes teóricos da humana descontinuidade labiríntica. (..) “O que forma o caráter afetivo da duração, a alegria ou a dor do ser, é a proporção ou a desproporção das horas de vida, utilizadas como hora de pensamento ou como hora de simpatia. A matéria desdenha ser, a vida desdenha viver, o coração desdenha amar. (...) O pensamento.. utiliza a vida sob forma de relâmpagos irregulares.” (Gaston Bachelard, L’Intuition de l’instant). Os céus fazem ecoar suas palavras com mais retumbância nas terras montanhosas onde seus trovões soam como tambores em uma dança macabra entre o possível e o impossível, entre o regular e o aleatório. Por mais terras que eu percorra não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá.. Oh cisne branco, que em noite de lua, vai navegando no mar azul, o meu navio também flutua nos verdes mares de norte a sul... (...) “Não é a necessidade, mas seu contrário, o luxo, que coloca à matéria e ao homem seus problemas fundamentais.” (Georges Bataille — in: La part maudite). (...) “A cereja é o produto das copulações da terra consigo mesma, e a uva é o produto da copulação da terra com o sol.” (Charles Fourier em História Natural). (...) “Sobre o leito branco do olho, a íris é o travesseiro do colchão da pupila, onde um fantasma de nós mesmo estira-se no sonho.” (Malcolm de Chazal). (...) “Eu digo: a volúpia única e suprema do amor reside na certeza de fazer o mal. E, o homem e a mulher sabem de nascença que no mal se encontra toda a volúpia.” (Charles Baudelaire). (...) “O que o ato amoroso e o sacrifício revelam é a carne... O movimento da carne excede um limite na ausência (ou, além) da vontade. A carne é em nós este excesso que se opõe às leis da decência. A carne é a expressão de um retorno desta liberdade ameaçante.... O primeiro trabalho fundou o mundo das coisas, o homem tornou-se por sua vez uma das coisas deste mundo, pelo menos durante o tempo no qual trabalhava. É desta perda de direitos, desta desgraça, que o homem de todos os tempos esforça-se para escapar. Em seus mitos estranhos, nos seus ritos cruéis, o homem está desde o início à procura de uma intimidade perdida.... O mundo íntimo opõe-se ao real como a desmesura à medida, a loucura à razão, a embriaguez à lucidez... o mundo do sujeito é a noite: esta noite movediça, infinitamente suspeita... a consumação do inútil suspende a preocupação com o dia seguinte. O que assegura o retorno da coisa, à ordem íntima, é sua entrada neste recanto de consumação. O sacrifício é o calor, onde se reencontra a intimidade daqueles que compõem o sistema das obras comuns. A vítima é um excesso pego, tomado à massa de riqueza útil.” (Georges Bataille). Ainda continuo citando Bataille: assim como a morte e o riso e as suspensões dos juízos, o prazer nega tanto o trabalho como a razão, as hierarquias e os valores. A linguagem erótica não é intelectual mas passional. Não há nada de mais absoluto que o desejo. Nem eternidade maior que o instante. Ó tú mundo das nádegas, que és o berço dos berços do corpo humano, estrebaria e esterco e cisticerco... Ó grande berço do pélvis, que dás nascimento a novas carnes. Proliferações da ambição de Absoluto. Pista — percurso do infinito. O nó górdio da morte. Terra dos olhos e o Oceano da Alma. O grande berço do espaço!!.. O ninar da pálpebra que fechas em gesto-berço de Eternidade!! Uma discussão surda (e sem palavras) sobre a constituição de um corpo fora do âmbito do consumo numa época de desvairadas vaidades e hedonismos irracionalistas deliciosamente vitimantes num ritual de sacrifícios globalizantes. O Eros de Bataille no presente ou a sua inviabilização no futuro? Indagam Sérgio Lima (in: O Corpo significa — São Paulo — EDART — 1976) e Arthur Omar e o cineasta Raul Ruiz, em Antropologia da face gloriosa — S. Paulo — Editora Cosac & Naify) e no vídeo A lógica do êxtase. Parecem nos sugerir inusitadas reflexões cada vez mais distantes dos limitados âmbitos acadêmicos e medíocres da cultura oficial brasileira. (...) “De nada me serviu troçar sem crime verdadeiro e ser, na vida, menos fútil que nos versos; após passar tantos perigos em terra e mar afora, eis-me no ponto, a arder sob o seu frio intérmino! Eu que, nascido para os calmos ócios, dos negócios fugia e, delicado, a dor não suportava, ora a padeço, extrema; a mim, sequer um mar sem portos ou vias díspares puseram a perder; minha alma fez frente aos males e deu ao corpo força de suportar o que era quase insuportável.” (Ovídio in: Poemas da Carne e do Exílio — S. Paulo — Edit. Companhia das Letras — 1997). (...) “Hoje não existe mais pecado nem temor a Deus. Tudo é completamente mundano e utilitário. Deus fica do lado de fora de nossa existência. E no entanto todos nós sofremos uma paralisia universal da consciência. Todos os conflitos transcendentais parecem ter desaparecido, e no entanto se defendem como a imagem de Jacobskirche (uma igreja de Praga). Estamos imobilizados.” (Franz Kafka, transcrito da edição de 8 de Janeiro de 1984 da Folha de S. Paulo). (...) “Hoje o temor de Deus e o medo do pecado estão gravemente enfraquecidos. Mergulhamos num pântano de presunção. A (primeira) guerra nos mostrou isso, quando durante anos a força moral dos homens, e eles com essa força moral, foi anestesiada pela mera desumanização.” (Franz Kafka, na mesma edição da mesma fonte). Este diálogo entre as mais expressivas vozes que ecoaram ao longo do século XX continua: “O único problema é que, enquanto os falcões enquanto falcões e os pardais enquanto pardais professam amor a Deus, a tendência natural dos falcões para abater pardais continua inabalável.” (...) “Vai em busca do sagrado — a dimensão do homem que mais resiste à profanação do poder e a mais ameaçada pelas instituições das igrejas — recriando os mitos da Grécia Clássica.” (..) “Para o mundo burguês — capitalista ou comunista — que substituiu a alma pela consciência, não há salvação.” (...) “Os estudantes são tão odiosos quanto os seus pais burgueses.” (...) “A liberdade é um atentado masoquista à conservação: ela não pode ser manifesta de outro modo senão através de um grande ou de um pequeno martírio.... A realidade é uma linguagem. Mas se a realidade fala, quem é que fala?? É Deus!!.. Deus é um Ser que existe e não ama... O sentimento do sagrado foi institucionalizado pela Igreja.... No fundo do homossexual haveria, então, a reivindicação de sua castidade: o desejo da angelização. ... Hoje a liberdade sexual da maioria tornou-se uma convenção, uma obrigação, um dever social, uma ansiedade social, uma característica inevitável da qualidade de vida do consumidor... É no seio da família que o homem se torna verdadeiramente consumidor. .. Cada criança que nascia outrora, representando uma garantia de vida, era bendita, enquanto que cada criança que nasce hoje, contribuindo para a autodestruição da humanidade, é maldita... Sou contra o aborto... A facilidade criou a obsessão; porque se trata de uma obsessão ‘induzida’ e imposta... Tudo que é sexualmente “diferente” é pelo contrário ignorado e rejeitado.” (Pier Paolo Pasolini). (...) “Dar as costas, caminhar decidido, e ao final da estrada que vai dar em nada, nada, nada do que eu pensava encontrar. Se eu quiser falar com Deus...” (Gilberto Gil). Nos primeiros minutos de primeiro de Janeiro de 1999 encerrei a versão manuscrita (manu is cripta) deste texto também sobre a continuidade no descontínuo fragmentário. Ou sobre o exílio humano e existencial de Ovídio e de todos nós.


 

A impotência do narrador

 

A metrópole dos flanêurs é um labirinto no qual só os mortos sabem o que fazem. Para o inolvidável Lúcio Cardoso “os mortos têm sua linguagem e transmitem um recado que é ao mesmo tempo uma advertência e uma condenação daquilo que vivemos. “Os mortos paralisam minha narrativa . O medo do trem despontar na curva, na qual esmagou o bispo juizdeforano que estava quase galgando o primeiro degrau da escadaria que o levava à gótica igreja da Glória, me arrepia de pavor excitante. Acabou a última música do cd da Amália Rodrigues. Além dos paradígmas racionalistas (conhecimento X superstição/ iluminações imprecisas numa cena expressionista de terror X o plano satânico), dos mundos naturais e sobrenaturais, além dos golens e Frankensteins, um mergulho reflexivo no metafísico dilema civilizatório entre o bem e o mal pode mais nos atordoar do que nos reorientar. Santo Edgar Allan Poe, generoso Jean Genet, amado Belzebú, vampiros bailarinos, homens que se amam ocultos pelos vapores das saunas das metrópoles, michês de um sanitário público de Praga, senhoras zeladoras da limpeza brega dos chiqueiros, médicos e monstros roguem por nós! Amém.

A antítese fragmentante e cirúrgica da narrativa clássica e aristotélica (ou escatológica) disseca mas não revela a totalidade da verdade e, por isto e por outros motivos, não nos satisfaz. A história toda é a seguinte: um menino ficou chocado quando viu o pai bater e machucar sua mãe. Tão indignado ficou que, quando casado, fez o mesmo com sua mulher. Deu para entender? Só Proust ou Kafka podem explicar. O fluxo das confissões é entrecortado e fragmentado por reticentes soluços, por bergmanianos gritos e sussurros, por humilhantes sacrifícios tarkovskianos do homem contemporâneo. O fluxo de nossas narrativas é caótico porque nossas avós não nos contaram contos de fada quando nos espojávamos em seus sofás e em seus colos. Para conseguirmos narrar precisamos de uma certa serenidade reflexiva e pausada. .Os sustos que os bichos papões nos deram engasgaram nossos fios da meada e como novelos são expelidos de nossas convulsivas e compulsivas gargantas. Estamos engasgados e, por isso, nossas narrativas não fluem. Quem ou o que nos engasga?

A dialética entre as sínteses simbólicas (pulsões unificantes) e as diabólicas desunidades dualistas (dia = duas = dualidade) é um motivo metafísico e antropológico para todas as nossas tentativas de narrar e de nos expressar imitando a dinâmica histórica dos nossos cotidianos. A este respeito, leia e pense sobre o que nos mostram as obras do conde de Lautreamont, José Lézama Lima, Severo Sarduy, Lúcio Cardoso (e seus múltiplos narradores), Nestor Perlonguer e Guillermo Cabrera Infante.


 

Além das fronteiras

 

A América do Sul tem duas grandes fozes de grandes rios: a foz do Amazonas e o estuário do rio da Prata. Não sei qual delas seria a boca ou o ânus deste continente. Estive em Belém do Pará em 1987 e em 1989. Belém é a porta de saída (ou de entrada) da Amazônia. Alí inicia-se a foz do rio Amazonas. Agora, em 15 de Janeiro de 1999, chego à desembocadura do rio da Prata. Sei que estas duas fozes sul-americanas são bocas ou ânus donde escapam vozes dos mais longínquos interiores deste continente. Vozes ou ecos intestinais, viscerais, que, no Norte do Brasil receberam o nome onomatopaico de “pororoca”, o que me sugere explosões de puns ou peidos.

Sempre preferi o Sul ao Norte. O Sul me lembra frescor, clima temperado, Vietnã não-comunista, Coréia não-comunista, carneiros pastando silenciosamente em pradarias de um vivo verde, frescura, frutas, lã e aconchego, vinhos e embriagues, o que sobrou do paraíso.

O Norte me propõe analogias entre os seus climas tórridos e o Inferno, calor e esgotamento ou excesso extremo de energias. O Norte é rumo, é razão, é determinação de caminhos. O Sul é desnorteio, é olhar para o nosso chão futuro, é mergulhar genitalmente em nossas paixões. É dançar o Tango da sensualidade mortal e estonteante. No Sul encontrarei mais facilmente uma suave senhora com coque no cabelo, terninho andrógino e meias de seda pretas com vestígios de esperma.

Dia 15 de Janeiro de 1999. Vinte e duas horas e quarenta minutos. Chego pela primeira vez a um país estrangeiro. Chego aonde não conheço ninguém e sou desconhecido por todos. Chego a um lugar onde não possuo nada além de mim mesmo e de minhas bagagens. Chego a uma terra que vive há tanto tempo sem a minha presença ou sem tomar conhecimento de minha existência. Mais uma vez o mundo me ensina que eu não sou o seu centro.

Chego a Montevideo, onde vou querer conhecer a Cidade Velha (iniciada no século XVIII ou no XVII?), cemitérios, o edifício Salvo, bibliotecas, museus, restaurantes, igrejas, feiras, mercados e pousadas. Além de fitar, a todo momento, o relógio de pulso que levarei com o objetivo de manter a pontualidade nas minhas medicações, estarei respirando outros ares. Los buenos aires não me atraíram. Além de Montevideo, pouco ou nada mais me atrai no Uruguai. A não ser que pudesse passar um longo e aconchegante inverno numa estância de la Banda Oriental. Mais o que? Os cassinos estatais de Punta del Este ou suas conferências e reuniões de cúpulas sul-americanas me enfadariam. Ou estou me comportando como as raposas em relação às uvas que não alcança na fábula de Moliére? Mi Montevideo querida!.. Receba-me bem!.. Eu te amo Colônia de Sacramento!..


 

Ladainha da Bernarda Alba ou de Federico Garcia Lorca?

Com o anjo São Miguel e sua espada justiceira, descansa em paz!... Com a chave que tudo abre e com a mão que tudo fecha, descansa em paz!... Com os bem aventurados e as lamparinas campestres, descansa em paz!... Com a nossa santa caridade e as almas da terra e do mar, descansa em paz!... Concede o repouso ao teu servo Antonio Maria Benavides e dá-lhe a coroa da tua Santa Glória, Amém!.... Que o mesmo mingau de trigo de teu casamento sigas desfrutando......

“Todos os atos eróticos são delírios, desordens; nenhuma lei, material ou moral, os determina. Eles são acidentes, produtos fortuitos de combinações naturais. (...) Não podemos condenar alguns e aprovar outros, quando não conhecemos suas origens e não sabemos a que fins eles servem. A moralidade e os princípios morais não nos dizem nada sobre a verdadeira origem de nossas paixões. (...) As paixões variam de indivíduo e, ainda mais, são intercambiáveis. Uma eqüivale à outra. As chamadas paixões secretas não são mais horríveis, nem menos naturais, do que as normais. Para satisfazê-las, é preciso violar leis públicas: elas são mais violentas. Mas são mais violentas porque são mais naturais. O mesmo sucede com os prazeres cruéis. A normalidade é uma convenção social mutável, não um fato da natureza.” (Octavio Paz in: Un más allá erotico: Sade e Prêmio Nobel de Literatura — 1990).

Porque muitas mulheres colocam sonoros cascos ou saltos em seus sapatos para assinalarem seus passos com ruídos animalescos pelos minotaúricos corredores dos poderes contemporâneos? A terra da verdade é a que foi legada às mulheres que nada possuam. Uma verdade sem pênis. Na internet, ontem à noite, um “arrependido” nos confidenciou que dera o seu anel de couro a um parceiro do mesmo sexo e que seu ânus ficara coçando e avermelhado e nos indagava, aflito, sobre o qual vírus ou bactéria o infectara. Ri até sentir dores na barriga, quase rolei no chão de tanto rir. Foi por demais hilariante, só vendo!.. Não quis ofender-te. Eu me sinto o mesmo. As coisas se repetem. Eu vejo que tudo é uma terrível e repetitiva ladainha. Uma mulher me contou que sempre teve medo de crescer para que não fosse abraçada pelo seu marido do mesmo jeito que o foram suas bisavós, avós e mãe. Um homem mulato, aparentemente alheio aos que passavam alhures, ameaçava tirar as mínimas vestes que pouco cobriam o descontraído de uma moça que o acompanhava. Alguns moralistas ou anti-moralistas e estudiosos das questões propostas pelo depravado evangelista marquês (ou conde?) de Sade admitem que a defesa da monogamia é a apologia da medieval fidelidade ao monótono e ritualístico monopólio recíproco dos órgãos genitais por parceiros só pela morte separáveis. Mas nem depois da morte deixam de ser alvos de desejos eróticos. Erotismo é — também — uma potência que ultrapassa as barreiras físicas da morte!... Em seu livro Todas as almas, o escritor espanhol Javier Marias assim conceituou fidelidade conjugal: “o que assim chamamos para nos referir à constância e exclusividade com que um determinado sexo penetra ou é penetrado por outro igualmente determinado, ou se abstém de ser penetrado ou penetrar em outros.” (....) “Os amantes servem principalmente para escutar nossa história.”

Sob a condição de douta relíquia, passou ontem pela igreja de Santo Antonio de Ribeirão Preto metade do corpo de santo Agostinho, um dos vários santos católicos que viveram a sua animalesca carnalidade. Mamãe me reprova por andar nu pelas dependências da sua casa e alega, para reprovar-me, que meu corpo é um templo de Deus. E eu não lhe retruquei mas devia tê-lo feito: então por que ocultá-lo se todo templo de Deus foi construído para celebrar a sua glória?

A criada Martírio aduz: a sorte vem a quem menos a aguarda. Ou.... mais vale ouro na arca que olhos negros na cara!...

E lá, à beira do precipício, continuava a lendária igreja de Nossa Senhora da Penha, como nos arrebóis de outrora, dourada e estática, guardando um dos píncaros da cidade do Rio de Janeiro. Necessita-se de bom humor. Não há melhor alegria que a dos roceiros na aurora da colheita!... Eu durmo como um tronco e ronco nessas gostosas noites de outono/inverno. Pepe gosta de andar ao luar. O que foi visto, visto está. Há coisas que não se podem nem se devem pensar. Eu ordeno!.. — grita Bernarda Alba dando murros no chão. Aqui não passa nada, tudo permanece. Que Deus me mate se lhe minto!.. Com segurança nada se sabe nessa vida. Um dia seremos moscas mortas. Carvão em chamas no lugar do seu pecado!... Negro em brasa como seus ruivos pentelhos!... O cavalo garanhão está preso e dá coices nos muros. Quer um pouco de queijo com mel? Ou prefere uma limonada à beira da piscina da tua limusine? Eu não me meto nos corações por que quero boa fachada e harmonia familiar. Me entendes? Para não chorares nunca tentes descobrir as coisas escondidas. Um cavalo branco no centro do curral... um eqüino enorme que me dava medo!.. Parecia uma aparição. Mas não era. Era Bianca Jaegger entrando montada num garboso cavalo branco na boite Studio 54 de New York no fim dos anos 70 do século XX, imitando talvez as extravagancias surrealistas dos anos vinte e trinta....

“— Mãe, por que quando corre no céu uma estrela ou a luz de um relâmpago se diz:

Santa Bárbara bendita
que no céu estás escrita
com papel e água bendita”

E Bernarda responde: “Os antigos sabiam muitas coisas que hoje temos esquecido.” E Amélia disse: “Eu fecho os olhos para não vê-las.” Mas Adela discorda:

“— Eu não. Eu gosto de ver correr cheio de luz o que está quieto por anos inteiros”. E Elizabete Bishop oferece à sua amiga Lota Macedo Soares o carinhoso gesto de lavar seus cabelos (nos quais já brilham precoces estrelas) numa bacia de lata amassada. Eu fui à casa na qual Lota e Elizabete Bishop moraram em Ouro Preto, hoje propriedade dos Nemer.

Ocorre uma tempestade em cada quarto do nosso lar. Eu disse o que tinha de dizer. Eu te darei minha teta e um pão. Bernarda, cara de leoparda, rogai por nós!.. Madalena, cara de hiena, tende a misericórdia das migalhas!.. Ovelhinhas, vamos ao portal de Belém!.. Amém!.. Logo nos sentaremos todos e todos teremos o cabelo branco e seremos espuma. Meu cachorro ancião tem a ossatura tão leve que nem creio que possa suportá-lo em seus vinte e oito quilos de vida frágil e evasiva... ou esquiva.

— Pepe, o Romano, é um gigante. Todas o quereis. Porém ele as devorará porque vós sois grãos de trigo. Não grãos de trigo!.. Rãs sem língua!..

A filha Altina do coronel João Floriano Júlio, muitas vezes triunfalmente ovacionada no trajeto de sua casa até o clube mais chic de sua aldeia, nas comemorações de seus aniversários (em 21 de Julho), permaneceu solteira até os seus 87 anos de vida e, aí, morreu. Dalva, a filha mais idosa do finado Calimério, já conta 80 anos e fica vários dias sem comer pelo nojo que sente do cheiro de cachorro molhado pela chuva! Que estranho, não é? Amém nós todos!.. Aleluia!.. Dominum vobiscum et cum spiritu tuo!.. Deo gracias1 A nós descei divina luz! Prova de amor maior não há que doar a vida a seu irmão.. Uma turma de rapazes ricos de Bauru, nos anos 80, vinha prá Ribeirão Preto estudar numa faculdade que eles chamavam de “mourra na merda”, conhece? O que você prefere: deglutir matinalmente uma bolinha de manteiga rançosa na cozinha de algum sobrado da zona de prostituição da rua José Bonifácio ou continuar na sua carruagem, com a sua bola de sebo? Afinal, a revolução destruidora só ocorrerá quando todos soltarem todos os bichos que coabitam em cada um de nós ao longo desta milionar evolução biológica desvendada por Charles Darwin. C’est finis? Non!.. Péra aí... Plínio Marcos me mandou um “e-mail” dizendo que não lê originais nem do seu filho escritor!.. E Gilberto Gil, através da sua esposa, também por “e-mail”, me mandou a sua agenda de “shows” para os próximos 30 dias!..


 

As belas lembranças de mamãe

 

(José Luiz Dutra de Toledo edita carta de sua mãe Sílvia Dutra de Toledo — moradora de Tabuleiro — M.G. e enviada em 22 de Janeiro de 1998).

Inesquecíveis filhos José Luiz e Walter,

Como vão vocês? Recebí suas correspondências. Lí a revista e ví como Ribeirão tem várias repartições muito importantes. Tenho me sentido muito só e, então, às vezes parto para a leitura. Saudades do meu tempo ou da época de 1938/1940, quando criança...Tenho belas lembranças...Dariam para fazer um livro...mas só com as coisas que marcaram bons momentos de minha infância... aquelas amizades de primos, de colegas de escola, brincadeiras na fazenda da Água Limpa com meus inesquecíveis avós...As festas...As viagens em carros de bois para a fazenda...Eu e meus pais, irmãos...Papai punha um colchão no carro-de-boi para nos acomodar...Mamãe com um de nossos irmãozinhos em seus primeiros meses de vida...Íamos para a Água Limpa de tardinha e lá chegávamos ao anoitecer...Era muito agradável!...A gente deve lembrar das coisas boas, os momentos desagradáveis como a perda de meu irmãozinho Salvador (fotografado em seu caixão, já inchado e com uma mosca pousada em seu nariz), a perda dos meus tios, dos meus avós...as mortes de meus pais...tudo isso não me sai da lembrança, mas devemos passar por cima destas coisas em silêncio, em memória dos mesmos.

Aquí tudo como sempre, aquela rotina do dia-a-dia. abraços da sua mãe Sílvia. — Segue a fitinha de São Sebastião, guarde-a na carteira.

Resposta a mais recente carta de mamãe.

Mamãe,

Não uso carteira. Por isso guardei o pedaço de fita azul do estandarte da folia de São Sebastião atrás do quadro no qual mandei emoldurar uma reprodução da tela do santo pintada há mais de um século por Eliseu Visconti e adquirida em uma de minhas recentes visitas ao Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, onde está exposta a tela com uma das versões pictóricas do mártir católico, protetor contra a guerra e a peste.

Mandei emoldurar esta estampa de S. Sebastião e a exponho em nossa sala entre quadros de variadas temáticas.

Quanto a suas belas lembranças, coloco-me a sua disposição para digitá-las aquí em nosso computador e, à medida em que forem sendo bem dispostas graficamente, daquí vou lhe enviando as páginas bem formatadas e digitadas.

Há muito venho escrevendo, registrando no papel, ruminando, remoendo, repassando e socializando minhas memórias, recordações e lembranças e me surpreendí que só agora aos sessenta e quatro anos você começa a colocar no papel suas memórias...antes tarde do que nunca!!... Deixe vir à tona todas as lembranças...

Sobre o seu conselho para que eu passe em silêncio por cima das más recordações, eu não conseguiria fazê-lo pois não conseguiria apagar momentos vivos das nossas histórias, dos quais não me envergonho e contra os quais não me insurjo, nem me revolto e nem me indigno. Aliás não me considero um revoltado nem indignado. Só acho que se esquecermos os maus momentos ou em silêncio passar por cima deles em memória dos seus personagens, não teremos mais como resgatarmos nossas belas lembranças. É o ruim que nos mostra o bom. É o erro que nos leva ao acerto. É a infelicidade que ressalta e destaca nossos momentos felizes...não conheceríamos o branco se não tivéssemos visto o preto. E assim por diante...ou vice-versa.

Fiquei satisfeito em saber que em sua solitária vida de sexagenária esteja buscando na leitura diálogos que entabula consigo mesma e com os divinos e poéticos textos bíblicos.

Fuí ao capítulo 30 do Eclesiastes e lá encontrei o que me falavas ao telefone no domingo passado: “A melhor herança de um pai para seu filho é uma educação justa e forte. Quem ama seu filho castiga-o com frequência, e mais tarde este filho lhe proporcionará alegria, e dele se orgulhará entre os conhecidos. Quem instrui seu filho faz inveja ao inimigo e se rejubilará, por causa dele, diante dos amigos. Se o pai vem a morrer, é como se não falecesse, pois deixa em seu lugar um filho que é igual a ele. Enquanto está vivo, ele o vê e se alegra; ao morrer, não se sente angustiado: deixa quem o vingue e testemunhe gratidão aos amigos.” (...) “Um cavalo não — domado torna — se rebelde, o filho entregue a sí mesmo torna-se atrevido . Mima teu filho, e te fará tremer; brinca com ele, e te fará chorar. Não rias com ele, para não chorar com ele.”

Torquato Neto e Caetano Veloso, na letra da música Mamãe coragem!!, talvez melhor respondam às suas íntimas inquietações. Leia com atenção o recado destes dois compositores tropicalistas escrito há quase trinta anos:

“Mamãe, mamãe não chore/ A vida é assim mesmo / Eu fui embora / Mamãe, mamãe não chore / Eu nunca mais vou voltar por aí / Mamãe, mamãe não chore/ a vida é assim mesmo/ Eu quero mesmo é isto aquí. / Mamãe, mamãe não chore/ Pegue uns panos prá lavar/ Leia um romance/ Veja as contas do mercado, / Pague as prestações/ ...ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos, / seja feliz, seja feliz, / Mamãe, mamãe não chore/ Não chore nunca mais, não adianta!... / Eu tenho um beijo preso na garganta / Eu tenho um jeito de quem não se espanta / braço de ouro vale dez milhões/ Eu tenho um coração que vale.../ Mamãe, mamãe não chore/ Não tem jeito, / Pegue uns panos prá lavar / Leia um romance / Leia Alzira a morta virgem e um grande industrial, / Eu por aquí vou indo, mamãe!.. / De vez em quando brinco o carnaval / e vou vivendo assim, felicidade, / numa cidade que eu plantei prá mim /E que não tem mais fim / não tem mais fim.../ não tem mais fim... ”

Pois é mamãe...a vida é assim mesmo...até a gorda cabelereira Mariinha do Laurim morreu!!... mas nós estamos vivos e nossas memórias e nossas teias e redes de amizades continuam ecoando o pulsar de nossos corações. E por falar em amizade, dona Esmeralda de Belém-do-Pará manda lhe dizer que está lhe esperando lá de braços abertos, para acolhê-la em sua casa quando a senhora puder ir visitá-la.

Creio que por ora seja isto que tenho a lhe dizer. Abraços do filho José Luiz Dutra de Toledo.


 

A sabedoria dos que sabem que vão morrer

 

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(...) “Nas horas dificeis, os olhos ficam cegos; é preciso, então, enxergar com o coração.” (Antoine Saint-Exupery) (...) “Bad news, good news!” (The Time — London) (...)” O falso amigo é como a sombra: deixa de seguir-nos quando chega a noite do sofrimento.” (Héber S. Lima) “Tudo a entusiasma. Tanto prazer lhe dá uma baixeza quanto uma profundidade. Tem uma opinião original e engraçada sobre tudo. Tende a ter opiniões escandalosas. Conservadora e irreverente, a esquerda não a suporta e a direita não a entende.” (Miguel Esteves Cardoso falando ou escrevendo sobre a escritora portuguesa Agustina Bessa - Luis) (...)”Escrevo sobre sexo, que é um mundo perdido; a aberração da paixão; o amor e o casamento como forma de auto - piedade; a vida que é uma grande farsa e o nosso papel no meio disso tudo. “(aportes de Agustina Bessa - Luís sobre o seu perfil de escritora). Sobre as duas últimas citações consulte a pág. D - 1 do Caderno 2 - OESP -3 de Fevereiro de 1998. (...) “E poetas não devem ser julgados por professores.” (José Castello) Ví na coluna do Zanoto no Correio do Sul de Varginha-MG que existem artistas, escritores e intelectuais que só brilham eventualmente em concursos, simpósios, congressos e mostras ou festivais: que brilho fugaz!...

(...) “Segundo Ingmar Bergman a alma é vermelha”. (Rodolfo Serkin) (...) “As cores que a terra ostenta aos nossos olhos são sinais manifestos para aqueles que pensam. “(fragmento do Capítulo 16 do Alcorão - livro sagrado dos muçulmanos) “Oh meu Pai!...Tarde te amei!...Beleza sempre nova e sempre antiga!...Tarde te amei!..Estavas dentro de mim, mas eu estava fora!!” (Santo Agostinho- em suas Confissões) Segundo pesquisa divulgada esta semana por Márcia Peltier (3 de Fevereiro de 1998) na tv - Manchete dez por cento dos brasileiros que choram o fazem durante ou após o prazer sexual ou durante o orgasmo. Este é um país de dores e prazeres. Eu vivo sendo encurralado pela morte: por um lado, há quase três anos luto contra a AIDS e por outro lado enfrento há mais de um ano uma diabete tipo 1. Imunodepressão e diabete trazendo uma série de transtornos e limitações...Vivo agora uma torrencial tempestade com numerosas quedas de máscaras, revelações de hipocrisias tanto entre medíocres como entre utopistas de todos os matizes ideológicos. As limitações com as quais convivo nem sempre me fizeram mais mal - humorado que antes dos diagnósticos que comecei a receber após 20 de Março de 1995. Meus leitores concordam comigo neste ponto?...”Quem nunca sofreu ainda não sabe o que é viver.” (Manuel Bandeira)

“No seu apartamento discreto da rua Marquês de Abrantes, aos oitenta anos, ouve e conversa. mas não vê. Suspira às vezes ao telefone por causa disso. e eu lhe digo que faça como Borges, que transformou a cegueira em fonte de vida. O segredo da condição humana, meu Deus, é apenas transformar as adversidades em pura felicidade.

Num passe de mágica, por um golpe astucioso da sua liberdade, você - inteiramente só- transfigura o destino, rompe todas as barreiras e faz da suprema desventura um caminho novo de libertação inesperada. eis o poder do homem, na sua caverna. mudar a desgraça em alegria redentora, num segundo, como se fosse milagre.”(Antonio Carlos Villaça - Os saltimbancos da Porciúncula - Rio de Janeiro - Record - 1996 - página 23).

Os individualistas concluíram que ninguém ajuda ninguém e que só a pessoa angustiada é capaz de sair de sua caótica depressão. Os solidaristas e utopistas romãnticos cristãos e pós - cristãos ainda acreditam num tipo de senhorialismo clânico - tribal no qual inexistiriam indivíduos e se dissipariam na coletividade fraternal as individualidades e idiossincrasias, comunidades arregimentadas por salvadores carismáticos, messiânicos, demagógicos e, acima de tudo, tremendamente apaixonados por seus egos intransferíveis e únicos. Em suma, por líderes belicistas!!...


 

A Mendiga Bilíngüe

 

“Me dá uma “caridade”, me dá uma esmola por amor de Deus!...” Sentada na calçada, com pano na cabeça (ou nas cabeças? Ela pode ser também bicéfala), com mosquitos pousando no seu nariz esborrachado e em seus pés cascorentos, gorda mas não troppo, ela lança olhares patéticos e lancinantes sobre os pedestres que circunstancialmente passem ao seu redor. Suas sobrancelhas em curvas góticas fazem-na ainda mais dramática em suas implora­ções. No entanto, prefiro oferecer meus trocados a um mendigo que toca um instrumento por ele inventado, composto de tábuas rústicas e que me lembra algo que misture os sons de músi­cas russas, mexicanas e indianas, acordes bem semelhantes ao vibrantes e contorcentes me­neios melodiosos de uma cítara adicionados aos de uma harpa paraguaya. Desprezo a mendiga bilíngüe por que na Catedral temos muitas santas com aquela performance. OH! as inesquecí­veis balalaikas (que nada tinham a ver com as mulatas do balacobaco)!...Enquanto Nélida Pinõn passeia pelo Boulevard des Capucines, identifico na fisionomia da mendiga bilíngüe de Ribeirão Preto a antigüidade milenar da indigência do Homo Jequitinhonha. Que medo­nha!...Como disse o escritor moçambicano Mia Couto “são breves os enquantos e nenhum os encantos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos”. Quem rasteja na mendicância so­nha muito além da migalhas? O mendigo estaria aquém ou além dos estatutos do humano? A mendicância é uma forma milenar de ascese? Os párias indianos seriam como os mendigos bra­sileiros? Ingênuos Vitor Hugos continuam romanticamente fiéis à rasteira dramaturgia das calçadas, semeando pela mídia a revolução medíocre de amanhã. Quanta falta nos faz o so­berbo Paulo Francis! Desde Fevereiro de 1997 ele não existe mais!... Outros preferem denun­ciar a esperteza vagabunda dos falsos mendigos e há até aqueles que os tomam como objetos de suas pesquisas antropológicas sobre pedintes, forasteiros, errantes e andarilhos do final do século vinte no sudeste brasileiro. Ainda existem os mórbidos fascínoras fascístas que queimam mendigos com gasolina sob o céu estrelado na Brasília do comunista Oscar Niemayer. A gor-da mendiga aciganada cagou atrás do banco de cimento armado da praça Cruz Credo um monte colossal de bosta. Não sei onde nós vamos parar com tudo isto. Viva a bananada!...


 

Galinhas assustadas no meio da feira de fim-de-ano em Piumhí-MG

 

Amarradas umas as outras e boquiabertas,umas galinhas aguardam seus novos destinos e, possivelmente algumas delas não chegarão vivas ao final deste primeiro domingo de Dezembro de 1997. Em meio ao burburinho de uma feira de produtos alimentícios, artesanato e hortifrutigranjeiros e ignoradas pelos presentes,olhavam para todos os lados e, paralisadas por amarras, não viam mais aquelas sombras generosas das mangueiras nas quais ciscavam e nadavam em humosas e frescas terras.

Ao lado de uma fábrica de carrocerias de caminhão e perto da porta de uma padaria da rua Eduardo Heringer padece de depressão por abandono um magro e triste cachorro boxer. Chamei-o de Totó e ele me olhou com os olhos vermelhos de tanto chorar.

Mas quem entende destes sentimentos dos animais são apenas os românticos e raros loucos sobreviventes neste mundo de Internets, joint-ventures, lobbis, corporativismos e home-pages, nichos e incomensuráveis labirintos tecnológicos e ideológicos.??... Um dos que não está mergulhado nestas conteporaneidades é o Mestre de Perobas, o compositor das visões mais poéticas destes horizontes piumhienses, Mozart da Paixão. Curioso notar que sua paixão nunca esteve restrita ao genial universo de Amadeus Wolgang, o Mozart de Piumhí e eu também temos curtido muito o polonês afrancesado Frederic Chopin (morto, com apenas 39 anos de vida, pela tísica).

Além da música nosso maestro é poeta. Enquanto me levava da minha casa de arcos a la Niemayer até a rodoviária ele declarou um de seus poemas= um poema sobre a morte de Chopin sobre o teclado de um piano.

Foi através do amigo Mozart que fiquei sabendo da morte do meu amigo octogenário Adolfo Lasmar, farmaceutico e ex-presidente da Academia de Letras de Campo Belo-MG.

E a amiga e costureira Nenê (Maria Aparecida de Castro Amaro) — residente à rua Tito Ulisses nº 303 — além de suas prendas domésticas e culinárias, reza muito pelos amigos e parentes adoentados. Foi ela quem me contou sobre o medium de Vargem Bonita-MG que, através da alma generosa do Dr. Fritz, tem feito esplêndidas cirurgias espirituais.

No mais, adorei em minhas visitas pré - natalinas de 1997 o almoço que a Celita e a Teresinha do Eurípedes (que trabalha no hotel Belas Artes) me ofereceram e, lógico do também variado e delicioso jantar a mim oferecido pela Diva Ferreira Viana e sua mãe Diola do Calimério.

Êta Piumhí! Vira e meche tô sempre aí!...

Feliz 1998!... e F. H. C. na cabeça!...

(....) Abraços para todos os meus leitores no Alto S. Francisco. E cuidado com os tempos pós-pururuca!...

Relatório das realizações materiais, intelectuais e espirituais da dupla Walter Luiz Rodrigues e José Luiz Dutra de Toledo no ano de 1997:

 1 — Serviços domésticos gerais (cozinha, lavar roupas, limpeza, etc..)

 2 — Aquisição de nova televisão, novo guarda-roupa, mesa para tv, mesa para o computador, mesa para a impressora, 2 cadeiras com estofamento vinho para uso no escritório; aquisição de um micro-computador e uma impressora em cores; aquisição de uma linha telefônica para a casa de Piumhi-MG;

 3 — Pintura externa e interna na casa que alugamos em Ribeirão Preto-SP. e pintura interna e externa da nossa casa de Piumhi-MG.;

 4 — Envio de donativos a amigos e parentes necessitados ou carentes.

 5 — Elaboração de centenas de textos sobre temas culturais, historiográficos e sobre comportamentos e publicação em jornais de vários estados brasileiros de 75 artigos;

 6 — Instalação, uso e consultas a rede Internet.

 7 — Prestação de serviços educacionais elaborando projetos pedagógicos (sobre serviços postais; o Universo dos Santos Católicos, Qual é a minha cara? ou Quem vê cara não vê coração) e montagem de 10 embriões de hemerotecas escolares para 10 escolas municipais de Ribeirão Preto-SP. e atendimento de esporádicas consultas das escolas à Hemeroteca da Secretaria Municipal da Educação;

 8 — Concessão de cinco entrevistas a jornais e revistas de Ribeirão Preto-SP;

 9 — Manutenção de uma rede de correspondências com pessoas e entidades culturais de São Paulo, Sta Rita do Passa-Quatro, Piumhi;, Brasília, Juíz de Fora, Rio de Janeiro, Belém-do-Pará, Balsas — Maranhão, Ribeirão Preto, Porto Alegre, Tabuleiro, Rio Pomba, Matão, Poços de Caldas, Varginha, Florianópolis, Salvador, Sergipe.

10 — Obras de restauração do apartamento nosso em Tabuleiro — Minas Gerais;

11 — Várias viagens (3 a Tabuleiro e dez viagens a Piumhi) para cuidarmos dos nossos laços familiares e de nossa casa em Piumhi-MG e em Tabuleiro-MG;

12 — Aquisição de novas roupas de cama, banho e vestuário para o dia-a-dia;

13 — Manutenção de um bom padrão alimentar;

14 — Pagamento em dia das contas de água, luz,telefone, aluguel e IPTU das casas de Tabuleiro, Ribeirão Preto e Piumhi;

15 — Revisão no testamento do Walter.

16 — Aquisição de dezenas de livros, discos Cds, Cd-roms, revistas e montagem de mais 3 albuns com fotos de nossas viagens e realizações.

17 — Emolduramento de várias obras de arte expostas em nossas casas

18 — Realimentação dos acervos da nossa hemeroteca;

19 — Viagens de férias do Walter com o Aragão e manutenção do convênio com o veterinário e manutenção da medicação e cuidados com o Aragão que já atinge quase 13 anos de vida. Aragão é o nosso filho cachorro;

20 — Assinatura do jornal O Estado de São Paulo;

21 — Contratação do pastor Antonio da Assembléia de Deus para a limpeza do jardim da nossa casa em Piumhi-MG;

22 — Organização e encadernação do 2º volume das Obras Completas de José Luiz Dutra de Toledo e organização do volume Wulchereria Bancrofti (textos de José Luiz publicados em 1997 por jornais mineiros e paulistas);

23 — Seleção, elaboração e divulgação de textos, crônicas, reportagens e ensaios entre trinta escolas de primeiro e segundo-graus dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro (escolas públicas municipais e estaduais).


 

Ela só conhece o Paraguay e leva a vida na gozação acreditando que nasceu de uma gozação

 

O último livro que comprei em 1997 foi o das Confissões de Santo Agostinho, bispo de Hipona, obra já se aproximando dos seus mil e quinhentos anos de existência, uma clássica reflexão atraente para psicólogos, teólogos, antropólogos, historiadores, literatos e filósofos.

“Tanta gente canta, tanta gente cala, tantas almas esticadas no curtume!...” (Caetano Veloso). Quando eu fui criança nos anos cinqüenta deste moribundo século, me lembro vivamente que não só as lavadeiras e donas de casa ou arrumadeiras de barrigadas de porcos cantavam nas beiras de tanques. Além das mulheres - cantoras ouvia também muitas crianças e homens adultos cantando não só debaixo de chuveiros. Além de cantarem, assobiavam, dialogavam com papagaios e gritavam de tudo (impropérios, palavrões, nomes de santos, o Santo Nome de Deus invocavam à exaustão até a presente banalização e morte do divino). Hoje, por sádico castigo de Deus, fomos condenados ao mais tormentoso e inquietante mutismo. E mutismo não é o mesmo que silêncio, lembremo-nos disto!... (...) “Hoje em dia, todos os analfabetos sabem ler.” - Alberto Moravia -

Sobre os seus primeiros anos de vida mortal ou primeiros anos de morte vital, Santo Agostinho crê que por causa de Deus ele não desejou mais que o CriaDOR lhe dava e, por isso, A ÚNICA COISA que ele sabia era mamar, aquietar-se com os afagos e chorar as dores da sua carne e nada mais.

“Depois também comecei a rir, primeiro dormindo, depois acordado” completa o poético sábio Agostinho em suas notas sobre quando foi recebido pelos consolos do leite humano e só depois de morta sua infância ousou perguntar a Deus: — “E antes desse tempo, minha doçura e meu Deus, que era eu? Fui algo, ou era parte de alguma coisa? Dize-mo, porque não tenho quem me responda, nem meu pai, nem minha mãe, nem a experiência de outros, nem minha memória...” (...) “Acaso alguém pode ser artífice de sí mesmo? “Desde que Rômulo e Remo foram amamentados por uma loba, o Ocidente sabe de nossa origem essencialmente animal, besta que se considera filho predileto do Criador. Crença destrutiva de órfão desamparado? Ou pretenso herdeiro de paraísos inexistentes?

E Agostinho indaga a Deus::

— Porque o pranto é doce aos desgraçados?...E, contudo, se nossos gemidos não chegassem a teus ouvidos; não haveria esperança alguma para nós.” (...) “Por acaso, porque esperamos que nos ouças? Isso acontece quando se trata de súplicas, que sempre levam em sí o desejo de chegar a tí; porém, poder-se-á dizer o mesmo da perda ou do pranto que então me inundava?

Agostinho chora diante da constatação da irreversível separação ou apartar que distancia o Criador de suas humanas criaturas destruidoras e ambiciosas como Prometeu.

Só mil anos depois destas agostinianas interrogações a espanhola Santa Teresa de Ávila ousou respondê-las: a humana ontologia nos separou irremediavelmente de deus e, por isso, para Teresa de Ávila derramamos mais lágrimas pelas graças alcançadas do que pelas não - alcançadas.

Passam os dias e as nuvens e os céus e os nossos véus vão um a um caindo, caindo até descansarmos debaixo de uma secular figueira.

E Santo Agostinho volta a falar comigo: (...) “Lembro-me de ter estado alegre, sem que o esteja de novo; recordo minha tristeza passada, sem estar triste ou lembro-me com alegria de minha tristeza passada, e com tristeza da alegria que experimentei. ....Vêde que é da memória, dos nossos vastos palácios da memória, onde nossos desejos podem se realizar, é d’aí que tiro a distinção entre as quatro distinções da alma: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. E é da memória que tiro tudo o que digo, é, portanto, a memória que chamamos de espírito.”

Em sendo A-temporal, embora por Ele todos o tempos e seres reivindiquem existências reais ou imaginárias, e n’Ele tudo venha a fluir por todos os séculos e milênios amém, Deus é fértil em sua profundíssima memória do esquecimento. Longe de ser um desmemoriado, o animal humano é o único que se perde em suas próprias teias e labirintos. Saudades de Jorge Luis Borges!....

ANTECEDENTES BIOGRÁFICOS DESTE EMPOLGADO INTERNAUTA

Foi o roqueiro pós-tropicalista Zeca Balêro quem me sugeriu ou me incitou a fazer uma pesquisa arqueo-genealógica sobre a biográfica formação deste internauta e de suas ou de minhas conexões com o mundo e com os outros. Aquí sou, a um só tempo, sujeito e objeto.

Mamãe me disse que quando era neném ela me colocava em cima da mesa enquanto ela cozinhava. Com medo de cair, eu ficava quieto e impedido de exercitar meus diminutos elos tentaculares entre o meu ego e este vasto mundo no qual se nos chamassem de Raimundo só seria uma rima e nunca uma solução.

Seja fazendo minhas infantís fofocas; ou escrevendo e recebendo publicações de embaixadas de inúmeros países socialistas e capitalistas em plena Guerra-Fria ou obtendo assinaturas de revistas da então Alemanha Ocidental e da Organização dos Estados americanos; ou ouvindo rádios russas, cubanas, norte-americanas, inglesas ou francesas com transmissões noturnas em idioma português; viajando ao Rio de Janeiro, a Juiz de Fora ou a Belo Horizonte e muitas outras cidades brasileiras; trocando correspondências com escolas apostólicas católicas; lendo vidas de santos católicos em fotonovelas; trocando cartas com senhoras católicas amigas da minha família e/ou mandando cartas de apoio ao líder udenista Carlos Lacerda e dele recebendo atenciosos agradecimentos não-eleitoreiros (pois era mineiro e não passava dos 12 anos de idade e nem era período eleitoral) e conversando com pessoas que se dispunham a me mostrar slides de suas viagens à Europa e à Terra Santa, foi assim que há mais de quatro décadas começou a se formar o presente e excitado internauta em horas vagas.

Tamanho interesse pela Internet não nasceu assim de uma hora para outra, veio de tempos e espaços bem remotos da minha história. A busca do outro me rendeu auto-conhecimento. Minha independência radical impediu-me alguns vôos mas me fêz respeitável. Aquí tenho uma das explicações para que me tornasse, mais tarde, uma pessoa instigante, polêmica e interessante.

(31 de dezembro de 1997/primeiro de Janeiro de 1998)


 

Impressões sobre a história da cidade de Piau - Minas Gerais

 

(...) “Aquela cidade sempre te habita...
tua cidade
não te deixa por onde vais,
como o fiel a seguir o andor
Para se ter uma cidade é preciso estar longe dela
Quanto mais longe dela
mais uma cidade é mais que uma cidade
pois, como escreveu o neovanguardista polonês Zbigniew Herbert
Se a Cidade cair e apenas um sobreviver
carregará a cidade dentro de sí pelos caminhos do exílio
ele será a Cidade.
(fragmento do poeta paraibano Hildeberto Barbosa Filho em seu livro A Comarca das Pedras — editora Manufatura — 1997)

Piau é nome de peixe e os peixes são símbolos das profundezas aquáticas da vida, seres de brilho cristalino contrastando com os mistérios das névoas das paisagens das quais emergimos. Pedro Anselmo, pai da minha avó Argelina, era de Piau. Sua mãe Ambro- sina também. Vovó Argelina, mãe do meu pai, filha de Ambrosina, fazia inesquecíveis tige- las de ambrosias, pântanos lácteos de coaguladas e cheirosas delicias. Piau é a terra das ba- nanas mais vendidas nas feiras de Juíz-de-Fora. O rio Piau é afluente do rio Novo que,por sua vez, desagua no rio Paraíba do Sul. Dizem que Piau foi fundada por pessoas mais ou menos envolvidas com a Inconfidência Mineira (1789-1792) que para lá fugiram fundando uma nova cidade que até vinte anos atrás tinha só uma rua. Além dos seus casarões e sobra- dos, o cemitério local sugere indícios de uma cidade com história secular. Seus altos muros de pedras musgosas, túmulos cercados por grossas correntes de ferro ou catacumbas com lá- pides datadas de 1814, 1840 e 1856 e algumas lendas sobre uns poucos malditos ocupantes destes jazigos que, com o tempo, reapareceram em corpos de víboras alí encarceradas pelas pesadas correntes de ferro, em torno dos seus sepulcros instaladas. A Piau que há mais de 35 anos foi palco de escandaloso acidente automobilístico ao qual sobreviveria uma prostituta que, aos berros, saiu do hospital dizendo que de nada se arrependia... É ainda lá em Piau que mora minha comadre Celeida e minha afilhada Rosa.

Anotação Marginal: Arnau de Vilanova viveu na Catalunha entre 1240 e 1311 e aí pregou as idéias socialistas do místico italiano Joaquim de Fiore (homem que influenciou a doutrina franciscana em favor da piedade caridosa em relação aos pobres e que viveu entre 1145 e 1202). Vilanova e de Fiore previram uma idade do Espirito Santo na qual todo o mundo viraria um mosteiro no qual todos viveriam arrebatados pela divindade. Todas as coisas seriam partilhadas em comum. A propriedade deixaria de existir e findariam as guerras. A humanidade atingiria o seu ponto máximo de evolução.

Vilanova pregava a pobreza religiosa mas era conselheiro do conde-rei de Barcelona. O teólogo catalão Francesc de Eiximenis (viveu entre 1330 e 1409), apesar do seu desapegado passado franciscano, compôs um dos mais célebres elogios ao espírito burguês mercantil catalão.


 

Imagens oníricas captadas no último mês de 1997

 

Subindo o morro do Calvário, com o sopro dos ventos uivantes, um padre católico, com batina e chapéu de aba larga pretos, com sua sombria e circunspecta batina negra esvoaçando e a sua face peregrina e implorante, me lembra Sísifo.

Grita o papagaio do bar do Severino: — “Ô Maria Dalva!....Vem comer goiabada!... Já saiu outra tachada!...” E o andarilho Bastião Luzia canta debaixo da marquise do bazar S. Pedro: ”Oh pescador da barquinha!....Oh que lá!”

As esquerdas dão continuidade à cultura de botequim na qual se confunde criticidade com desancar, difamar e acusar, imputar perversidades e crimes aos inimigos governantes. Responsabilizá-los por corrupções pandêmicas, corrupções das quais todos nós, quer queiramos ou não, participamos direta ou indiretamente, ativa ou omissamente, nas cúpulas ou nas bases de nossa sociedade, corrupções que a todos nós envolvem porque nenhum indivíduo transcende à corrupção no meio da qual vivemos materialmente nossos anseios míticos e arquetípicos. Cultura de botequim pela qual discutir política é falar mal do governo que a maioria desta nossa sociedade conduziu ao poder, conversas para bois dormirem e sonharem com os mágicos que matam a cobra e mostram o pau, disseminando a crença ignorante pela qual negar já seria por sí só uma proposição, o anúncio de uma alternativa ao que diz combater.

Às vezes penso que a alma do meu pai ronda o meu sono de roncador, deitado como um porco pelado no piso frio da sala.

No seu livro intitulado Viver em Cuba — uma experiência inesquecível, terceira edição — Brasília — Ed. Goethe — 1986, a educadora-militante Josina Maria Albuquerque L. de Godoy d’entre muitos episódios, nos informa sobre as provocações vingativas e ressentidas dos castristas aos ‘gusanos’ da praia Tarará, nos fala das maravilhas ditatoriais do insígne Fidel Castro e sua teologia ortodoxa de mártires e cãnones burocrático-militaristas e do seu dignificante código para a família cubana, esquecendo-se de nos informar sobre o que lá cometem em termos de violências contra as individualidades, ou melhor, contra homossexuais, prostitutas e numerosos outros tipos de ‘desafinados’ no coro dos contentes com tamanha e longeva tirania. Afinal, a família de Josina estava bem enquadrada no ‘status-quo’ ou padrão moral bolchevique-leninista (seus dois filhos casadinhos com revolucionárias decentes e dígnas e certinhas — ou candidatas a mártires de la Revolución). Josina elogia a revolução cubana no plano cultural, mas nada informa sobre a marginalização de brilhantes escritores cubanos, como nos casos de José Lezama Lima, Severo Sarduy, Guillermo Cabrera Infante e muitos mais. Tais escritores tiveram por muito tempo suas obras mais ou menos bloqueadas pela censura castrista e, por conta deste bloqueio perpetrado pelos atuais ditadores cubanos, permaneceram pouco conhecidas na América Latina.Eu sei que nenhuma revolução nos devolveria o uterino paraíso perdido, por isso me condenaram a ser um eterno subversivo e a ser uma constante ‘metamorfose ambulante’ na lumpen intelectualidade do Brasil contemporâneo.


 

Sobre a suntuosidade (decadente ou delirante?) de Montevideo

 

Risadas nervosas no aeroporto. A sala de embarque é como um purgatório donde a maioria se eleva aos céus e uma minoria aos infernos. O diabo é um tentador e belo comissário de bordo. O motorista Gabriel me conduziu do aeroporto de Carrasco ao centro de Montevideo, apontando-me os principais atrativos turísticos da capital do Uruguay. Nos 16 quilômetros desse trajeto vi um pequeno e frágil cachorro abandonado, várias carroças acompanhadas por fiéis cachorros grandes e peludos. Era meia noite. Começava o dia 16 de Enero de 1999. Pela manhã, na Ciudad Vieja, vi uma mendiga à porta da Catedral (neo-clássica com retábulos pós-barrocos). La Virgen de los 33 é a “patrona” (padroeira) da República Oriental del Uruguay. No centro histórico da capital uruguaia vi e admirei muitos solares, palacetes e imponentes edifícios do final do século XVIII e do XIX. Muitos destes prédios mal conservados, outros quase irremediavelmente arruinados.

Os segredos e as intimidades uruguaias ainda trafegam em velhos automóveis e caminhonetes. Carros Ford dos anos 20 e 30 assim como veículos automotores de marcas européias montados na Argentina e no Uruguay nos anos 40, 50 e 60 não são escassos nas calles de Montevideo. A paisagem cotidiana de Montevideo me lembrou relatos de viajantes que visitaram Havana muito recentemente. Mas a decadência suntuosa de Montevideo não está tão agravada quanto a de Havana. Muitos restaurantes, instalados em prédios do início do século XX ou do século XIX, apresentam interiores arquitetônicos com vislumbres estéticos modernos e pós-modernos. Os uruguaios não entendem facilmente a fala luso-brasileira deste despreparado e incauto turista.

Na Televisão Nacional do Uruguay, no Sábado à tarde, vi programas técnicos sobre agricultura e pecuária, análises econômicas, entrevista com um roqueiro da capital uruguaia e uma mesa redonda sobre a história da vida privada dos uruguaios. Nesta ocasião, o historiador Gerardo Caetano distinguiu historiografia de História. A historiografia é por ele vista como uma história da arte e da técnica de narrar a História ou as histórias. Nesta conversa entre uma antropóloga e dois historiadores se levantou vários dados e questões sobre o nascimento da privacidade uruguaia entre 1870 e 1920.

Em algumas portarias ou portas de hotéis do centro histórico de Montevideo vi placas do tipo “Acepta-se niños.” (Aceita-se crianças). Provavelmente em outros hotéis não se aceitam hóspedes infantes. Na feira de livros e objetos antigos montada aos sábados na praça da Catedral de Montevideo, vi várias bancas de feirantes exibindo lindas bonecas de louça, vestidas como crianças do século XIX. Assisti até o fim ao interessante programa televisivo Puglia Invita em sua edição de 16 de Janeiro de 1999. Não duvido mais: o Uruguai é um outro país. Teresa Porzecanski foi a antropóloga participante da mesa redonda por mim assistida neste programa televisivo uruguaio. Brilhantemente, os debatedores aludiram aos ocultamentos das enfermidades mortais, à visão da morte como evento não-natural e vergonhoso para a família do morto e sobre a sensibilidade feminina numa cultura machista como a uruguaia. Tais cientistas sociais ainda discorreram sobre as várias tentativas de disciplinar e uniformizar ou padronizar os rituais fúnebres uruguaios. Tentativas de igualar ou tratar com igualdade aqueles que em vida foram desiguais, numa espécie de justiça mortal. Por isso os juizes andam com togas pretas? ... Falaram ainda os painelistas deste programa da tv uruguaia sobre os catecismos cívicos adotados no magistério. Também responderam aos telespectadores que perguntaram sobre o que sejam os intelectuais e no que se diferenciam dos demais profissionais. E tentaram orientar aos que perguntaram sobre os contornos e os perfis da identidade nacional uruguaia propondo-lhes a construção de um povo em vez de se buscar um conceito estático e pronto do que seja a alma uruguaia. A propaganda mais bela e emocionante que vi na television Nacional - canal 5 do Uruguay foi a divulgadora do mundo intacto e rural donde brota a água mineral Salus (com gás, eu preferi). Perto do Hotel Reina, no qual me hospedei, calle Bartolomé Mitre, 1343, já localizei vários sebos, livrarias e antiquários. Um dos maiores antiquários do quarteirão chama-se Napoleón e tem, em sua entrada principal, as bandeiras da França e do Uruguay.

Para o historiador Gerardo Caetano, o historiador não pode deixar de ser um investigador social. Sobre os intentos de pesquisa sobre a história da vida particular dos uruguayos, devo reconhecer a minha estranheza diante da venda de fotos de casamentos, poses para álbuns de famílias (muitas do início do século XX ou até do século XIX) na feira de antigüidades montada no fim da semana en la plaza de la Constituición, en la Ciudad Vieja, centro histórico de Montevideo e acima designada como praça da Catedral. Nesta feira pude comprar um retrato em óleo sobre tela de uma senhora fazendeira que viveu há mais de cem anos no interior do Uruguai e, provavelmente, ali retratada por algum experiente pintor e retratista uruguayo anônimo do século XIX. É a intimidade do povo da República Oriental vendida como sebo (a granel) nas praças, feiras e mercados. Na noite de Sábado silencia-se ou deixo de ouvir o carrilhão da Catedral, mas passo a ouvir os patins das crianças e adolescentes dançando sobre rodinhas pelas históricas ruas de casas nobres arruinadas pela história e desaparecimento dos seus ocupantes de outrora.

Alguns minutos antes do meu embarque para a capital da Banda Oriental, vi o diretor e cineasta Sylvio Back passar e entrar numa fila para pagar um café. Aproximei-me dele e perguntei:

— Sylvio Back?

E ele me respondeu:

— “Às vezes.”

Disse-lhe, sorrindo:

— Vim até você só para lhe dizer que muito aprecio o seu trabalho.

E ele me agradeceu por minha resposta e aceitação da sua obra com outro sorriso de simpatia e charme.

Em seguida, entrei num túnel que me lançou no avião da Pluna — VARIG e, como um diabo, meu corpo sumiu desta terra e 2 horas e vinte minutos durou o vôo que, num baque de pneus na pista asfáltica e dura del Carrasco Airport me devolveu à humana condição de terráqueo a se arrastar, com persistência, pelo continente em que nasci e do qual ainda não me ausentei.

Lautréamont abandonou sua Montevideo ainda imberbe, trocando-a por Paris, no Velho Mundo. Também vim até acá para encontrar Lautréamont em sebos e livrarias.

A tristeza dos povos formados no estuário platino por colonizadores ibéricos e as estratégias dos articuladores e realizadores dos interesses ingleses neste vasto escoadouro de prata, couro, erva-mate, lã e carnes é muito semelhante às saudades que os portugueses sentiram da sua terrinha em nossos tristes trópicos.

Mas a tristeza platina tem muito a ver com a sensação de exílio e deslocamento dos centros da civilização européia aqui sofrida pelos seus desterrados anglófilos e francófilos. O antiquário Napoleão Bonaparte é uma amostra representativa deste processo cultural. No Brasil muitos ainda riem da posição na qual Napoleão perdeu a guerra. Mas os hispânicos (mais afrancesados que os portugueses) reverenciam e cultuam mais seriamente a cultura francesa. Em este Monte vi Deus! Montevideo!... Um monte de videos? Foi acá que me senti pela primeira vez um estrangeiro fora da minha “pátria”.

No segundo dia de vida em Montevideo vi muito mais cachorros abandonados e mendigos loucos ou pessoas visivelmente marginalizadas. Na praça de la Constituición vi uma mendiga usando óculos para escrever e calcular seus pertences e ganhos no Domingo 17 de Enero de 1999.

A Casa del Teatro de Montevideo, dentro do Ciclo de Divulgación de autores nacionales apresenta a peça El Loco Julio do teatrólogo Victor Manuel Leites, uma produção do Ministério de Educação e Cultura do Uruguay (que também distribuiu pelas praças de Montevideo vários quiosques, stands e traillers para a venda de livros, cds, videos e outros documentos expressivos da história cultural uruguaya).

No prospecto sobre a peça El Loco Julio li o neo-barroco poema Oblación Abracadabra de Julio Herrera y Reissig. Ei-lo:

“Lóbrega rosa que tu almizcle efluvias
y pitonisa de epilepsias libias
ofrendaste a gonk gonk vísceras tibias
y corazones de panteras nubias.

Para evocar los genios de las lluvias,
Tragedizaste póstumas lascivias,
Entre osamentas y mortuorias tíbias
Y cabelleras de cautivas rubias.

Sonó un trueno. A los últimos reflejos
De fuego y sangre, en místicos sigilos,
Se aplacaron los idolos preplejos.

Picó la lluvia en crepitantes hilos,
Y largamente suspiró a lo lejos,
El miserere de los cocodrilos.”

 

Fui amigo de um poeta nascido em Montevideo e, nos anos 70, exilado no Brasil e posteriormente naturalizado brasileiro. Casou-se com Hilda. Chamava-se (ou chama-se?) Alfredo Fressia. Em seu livro Cuarenta Poemas , impresso em Enero de 1989 pelas Ediciones Uno, Alfredo brindou-me com este poema revelador de seu passado montevidentino:

Tarjeta postal

Vista nocturna del centro
de Montevideo, no reconozco el aire
violeta de las calles, pero una dura
amatista de memoria, y presa
resistente de los dias.
No moriré en Montevideo,
pero las manos me enseñan el camino
al trompo quieto que giraba com el mundo
(la vista nocturna del tiempo de mi infancia)
Pero las fotos declaradas y la fe
Amarilla en los cajones, irreconocible
Vista nocturna encima de mi cama, inverso
El mundo, en outro idioma, un trompo
De mentiras: los ojos siguen presos a la dura
Memoria de otros dias.”

 

Não sei porque, mas vejo Lautréamont no encalço de Alfredo Fressia... a biografia deste meu ex-amigo de Montevideo me remete à história de Lautréamont. Alfredo é (ou era?) professor de Francês. Para ele tudo era tremendo e pungente.

Muito me impressionaram as imóveis posturas dos guardas da negra e marmórea sala sepulcral de José Artigas nos subterrâneos de la Plaza de la Independência e a publicidade da Associación de los Afiliados de las Previsiones. E também a dos Afiliados da fúnebre Casa de la Galícia. Encontrei apenas uma metade do disco da Victor Talking Machine Co. com a Obertura de la Ópera Forza del Destino, de Verdi, atirada em um certo ponto de uma das calçadas da imponente, pomposa e comercial Avenida 18 de Julio de Montevideo. Os objetos vendidos aos turistas são caricaturas ou clichês da cultura tradicional uruguaia. Para verificar se digo a verdade, vá ao Mercado del Porto de la ciudad de Montevideo!.. Além dos monumentais edifícios bancários e do faraônico prédio do Banco Central Uruguayo, me chamaram a atenção a imponência do Palácio de las Leys (do Congresso Nacional) e a grandiosidade da arquitetura militar do Comando da Armada, na frente do Mercado do porto de Montevideo.

Além das milhares de lojas, restaurantes, casas de câmbios, edifícios públicos, monumentos, praças, quiosques, bancas e outras atrações, a Avenida 18 de Julio é uma extensa via para extenuados turistas cansados de tantas imitações, miniaturas e tentativas de imitação da estética arquitetônica do edifício ou palácio Salvo. Por sua vez, este edifício do centro de Montevideo parece imitar prédios semelhantes de Buenos-Aires e, talvez, até de Barcelona!... Muitos dos palacetes em ruinas em Montevideo nos lembram os prédios neo-clássicos (também deteriorados) das decadentes ruas Vitória e Aurora de São Paulo - Brasil, ruas nas quais habitou (até dez anos atrás) o poeta Alfredo Fressia, professor da Aliança Francesa da Vila Buarque.

Sobre o seu cotidiano no caótico e trágico centro de São Paulo, nos escreveu o poeta Alfredo Fressia:

“Nocturno en la avenida são joão

Un travesti en silencio contra un poste
es menos triste que la avenida São João de madrugada,
cuando la niebla se recuesta nordestina
y venérea en las ajenas paredes sin empleo, y esperan
las mujeres, y el borracho espera por su sombra
caída en la calzada. La hora en que se hunden
en su rabo interrogante los gatos sin respuesta
y los marineros cantaron y se miran
esperando por su canto, esperando por oirlo
y todos los idiomas son incomprensibles
como la espera del viento por sí mesmo
oyendo su queja vieja de ventana rota.

En el anónimo cuarto sólo iluminado
por el neón afuera, los amantes
son títeres del tiempo: oyen dar
las caricias violentas de la noche y se toman
por la espalda blanda como cama deshecha.
El viento se encajona en la avenida de olor ácido
Y los amantes se duermen al neón repetido, sin
Cuerda
La noche embotellada entre los postes.”

 

Placenteros, Oasis e Miracle são alguns dos nomes das casas de massagens eróticas heterossexuais propagandeadas por panfleteadores dispostos ao largo da enorme e serpentina avenida 18 de Julio de Montevideo.

Apesar dos constrangimentos a mim causados acá pelas turbulências financeiras dos últimos dias no Brasil (ou em todo o mundo?), já posso dizer que sou um pouquito uruguayo e, como meu imperador D. Pedro II, disponho-me a levar um pouco da terra uruguaia em minha volta ao Brasil.

Anoto aqui também duas observações que fiz ao folhear os mais recentes catálogos telefônicos de Montevideo: as poucas saúnas ou termas nela existentes e a confortante e afetiva informação sobre dois cementerios para animais na capital dos uruguaios. Um deles é chamado de “ecológico”. Interessante!..

Uma enorme fila, durante todo o Domingo 17 de Enero de 1999, evoluiu para a reeleição da lista ou chapa 4 da Cooperativa COSSAC, com a recondução de 2 de seus atuais diretores à gerência deste grande conglomerado cooperativo uruguaio. Diz o panfleto favorável à chapa vitoriosa: “No prometimos y superamos expectativas. Logros en dos años de nuestro periodo: servicio fúnebre sin costo; cementerio privado sin costo; servicio odontológico sin costo en urgências; servicio de comestibles (entrega a domicilio sin costo); asesoramiento jurídico (sin costo); convenios y descuentos en comercios adheridos. Obsequiamos perfumes y bufandas en el dia del abuelo. Fuimos los únicos capaces de repartir entre nuestros socios más de 20000 canastras en fin de año. Comprobamos lo que juntos de la mano, la tercera edad com su experiencia y los jovenes com su fuerza pudimos hacer. Respecto, seguridad y confianza.” Força, liberdade e lei são alguns dos pontos cardeais anunciados no Obelisco de Montevideo na orientação do espírito do povo uruguaio.

Algumas observações feitas em meu primeiro dia útil em Montevideo: além de, a duras penas, conseguir trocar alguns travel-checks de 50 dollares a mim vendidos pelo Banco do Brasil, en lunes, 18 de Enero de 1999 vi muitos uruguaios ou uruguaias tomando chimarrão ou Coca Cola pelas calles e avenidas de sua capital(inclusive pela 18 de Julio!). Que coisa esquisita!.. Em meio à pressa e aos atropelos nas calçadas da 18 de Julio e de outras ruas centrais de Montevideo percebi o quanto es medonha y tremenda a grosseria de muitos uruguaios e uruguaias, apesar da fama de finesse afrancesada destes sul americanos.

A não pontualidade me foi notável no atraso da revelação das minhas fotos (revelação prometida para daqui a uma hora mas que só me foi entregue duas horas e quinze minutos após a entrega dos meus filmes). Porque tantos ônibus velhos e caminhonetes tão deterioradas pelo tempo de tráfego circulam pelas ruas da capital das frutas mais gostosas e perfumosas que jamais conhecera? Porque os uruguaios são tão mal educados ao não esperarem os turistas usarem satisfatoriamente seus telefones públicos? Sofri tamanha insegurança em Montevideo durante a atual turbulência nas Bolsas do eixo Rio - São Paulo e noutros mercados financeiros que quase tive uma crise de diabete. Os desconfiados ou oportunistas comerciantes e cambistas dificultaram a troca de meus travel checks VISA/Banco do Brasil e se desculparam acusando os defensores do peso argentino por tal situação. Notei uma certa aquiescência e uma gentileza maior para com os turistas argentinos em detrimento dos brasileiros em Montevideo na segunda metade do mês de Janeiro de 1999. Não existem povos angelicais nem finamente aristocráticos.

Muitas cidades do mundo contemporâneo revelam as suas almas obscurecidas nas pichações desencadeadas em seus muros e prédios. Muitas delas, infelizmente, feitas em prédios históricos. Leiam, a seguir, as inscrições grafitadas nas paredes laterais do edifício do antigo Cabildo de Montevideo (na setecentista calle de la Carrera):

“Pablito no tiene SIDA. Pablito: la professora no. Lacallo. Diana da me bola. Pablito corazón. Pablito no se postula. Pablito y Pinchinati mi virginidad por Sofia Loren. El Pablito puede olmedo. Pablito te ama. Com orgullo de ser diferente. Marcha del orgullo gay. - 28/6.... 20 hs Obelisco... Matame Pablito Lucrécia Borgia. Pablito te quiero. André. (..) Pablito: sos muy fogozo. Juana de Argo. Sin discriminación!.. Pablito es corazón. Peñarol campeón 93...94..95... “

Em busca do perdido Lautréamont, me decepcionei com a Biblioteca Nacional do Uruguay. A cultura burocrática e corporativista de alguns dos seus funcionários não me possibilitaram acessos aos ensaios já publicados pela Revista de la Biblioteca Nacional del Uruguay sobre Lautréamont!.. Um senhor indicou a uma funcionária a coleção Temáticos e ela me disse que lá nada encontrara sobre Lautréamont!..

Continuei a busca e encontrei Hector Leira, dono do sebo e Libreria El Aleph - Calle Bartolomé Mitre 1358 - Fone: 9163687, que impressionou-me ao argumentar em prol de uma tese a mim até então inaudita: a cultura uruguaia não é religiosa e sim estóica ou epicurista e sumamente agnóstica. Foram povos incrédulos e ateus que formaram a cultura nacional uruguaia. Fiquei boquiaberto com suas instigantes informações. Insisti para que ele me apresentasse ou vendesse algum livro sobre a arte sacra ou a arte sacra do século XVIII no Uruguai e ele me disse que tais livros não existiam porque o Uruguay não teve uma arte colonial religiosa ou barroca como nos demais rincões latino-americanos. Fiquei assombrado... pasmo!... E imaginei aquela gente agitada e estóica ou epicurista vivendo e se arregimentando dentro das muralhas da fortaleza da qual nasceu Montevideo entre 1730 e 1830.

Para este livreiro, Lautréamont é um marco na literatura universal e muitos mistérios pontuam sua biografia. Alguns destes mistérios permanecerão para sempre devido ao incêndio dos arquivos portuários de Montevideo. Segundo vários estudiosos da vida deste poeta franco-uruguaio (filho de um dos cônsules franceses de Montevideo no século XIX), Lautréamont saiu do seu país com apenas 14 anos e nove anos depois teria voltado de Paris para Montevideo, onde teria sido visto a passear com seu pai por um de seus ex-colegas no Liceu Francês de Montevideo (testemunho afirmado em entrevista concedida aos oitenta anos de idade). Mas este frágil testemunho da volta apressada de Lautréamont à sua cidade natal passa longe do mistério que cerca a morte do poeta, um ano depois, em um quarto de hotel de Paris. Morte sem causa-mortis!... Para mim e para Hector, Montevideo gerou Lautréamont e pode estar gerando novos Lautréamonts não só em Montevideo, mas, quiçá, em toda a costa Atlântica da America del Sur!..

Na volta a pé do Mercado do Porto (Domingo a tarde), assustei-me ao passar pelos inúmeros palacetes de encortiçados de Montevideo. Levava duas sacolas de sabonetes, perfumes, pães, vinhos, desodorantes, sabonetes, etc.. comprados numa filial dos supermercados Cewal e fui olhado com hostilidade ao passar, amedrontado, por um antro de fétidos e maltratados e assombrosos jovens envelhecidos, cabeludos, barbudos e marginalizados.

Esbarro numa indagação shakespeareana: Montevideo é uma Porto Alegre que fala espanhol ou Porto Alegre é uma Montevideo que fala português? Pergunto isto porque morei na capital do Rio Grande do Sul entre 1977 e 1979 e estou em Montevideo com todas as minhas antenas ligadas há mais de 3 dias.

As espumas platinas desaparecem na areia. As mulheres se sentem as donas das calçadas da machista Montevideo. Sócrates (tótem da cultura universal) e Cervantes (tótem da cultura ibérica) são os temas escultóricos mais salientes na austera fachada da Biblioteca Nacional do Uruguay. Ao lado desta pirâmide labiríntica de livros,de uma das menos conhecidas culturas sul-americanas, reforçando a tese da persistência de francesismos ou galicismos entre as elites de Montevideo, está edificado um liceu francês.

Nos magazines mais sofisticados da 18 de Julio notei outros arroubos imitativos do clássico gosto francês de se vestir.

Às margens onduladas e ondissonantes del rio de la Plata hay uno imenso mistério nostálgico e utópico. A tristeza platina, no tempo do fim dos sonhos clássicos, e no início da construção de uma outra civilização (pós-moderna e esteticamente labiríntica, informatizada e pluralista), repercute e me desnorteia profundamente. Pelos out-doors da 18 de Julio, a grande vitrine de Montevideo, e em vários outros outros pontos da capital uruguaia pude perceber que as nádegas também são cultuadas como duas montanhas sagradas entre as quais Deus também está presente. Como não? (...) Como em Barcelona, existem capelas ou templos na região portuária de Montevideo. Vi até uma imagem de Nossa Senhora das Graças de braços abertos para o rio de la Plata e com vestes azuis e brancas (cores da bandeira nacional uruguaia) sobre um prédio cinzento no qual, creio, ou suponho ser de um convento de freiras. As freiras também gostam de marinheiros que nem Jesús a pescar no mar da Galiléia?

Pouco adiante deste prédio cinzento e horrível, eu conheci uma atriz que recolhera na manhã de 19 de Enero de 1999, numa praça próxima, uma linda e saudável cadelinha vira-lata branquinha com manchinhas tênues de doce de leite, limpinha como uma delicada pandinha!.. Acariciei-a maternalmente e ela se refugiou em meu magro tórax acolhedor. Tentando não me envolver mais com o drama desta inocente e ainda sem dono, desci uma escadaria e me pus a caminhar por ásperos rochedos, a fim de tocar pela primeira vez as frias e não-barrosas águas da foz del rio de la Plata. Toquei-as. Em seguida Deus me presenteou com a presença de dois anjos escondidos debaixo da escada. Disse-lhes que não precisavam se esconder pois eu era um deles e, assim, eles me ofereceram fumaças sempre benvindas aos céus!!....

Em meu atual estágio de vida não posso dizer que ame uma outra cidade mais que o que sinto agora por Montevideo, o meu particular paraíso realizado, encontrado, conhecido e que amanhã, desoladamente, abandonarei. Estou muito feliz por estar aqui há 4 dias. Dias intensivamente vividos.

Cubo del Sur. Baluarte de las antiguas murallas de Montevideo. Passeando contra o vento, sem lenços mas com documentos e dollares, à beira do mar del Rio de la Plata.

Estou excitado como dois namorados pobremente e solamente a se beijarem sensualmente à beira del rio de la Plata!.. Estonteado com a infinitude das ondas que há tempo nos falam e que nós até hoje nem começamos a estudar suas misteriosas e efêmeras mensagens!.. Se não fossem alguns esporádicos navios e barcaças, o horizonte seria uma tênue linha reta a separar duas tonalidades de azuis: uma celestial e outra fluvial.

Como a fortaleza de Montevideo (Monte no qual vi Deus), eu personifico perseveranças. A Catedral Anglicana da Santíssima Trindade, cercada por fumantes de marijuana e tipos marginais, ainda ostenta, na zona portuária da capital uruguaia, a persistente britanicidade de alguns montevidentes, peso secular ali assentado estrategicamente.

As duas maiores empresas de televisão no Uruguay são ecléticas e democráticas, oferecendo ao seu público programas de todos os tipos, óperas, dança, ballets, noticiosos, programas humorísticos, turfe, futilidades, fofocas, esportes, programas sobre a identidade nacional, sobre ciências, saúde e nada sobre religiões.

Fui oferecer montes de capins ceifados à beira do rio de la Plata (en Cubo del Sur) aos peixes platinos, aos delfins do Mar del Plata desconhecido por Calderón, mas os ventos lançaram alguns destes fios vegetais de capim-feno às faces dos amantes que há pouco se beijavam e nos excitavam com seus beijos de seres alheios às cordas e aos anzóis ameaçadores dos pescadores postados nas cercanias do seu pétreo baluarte do amor. Lhes pedi escusas. Será que meu pedido foi o bastante?

Respingos de sangue e de vinho de Montevideo.

O turfe é o ballet das elites gaúchas. O Uruguay e a Argentina deveriam ter (por suas culturas gaúchas e pampeiras) o turfe como principal esporte nacional. Nestes 2 países platinos a importância dada ao turfe e aos eqüinos me é plenamente compreensível. Quanto ao Grande Prêmio Brasil de turfe (no eixo Rio-São Paulo) só as culturas tropeiras de Sorocaba, do vale do Paraiba do Sul e a cultura cortesã carioca poderiam me explicar mais convincentemente o espaço destinado ao turfe no calendário esportivo brasileiro.

O sino da Catedral registra a vigésima hora do dia 19 de Enero de 1999. Em seguida ouço latirem los perros de la Ciudad Vieja de Montevideo, por onde, à noite, passam carroças puxadas por cavalos, levando sacos de papéis, dejectos ou detritos urbanos recicláveis. Não sabia que o Teatro Solis de Montevideo (muito perto dele me hospedei) é uma construção do tempo de Lautréamont. La Ciudad Vieja de Montevideo cheira a século XIX. La Ciudad Vieja es uno apêndice nichoso e labiríntico das almas montevidentes del siglo XIX. Montevideo, em seu centro histórico, cheira a Lautréamont!..

Há menos de 20 horas me separando do solo do aeroporto de Guarulhos, donde me retirarei com destino ao interior paulista, onde digerirei os pingos e respingos de vinho e de sangue de Montevideo.

No caminho para o Aeroporto de Carrasco - Montevideo, o ônibus passou por um cemitério com túmulos e muralhas bem altos, como se visassem proteger os mortos das ventanias que sopram da foz do Rio da Prata.

A lentidão aqui neste meu texto não é vista como um valor negativo. O Uruguay me pareceu um país lento ou relativamente imobilizado pelo gigantismo de seus vizinhos. Na vinda de Montevideo, um empresário francês me mostrou seu passaporte carimbado pelo Consulado brasileiro em Montevideo ainda registrando taxas em valores monetários em cruzeiros, quando há mais de 5 anos a moeda brasileira é o Real.

Nas casas de câmbio da 18 de Julio a mesma desatenção ou lerdeza ocorre. Apesar da razoável distribuição da renda nacional uruguaia, apesar da melhor qualidade da alimentação cotidiana e popular ou do nível mais culto e eclético, pluralista da televisão local, este pequeno país hispano-franco-anglo-americano ainda não é considerado Primeiro Mundo. Porque será?

A vacina contra a hepatite B só na segunda metade de Janeiro - 1999 começa a ser distribuída no Uruguai. Só no dia 20 de Janeiro as autoridades militares uruguaias começam a anunciar providências contra vandalismos de grupos neo-nazistas e anti-semitas contra sepulturas del cementerio israelita de Montevideo. Só no dia 19 deste mês a televisão apresentou programa e reportagem denunciando a pornografia infantil na Internet. Em plena crise financeira brasileira os cambistas uruguaios recusavam até travel-checks em dollares. Enquanto isto, alguns uruguaios mais espertos lotavam os vôos da Pluna-VARIG para o eixo Rio-São Paulo, onde teriam férias mais prolongadas com seus dólares valendo bem mais que a moeda brasileira. Comprando mais bens e serviços no Brasil, desencadeavam uma considerável fuga de moeda forte de seu próprio país, nesta época tão procurado por turistas de muitos outros países. No verão, o turismo representa uma das mais importantes fontes de divisas para o Uruguai que, ao longo de um ano, recebe muito mais turistas que todo o Brasil durante o mesmo período!.. Sinal dos tempos: a rede hoteleira de Punta del Este e de outros pontos do litoral atlântico uruguaio se ressente com os cruéis efeitos da inclemente concorrência entre as empresas imobiliárias que alugam apartamentos para temporadas de veraneio e os serviços da conceituada hotelaria de padrão europeu do Uruguai. E, por falar em turismo, lembrei-me do turismo sexual. A propósito, percebi terrorismo numa propaganda ou mensagem publicitária afixada no vidro que resguarda as costas dos motoristas dos ônibus metropolitanos de Montevideo: “Preserva-te-vivo! Use preservativos.” Mas como são charmosamente desatualizados os designers dos ônibus de Montevideo, my God!.. Desajeitados, antigos, me inspiram nostalgias, lembranças e devaneios. Coisas de um brasileiro se sentindo estrangeiro no Uruguai.

Os mortos estão presentes na Ciudad Vieja de Montevideo.

Na tv uruguaia assisti a um programa especializado na música barroca de Antonio Vivaldi. Só me lembrei no último dia da minha estadia em Montevideo que esta capital sul-americana esteve muito presente na história política brasileira nos anos 60 do século XX. Primeiro servindo como escala para o então vice-presidente João Belchior Marques Goulart, em seu retorno da China de Mao Tsé Tung, no auge da crise deflagrada em 25 de Agosto de 1961 com a renúncia de Jânio da Silva Quadros, que em pleno Dia do Soldado abandonava o seu cargo de Presidente da República, precipitando velhas conspirações militares contra a posse de seu legítimo sucessor e substituto.

Segundo: a partir de Abril de 1964, Montevideo recebeu João Goulart já na condição de presidente deposto e exilado no Uruguai, juntamente com vários de seus ex-ministros e auxiliares diretos (como Raul Riff) e seu cunhado e deputado cassado Leonel de Moura Brizola. Líderes sindicais do populismo janguista também acá buscaram refúgio e proteção contra a ditadura civil e militar que se instalava no Brasil. Mas, apesar disto, não vi marca alguma da prolongada permanência de todos estes brasileiros nesta patética Montevideo.

O toque-toque dos cascos dos cavalos das carroças dos papeleiros, que todas as noites cruzam duas ou três vezes as calles de la Ciudad Vieja, me dá uma idéia sobre o tropel dos cavalos das carruagens que por ali passavam há mais de cem anos!..

Na plaza de la Constituición, vende-se, aos sábados, santinhos com lembranças fúnebres, de primeiras comunhões, bonecas de crianças do século passado, retratos de casamentos em famílias que não existem mais, postales recebidos da Europa por damas e senhoritas de Montevideo no início dos anos novecentos.

Eu não creio em maldições, mas a Ciudad Vieja é um cenário de um filme de terror. Acá os mortos resistem e relutam em não deixarem a cidade onde nasceram e na qual querem continuar existindo, como os fantasmas clericais e patrióticos que saem à meia noite das alvas e marmóreas tumbas de la Catedral de la Imaculata Concepción de la Virgen de los 33 de Montevideo de la República Oriental del Uruguay!... Tremendo!..

Papai mandou-me a Montevideo.

Em 1950, estupefato, papai assistiu o monstro Uruguay derrotar o Brasil na traumática caverna carioca do Maracanã, quando perdemos a Copa do Mundo de Futebol.

49 anos depois, a mando de papai, fui conhecer de perto o monstro Oriental. E voltei apaixonado pelo celestial dragão uruguayo. Tal paixão seria uma traição aos sentimentos de papai?

Montevideo, 16,17,18,19 y 20 de Enero de 1999 e Ribeirão Preto-SP. 21,22,23 e 24 de Janeiro de 1999.


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Maio — 2000

©2000,2006 José Luiz Dutra de Toledo

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