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A Força dos Mitos

Janer Cristaldo

 

 

A Força dos Mitos
Janer Cristaldo

Fonte Digital
Documento do Autor
jcristaldo@gpmail.com

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La Maladie d'Antiochus ou Antiochus et Stratonice
(1840)
Jean-Auguste-Dominique Ingres
(1780-1867)

Primeira edição em cola e papel
Editora Alfa-Omega, SP, 1976

©2013 — Janer Cristaldo

eBooksBrasil.org


A
FORÇA
DOS
MITOS


Janer
Cristaldo


ÍNDICE

 

Prefácio 2013: da vergonha de ser jovem
Carta a um Jovem Poeta
Sobre Cegos
Tramecksan x Slamecksan
Os Dois
Falência do Macho
Neuroses Sexuais e Medo dos Pássaros
Alfafa para os Magrinhos!
Será o Pato Donald Pornográfico?
Um Traseiro te Persegue
A Praga que vem do Oriente
Alegria, Alegria!
Quem Matou Pasolini?
E para não dizer que não falo de Futebol
Cloacas do Palácio, Segundo os Teólogos
Um déspota sem Verniz
... Mas o Cheiro é de Jasmim!
Em Agradecimento a um Gliptodonte
A Capital do Medo
A Força dos Mitos
O Sul Reage
Os Lírios Avançam
Corrente de Natal
Conquistador de Opereta
Jack Redivivo
Não vi e não Gostei
Fim do Ano da Mulher
A Dança do Poder
Jovens Importam Buracos
Amor 76
Christa
Otelo e a Mulher Loureira
Dr. Schlesinger, um Humanista
Ele, Perpétua e a Outra
Como Ratos
A Morte do Gaúcho
Melhor que Tubarão
Bergman Ameaça Trygghet
Ela
Professor Shoemaker, um Otimista
Selvagens Reagem
As Deslumbradas e a Moda
O Supremo Afrodisíaco
A Verdade Última da Raça
Medvetensäktenskap
Primeira Epístola às Possessivas
Suomi
Homens e Abelhas
Certas Senhoras
Carta de Amor para Etelvina
O Rabo do Tigre Imortal
Ninguém põe nada para fora, se não tem nada por dentro
Saudades da Idade Média
Procuram-se Homens
Esperando um Guru
Os Irmãos Sejam Unidos
O Século do Câncer
Pajaro Pablo
Procura-se


 

Prefácio 2013:
DA VERGONHA DE SER JOVEM

 

Com quem faremos a revolução? — escreveu Roberto Arlt —. Com os jovens. São estúpidos e entusiastas.

Tenho manifestado, ao longo de minhas crônicas, minha desconfiança visceral a tudo que vem dos jovens. Tenho não poucas razões para tanto. Como todo mortal, já fui jovem e cometi muitas besteiras naqueles dias. Y a las pruebas me remito.

Estive relendo meu primeiro livro de crônicas, A Força dos Mitos, com textos publicados em 1975 e 1976. Há quase quatro décadas, portanto. Poeira do tempo à parte, há crônicas que ainda param em pé. Outras, confirmam Arlt.

Nada mais doloroso do que rever escritos de juventude. Por duas razões. Por um lado, descobrimos que acabamos renunciando a sonhos que naqueles dias pareciam realizáveis. Quem sabe talvez fossem, mas faltou-nos fibra. Por outro lado, as bobagens que escrevemos, e estas são as mais. Não porque fôssemos bobos. Mas por falta de informação.

Informação só se adquire com idade, tempo e leitura. Qualquer afirmação definitiva de um jovem corre o risco de ser idiota, pois faltam-lhe elementos para qualquer afirmação definitiva.

Envolto pelo ambiente provinciano da Porto Alegre dos anos 70, pouco conhecendo do Brasil e menos ainda do mundo, eu alimentava na época uma visão terceiro-mundista da realidade que de longe me cercava. Via o declínio próximo dos Estados Unidos e a emersão do Terceiro Mundo. Via grande potencial humano na América Latina e decadência no hemisfério norte.

O hemisfério norte, apesar da crise, vai bem. Nuestra America – como se dizia na época – continua patinando no atoleiro. Embora denunciasse as ditaduras na China e União Soviética, havia em mim um certo contágio de esquerda, que via no capitalismo um mal a combater.

Você pode remar contra as correntes de superfície. Mas a grande corrente subterrânea que jaz sob as demais acaba por arrastá-lo inexoravelmente aos rumos escolhidos por uma época. Particularmente se você é jovem e do mundo pouco conhece.

Ao assumir uma coluna na Folha da Manhã, um pouco do planetinha eu já vira. Voltava da Suécia, onde passei um ano. Lá, me imbuíra de uma visão mais arejada do mundo. Mas faltava muito ainda a derrubar do legado de meus dias de universidade.

Até que idade um homem escreve bobagens? Difícil determinar. Há quem as escreva toda a vida. De minha experiência, posso afirmar que até os trinta assinei não poucas.

Namorei idéias perigosas. Por exemplo, meu comentário sobre o “misterioso casal, conhecido apenas como os dois”, que afirmavam existir um reino superior que só podia ser alcançado através dos discos voadores. Na época, havia no ar um clima de evasão, fuga das cidades, do sistema, como dizia-se então. Aderi entusiasticamente à idéia. “Confesso que vontade de seguir os dois é o que não me falta”.

Chamavam-se Marshall Applewhite e Bonnie Nettles e fundaram uma seita ufológica em San Diego, a Heaven’s Gate. Em 1997, os dois disseram ao que vinham. Quando o cometa Hale-Bopp estava no seu brilho máximo, decidiram pegar carona e partir para o reino superior. A polícia encontrou os corpos de 39 de seus membros, que haviam cometido suicídio. O fanatismo era tal que junto aos cadáveres foram encontrados passaportes.

Na época, sem maiores informações sobre a FUNAI, eu desconhecia a política anti-civilização da entidade. E tomei a defesa de uma invasão de índios em povoados do Maranhão, Pará e Mato Grosso.

“Se nem os tuaregues, protegidos pela vastidão inóspita do Saara, conseguiram escapar do branco, que esperança poderão alimentar indígenas vivendo em terras férteis e valorizadas? Nenhuma, ao que tudo indica. Pois o branco é senhor e impõe seus valores e doenças. Em desespero, alguns índios passaram a atacar os brancos. Mas agora é tarde”.

A mais solene besteira terá sido a última crônica deste volume – “Procura-se” –, que teve ampla repercussão na época, particularmente entre os padres de esquerda. Influenciado certamente por Renan, historiador ateu que romantiza o Cristo, criei uma espécie de guerrilheiro e subversivo ao gosto da época. Só mais tarde me muni de mais literatura sobre o personagem e, hoje, aquela crônica prova mais do que qualquer outra que todo jovem não está a salvo de escrever bobagens.

Em suma, crônicas de um novato que ainda estava longe de entender o mundo.

Perdão, leitor!


 

CARTA A UM JOVEM POETA

 

Um leitor me pergunta como fazer para publicar seus poemas. Já percorreu várias editoras, inutilmente. Poesia não vende, dizem os editores. O autor novo é um problema eterno.

— Alguns se dispuseram a publicá-lo, desde que financie a edição. Como não dispõe de dinheiro para tanto, sente-se destinado a permanecer inédito pelo resto de seus dias.

Nem tudo está perdido, meu caro. Desde que você faça pequenas concessões, poderá ser em pouco tempo um renomado escritor. Dirija-se ao Instituto do Elogio Literário — IEL. Ao ser recebido pelo Mestre, não esqueça o Ritual:

— Mestre nosso que estais no Poder, citado seja o vosso Nome, venha a nós vossa Sapiência, seja feita vossa Vontade, assim na Universidade como na Imprensa. A literatura nossa de cada dia nos dai hoje, perdoai nossos poemetos, não nos deixeis cair na tentação do orgulho, e, sobretudo, protegei-nos do Irreverente.

— Assim seja, por todos os séculos dos séculos. Amém! — responderá o Mestre. Já passou pelo DAC, meu filho?

— Departamento de Aeronáutica Civil, Mestre?

— Não, meu querido. Departamento de Auto-Censura. Nosso instituto só publica livros que possam permanecer expostos em estantes de casas de boas famílias. No DAC seus poemas serão despojados de qualquer alusão a sexo ou política. Boas famílias não têm sexo nem se preocupam com política. Além disso, seus originais estão muito volumosos. Ao voltar do DAC, os custos de impressão do livro serão bem mais baixos.

Após alguns dias, você recebe seus originais devidamente copidescados pelo pessoal do DAC. Volta ao Mestre, profere o Ritual, ouve a jaculatória e espera.

— Já esteve na SEC, meu filho?

— SEC? Mas porque a SEC, Mestre?

— Falo da Secretaria do Encómio Coletivo, filho. Passe logo lá. Se você conhecesse melhor os mecanismos de defesa de Nossa Cultura, não perderia tanto tempo. Nós vamos promovê-lo junto à imprensa e às faculdades. Nada mais justo que você nos promova nos ambientes que freqüenta ou trabalha, não é verdade?

— Mas... Mestre, e se eu não apreciar as obras de meus colegas?

— Jamais diga eu, caro poeta. Lembre-se de Sua Santidade. Use o plural majestático. O IEL é uma pequena Igreja, um templo do Saber. E Nós, modestamente, somos seu Sumo Sacerdote. Você não precisa apreciar a obra de seus colegas, não lhe pedimos tanto. Basta que as elogie.

Você vai à SEC, firma Compromisso de Mútuo Elogio e volta. Ainda falta algo.

— As cartas, meu filho. Duas laudas do Poeta Municipal, uma lauda do Poeta Estadual e, se possível, algumas linhas do Poeta Federal.

Algum tempo depois, você volta com as cartas. Profere o Ritual, ouve a jaculatória e finalmente tem uma resposta afirmativa. Dentro em pouco, você será, oficialmente, Poeta.

— Louvados sejam vossos Critérios, Mestre. Que achastes de nossos poemas?

— Honestamente, meu poeta, não os li. Você não pensa que nós, ocupados que estamos na defesa de Nossa Cultura, temos tempo para ler originais de candidatos a poetas. Para isso temos o IEL/DAC/SEC. Se seus poemas passaram por todas estas instâncias, são inúteis como todos os poemas, e é exatamente isso que queremos. Se você firmou o Compromisso de Elogio Mútuo, é nosso cúmplice. E, recomendado por três poetas oficiais, ninguém ousará negar que você é poeta. Meus efusivos cumprimentos. Você agora é um dos nossos. Somos os Donos da Cultura. Só nós podemos explorá-la.


 

SOBRE CEGOS

 

“Nós sul-americanos não produzimos quase nada; poderíamos ser retirados da História e pouco se notaria. A América do Norte, sim, produziu Edgar Allan Poe e Whitman mas a América Latina quase nada”, declarou recentemente Jorge Luiz Borges, em entrevista publicada pela revista chilena Ercilla.

“Oh! Conhecer as suecas e depois morrer...” suspirava com os olhos semicerrados um amigo na Praça da Alfândega, imerso em sonhos repletos de adoráveis louras nórdicas.

Borges continua: “Atualmente estou numa situação bastante triste, porque aos 76 anos convivo com minha cegueira progressiva que, segundo os médicos, é irreversível e será total, em breve”.

Na Rua da Praia, louras, morenas e mulatas exibiam seus dotes e força sexual, passavam sob as narinas de meu amigo sonhador, sem que este percebesse o rastro de pólen e o cheiro de fêmea que ficava, acre, no ar. Sonhava com as longínquas suecas.

— Que tem a ver Borges com o sonhador da Rua da Praia? — perguntará alguém. Pois digo que há muito a ver. Para começar, ambos têm um ponto em comum: são totalmente, absurdamente, irreversivelmente cegos.

Gombrowicz, escritor polonês que viveu durante 20 anos em Buenos Aires, deplorava esta cegueira de Borges. Enquanto este se isolava do mundo nos seletos salões de Vitória Ocampo, Gombrowicz freqüentava os cabarés de El Retiro. Borges buscava participar da “Internacional do Espírito”, Gombrowicz captava a essência do homem argentino nas ruas e cafés de Buenos Aires. Assim como o sonhador da Praça julga só poder encontrar o ideal de mulher em Estocolmo, Borges, ao expressar suas angústias, julga que o “mal metafísico” só pode acometer a um cidadão de Paris ou Praga.

Responde Ernesto Sábato:

— Se se tem presente que esse mal é conseqüência da finitude do homem, temos de concluir que para esses delirantes as pessoas só morrem na Europa, estando este território habitado por imortais folclóricos.

Se um homem busca da mulher a beleza e se só as suecas são belas, talvez isto explique o crescente desinteresse dos legendários machões do sul pelas gaúchas.

— A América Latina não existe. É uma ficção, continua Borges.

— Na América Latina repousam as reservas espirituais do continente, afirma Sábato.

Não é por acaso que, em Sobre Heroes y Tumbas, Sábato desvenda uma terrível conspiração dos cegos, cujos líderes, vivendo em cavernas profundas e úmidas, longe da luz, controlam o mundo e o levam ao apocalipse.

Não entendi bem o Informe sobre Ciegos quando o li pela primeira vez. Hoje entendo. A tenebrosa seita dos cegos existe de fato. Já identifiquei um de seus membros em Porto Alegre. Quanto à cegueira de Borges, discordo do diagnóstico médico: como pode ser progressiva uma cegueira congênita?


 

TRAMECKSAN x SLAMECKSAN

 

Chefe do Pessoal da Fiat morto pelos Montoneros. Israelenses matam dois palestinos na fronteira. 91 mortos e 115 feridos em 24 horas em Beirute. Prontidão total e toque de recolher no Saara espanhol. Sadat pede que Ford seja mais suave com os palestinos. Força Aérea de Portugal estoca armas para atacar esquerda e PC. Soldados e civis em marcha contra o governo. Franco agoniza e perde forças, mas até o fim de sua vida manterá o poder. A oposição quer união contra o franquismo. A ultradireita não quer nenhuma mudança no governo.

Manchetes de apenas duas páginas da Folha de ontem. Ou na de hoje. Como na de amanhã também. A violência, tornada rotina, já não mais choca. Enjoa.

Me ocorre uma história relatada a Gulliver em Lilipute. Na ilha havia dois partidos adversários, sob o nome de Tramecksan e Slamecksan. Para os Tramecksan, todos deveriam usar saltos altos nos sapatos. Mas o soberano de Lilipute determinou que se fizesse uso somente de saltos baixos na administração do governo e em todos os cargos que dependessem da coroa. A animosidade entre os dois partidos chegou a tal ponto que os membros de um partido não queriam comer, beber nem falar com os do outro. Os Slamecksan detinham o poder. Os Tramecksan constituíam maioria. Os saltos de Sua Majestade eram mais baixos pelo menos um drurr do que quaisquer outros de sua corte. Mas os Slamecksan receavam que o príncipe herdeiro tivesse alguma tendência para os saltos altos. Pois não havia dúvida de que um de seus saltos era mais alto do que o outro, o que o fazia manquejar quando andava.

Mas isto não era o pior. A grande ameaça residia na Ilha de Blefuscu, o outro grande império do universo, “quase tão grande e poderoso como este de Sua Majestade”. Pois os liliputenses estavam absolutamente certos de que o modo universal de quebrar os ovos para comê-los consistia em quebrá-los pela ponta grossa. Mas sucedeu que o avô de Sua Majestade, quando menino, ao tentar quebrar um ovo consoante o hábito antigo, cortou-se num dedo. O imperador, seu pai, proclamou um edito pelo qual se ordenava a todos os súditos, sob grandes penalidades, a quebrarem os ovos pela ponta fina.

Seis rebeliões estalaram por causa disso. Um imperador perdeu a vida, outro a coroa. Onze mil pessoas, em diversas ocasiões, preferiram morrer a sujeitar-se a quebrar o ovo pela ponta fina. Foram publicados livros sobre a controvérsia, mas os livros dos ponta-grossenses foram proibidos e todo o partido tornou-se incapaz, por lei, de conseguir empregos.

Segundo o grande profeta Lustrog, “todos os verdadeiros crentes quebrarão os seus ovos pela ponta conveniente”. Mas ocorria que o Imperador de Blefuscu julgava ser a ponta grossa a ponta conveniente. Travou-se uma luta sanguinolenta entre os dois impérios. Lilipute perdeu quarenta grandes navios, e um número muito maior de navios menores, além de trinta mil homens. Calculava-se que os danos sofridos por Blefuscu fossem ainda maiores. Mas o Imperador de Blefuscu estava armando uma nova frota para atacar Lilipute.

Nada de novo sob o sol.


 

OS DOIS

 

“Os aglomerados urbanos estão se coagulando em cruéis megalópolis, uma forma de vida, de habitação, sem precedentes em toda a história da humanidade”, afirma Toynbee. E conclui: “confesso desconhecer se o homem conseguirá promover uma revolução de costumes tão rápida e radical que consiga salvá-lo do fim”.

Misterioso casal, conhecido apenas como os dois, que afirma existir um reino superior que só pode ser alcançado através dos discos voadores, está aumentando o número de seguidores por onde passa. Um moço e uma moça, afirmando serem seguidores dos dois, apareceram na terça-feira na cidade de Mineápolis, Estados Unidos, para pregar a nova doutrina de vida.

Confesso que vontade de seguir os dois é o que não me falta. Nasci no campo, num rancho quinchado com santa-fé, rodeado de parreiras, glicínias e bambu. Neste momento, estou encerrado em um cubículo encaixado numa massa de concreto, a uns vinte metros do solo.

No campo, minha primeira tarefa do dia era trazer as vacas para a mangueira. Depois da ordenha, saía a manguear para os mundéus alguma perdiz que nem desconfiava de estar vivendo seu último passeio matutino. Hoje, saí deste cubículo elevado, por outro cubículo menor desci até o solo. Se tivesse carro, penetraria noutro cubículo ainda menor, para dirigir-me a um outro cubículo, maior ou menor, mais alto ou menos alto, isto não importa, mas sempre cubículo. Assim é a cidade: a encenação impecável de um conto de Kafka.

Não creio seja difícil criar hoje em dia seitas e religiões. Basta que alguém, suficientemente fanático e demagogo (no sentido original da palavra), anuncie uma nova doutrina de vida, um novo reino, algo novo. Anuncie seja o que for, mas que seja novo. Um retorno à natureza, talvez, o que como idéia nada tem de novo, mas ficou para sempre em teoria.

Quem não gostaria de estar no mar ou no campo neste sábado? E quem está não gostaria de permanecer? Mas segunda-feira é a volta aos cubículos, às trajetórias verticais e horizontais de um cubículo a outro.

Num estado totalitário, onde até mesmo o pensamento de seus cidadãos era controlado pelo Estado, através de uma droga chamada kalocaína, foi descoberta uma seita subversiva e vasta. Para espanto dos policiais, a seita não tinha organização:

— Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado.

A seita tampouco tinha nome.

— Não pergunte. Não temos nome, nem organização. Apenas existimos.

Tampouco tinha chefes. Uns conheciam alguns outros, e apenas isso. Quando os policiais ouviram que a seita não tinha objetivos definidos, pensaram estar tratando com loucos. O desejo mais preciso que manifestavam era:

— Queremos ser... queremos tornar-nos... uma outra coisa...

Poucas informações tenho sobre os dois. Os repórteres internacionais correm atrás de grandes nomes, nenhuma preocupação teriam com dois que nem nome têm. Mas os dois merecem uma atenção maior de nossa parte. Pois no fundo, os dois somos nós todos, que estamos levando uma vida que não é a que sonhamos.


 

FALÊNCIA DO MACHO

 

Descobriu tudo e deu três tiros na mulher. Para bom entendedor, a manchete já disse tudo, nem é preciso ler a notícia. O crime ocorreu sexta-feira passada, na esquina da Sete de Setembro com a João Manoel. Entrei num edifício do centro, o porteiro comentava:

— Nesses casos, a culpa é sempre da mulher. O homem sempre tem razão.

A meu lado, estava o homicida potencial. Em minha pasta de recortes, as notícias sobre maridos que matam mulheres já estão ocupando um espaço excessivo. Ora o marido mata a mulher que o traiu, ora mata o amante da mulher, quando não mata os dois. O fato comporta algumas variantes. Mas a decisão do júri é uma só: absolvição. Defesa da honra, pretextam. Mas que honra é essa que exige sangue para ser lavada?

Vejo algo de mais profundo e sintomático nessa atitude do marido e do júri. Não creio se trate apenas de defesa da honra. Mas sim medo do homem de nossa época ante a nova mulher que surge.

Houve um momento na História em que o Estado encarregava-se de vingar os brios do macho insultado. Antes do surgimento da roda e da máquina, era senhor quem tinha maior força física, ou seja, o homem. O homem erigiu o Estado e as leis eram um reflexo de sua vontade absoluta. A mulher era sua propriedade, o adultério era antes de mais nada um roubo. E o Estado punia esse roubo. Jogava os adúlteros na fogueira. Ou pendurava-os no patíbulo.

Os tempos mudaram. Hoje, força física não alimenta ninguém, exceto ídolos do futebol ou campeões olímpicos. A máquina permite que uma mulher execute o mesmo trabalho de um homem. Não está mais em jogo sua força física, mas sua capacidade mental. Mesmo ainda inferiorizada, a mulher pode hoje prover o seu sustento, decidir, comandar. Em outras palavras, equipara-se ao homem. Se nos primórdios da humanidade a subsistência dependia de músculos rijos, manejo do tacape ou machado, argúcia na caça, hoje subsistência depende de conhecimento, técnica, cultura. Sabemos como vive – ou melhor, sobrevive – quem só dispõe de força física para o trabalho.

A fêmea do homem evoluiu. O macho continua o mesmo.

Posso ser dono de um livro, de um par de sapatos, de um carro. São coisas, objetos. Eu os possuo e deles disponho como bem entender. Mas não posso ser dono de uma mulher, de um outro ser humano com vontade própria. Se minha mulher me troca por um outro homem, creio existirem apenas duas atitudes a tomar. Uma, seria cumprimentar minha mulher, caso tenha encontrado um homem melhor dotado e com mais capacidade de oferecer-lhe amor e compreensão. (Pois é bem possível que eu não seja o mais perfeito e amoroso dos homens, não é verdade?) A outra atitude seria dar-lhe pêsames, por ter-me trocado por um homem inferior e incapaz de oferecer-lhe amor. (Pois é bem possível que eu não seja o mais imperfeito e egoísta dos homens, não é verdade?)

Mas o macho contemporâneo não renunciou à sua condição de senhor. Vê na mulher uma escrava, uma coisa de sua propriedade. Sente-se roubado? Mata. Os jurados o inocentam, numa espécie de alerta: “Cuidado, querida. Se me traíres, te mato. E meus colegas me absolverão”. Chamam a isto defesa da honra.

Os tempos mudaram. A mulher se transformou. O homem ficou parado no tempo. Ao sentir-se traído, só conhece uma forma de diálogo: reage à bala. Isto é, o macho está falido.


 

NEUROSES SEXUAIS E MEDO DE PÁSSAROS

 

Se o espectador de Cenas de um Casamento, de Bergman, achou o filme lento e cansativo, deve dar-se por feliz. Pois em uma entrevista, Bergman confessa:

— O meu sonho seria poder fazer um longa-metragem num único plano; poder manter o interesse à volta de um rosto durante hora e meia ou duas horas.

Para sorte do público, o projeto não passou de sonho.

Quem acompanha os filmes de Bergman já deve ter notado uma constante. O relacionamento sexual entre os personagens é sempre traumático, doloroso, impossível. Em uma entrevista publicada em L’Express, em 64, diz o cineasta:

— Durante muito tempo fui tímido e convencional na expressão do amor físico no cinema. Há aspectos excitantes em uma bela manhã de verão e no ato sexual; creio ter encontrado a forma cinematográfica para exprimir um, mas o outro não. Assim é que as dificuldades do amor me interessam antes de tudo, me parecem mais importantes que o prazer. E depois, o ato sexual propriamente dito, em sua representação bruta, c desagradável em 80%.

Se o ato sexual é desagradável para Ingmar Bergman, entendemos então o fracasso de seus cinco casamentos. Como também a incomunicabilidade sexual de seus personagens. E entendemos também os conflitos de Cenas de um Casamento, isto é, Cenas de meus Casamentos.

A psicanálise está na moda em nossa época. O homem urbano e conflitado — quando tem dinheiro, bem entendido — adora pagar um analista para ouvir suas angústias. Bergman encontrou melhor caminho. Cobra dos que o ouvem.

Já que falamos em psicanalistas, esses senhores que no menor gesto vêem um significado abissal, proponho aos ditos um tema para análise. Em Persona e Hora do Lobo, as personagens se chamam, respectivamente, Alma e Elisabeth Vogler, e Alma e Verônica Vogler. O nome Vogler evoca a palavra sueca fagel (pronuncia-se fôguel), pássaro. Bergman tem consciência disto e acrescenta:

— Os pássaros sempre tiveram para mim algo de demoníaco, de misterioso e de perigoso. Tenho e sempre tive medo dos pássaros. Desde a minha infância. Se um pássaro entra numa sala onde me encontro, abandono o local terrificado. Depois o pobre pássaro desembaraça-se o melhor que pode. No melhor dos casos pode ser que abra a janela. No verão passado aconteceu que alguns pássaros bateram contra as vidraças da casa onde me encontrava, em Faro. Uma das salas é envidraçada dos dois lados e, estando as janelas iluminadas, os pássaros em vôo esbarravam nos vidros e caíam no solo. Mas eu nunca me teria aproximado para lhes tocar. Não ousaria fazê-lo. Há demasiado tempo que os receio. Apenas os pássaros me provocam esse efeito. Sou perfeitamente incapaz de lhe descobrir o motivo.


 

ALFAFA PARA OS MAGRINHOS!

 

Quinze quilos de maconha foram queimados ontem no Instituto de Pesquisas Biológicas.

Até 1969 (não recordo com precisão a data da lei), não constituía crime o consumo de maconha, apenas o traficante era punido. E nisto já havia uma contradição: se não era criminoso o consumo, porque proibir o tráfico?

Hoje a contradição legal deixou de existir, quem fuma também vai para a prisão. Quem fuma maconha, bem entendido. Pois destruir brônquios e pulmões com o cigarro não é considerado crime. Pelo contrário, dá status e é característica de homens que sabem o que querem.

Não sei se algum dia entenderei o que se passa na cabeça de um legislador. O que sei é que eles não aprendem nada da História. Houve época em que o café era considerado tóxico, só homens — e olhe lá — podiam bebê-lo. Bach, se não me engano, tem uma cantata, a Cantata da Moça que Tomava Café, o que na época, era inadmissível numa moça de família. Quem imaginaria hoje que o cafezinho nosso de cada dia já teve tal fama?

— Divertida justiça que um rio limita, erro aquém, verdade além dos Pirineus, disse outro cronista também perplexo. Já estive em país onde a municipalidade financia bares para que os jovens se reúnam para degustar a canabis. Em alguns bares, há um aviso na porta: “Proibida a entrada a maiores de 18 anos”.

Enfim, cada cabeça uma sentença.

Em outubro de 71, noticiou-se na crônica policial dos jornais uma ocorrência que merece uma atenção maior das pessoas que se preocupam com o problema do tóxico. Otacílio de Oliveira Escobar, residente em um modesto barraco da vila Cai n’Água, foi preso por tráfico de maconha. Os policiais que foram apreender a muamba no barraco do Otacílio encontraram quilos e quilos de esterco bovino, seco e esfarelado.

Segundo Otacílio, os clientes nunca reclamaram da qualidade da mercadoria. Pelo contrário, “os amizades ficavam pirados, todo mundo muito louco”. Um dos clientes comentou o cheiro da erva, considerado fora do comum. Otacílio tranqüilizou-o:

— É erva nordestina. Da boa. Muito mais forte.

E mais pirado ainda ficou o magro.

Conheço outra historinha ainda. A de uma moça que ofereceu a um magrinho um cristal de LSD. O magro subiu pelas paredes, sem saber que havia ingerido partículas de grafite.

Não tenho nada contra os assim chamados tóxicos, tampouco contra a magrinhagem. Gente boa como Freud, Huxley e Van Gogh curtiam certos estimulantes. Já afirmei diversas vezes que certas drogas podem excitar o cérebro, quando se tem cérebro. O que me entristece, é ver toda uma geração que não sabe mais falar, que nem sabe fazer amor, encerrados dentro de si mesmos, olhando para o próprio umbigo. Se ao menos fosse para o umbigo do outro, talvez nesse olhar já existisse o germe de uma comunicação.

Minha modesta sugestão aos homens preocupados com os tóxicos: que tal oficializar o consumo da maconha? Não se forneceria maconha aos magros, é claro. Nem estou sugerindo esterco de vaca, gosto muito deles para sugerir isto. Mas que tal alfafa? Por um lado, entre a canabis sativa e a medicago sativa a magrinhagem não faz distinção alguma. Por outro, seria um estímulo à agricultura gaúcha.


 

SERÁ O PATO DONALD PORNOGRÁFICO?

 

Cento e sete livros foram proibidos, este ano, de circular no Brasil. Em maior parte foram considerados “contrários aos princípios morais e aos bons costumes”. Estes livros contrários aos princípios morais e aos bons costumes tratam, é claro, de sexo.

Vivi algum tempo na Suécia, país onde a pornografia não faz mal a ninguém. Constatou-se inclusive que com a liberação da pornografia diminuiu o índice de crimes sexuais. Para os suecos, a obscenidade não reside no sexo, como veremos.

Para o turista latino, e mesmo para os europeus do sul, Estocolmo é o próprio paraíso, pelo menos à primeira vista. Mal desce do trem, já encontra, na estação ferroviária mesmo, revistas e livros pornográficos para todos os gostos. Cercando a estação, dezenas de sexklubbar — clubes sexuais — lhe oferecem filmes que satisfazem qualquer tendência. Para isso, paga o equivalente a vinte ou trinta cruzeiros. E os atores nem sempre são homens e mulheres. Uma respeitável veterinária achou um dia a fórmula para um ganhozinho extra. E o bestialismo invadiu o mercado da pornografia. Que por sinal rende à Suécia, uma significativa parcela de divisas.

Nos clubes sexuais, de hora em hora os filmes são interrompidos para um liveshow, isto é, sexo ao vivo. Coloca-se um colchão no estrado que fica abaixo da tela, um casal entra em cena e dá seu recado. Um sexo triste, acrobático, sem graça. Feito por dinheiro, sem amor algum, para excitação dos turistas embasbacados e para alegria dos magnatas que exploram a prostituição no assim chamado paraíso do amor livre. Consta, aliás, que a Suécia é um dos raros países em que o teatro faz séria concorrência ao cinema. Os espectadores são convidados a participar do liveshow. Mas dificilmente ousam subir ao estrado.

Nas ruas há distribuidores automáticos de pornografia. O turista põe algumas coroas numa fenda e apanha tranqüilamente uma dessas revistinhas que aqui acabam em cadeia.

Numa tarde de verão, em Sergeltorget — a Rua da Praia dos estocolmenses — vi um casal despido empunhando cartazes contra a poluição. Um pequeno grupo se reuniu em torno do casal — para ler os cartazes. Perguntei a um guarda se aquilo não era proibido.

— Não senhor. Isso não faz mal a ninguém. Mas se fere a sua moral, pode avisar-nos, pediremos aos dois que se afastem.

Os suecos não vêem no sexo ameaça alguma aos bons costumes. Mas temem a violência e a incitação à violência. Os filmes do Pato Donald são muitas vezes cortados pelo Comitê do Filme Infantil.

— O Pato Donald, disse um dos membros do Comitê, é malvado e agressivo. Pode divertir os adultos, os quais conseguem compreender o significado das sátiras de Disney. Pessoalmente, desconfio muito das gargalhadas que este pato cruel provoca nas crianças, especialmente entre os pequenos mais sensíveis. Por isso somos obrigados muitas vezes a cortar algumas cenas.


 

UM TRASEIRO TE PERSEGUE

 

O leitor não se sentiu por acaso, nestes últimos dias, perseguido por um belíssimo traseiro? Um traseiro fantástico, imenso, no qual se vêem até os poros? Envolto por uma tanga exígua e reentrante?

— Um belíssimo, fantástico, imenso traseiro? Não deve ser comigo, dirá o leitor. Imagine, logo eu!

Mas... veja bem: onde quer que você vá, lá está ele. Você volta cansado do trabalho, está no ônibus pensando na vida, o traseiro quase pula janela adentro para esfregar-se em seu nariz. Você pára alguns segundos numa sinaleira, lá estão os glúteos, lindos e gotejantes. Você olha para os lados antes de atravessar uma rua, lá estão de novo, de tocaia. Se você acha que isto não é perseguição, ou é cego ou é dotado de uma boa fé sem limites. Em outras palavras, você é um ingênuo irrecuperável.

E tem mais. O traseiro não se contenta em esperá-lo em cada esquina, em cada sinaleira, em prédios em construção. Tampouco se contenta em ser insinuante. É imperativo. Ordena:

— APROVEITE!

Se o leitor ainda acha que nada tem a ver com o convite, desisto. Pior cego é o que não quer ver. Pois o traseiro está nos perseguindo a todos. Implacavelmente. Ostensivamente. Sem escrúpulo algum. Mas cuidado! Não se oferece como dádiva aos olhos e às mãos. Quer apenas vender uma marca de maiôs.

Os criadores deste anúncio devem estar contentes:

— O anúncio é agressivo, está provocando polêmicas.

Nisto têm razão. O anúncio aumentará as vendas do anunciante. Mas a mim o anúncio entristece. Por várias razões:

— Se apelo erótico vende e o objetivo é vender, não é necessário então talento algum para ser publicitário. Basta colocar uma mulher, nua ou seminua, anunciando maiôs, sabonetes, parafusos, automóveis, papel higiênico, catecismos, tudo. No caso do anúncio, o que vejo não é falta de criatividade, mas pobreza de espírito.

— Sexo é bom — quando é dádiva. Sexo é triste — quando pago. Sexo enjoa — quando é apelo publicitário.

— Não é um outdoor o altar adequado para adoração daquelas formas. A vulgarização do sexo está matando o sexo. Isto explica em parte o número crescente de casos de impotência masculina nas grandes cidades.

— Os criadores do anúncio, se interrogados, certamente seriam a favor da emancipação e dignificação da mulher. Mas se dignificação da mulher consiste em ampliar suas nádegas e expô-las em cada esquina, devo então confessar que já não entendo mais a língua em que escrevo.

— Conheço pessoas que chegam a vibrar com o anúncio. São párias afetivos, que reduzem a mulher tão-somente a um pedaço de sua anatomia. Se o anúncio foi dirigido a estes, a agência que o criou teve um lampejo de gênio.

— Para o público feminino, ao lado dos glúteos, um volumoso efebo exibe sua plástica. Acinte ou convite?

Não tenho nada contra o anúncio, estou apenas tecendo algumas considerações sobre o mesmo. Aceito o mundo em que vivo. Certa vez tentei transformá-lo, quase fui linchado. Desisti. Já que o anúncio vai continuar em cada esquina, sugiro aos leitores:

— Se você é um dos que vibram com o anúncio, leve-o para casa. E APROVEITE!


 

A PRAGA QUE VEM DO ORIENTE

 

Se há uma rua que me fascina no mundo, esta é a Rua da Praia. E não admito comparações com Florida, Boulevard Saint Michel, Carnaby Street, Ramblas ou Paseo de Gracia. Há ruas lindas mundo afora, bem mais lindas que a Rua da Praia. Aliás, diga-se de passagem, a Rua da Praia é feia. Não tem uma arquitetura que agrade aos olhos. Aqui e ali a gente encontra prédios antigos desfigurados por acrílicos de um mau gosto absoluto. E aquele “belíssimo achado” dos decoradores da Prefeitura — o estande vermelho de revistas — nos sugere uma única idéia: um chute.

Mesmo assim, a Rua da Praia me fascina. Duvido que nalguma outra cidade haja uma rua onde as pessoas fiquem paradas. Paradas para conversar, para olhar as mulheres que passam, que por sua vez passam para olhar os que estão parados. Se alguém conhece, nalgum outro lugar, uma rua assim, peço a gentileza de informar-me.

Um sociólogo americano, recém-chegado a Porto Alegre, perguntou-me um dia:

— É dia de festa hoje?

Não, não era. Mas Cortez — era americano mas se chamava Carlos Cortez — continuava confuso:

— Tem alguma manifestação política?

Não, manifestação era coisa do passado. Cortez continuava inquieto:

— E que faz essa gente toda?

— Nada.

E Cortez sentiu que todos os tratados de sociologia que mastigara em sua vida não explicavam a Rua da Praia.

— São pessoas ricas? Ou desocupados?

Havia de tudo, expliquei. Ricos e pobres. Ocupados e desocupados. Funcionários que deviam estar trabalhando — mas estavam conversando. Etcetera.

Cortez comprometeu-se a obrigar todos os americanos a ficarem pelo menos duas horas na rua, quando se tornasse presidente dos Estados Unidos.

A Rua da Praia, mais que uma rua, é um estilo de vida do porto-alegrense. Um estilo que está, aos poucos, morrendo.

Bancos, financeiras e novas construções estão substituindo bares e cinemas. A Coletânea, último refúgio de quem gosta de um papo entre lombadas de livros, tem seus dias contados. E o estilo de vida ameno e calmo, sem angústias, do habitante da Rua da Praia, vai aos poucos acabando. A Rua está morrendo. Não adianta calçadão. Só bares e mesas podem salvá-la.

Nestes últimos anos, a Rua da Praia recebeu um violento ataque de uma praga que vem do Oriente — a lancheria. A lancheria é uma máquina fantástica de reproduzir dinheiro. É investimento seguro. Altamente lucrativo. E econômico. Não exige muito espaço, dispensa garçons, o cliente não esquenta muito o assento, não fica conversando fiado e tirando o lugar de outros.

Mas o gaúcho urbano, o gaúcho a pé, esqueceu um detalhe. Deixou o cavalo no campo, livre e sem arreios, retouçando nas invernadas. E veio para a cidade para ser tratado como cavalo. Ao entrar numa lancheria não se dá conta de estar indo a trote largo para uma cavalariça. Entra e sai por um brete. Toma lugar na manjedoura e se debruça sobre o bornal.

Enfim, eu também faço isso. Mas como invejo, nessas ocasiões, aquele outro que ficou pastando nas coxilhas!


 

ALEGRIA, ALEGRIA!

 

Tentativa de suicídio ou de homicídio? A polícia está ainda na fase das suposições. O que se sabe, objetivamente, é que o corpo de Leila Cravo foi encontrado sem roupas, estendido entre um gradil de ferro e a parede do motel Vip’s, no Rio. A atriz foi hospitalizada em estado grave.

As notícias nos dão mais alguns detalhes. A atriz estava acompanhada. O casal ocupou a suíte presidencial do motel, com piscina privativa e vista para o mar, ao preço de Cr$600,00 a diária. O acompanhante, um jovem advogado pediu pelo telefone interno duas garrafas do “melhor vinho estrangeiro” e deu ao porteiro uma gorjeta generosa. Desceu da suíte, pagou Cr$900,00 e foi embora. A atriz ficou dormindo. Segundo o porteiro, antes de ter sido encontrada caída no gradil, teria pedido ao porteiro:

— Vou tomar mais um pouco de vinho para curtir a solidão até que o sono chegue.

Com todo aquele cenário do Rio, o carioca tem de representar que vive. A representação é encenada com luxo e pompa. Sob o luxo e a pompa, solidão e vazio.

O Vip’s é uma dessas casas que há alguns anos tinha o nome de rendez-vous, hotel de encontros. Mas ora, o carioca não é tão vulgar a ponto de freqüentar rendez vous ou hotel de encontros. O carioca vai ao Vip’s, ao motel Vip’s. Isso lhe confere status. Torna-se Very Important People. E pessoas muito importantes exigirão, é claro, nada menos que a suíte presidencial. Com piscina particular e vista para o mar. O vinho há de ser estrangeiro e do melhor.

Amor? Afeto? Ternura? Desejo?

Isto não interessa. O que interessa é o luxo da suíte, o exotismo do vinho, o preço da diária. Poucos são os detalhes que as notícias do Rio nos trazem, mas nos permitem uma conclusão. Naquele encontro não havia amor nem desejo. Pois ninguém deixa, bêbada e só num quarto de motel, a mulher que ama ou deseja.

Estamos vivendo um momento grave da História. As pessoas não mais valem pelo que são, mas pelo que têm. Tenho aqui, à minha frente, esperando a vez de um comentário, um dos recortes mais irônicos de meu arquivo. É uma notícia sobre Miron Vieira de Souza, o desdentado goiano que ganhou Cr$22 milhões na Esportiva. Nunca alguém havia observado sua existência, nunca alguém pensou em dar-lhe um auxílio para arrumar os dentes. Mal ganhou na Esportiva, choveram “amigos” de todo lado. Já recebeu mais de mil cartas, técnicos e autoridades financeiras lhe fornecem assessoria constante. Amigo de fato, terá algum?

Talvez Leila encontrasse mais carinho num hotel barato da Lapa, na mesa de algum bar não freqüentado por Very Important People. Talvez lhe resultasse menos doloroso ter ficado só. Pois se uma pessoa é realmente só, companhia alguma lhe perfurará a carapaça da solidão.

E o nosso jovem advogado? Deve estar feliz, radiante de alegria. Esteve com uma atriz de renome nacional no mais famoso hotel de “alta rotatividade” — como dizem as autoridades policiais — do Rio. O Vip’s tem tanto status no Rio que é sinal de bom gosto ter em casa uma toalha roubada com o nome Vip’s. Talvez o jovem advogado tenha até levado a sua, como lembrança de uma belíssima noitada de Cr$900,00. Ocupou a suíte presidencial. Utilizou certamente a piscina particular. Ouviu canções românticas em freqüência modulada. Terá olhado certamente para o mar — por sinal a vista estava incluída no preço.

Mas porque não ocupou sozinho a suíte? Teria poupado Leila de algumas fraturas.


 

QUEM MATOU PASOLINI?

 

Segundo a polícia italiana, o assassino é um jovem que, segundo suas declarações, teria sido agredido fisicamente por recusar-se a contatos sexuais com o cineasta. É possível. Infelizmente não temos a versão da vítima. E sabemos que a versão desta raramente coincide com a do criminoso.

A meu ver, Pasolini foi assassinado pela Itália. O “ragazzo” que o matou a pauladas e, ainda, esfacelou-lhe o crânio sob as rodas de um carro foi apenas um instrumento de execução. Explico.

A ocorrência do travesti é fenômeno típico de países latinos. Quem viajou pelos países do norte europeu deve ter observado que naqueles países — onde predomina uma cultura anglo-saxã — simplesmente não se vê essa caricatura de mulher que atualmente, sob a eufemística denominação de andrógino, é quase um produto da moda.

Não existe, então, homossexualismo nesses países?

De modo algum. O fenômeno ocorre em todas as sociedades. E tem inclusive alta incidência nos países nórdicos. Mas o europeu do norte é um homem calado, taciturno, pouco dado às efusões que caracterizam o latino. Enquanto o espanhol e o italiano cuidam da vida alheia, o alemão e o escandinavo tratam de suas próprias vidas. O colega de serviço é mais chegado a homens que a mulheres? Que tenha bom proveito, gosto e cor não se discute.

Mas se o fato ocorre num país latino, os sussurros voam. “Sabes, o fulano é”. E o boato cresce, a tensão aumenta, o conflito se acentua. O homossexual, em reação a essa agressão, rasga a bandeira: vira bicha.

Pasolini era um homem controvertido. Suas opiniões irritavam esquerda e direita, católicos e marxistas, europeus e italianos. Como outras opiniões suas coincidiam com os diversos grupos. Mas na pátria de Casanova, no berço do latin lover, no chão do belo maschio italiano, algo era imperdoável: a afirmação pública de seu homossexualismo. Para um latino, mais que uma ofensa, isto é crime.

Na Dinamarca, por exemplo, Pasolini não terminaria de forma tão trágica seus dias. Perto de Copenhague está sediada a International Homosexual World Organization (IHWO). Duas revistas, Uni e Viking, circulam entre os sócios. Em 64 foi inclusive fundado um partido, De Frisindede, Os Liberais. Do programa do mesmo constava o estímulo a bolsas de estudos a jovens africanos e asiáticos.

O índice do homossexualismo tem aumentado nas grandes cidades. Negar ou pretender ignorar isto é querer tapar o sol com peneira. Há quem veja no fenômeno uma reação ecológica à ameaça da superpopulação. Descobriu-se que ratos, quando encerrados em um espaço demasiado exíguo, reagem com um comportamento homossexual. Ora, a situação do habitante das grandes cidades pouco difere da dos ratos. Era Cícero, se não me engano, que já nas Catilinárias falava das “coisas da cidade que servem para efeminar os ânimos”. O fenômeno talvez seja até melhor analisado por antropólogos e sociólogos do que por psicólogos e analistas. Sua condenação sumária só leva à exacerbação do homossexualismo e à violência.

Freud disse:

“A homossexualidade não é nada de se envergonhar, nem vício, nem degradação e não pode ser classificada como doença. Muitos indivíduos altamente respeitáveis dos tempos antigos e modernos foram homossexuais, dentre eles vários dos maiores homens, como Platão, Miguelangelo, Leonardo da Vinci etc.”.


 

E PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALO DE FUTEBOL

 

E não vais escrever sobre futebol?

Esta é a pergunta que mais tenho ouvido desde que comecei a ocupar este espaço. É claro que vou falar de futebol. O cronista deve estar preparado para o trivial e para o grave, para o fútil e para o significativo. E que mais significativo que futebol neste país de tricampeões?

Quando penso em futebol, me ocorre logo a figura de Renato, colega de aula desde o ginásio feito no interior, até o último ano do curso de filosofia, aqui na capital. Nos últimos anos de secundário, Renato era o único a preocupar-se com as abstrações da literatura e filosofia. (Naquela época ainda existia filosofia no secundário).

Enquanto todos se desesperavam com equações matemáticas, fórmulas químicas e problemas da física, Renato se encerrava nos Diálogos de Platão, contos e novelas de Sartre, Camus, estudos sociológicos e políticos etc. Não que os outros tivessem inclinações científicas ou grandes ambições no campo das ciências exatas. Nada disso! O problema era saber o suficiente para vencer o vestibular, fazer carreira, comprar carro e casa, enfim, ter êxito nesse tipo de vida que todos bem conhecem. Mas Renato linha preocupações maiores. Na primeira viagem a Porto Alegre, vollou com livros de Rousseau, Montesquieu, Agostinho, Aristóteles, Kant e quantos outros encontrou. Ao fim do secundário, que superou a pau e corda, veio para Porto Alegre, inscreveu-se no vestibular para filosofia, e fez o curso.

Ano a ano, com insônia e método, foi percorrendo as obras dos pensadores que erigiram a cultura e história humanas. Começou pelos gregos, isto é, pelo início. Estudou Tales, Parmênides, Heráclito, Anaxágoras, Górgias, Protágoras. Continuou com Platão, Sócrates, Aristóteles. Embrenhou-se pela maiêutica, percorreu os mitos da filosofia platônica, discutiu as idéias estéticas de Aristóteles. A vôo de pássaro, deu uma rápida olhadela no pensamento dos Vedas e Upanishades, no confucionismo e budismo, numa tentativa de confronto com o Oriente. Continuou suas incursões trilhando agora a patrística e a escolástica. Deglutiu — estoicamente, sem uma queixa — Kant, Hegel, Spinoza, Bergson, Heidegger, Sartre e outras figurinhas difíceis cujo nome nem lembro. Muniu-se de conhecimentos de economia e história para dar uma olhada em Marx e Engels. Ao fim dos quatro anos do curso e outros tantos de pesquisas por conta própria, é um homem de uma vasta cultura, com sólidos conhecimentos das doutrinas políticas, estéticas, filosóficas, econômicas e religiosas que já grassaram sobre este planeta. Estudou disciplinas que o leigo mal imagina que existam: gnoseologia, ontologia, metafísica, axiologia. Em suma, Renato é um desses estudiosos cada vez mais raros nesta época onde não há tempo para leitura, muito menos para humanidades.

Em Paris ou Berlim, seria catedrático, ganharia um salário digno e teria todas as portas abertas para a continuação de suas pesquisas. Pesquisas que se tornam cada vez mais urgentes num mundo em que o homem perdeu totalmente a visão de conjunto. O homem contemporâneo está perdido. Pediu socorro aos cientistas e técnicos, recebeu estatísticas e bombas nucleares. Se alguma resposta existe às angústias do homem atual, só poderá vir de alguém que tenha uma visão do alto, da História e da humanidade. De estudiosos como Renato.

Mas Renato vive em Porto Alegre. Desempregado e sem perspectiva alguma de utilizar seus conhecimentos. Às vezes lamenta:

Se em vez de me preocupar com cultura, letras e humanidades, me dedicasse a chutar uma bola, poderia estar ganhando uns 40 mil por mês.


 

CLOACAS DO PALÁCIO, SEGUNDO OS TEÓLOGOS

 

A notícia vem de Paris. Paris, nome que ainda evoca em pessoas ingênuas a idéia de sexo e pecado. Como se uma parisiense, pelo simples fato de ser parisiense, tivesse mais know-how — ou saber-como, como dizem os lusos — que uma gaúcha. Quando sabemos que certas aptidões não dependem de época ou lugar.

Vamos à notícia. Esteve reunido na terça-feira passada, no Théâtre de la Mutualité, o I Congresso Nacional das Prostitutas, com a presença de dois eclesiásticos, inclusive. As profissionais francesas, numa demonstração de invulgar espírito de classe, reclamam a regulamentação do ofício, protestam contra prisões arbitrárias e multas por ultraje ao pudor.

Tanto no Brasil como na França — como na maioria dos países — o exercício da prostituição não constitui crime. A legislação pune, isto sim, a pessoa que explora a prostituição de outrem. Os artigos 334 e 335 do Código Penal francês prcvcem até cinco anos de prisão, a multa de 250.000 francos para o proxeneta e o fechamento definitivo do estabelecimento. Punições que permanecem praticamente em teoria.

Se a prostituição não é proibida por lei, e se é, por outro lado, a profissão mais antiga do mundo, como entender que ainda não tenha sido regulamentada?

A pergunta não preocupa apenas as profissionais. Tem sido estudada por sociólogos, juristas e legisladores. Em 1971, o deputado Sten Sjõholm apresentou no Parlamento sueco uma moção sugerindo a estatização dos bordéis. A proposição, fundamentada em razões de ordem sanitária e fiscal, não foi aceita, apesar do debate nacional provocado.

Sem precisar ir tão longe, o promotor gaúcho Ruy Barros apresentou, durante o 3.° Congresso do Ministério Público, uma tese sugerindo a legalização do ofício. Sua argumentação se resume, fundamentalmente, numa frase:

— É preciso tornar de direito aquilo que existe de fato.

Em nossa legislação, o artigo 229 do Código Penal proíbe a existência de bordéis ou a sua exploração. Além do contraditório (se a profissão não é ilícita, porque são proibidas as condições necessárias ao seu exercício?), o artigo é letra morta. Os bordéis estão aí, qualquer motorista de táxi sabe o endereço de, pelo menos, meia dúzia.

Segundo Otávio F. Júnior, a prostituição é uma atividade profissional cujo trabalho consiste em fornecer prazer sexual, pago e realizado de modo sistemático. Numa classificação geral de profissões, em que se tomasse como base categorial o objetivo do trabalho em relação ao comprador que dele usufruísse, a prostituta deveria se encaixar ao lado dos artistas plásticos (que dão prazeres visuais), dos músicos (que dão prazeres auditivos), dos massagistas (musculares), perfumistas, criadores de molhos e temperos culinários, decoradores etc. Numa chave mais geral se juntariam a escritores, cineastas, oradores, conferencistas, que também fornecem prazer, recebendo dinheiro, mas através de circuitos mais amplos.

Mas não são estes obscuros legisladores ou juristas os mais ilustres defensores da necessidade social da prostituta, e sim dois doutores da Igreja e arquitetos de nossa civilização ocidental e cristã. Disse Santo Agostinho:

— Suprimi as prostitutas e pertubareis a sociedade com a libertinagem.

E São Tomás, o Doutor Angélico:

Eliminai as mulheres públicas do seio da sociedade e a devassidão a perturbará com desordens de toda a espécie. São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que a cloaca em um palácio; suprimi a cloaca e o palácio se tornará sujo e infecto.


 

UM DÉSPOTA SEM VERNIZ

 

Se há um personagem que me fascina no atual panorama político internacional, esse é o Idi Amin Dada. Já pensei até em escrever sua biografia. Quando estava pensando em pedir uma passagem de ida e volta a Uganda e alguns dias de entrevista, ocorreu a condenação à morte daquele escritor inglês que andava por lá. Achei, então, mais prudente continuar escrevendo sobre gente daqui mesmo. Os personagens locais são, por vezes, até mais irascíveis que Amin, mas pelo menos não detêm poderes de vida e morte nas mãos. O que, para mim, é um alívio.

Barbet Schroeder, cineasta francês, foi até lá e rodou um documentário sobre o negrão e voltou ileso. Mas a colônia francesa em Uganda viveu momentos de suspense, graças ao filme do Schroeder. Idi Amin não gostou de algumas cenas e mandou um recadinho ao cineasta: se não cortasse tais e tais cenas, ele cortaria a cabeça de todo francês que encontrasse em Uganda. O que só comprova a invulgar habilidade diplomática de Idi Amin: seus métodos de censura são tão eficientes e persuasivos que ultrapassam as fronteiras de Uganda. A sugestão de Amin foi aceita sem reservas e executada sur-le-champ, como dizem os franceses.

Idi Amin é a encarnação viva e grotesca do poder absoluto. Cabe lembrar um episódio da vida desse homem, que é hoje presidente de Uganda e dirigente da Organização dos Estados Africanos. Quando era ainda subalterno da guarnição inglesa em Uganda, recebeu certa vez seu salário através de um banco. Apanhou um talão de cheques, aprendeu a assinar o nome e saiu a fazer compras. Comprou qualquer coisa numa loja, assinou um cheque, apanhou a compra e saiu. Saiu completamente fascinado. Bastava então fazer uns rabiscos num papel para comprar o que quisesse, sem despender dinheiro algum?

E lá se foi o cabo Idi Amin, comprando de tudo um pouco, até assinar o último daqueles papeizinhos mágicos que adquiriam tudo sem necessidade de pagar em dinheiro. Nos dias seguintes, os cheques do Amin só eram aceitos quando traziam também a assinatura do adido militar inglês.

Esse homem é hoje um chefe de Estado e líder de um continente. E o que me fascina em Idi Amin é sua pureza. Ou ingenuidade, se quiserem.

Nos Estados Unidos e União Soviética não há assassinatos políticos. De modo algum! A segurança soviética preocupa-se em silenciar os inimigos que ameaçam “a pureza ideológica do regime; a revolução do proletariado”. A CIA preocupa-se apenas em “desestabilizar” um regime que ameaça “o mundo livre e ocidental”. Tudo é feito em nome de palavras lindas. Com Idi Amin não há eufemismos:

— Aqui em Uganda não há oposição. Eu faço tudo pelo bem de Uganda. Como é que existiria oposição, se todos os ugandenses me amam?

E para não deixar margem a dúvidas, acrescenta:

— Nenhum homem corre mais depressa que uma bala de fuzil.

Outras do Idi:

— O Kissinger tem medo de mim. Já o convidei a visitar Uganda. Ele visita todos os países, menos Uganda. Só pode ser porque tem medo do que vai ouvir.

Numa reunião com seus ministros:

— Todo ministro tem de amar seu presidente. Vocês todos tem de me amar. E têm de ser assíduos nas reuniões dos ministérios. Ministro que faltar a três reuniões consecutivas não é mais ministro.

O mundo dito civilizado escandaliza-se com as atitudes e declarações de Idi Amin. Esquecem que o presidente de Uganda é fruto da colonização inglesa. Herdou dos colonizadores britânicos a filosofia do poder, sem ter recebido o verniz da hipocrisia.

Idi Amin é a caricatura incômoda e acusadora dos chefes de Estado da época atual.


 

... MAS O CHEIRO É DE JASMIM!

 

É curioso observar o poder transformador das palavras. Com palavras bem manipuladas chega-se a qualquer conclusão. O preto se torna branco e o branco preto. Exemplo é o que não falta.

Um amigo foi queixar-se ao médico de comichões e manchas que lhe apareceram pelo corpo. Aventou a hipótese mais plausível:

— Será sarna, doutor?

— Jamais diga isso, meu amigo. Se fosse o caso, um homem de sua condição social teria escabiose. Nem pense em sarna.

Outro exemplo: houve época em que ser homossexual significava ter de ouvir epítetos não muito gentis. Não se concebia então que um pervertido, um bicha (e outros nomes menos publicáveis), invadisse o recesso do lar através da janela do vídeo. Mas andrógino pode. Aliás, o Santiago, vizinho daqui da Folha da Tarde, percebeu muito bem isso num de seus melhores trabalhos, Um personagem pergunta:

— É andrógino?

— Não. Eu sou dos frescos velhos.

Há algum tempo, fez-se uma campanha em torno do problema da lepra. A campanha não visava precisamente a erradicação do mal, mas sim uma troca de nomes. Não se falaria mais em lepra, e sim em hanseníase. Como se fosse mais requintado sofrer do mal de Hansen do que da lepra.

Como estou pródigo em exemplos hoje, continuo. Quando a Borregaard começou a lançar seus odores de ovo podre, com invulgar senso democrático, sobre as narinas de ricos e pobres, um estudioso de odores levantou uma agradável hipótese Dizia o sábio — pois se intitulava nada menos que sábio — que até o mais concentrado almíscar tem um odor nauseante se ministrado em grandes doses. Os gases da Borregaard provocam náuseas, não pelas características de seus odores, mas pela saturação. Sustentou ainda o sábio que os gases em questão se embalados em quantidades minúsculas, constituíam um poderoso afrodisíaco. Como os porto-alegrenses nem se preocuparam em estudar a hipótese do sábio, perdemos a oportunidadee única de exportar, em vez da prosaica celulose, o exótico Beau Regard. Pois Borregaard é mau cheiro. Mas Beau Regard é a glória. Sempre achei que esse problema não era da alçada de ecólogos, políticos ou economistas, mas dizia respeito a lingüistas.

O leitor deve achar que estou brincando. Aliás, desde que comecei a ocupar este espaço, tenho ouvido constantemente a acusação:

— Estás brincando...

Pode ser. Mas os técnicos da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro, não pretendem estar brincando em serviço. Os gases do emissário submarino, que emanam do suspiro construído na praia de Ipanema, tem cheiro de matéria fecal. Mas adequadamente tratados passarão a ter cheiro de jasmim, é o que garante o professor de Química, Mário da Silva Pinto.

Segundo o arguto professor, há um processo empregado na Austrália para combater os “odores de escatol” (fezes). Se ao escatol for combinado um outro composto químico denominado indol, o produto resultante terá um cheiro de jasmim.

Como vemos, a solução dos problemas de poluição não está nas possibilidades dos ecólogos ou administradores, mas sim na competência de lingüistas ou perfumistas. Nesta altura, os cariocas devem estar curtindo doidamente um cheirinho de escatol com indol. Enquanto os gaúchos, com sua grossura e provincianismo, perdem a oportunidade única de encher os pulmões com o poderoso Beau Regard. Que, diga-se de passagem, viria muito a calhar nesta época de efebos e andróginos.

A eme é a mesma...


 

EM AGRADECIMENTO A UM GLIPTODONTE

 

São às vezes insólitos os fatos ou circunstâncias que nos levam ao encontro de outras pessoas. Por exemplo: conheci Erico Verissimo através de um gliptodonte, nada menos que isso. Gliptodonte é o nome dado pelos paleontólogos a uma espécie extinta de mamíferos gigantescos que viveram no quaternário americano. Pois um deles permaneceu sepultado durante milênios nos sangões do Ponche Verde, para servir-me de cartão de visita a Erico, em 1972.

Meu pai herdara de seu avô um fragmento do casco de um animal, descrito como “um baita tatu, com os ossos do tamanho dos de um boi”. Havia sido encontrado emborcado, no Ponche Verde, numa cova imensa que perfurava a barranca de uma sanga. Meu bisavô teria guardado por muito tempo o casco inteiro com os ossos debaixo da mesa de jantar. Com sua morte, a família deu um sumiço naquela ossaria inútil, da qual restam hoje raros fragmentos do casco. Um casco de uns três a quatro centímetros de espessura, com desenhos que se assemelham a uma flor de seis pétalas.

Em Incidente em Antares, Erico fala, nas primeiras linhas, dos gliptodontes que em outras eras arrastavam o corpanzil pelas coxilhas daquela zona da campanha. Apanhei meu fragmento de casco e levei-o de presente a Erico. Em suas mãos, o fóssil estaria mais acessível a quem quisesse estudá-lo.

Graças ao milenar gliptodonte, conheci uma dessas raras pessoas que consegue conversar, com a mesma empatia e profundidade, tanto com um cientista como com um peão de estância. Um homem cuja simples presença física irradiava paz e convidava ao diálogo e troca de idéias e experiências. Com Erico, recebi, numa pequena frase, uma enorme lição de humildade e tolerância. Perguntou-me o que eu achava do pessoal novo que andava publicando seus trabalhos. Fui intransigente:

— Escrevem por vaidade, não têm nada a dizer a ninguém, não acrescentam nada a nada, não fazem falta alguma.

Erico respondeu-me com uma daquelas perguntas que nos perseguem dia e noite até encontrarmos uma resposta satisfatória:

— Mas não achas que há lugar para todos neste mundo?

Na época, já havia sido contagiado pela febre de viagens — mal, sem esperança alguma de cura, Erico e Mafalda que o digam — e ouvi do contador de histórias este segredo óbvio, mas ao alcance só de iniciados:

— Para uma viagem agradável, te aconselho mala pequena e sapatos leves.

Conversamos mais tarde uma segunda vez. Erico começou a entrar num campo que, a contragosto, me fascina. Falava de morte.

— Já tive dois ataques cardíacos. Não creio que sobreviva ao terceiro. Conto, no máximo, com mais uma década de vida. Hesito, às vezes, em concluir minhas memórias, mas é um recado que me sinto obrigado a dar ao leitor.

Conversamos, pela última vez, numa tarde na Feira do Livro. Como que prevendo a visita da Indesejada das Gentes, Erico desceu de Petrópolis para despedir-se de livros e amigos, da Feira e da Praça, da Rua da Praia e de Porto Alegre. Deixei-lhe o livro de Ney Messias, a quem estimava muito. Falou com todos, de tudo um pouco. Lembro-me de uma definição, rápida e perfeita, de Gerald Ford:

— Ford? Um mediocrão.

No sábado, vejo uma foto enorme de Erico na capa da Folha da Manhã. Que houve? Terá lançado o segundo volume das memórias?

Nada disso. Havia ocorrido a terceira crise.

Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã sabedoria, disse o poeta. Há mesmo! Erico conhecia o segredo de algumas delas. Senão, como explicar este nó na garganta que foi crescendo e ao qual não resisti, diante da morte de um homem que só vi três vezes na vida?


 

A CAPITAL DO MEDO

 

Quando vi São Paulo pela primeira vez, não quis acreditar no que via. E o que vi era de assustar.

O ônibus margeava o Tietê. Um cheiro podre e penetrante emanava do riacho. E não adiantava fechar janelas. O mau cheiro perfurava os vidros, minha esperança era que o estômago agüentasse até o ônibus se afastar daquela marginal.

Vi então algo que até hoje me assusta. Tranqüilamente, como se estivessem no mais virgem e límpido dos rios, dois atletas — paulistanos certamente — praticavam regata. No meio da água podre.

São Paulo já foi motivo de orgulho para o brasileiro. A cidade que mais cresce no mundo. A metrópole que não pode parar. Ainda há pouco um cronista gaúcho escrevia deslumbrado: “Que beleza! Que ritmo de crescimento! 25 milhões de habitantes no ano 2.000. Formidável!”

Este entusiasmo me sugere a sinistra imagem de alguém que, observando um tecido canceroso, exclamasse: “Que beleza! Como estas células se reproduzem! Serão milhões dentro de pouco tempo. Formidável!”

O Instituto Gallup fez recente pesquisa que deve servir de alerta às pessoas que gostam de ver suas cidades crescendo e se industrializando. Alguns dados da pesquisa:

55% das pessoas têm medo de serem atropeladas em São Paulo e 24% de andar a pé, à noite. 65% têm medo de dar carona e 47% de pedi-la. 60% têm medo de serem assaltadas ao chegar em casa e 69% de ficarem doentes sem ter dinheiro para as despesas. 37% têm medo de falar com estranhos na rua. Seis em cada dez pessoas têm medo de serem assaltadas, e sete em dez, de serem presas pela polícia. Isto é, a polícia atemoriza mais que os bandidos. O sentimento de medo é tão genérico que 79% têm medo de cobras, réptil que só conhecem através de cinema, TV ou Instituto Butantã.

Há alguns anos, um prefeito descobriu que São Paulo devia parar. Mas já era tarde, a metástase era incontrolável. A triste constatação é que São Paulo não pode mais parar. Nem que o queira.

Desconheço outras estatísticas sobre o medo nas grandes cidades. Mas, ao que tudo indica, a cidade que mais cresce no mundo é a em que mais se tem medo no mundo. O maior parque industrial da América Latina, a cidade dos melhores empregos do país, o El Dorado do lucro fácil, é hoje a capital do medo.

Se alguém me afirma não ter medo algum, jamais ter tido medo, deduzo logo estar diante de um mentiroso. Não há ho­mem que, vez ou outra, não tenha experimentado a sensação paralisante do medo. O próprio herói é o covarde que venceu seu medo.

O medo é companheiro de jornada do homem. Há quem tema a escuridão. Outros temem aranhas ou cães. Há pouco, noticiou-se o caso de um australiano que viveu toda sua vida obcecado pelo medo de crocodilos. Acabou sendo devorado por um crocodilo gigante. E deformado, ainda por cima. De um modo geral, não há quem não experimente a sensação de medo ante o desconhecido.

O medo faz parte da condição humana. Mas viver, dia noite, dominado pelo medo, isto faz parte da condição do paulistano.

Estive uma segunda vez em São Paulo. Uma revista ofereceu-me um emprego com um salário que não era de se jogar fora. Dei um passeio pela cidade. Olhei as pessoas apressadas e os rostos sem cores de vida. Vi as massas cinzentas de concreto. Vi um sol esmaecido, débil, cujos raios não conseguiam perfurar a carapaça de gases que subiam das indústrias. Lembrei-me então dos atletas do Tietê. E recusei o emprego. Tive medo da capital do medo.

— Mas você se adapta em pouco tempo a este modo de vida, assegurou-me o empresário.

Respondi:

— É exatamente disto que tenho medo.


 

A FORÇA DOS MITOS

 

Há palavras que emergiram na História para ficar. Simbolizam aspirações humanas universais e comovem gregos e troianos. Por exemplo, democracia. Jamais conheci — nem tenho a esperança de conhecer — alguém que não seja democrata. Conheço gente de esquerda que afirma que a democracia foi mutilada pela direita, que está no poder. Conheço gente de direita que afirma estar a democracia ameaçada pela esquerda, que quer tomar o poder. Há quem afirme que vivemos numa democracia. Há os que lutam para que se chegue a um estado democrático, pois este não o seria. E quando surge uma revolução, os que sobem ao poder proclamam sempre o início de uma era democrática. E os que caem, choram a morte da democracia.

A palavrinha já tem mais de vinte séculos de idade e ainda não perdeu seu charme. Encanta tanto a Pinochet como a Olof Palme. Isabelita ou Gerald Ford. Brejnev ou Sakharov.

Sem dúvida alguma, os gregos eram insuperáveis na cria­ção de palavras bonitas.

Outra palavra, também linda, surgiu também na Grécia. Mais precisamente na ilha de Lesbos. Pois os historiadores situam, de um modo geral, nos poemas de Safo de Lesbos, a primeira ocorrência na literatura da palavra amor. Safo descreveu, inclusive, uma série de sintomas físicos que diagnosticariam o amor. E os médicos da época apoiavam-se em Safo para definir a doença. Assim narra Plutarco o caso de um jovem enfermo:

— Erasístrato percebeu que a presença de outras mulheres não produzia efeito algum nele; mas quando Estratonice aparecia, só ou em companhia de Seleuco, para vê-lo, Erasístrato observava no jovem todos os sintomas famosos de Safo: sua voz mal se articulava; seu rosto se ruborizava; seus olhos olhavam furtivamente; um suor súbito irrompia através de sua pele; os batimentos de seu coração se faziam irregulares e violentos; e, incapaz de tolerar o excesso de sua própria paixão, ele tombava em estado de desmaio, de prostração, de palidez.

Quando Antíoco — pois assim se chamava o enfermo — recebeu Estratonice como presente de Seleuco, seu pai, desapareceram os sintomas da doença. Que talvez tenha contagiado Seleuco, pois afinal era o marido de Estratonice. Mas isto já é outra estória.

Assim era o amor, em suas origens. A palavra fez carreira, foi louvada e caluniada, definida e estudada. Hoje, é enunciada tanto por Paulo VI como por adolescentes em transportes de ternura. Como também por publicitários em campanhas de Natal.

Mas se a palavra democracia ainda avança robusta, a palavra amor está em franca decadência. Pelo menos para o escritor Alberto Moravia. Que afirma:

— O mito do amor está se desintegrando cada vez mais. Pouco a pouco, a mulher está se transformando, exigindo paridade com o homem, direito ao trabalho, liberdade sexual; o mito do amor está deixando de existir tanto para ela como para o homem. O mito estava anteriormente ligado à mulher que vivia tão-somente em função do homem amado, à virgem, à esposa íntegra e fiel, e tudo isso terminou. Terminou não apenas onde já terminou, mas também nos lugares onde continua existindo. E também a prostituição, que no passado era um elemento de equilíbrio para o matrimônio, está destinada a desaparecer. Curiosamente, seu fim se toma visível justamente no momento em que atingiu sua difusão máxima. Não existe contradição neste fato: foi a maior liberdade sexual, a ruptura com os tabus, que favoreceu sua explosão. Por outro lado, esta mesma liberdade sexual retirará da prostituição qualquer razão de ser, como, aliás, parece que já está ocorrendo nos países escandinavos, da mesma maneira como está acontecendo cada vez mais freqüentemente entre as jovens gerações. A transformação da mulher provocará uma transformação na sociedade.

E aqui se engana o lúcido Moravia. Pois se todos são democratas, o amor não o é. Nem os países escandinavos aboliram a prostituição. Pois, mesmo lá, o sexo pode ser livre, ­ mas nem todos têm namorada.


 

O SUL REAGE

 

Quando criança, não foi fácil para eu entender o planeta em que vivia. Se o planeta era redondo, como é que não caíam os que estavam lá embaixo? Uma laranja, por exemplo. Se uma formiga passeia em torno de sua casca, pode ser que não caia quando está embaixo, pois se prende com as patas. Mas sem dúvida alguma, está de cabeça para baixo. E os meus antípodas? Teriam pés diferentes dos meus? E nenhum professor de geografia me convencia do contrário. Se a questão caía num exame, eu respondia conforme a afirmativa do professor. Mas ficava xingando intimamente aquele idiota, que não tinha coragem suficiente para opor-se às crendices oficiais.

Mais tarde, com as primeiras leituras de astronomia, me convenci de que tudo é relativo. Em cima ou embaixo, longe ou perto, grande ou pequeno, tudo é uma questão de ponto de vista. Surgiu então uma dúvida pior. Se tudo é relativo, se tudo depende do ponto de observação, por que razões, nos globos, o norte está invariavelmente em cima? E o sul sempre embaixo?

Não houve professor de geografia que tentasse, ao menos, uma resposta. Tampouco livro algum tocava no assunto. Durante muito tempo a pergunta ficou entre parênteses, pois a vida nos força a responder a perguntas bem menos transcendentes, tais como: “que é que vou comer amanhã?”. A pergunta é trivial, mas imperativa. Exige resposta imediata. As perguntas transcendentes são mais pacientes. Temos prazo indeterminado para respondê-las, tão indeterminado que às vezes chegamos a esquecê-las. Mas a dúvida sobre o direito do norte ficar em cima, voltou a assaltar-me mais tarde. E longe daqui: em Genebra.

Falava com uma amiga suíça. Subitamente, ela manifestou o desejo de conhecer ces pays de là-bas, aqueles países lá de baixo. Que países lá de baixo? Perguntei. Ora, Brasil, Argentina, Uganda, Zaire, Angola, tu sabes, tous ces pays de là-bas...

Viajando, descobri outras coisas. Que o pessoal lá de cima — isto é, do norte, conforme os globos — vive às custas do pessoal cá de baixo. Do sul — isto é, cá de baixo — vai a lã que aquece europeus e americanos, vai o trigo, café e soja que os alimenta, o petróleo que possibilita aos homens do norte seu alto nível de vida, sua saúde e conforto. No norte se situam os países com mais alto padrão de vida. No sul se situam os países com menor padrão de vida. O conforto dos homens do norte é garantido pelos braços dos imigrantes do sul. E se no norte não há sol, os habitantes daquele hemisfério vêm buscá-lo nas praias do sul, pois até agora não foi possível importar calor e praias. E como a cozinha dos homens do norte é insípida — quando não intragável — os abomináveis turistas lá de cima descem até nós em busca de temperos mais requintados.

Resumindo: o sul é, em grande parte, doença, mortalidade infantil, menor longevidade, miséria, instabilidade política. Embora tenha calor, boa cozinha, matérias-primas e recursos energéticos. Calor, cozinha, matérias-primas e energia que são consumidas mais pelos homens do norte, que pelos próprios sulistas. O norte é saúde, longevidade, conforto, alto nível de vida, riqueza, estabilidade política. Não tem sol, mas vem buscá-lo cá embaixo. Não tem petróleo, mas compra-o cá de baixo, ao preço que bem entende. Suas terras cansadas e superpovoadas não comportam mais a agricultura? Então colhe os frutos das terras férteis do sul. E como gente que está por cima não se dispõe a trabalhos servis, importam mão-de-obra lá de baixo, isto é, daqui do sul.

Não é pois de admirar que os globos tenham sempre o hemisfério norte na parte superior. Pois até hoje, prevaleceu o ponto-de-vista dos homens do norte.

Mas, ao que tudo indica, os homens do sul estão cansados de estar por baixo. Inicia-se hoje, em Paris, a conferência sobre Cooperação Econômica Internacional, reunindo países pobres do sul e países ricos do norte. Os Estados Unidos advertem que “não permitirão ser levados de roldão pelos países do Terceiro Mundo”.

Acho que terão de contratar Superman! Pois não creio que Kissinger seja tão poderoso a ponto de evitar uma inversão de pólos no planeta.


 

OS LÍRIOS AVANÇAM

 

A terra é uma só, advertem os ecólogos. E dizer que os homens se multiplicam como coelhos é ofender os coelhos. Pois estes não são tão estupidamente prolíficos quanto o autodenominado homo sapiens.

É no Japão que se manifestam os mais graves efeitos da superpopulação. Japão, Monstro ou Modelo, livro de Jean Françoise Delassus, mostra algumas cenas não muito animadoras.

Durante o verão, nas segundas-feiras, os jornais se vangloriam dos feitos coletivos da semana. 20 mil alpinistas num paredão rochoso do Monte Fuji, um por cada cinco metros quadrados. Numa praia, 500 fotógrafos se alinham lado a lado, esperando a passagem das aves migratórias. Numa piscina olímpica, 10 mil nadadores. Numa praia perto de Tóquio, de 500 metros de comprimento por 50 de largura, 320 mil banhistas. Jovens se casam em grupo, jurando fidelidade sob uma correia de montagem de uma fábrica qualquer. E partem às dezenas para uma lua-de-mel organizada. Em cidades como Tóquio, casais legalmente constituídos têm muitas vezes de alugar um quarto por hora num hotel para um momento de amor. Pois os cubículos onde habitam são tão exíguos que não permitem um isolamento mínimo dos filhos.

Há quem afirme ser a solidão um dos mais graves problemas das grandes cidades. Não parece ser o caso do Japão. Lá, o maior problema é conseguir ficar só. Respondendo a uma pergunta, do repórter francês, sobre suas férias, uma moça contou que havia praticado esportes de inverno. Sozinha? Não, com amigos. Quantos amigos? Uma centena...

Não é por acaso que no idioma japonês não existe a palavra indivíduo. Caso existisse, seria uma palavra inútil. Como está se tornando cada vez mais sem sentido em todas as nações industrializadas.

Ouvi, em algum lugar, a história de um mestre espiritual japonês que viveu durante a última guerra. Recebia todos que o procuravam, exceto os gordos. Pois se alguém conseguia ser gordo naqueles dias de vacas magras, seus problemas não poderiam ser dos mais graves. Herman Kahn, o adiposo diretor do Hudson Institut, certamente jamais teria a chance de uma entrevista.

Pois o obeso senhor, além de gordo, é otimista. Para Khan, está próxima a passagem de um mundo que era um vale de lágrimas e sofrimentos para muitas pessoas, para um que, sem ser uma utopia, poderá ser um lugar de relativa felicidade, realização, paz e prosperidade para quase todos.

A afirmativa foi feita em recente conferência sobre o futuro da humanidade, em Woodlands, Texas. O otimismo de Khan causou mal-estar entre seus colegas. Pois estes, certamente menos gordos, são homens mais preocupados.

O problema do crescimento foi ilustrado com a imagem do lago de lírios, plantas que duplicam sua área dia a dia. O dono do lago não se preocupa, de início, com a expansão dos lírios. Espera que cubram a metade do lago para exterminá-los.

E nesse dia descobre que só lhe resta apenas um dia para controlar os lírios, pois a próxima duplicação cobrirá o lago todo.

Os futurologistas discordam, de um modo geral, apenas da distância em que nos encontramos do limite de crescimento humano. Para alguns, os lírios já cobrem um quarto do lago. Cobrirão a metade até 1999 e a catástrofe nos esperaria atrás da porta do próximo século. Para Herman Khan — aquele senhor que queria construir um laguinho cobrindo toda a Amazônia, certamente para nutrir os volumosos lírios do norte — a decisão e habilidade humanas saberão enfrentar esse desafio.

Se Khan se refere à decisão e habilidade que originou as bombas de hidrogênio, talvez tenha razão. Pois ainda não foi descoberto anticoncepcional mais eficiente que as emanações dos cogumelos de Hiroshima e Nagasaki.

No Japão, os lírios murcham num lago asfixiante.


 

CORRENTE DE NATAL

 

ORAÇÃO:

“Que o bolo feito por todos,
Por todos seja comido.”

Esta prece foi enviada a você desejando-lhe unicamente sorte. A cópia original é antiqüíssima e já não se sabe mais o número de voltas que deu pelo mundo. Tampouco se sabe de onde veio. Sabe-se apenas que lá existiam homens. Você deverá enviar no prazo de quatro dias, 24 cópias desta a conhecidos ou desconhecidos, em especial a gordos. Não quebre a corrente. A oração é poderosa, ai de quem nela não crê.

I. P., mulher que mal ganhava seu pão trabalhando na noite, recebeu a corrente e na mesma hora enviou não 24, mas duzentas cópias. Tanta fé teve logo sua recompensa: em pouco tempo, ocupou o mais alto cargo a que um cidadão podia aspirar em seu país. Subiu ao poder e perdeu a fé. Deixou de passar adiante as preces que recebia. Está hoje com seus dias contados.

O cabo Amin, homem analfabeto mas crente, pediu a seu comandante que lesse a carta. Como não sabia escrever copiou a carta letra a letra do jeito que pôde. Em pouco tempo ocupava o lugar de seu comandante. Hoje é líder de seu continente, ouvido e temido pelas demais nações. Num gesto de piedade e fé, encarregou seu ex-comandante de responder diariamente e ao maior número de pessoas possível, todas as correntes que lhe são enviadas.

A. S., general português, enviou as cópias ao receber a carta, menos por fé do que pela falta de algo melhor a fazer. Do dia para a noite, assumiu o poder e foi proclamado herói nacional. Continuou recebendo a corrente. Achou que se tratava de “cantigas para ninar pardais” e as deixou esquecidas na algibeira do fato. Foi deposto. Hoje, no exílio, diverte-se enviando cópias e mais cópias aos gajos que o substituíram.

L. R., desacreditado astrólogo que subsistia vendo o futuro em bolas de cristal recebeu de I. P. a corrente e logo percebeu o poder de seus fluidos. Distribuiu as devidas cópias e em pouco tempo tornou-se ministro. Ao contrário de I. P. continuou passando adiante, religiosamente, todas as cartas que recebia. E mais ainda lhe foi dado: vive hoje nababescamente na Espanha.

R. M. N., presidente de um dos mais poderosos impérios do mundo, embora dispusesse de imenso staff para responder as centenas de cartas que recebia, ignorou a corrente por ter sido enviado anonimamente. Mas o destino nunca teve endereço. R. M. N. foi chutado como um cão vadio da belíssima casa branca onde residia.

G. F. M., homem com cérebro só encontradiço em espécimes humanóides fósseis, conseguiu decifrar a carta apesar de suas deficiências. Xerocopiou as cópias devidas, e hoje mora na belíssima mansão de R. M. N., embora ainda não consiga caminhar e mascar chicletes ao mesmo tempo.

J. F. K. e R. F. K., irmãos na carne e no êxito, não só ignoraram a poderosa prece da corrente como ainda a julgaram “coisa de vermelhos”. Paz e descanso eterno a suas almas.

O acaso não existe. Não quebre a corrente.


 

CONQUISTADOR DE OPERETA

 

República de Veneza, 2 de abril de 1725 — eis uma data que marca o século XVIII. Pois nesse dia nasceu o homem que percorreria a Europa, de Lisboa a Moscou, como um furacão. E marcaria o século com uma vida tão cheia, que aos contemporâneos pareceu lenda.

Alguns dados rápidos de sua vida: foi abade, violinista, historiador (escreveu uma História da Polônia), matemático (publicou um ensaio sobre a duplicação do hexaedro), escreveu um dicionário de queijos, fez ficção científica (O Icosameron ou História de Eduardo e Elisabete, que passaram oitenta e um anos com os Megamicros, habitantes aborígenes do Protocosmo, no interior de nosso globo). Foi filólogo e crítico, esmiuçou as idéias de Homero e traduziu a Ilíada em oitavas, discutiu com Voltaire e foi abraçado pelo bilioso enciclopedista. Foi jornalista, jogador, sonetista satírico, marinheiro, jurista (formado em Direito pela Universidade de Pádua), teólogo, agente da Inquisição, alquimista, astrólogo, esgrimista, vigarista. E gênio.

Chamava-se Giovanni Giacomo Casanova di Seingalt. E não foi pelos dotes acima que ficou na História. Já velho, recebeu o cargo de bibliotecário do conde de Waldstein, no castelo de Dux.

— Agora que não posso mais viver, sento-me e escrevo sobre o que eu vivi, disse Casanova.

E escreveu dez pesados volumes, onde relatou parte de suas conquistas no continente europeu. Tudo isto numa época em que a locomoção se fazia, não em jatos ou trens, mas a cavalo ou em carruagens.

— Sei que existi, porque senti, diz Casanova no prefácio de suas memórias. E, dando-me o sentimento este conhecimento, sei igualmente que deixarei de existir quando cessar de sentir.

Em suas memórias, Casanova relembra seus encontros amorosos. Hoje, uma dama da corte. Amanhã, uma prostituta cheia de pulgas. Uma donzela fervente de doze anos, ou uma flácida septuagenária. Cortesãs ou religiosas, nenhuma resistia a seu chamado. Fingia práticas mágicas durante dias para conquistar uma menina.

Permanecia horas encerrado num cubículo cheio de ratos, esperando que um marido abandonasse o leito da mal-amada. Na mesma França onde era fichado como ladrão, fundou o sistema lotérico. Compôs uma ópera em Valência, foi astrônomo e reformador do calendário na corte da tzarina da Rússia. Esteve encarcerado na prisão dos Chumbos, em Veneza. O relato de sua fuga deliciou as cortes de França. Apresentou-se na Espanha como reformador territorial. Veneza pediu-lhe um projeto sobre a tessitura da seda. Em Bolonha escreveu folhetos sobre Medicina.

Morreu de prostatite aguda.

Sem nunca ter pretendido fazer literatura, é hoje um clássico. Nenhum historiador ou sociólogo que pretenda pesquisar o século XVIII pode deixar de lado suas memórias. Pois Casanova esteve em palácio e em prisão, em lares e estalagens, em conventos e prostíbulos, em cama de luxo e em camas piolhentas.

Casanova marcou um século e um continente.

E hoje, no século XX, era dos jatos e dos antibióticos, as agências internacionais pretendem impingir como conquistador a figura de um presidente americano com ar de garoto-propaganda. Numa época em que muitas mulheres se entregam ao charme do mísero proprietário de um Fusca, louva-se a carreira amorosa de John Kennedy, que em sua vida teria conquistado (ou faturado?) 1.600 mulheres. (E o narciso ainda contava os abates!)

Segundo meus cálculos, fosse eu presidente dos Estados Unidos, encomendava duas por dia e resolvia o caso em dois anos, dois meses e dez dias.


 

JACK REDIVIVO

 

Gosto e cor não se discutem. Há quem goste de festejar uma mulher com carinhos. E há quem só sinta prazer quando a esfaqueia.

Jack, o Estripador, foi um destes infelizes. Não lhe interessava em absoluto sentir uma mulher se desmanchando em espasmos junto a seu corpo. Preferia ver-lhe nos olhos os estertores da morte. E no ventre, preferia enfiar-lhe uma faca.

Mas Jack vivia na Inglaterra, país onde os ilhéus pretendem zelar pelos assim chamados foros de civilização, ao menos dentro dos limites da ilha. Sua carreira foi curta. Perseguido pela polícia, acossado pela opinião pública que lhe exigia a cabeça, Jack desapareceu, envolto em controvérsias nas brumas de Londres.

No Brasil, Jack teria a opinião pública a seu favor, desde que observasse duas condições:

a) esfaquear a pessoa certa

b) com justo motivo.

Em outras palavras: desde que matasse a esposa, alegando sua infidelidade.

Pois foi o que fez Eduardo Gallo, procurador do Estado, em Campinas, São Paulo. Ao ler uma carta de amor dirigida a um professor francês por sua mulher, matou-a com onze facadas. Em primeiro julgamento, foi absolvido por 7 a 0. Em segundo, por 4 a 3. Legítima defesa da honra — foi a tese acatada pelos membros do júri. E o sr. Gallo já pode pavonear-se livremente entre seus pares, pois esta segunda decisão não oferece oportunidade de recursos à instância superior.

Onze facadas em nome da honra. Liberdade garantida, com possibilidade de mais uma mulher e mais onze facadas. E nova absolvição. Oh, se Jack sonhasse com a existência deste país maravilhoso, destes jurados tão compreensivos, onde se permite a um homem a satisfação de certos pequenos desejos... Não carregaria hoje a triste pecha de o Estripador. E sim o pomposo título de Emérito Defensor da Honra.

Aposto que o mesmo júri que absolveu o sr. Gallo, não hesitaria um segundo em condenar a sra. Gallo, se esta matasse o marido ao descobrir-lhe uma infidelidade. Pois vivemos numa sociedade cujas leis foram ditadas pelo macho, sem que sua companheira fosse ouvida. Ou seja, ao marido são permitidas amantes, casos paralelos, aventuras ocasionais. A esposa deve ser fiel até em sonhos. E há ainda os que, não contentes de exigir fidelidade da esposa, exigem-na ainda das amantes.

Mas este tipo de macho está em crescente descrédito. Só é aceito — ou suportado — por mulheres sem profissão definida, incapazes de garantir o próprio sustento. Não é por acaso que muito jovem profissional liberal, solteiro e bom partido, deixa de lado suas colegas de faculdade e vai buscar no interior uma ingênua e submissa donzela para casar. Não permitirá, naturalmente, que ela ingresse na faculdade. Talvez permita que trabalhe, desde que não ganhe muito. Entroniza a esposa no lar, confere-lhe o pomposo título de Rainha e a trata como escrava. Algemada pela dependência econômica, a mulher finge ignorar as aventuras extraconjugais de seu amo e senhor. Pois no fundo ela sabe que o marido não lhe é fiel. Exige apenas que a infidelidade não seja ostensiva.

Se o marido descobre que a mulher teve uma aventura, mata. E o júri o absolve.

— Os jurados absolvem por solidariedade humana, justificou-me certa vez um advogado. Casado, naturalmente.

Acho que não. A absolvição do júri é uma ameaça: se a mulher ousar ser infiel a seu dono, poderá morrer, sem que o marido seja punido.

Só ameaça quem tem medo. Os gallos não se conformam com a reviravolta no terreiro. Reagem à bala ou facadas, única forma de diálogo que conhecem.

Jack ressurge entre nós. Com plenos poderes.


 

NÃO VI E NÃO GOSTEI

 

Entre os filmes que não vi e não gostei, destacam-se O Exorcista, Terremoto, Inferno na Torre. Com Tubarão, a lista ganha mais um best-seller.

Pois Tubarão não é um filme. É, antes de mais nada, uma máquina de fazer dinheiro. E quando americano quer faturar alto, não poupa esforços. Apanha um tema qualquer, a Máfia, por exemplo. E lança livro, filme, disco, moda, blusinhas, botões, enfim, qualquer coisa que ofereça lucros. As práticas de exorcismo suscitam fascínio numa época onde se cultua apenas o material? Pois lá vem o livro, o filme, o disco, a moda, as blusinhas.

O sentimento predominante no homem dos grandes centros urbanos é o medo? A exploração desse medo será então uma magnífica fonte de lucros. E lá vem o ciclo das catástrofes: Terremoto, Inferno na Torre.

Os tubarões estão na moda? Não, em verdade não se pode dizer que tubarões sejam manchete. A rigor, ninguém está preocupado com tubarões. Mas nessa altura os financistas americanos sabem que podem contar com um vasto público de palhaços para aplaudir qualquer vigarice do norte. Se o tubarão não está na moda, cria-se a moda do lubarno. E lá vem o livro, o filme, o disco, as blusinhas.

Quem viu as filas que se formam aqui em Porto Alegre para assistir o filme, tem apenas uma vaga idéia do que está acontecendo no Rio e São Paulo. Lá, a polícia teve de intervir com violência para impedir as rixas e ameaças de quebra-quebra por parte do público. A pergunta se impõe: que é que está atraindo multidões, à beira da histeria, para assistir um filme idiota?

Não me parece que seja o charme de uma ridícula geringonça de borracha e metal. Mas algo bem mais grave e sintomático de nossos dias. E perturbador.

Há poucos meses, um filme sobre golfinhos foi exibido nos cinemas do país. O golfinho é um peixe que até hoje intriga aos que o observam. Há quem afirme que sua inteligência é superior à humana. Certos generais apressam-se a comprovar esta hipótese, quando estudam a possibilidade de utilizar os delfins como torpedos vivos. Certos cientistas vão adiante. Afirmam que os golfinhos eram seres dotados de uma inteligência superior que — exatamente por isso — renunciaram à civilização e mergulharam no mar. Se assim foi, não há dúvida que possuíam uma inteligência superior.

Mas os simpáticos golfinhos não atraíram multidões aos cinemas. Pois os golfinhos não têm presas e são de índole pacífica. O que o público quer é sangue.

Vivemos numa época de culto à violência e à morte. O culto da vida e do prazer é mal visto. É considerado imoral, quando não subversivo. Por exemplo: no ano passado, foi premiada — e publicada em todos os jornais do mundo — uma foto em que um general sul-vietnamita estoura com um balaço a cabeça de um vietcong. “Disparei a objetiva junto com o revólver”, declarou tranqüilamente o fotógrafo. A foto está perfeita. Quem a vê quase sente a bala penetrando o crânio do vietcong.

O fotógrafo, cujo nome me escapa, fixou o momento exato da Morte e foi premiado e louvado. Fotografasse o ato gerador da Vida, provavelmente estaria na cadeia.

Há mais de dez anos, um filme escandalizou muitos gaúchos: Os Amantes, com Jeanne Moureau. Uma cena era particularmente abominável, segundo os padrões da época. Era quando o personagem masculino descia os lábios pelo corpo da Moureau, para uma carícia menos ortodoxa. Espectadores indignados organizaram a Turma do Apito. Levariam apitos para o cinema. No momento do gesto abominável, apitariam furiosamente em protesto.

Não vejo obscenidade em um beijo. Mas chego a assustar-me quando vejo, daqui de minha janela, uma multidão esperando pacientemente numa fila sob o sol, para ver um tubarão estraçalhando carne humana.

Onde anda a Turma do Apito? Talvez estejam na fila, pois, em seu sadismo, detestam beijos e vibram com dentadas.


 

FIM DO ANO DA MULHER

 

Termina hoje, oficialmente, o Ano Internacional da Mulher, li já termina tarde. Pois como dizia Millôr, “depois do women's lib, a mulher é o cansaço do guerreiro”.

Poucos movimentos de massa foram tão ridículos quanto os movimentos feministas dos últimos anos. A melhor prova disto é a própria instituição do Ano Internacional da Mulher. Em outras palavras, se este ano termina hoje, amanhã não se fala mais no assunto.

Para Ernesto Sábato, pensador argentino, o ingênuo século XIX não só culminou na idéia de que o homem que viajava de trem era moralmente superior ao homem que andava a cavalo: culminou ainda na doutrina mais inesperada de todos os tempos, na idéia da identidade dos sexos.

— Se não houvesse outras provas da frivolidade deste século, continua Sábato, bastaria esta para condená-lo. Do ponto de vista desses otimistas, a diferença entre o útero e o falo era algo assim como um resquício dos Tempos Obscuros, destinada a desaparecer, junto com a diligência e o analfabetismo. Felizmente, esse estranho vaticínio não se cumpriu, como tantos outros daqueles profetas da Locomotiva.

Deixando de lado as diferenças fisiológicas — e há muitas feministas que pretendem negá-las — a mulher é um ser completamente distinto do homem. O homem tende à lógica e à abstração. A mulher é intuição e concretude. Para Sábato, o homem se refugia nos grandes sistemas científicos e filosóficos porque só tem fé no racional e abstrato. Quando esse sistema vem abaixo, sente-se perdido, céptico e suicida. A mulher confia no irracional, no mágico, e por isso dificilmente perde a fé, porque nunca o mundo pode revelar-se mais absurdo do que foi intuído à primeira vista.

A observação é justa. Esclarece porque enquanto os homens se suicidam, as mulheres se contentam com a tentativa. Pois a mulher jamais duvida. Hamlet só poderia ter sido homem. A mulher hoje é, amanhã já não é. É ou não é, sempre com a mais profunda convicção. Hesitar, beirando a loucura, entre ser e não ser, é dúvida que só acomete a homens.

Num rápido exemplo, Sábato define de uma vez por todas as diferenças entre homem e mulher. Relata o caso do engenheiro Georges Itzigsohn, que jogava na roleta segundo um plano minuciosamente calculado conforme flutuações, estatísticas e cálculos das probabilidades. Sua mulher, não obstante sua formação científica na faculdade de medicina, jogava apostando no aniversário dos filhos. Naturalmente, os dois perdiam, caso contrário não existiria a roleta. Mas enquanto o engenheiro perdia cientificamente, sua mulher perdia absurdamente.

As ruidosas feministas esquecem — ou propositadamente ignoram — estas diferenças de fato. Se o que pretendem é equiparar-se ao homem, estão tendo êxito. Em 75, não foram poucas as mulheres a empunhar uma metralhadora para assaltar e seqüestrar. Sem dúvida alguma, em algo já estão se equiparando ao homem — em sua estupidez.

As feministas papaguearam o ano todo reivindicando direitos. Mas direito não se reivindica, direito se toma.

Reclamaram liberdade sexual. Mas liberdade sexual é piada sem liberdade econômica. Só é dona de seu corpo a mulher que é capaz de prover seu sustento. Só há uma liberdade, a econômica. As demais são decorrências.

Já que comecei com Sábato, concluo com Sábato. Diz ele um de seus primeiros ensaios:

— Haverá sempre um homem tal que, embora sua casa desmorone, estará preocupado com o Universo. Haverá sempre uma mulher tal que, embora o Universo desmorone, estará preocupada com sua casa.

Talvez seja na preservação desta diferença fundamental que resida a libertação da mulher. Pois os homens preocupados com o Universo não hesitam em destruir casas para defendê-lo. Através da razão, chegaram à fissão do átomo. Se esta é a culminância do homem e de sua lógica, prefiro apostar na mulher e em suas intuições, por absurdas que sejam. Desde que não queiram equiparar-se ao homem, ser que, dia a dia, demonstra sua inépcia na gestão do planeta.


 

A DANÇA DO PODER

 

“Quem mata um é assassino, quem mata milhões é conquistador, quem mata todos é Deus”, escreve Jean Rostand. Hitler é hoje considerado assassino por uma simples razão — perdeu a guerra. Se a tivesse ganho, os Aliados seriam os vilões. E muitos povos estariam bebendo kirschwasser e dançando valsas em vez de uísque e rock.

Pois só há um critério na luta pelo poder. E este critério é a força. Quem vence é herói, quem perde vai para a cadeia. Não existe outro argumento. Só o mais forte tem razão. Pois quem escreve a História é o vitorioso. E este condecora o vencido com a pecha de vilão.

Os historiadores sempre se sentem mais à vontade quando comentam fatos passados — de preferência com três ou quatro gerações de permeio. Pois é bastante perigoso opinar sobre o presente, especialmente quando a troca de pares na dança do poder se sucede rapidamente. Nunca se sabe quem estará no poder amanhã, isto é, quem estará com a razão.

Por estas razões, Portugal confunde muitos observadores, quando não os próprios portugueses. Até março do ano passado, Antônio de Spínola era herói, cantado em prosa e verso. Quem apostou em Spínola perdeu tempo e dinheiro, pois hoje o líder do 25 de Abril é vilão. Em menos ele um ano, passou de revolucionário a reacionário. Mas se o frustrado apostador for paciente, deverá guardar suas ações no bolso, pois após novembro de 75 a cotação de Spínola na bolsa do poder tem começado a subir. Consta inclusive que o velho general já anda passeando bem próximo às fronteiras lusas.

Há poucos meses, quando não valiam um centavo as ações do primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, investidores apressados passaram a flertar com o charmoso comandante do Copcon, Otelo Saraiva de Carvalho. Paixão que se revelou inútil, pois Otelo perdeu não só o Copcon como também algumas divisas. Bom partido mesmo era o obscuro major Eanes. Cartas que já eram consideradas fora do baralho, como Mário Soares, voltam à cena com pretensões presidenciais, nada menos que isso.

Numa tasca no Rossio — suja como toda tasca que se preze — senti nas lágrimas de um oficial já um tanto encharcado pela bagaceira, toda a ironia dessa dança estúpida. Começou calmo. À medida que bebia e se inflamava, se aproximava do choro.

— Combati na África, gritava o oficial. Combati e matei muitos gajos. Como soldado, obedecia ordens e defendia os interesses de Portugal. Matei muita gente — estava lá para isso. E agora, cá em Lisboa, gajos que nunca arriscaram a pele, me acusam de fascista. E se me recusasse a combater na África, teria de fugir do país. Ou ir para a prisão.

Nas prisões do Portugal de hoje se evidencia mais ainda esta ironia. Após o 25 de Abril, os agentes da PIDE ocuparam o lugar dos esquerdistas presos, em geral elementos do PCP. No 11 de Março, seguidores de Spínola foram fazer companhia aos ex-pides, que eles próprios haviam encarcerado. O PCP, sem dúvida alguma o partido português mais organizado, assumiu rapidamente postos-chaves no governo e na imprensa. Num jornal, já não interessava se o redator ou repórter sabia redigir. O que interessava é se era ou não militante. O que fez um jornalista gaúcho, residente em Lisboa, evocar a censura salazarista. Pois se antes os jornais não prestavam, havia a desculpa da censura. Agora não havia censura e os jornais continuavam uma solene droga.

Agora, após o 25 de Novembro, comunistas que haviam sido substituídos pelos homens da PIDE no cárcere, e que foram responsáveis pelas prisões dos espinolistas, estão agora se reunindo aos ex-pides e aos espinolistas, atrás das mesmas grades. Ninguém poderá negar que em Portugal, ao menos as prisões são democráticas. Pois abrigam esquerda e direita, PIDE e PCP, salazaristas, espinolistas, comunistas, maoístas e trotskistas.

Quem é o herói e quem é o vilão da História? Só o tempo dirá. O último a sair da cadeia é o vilão.


 

JOVENS IMPORTAM BURACOS

 

Você já ouviu falar dos buracos santos? Sabia que todos seus buracos são santos? Você sabia que é cheio de buracos? Só na cabeça, são sete. E que a vida não seria nada divertida se não fossem os buracos?

Sabia ainda que um buraco só pode existir quando há algo em sua volta? Pois se não houvesse, o buraco não seria buraco, seria nada. E você sabia que você é um buraco, em torno do qual existe Deus? Pois se Deus não existisse, você, buraco, seria nada.

Você sabia que o amor é um buraco que necessita ser enchido? E também de alguma coisa com que enchê-lo? Sabia ainda que existem buracos quadrados e buracos redondos e todos os tipos de buracos e eles são precisos e são necessários todos os tipos de peças para enchê-los?

Por isso, qualquer que seja o tipo de peça que você for. existem alguns buracos nos quais você encaixa — e não im­porta que tipo de buraco você é, Deus lhe tem encaixado!

Sabia ainda que Deus gosta de buracos — e gosta de en­chê-los todos? E que Deus quer lhe encher com algo e fazer de você um buraco muito louco cheio de qualquer coisa com a qual Deus quer lhe encher?

E se você já encheu e acha que estou fazendo piada, está muito enganado. Os santos buracos constituem um caso seríssimo. Pois estão enchendo a cabeça oca de milhares de jovens em vários países. Se a cabeça de muitos jovens — que já é um buraco — for preenchida com outros buracos, ainda que santos, teremos uma geração com buracos ao quadrado em ar da cabeça.

O leitor já deve ter sido abordado, nas ruas de Porto Alegre, por moças e rapazes muito amáveis e simpáticos, os meninos de Deus. Pois os meninos — embora muitos sejam barbados — andam distribuindo uma série de panfletos, entre eles a história dos buracos. Que vem assinada por um misterioso Moisés David, com endereços de Londres e Dallas, Texas. Como é que Moisés David chegou a preocupar-se tão a fundo com buracos? Ele mesmo explica:

— Quando eu estava no exército eles me faziam cavar buracos e enchê-los de novo para me manter ocupado e me mostrar quão importante são os buracos.

Nada tenho a ver com o fato de que Moisés David tenha começado a preocupar-se com buracos, no exército. Cada um com sua mania. Que continue abrindo e tapando buracos, mas lá em Dallas, por favor, onde os texanos não apreciam presidentes com sete buracos no rosto e são extremamente peritos em abrir mais um ou dois. O que me preocupa é o fato de que moças e rapazes — alguns dos quais conheço pessoalmente — se unam em torno das maluquices do tal de Moisés David e se dediquem integralmente a um apostolado ridículo.

Conversei com alguns dos meninos. Não souberam me dizer a que se propunham. Só sabiam que me amavam e estudavam a Bíblia. Mas que Bíblia? Também não sabem. Ficam surpresos com a pergunta, imaginavam que existisse apenas uma Bíblia.

Assistimos há pouco, os debates em tomo da TFP. Jovens fanatizados em torno do culto à Maria saíam pelas ruas com estandartes medievais, defendendo a tradição, a família e a propriedade. Quando Maria, a coitada, como nos relatam os evangelhos, era mãe solteira e não tinha apego algum a posses. E pouco ligava à tradição, pois seu filho reformulou o Antigo Testamento.

Há alguns meses, desfilaram em Porto Alegre, os “monges” de uma seita, Hare Khishna ou coisa parecida. Saltitaram um bocado na Rua da Praia, à tarde, em agressiva concorrência aos travestis que saltitam à noite. Depois sumiram, estarão agora saltitando nalguma outra cidade.

Quando jovens aderem de corpo e alma a seitas ridículas, com finalidades — pois finalidades elas têm — desconhecidas, é chegada a hora de autoridades e educadores se preocuparem seriamente com buracos. As gerações mais novas, mergulhadas em tóxicos e sons, sem o hábito da leitura, estão vivendo em um vácuo de idéias e ideais. Quando a cabeça é um buraco, é fácil a qualquer vigarista hábil enchê-la, até mesmo com buracos.


 

AMOR 76

 

Ano Novo, vida nova, homem novo. Do ocipital ao metatarso. Começou comprando cuecas Dinamite — o homem no estilo bonito, charmoso e gostoso de usar. Camisa? Tergal — a segunda pele do homem, pois afinal não era bobo e exigia qualidade, além dos padrões e das cores que as mulheres estão procurando para combinar com o charme delas. E como as mulheres são radicais e só admitem que um homem tire a roupa na frente delas se ele estiver bem vestido, passou a usar costumes Tergal Dupla Garantia — a roupa feita sob medida para você. E sapatos — pelos sapatos se conhece o homem — equipados com saltos Amazonas, pois “com saltos Amazonas você pode pisar no meu coração”.

Como executivo de nível, não esqueceu de portar uma calculadora Sharp, pois tudo é calculado para que a vida seja uma coisa insuportavelmente deliciosa. Além disso, a calculadora lhe conferia o discreto charme de quem calcula com Sharp.

Entre o sabor de aventura e liberdade de Marlboro e Carlton — um raro prazer — preferiu Minister, o sabor para quem sabe o que quer.

Como pano de fundo musical para seus encontros, muniu-se do GA 209 Electronic Philips — um toca-discos tão fantástico que nem o Isaac Asimov seria capaz de imaginar, pelo seu design supersofisticado, pela sua cor espacial, pelo seu charme de objeto de ficção científica, enquadrado nas normas DIN, com compensação de força lateral, anel estroboscópico e uma cápsula fonocaptadora — a Super M.

No bar, destacava-se das demais bebidas um Dimple — você não precisa entender a língua. Basta conhecer o formato.

Hesitou quanto ao carro. De início, desistiu de pensar Fusca — hoje mais do que nunca. Estava cansado de ouvir amigos perguntando ao proprietário de um Fusca: “E quando vais comprar um carro?” Nem cogitou do Chevrolet, pois o pai da primeira namorada do Vinícius já tinha um. As dúvidas surgiram quando ouviu falar da Linha Galaxie 76.

O LTD 76 — um manifesto a favor do silêncio, do conforto e do bom gosto? Pois numa época como a atual, onde as coisas se popularizam rapidamente, é muito difícil achar um símbolo de exclusividade. O LTD 76 era, sem dúvida, um deles, um carro moderno e pessoal, o que ficava evidente no primeiro contato com a maciez dos bancos, com o silêncio interior, que separa seu proprietário do mundo exterior.

Mas havia o Galaxie 76 — uma das compensações que esta vida oferece às pessoas exigentes. Carro construído com a única finalidade de dar alegria, prazer e satisfação para quem o dirige, para quem já tinha um Galaxie, o modelo 76 vinha apenas confirmar aquilo que já era sabido: ele era excepcional. Era realmente uma das boas compensações que esta vida oferece ao homem exigente que deseja mais que um simples automóvel.

Mas, sem dúvida alguma, o Landau 76 era o único carro brasileiro que tinha o direito de custar mais do que os outros. Chamar o Landau 76 de uma obra de arte é, talvez, não dizer tudo. Suas linhas, agora mais realçadas, e todas as suas importantes exclusividades, faziam do Landau 76 uma grata satisfação para as que procuravam algo mais do que um carro. O Landau 76, possuía qualidade, conforto e silêncio, com padrão internacional, só encontrado nos melhores carros do mundo.

Assim equipado — cuecas Dinamite, camisa e terno Tergal, saltos Amazonas, calculadora Sharp, cigarros Minister, toca disco GA 209 Electronic Philips (enquadrado nas normas DIN), Dimple na adega e um Galaxie 76 — telefonou para Bere.

Como era bastante rico para comprar jóias em H. Stern, reservava para Bere um anel em ouro branco, 18 k com esmeralda, baguete de 3,94 quilates, 14 brilhantes, navetes de 1,32 quilate e oito brilhantes redondos de 0,39 quilate. Segundo o anúncio, ela iria desfalecer de emoção e ele faria um belo investimento.

Mas Bere era moça de gostos simples. Jóia já era. Preferiu passar o fim de semana na roça. Viajou com Betinho, em seu Mercedes esporte 76.


 

CHRISTA

 

Existe na Grécia uma montanha que jamais foi pisada por mulher, desde que foi consagrada à Virgem, há mais de mil anos. É o monte Athos, a Montanha Sagrada. Não só mulheres estão proibidas de pisar o solo sagrado, como toda e qualquer fêmea, seja cabra, ovelha ou galinha. No cais do porto pelo qual se chega à montanha, monges com olhos treinados vigiam para que nenhuma mulher vestida de homem profane o monte Athos.

Em sua autobiografia, Testamento para El Greco, Nikos Kazantzakis conta sua visita a esta montanha só pisada por homens. O amigo que acompanhava Kazantzakis quis saber como os monges distinguiam as mulheres dos homens.

— Pelo cheiro, respondeu um jovem monge. E pediu ao rapaz que se dirigisse a um monge mais velho, que já fora sentinela no cais.

— As mulheres têm outro cheiro, Santo Padre? Que cheiro têm?

— Como gambás, fedorentas, respondeu o velho.

Nas culturas de inspiração cristã, tem sido mais ou menos esse o conceito da mulher ao longo de uma História feita por homens. Cristo perdoou a adúltera, confraternizou com Madalena. Mas seus seguidores sempre associaram a mulher à imundície, pecado, demônio. Sprenger e Kramer, teólogos dominicanos encarregados da Inquisição na Alemanha, no livro significativamente intitulado O Malho das Feiticeiras, afirmam:

“Uma mulher é um ser bonito de se contemplar; é contaminadora ao toque; e conservá-la é ato mortal. A mulher é inimiga da amizade, um mal necessário, uma tentação natural, um perigo doméstico, um mal da Natureza. Não há fúria maior que a fúria de uma mulher. Visto que são mais fracas, tanto no espírito como no corpo, não surpreende que acabem se colocando no âmbito da feitiçaria”.

Os dois teólogos não poupam o malho. Continuam afirmando que a mulher é mais carnal que o homem, e toda a feitiçaria procede dos impulsos carnais, impulsos que, nas mulheres, são insaciáveis. E se os poderosos se entregavam à orgia com mulheres, a culpa era destas. Pois as mulheres satisfaziam “sua imunda luxúria não apenas em si mesmas, mas também na pessoa dos poderosos de sua época, sejam eles de que condição forem, provocando, por meio de toda a espécie de feitiçaria, a morte das respectivas almas através da excessiva intensidade do amor carnal”.

Diz Ney Messias, em uma de suas crônicas, que o feitiço é essencialmente um dom da mulher. E que estamos entrando em uma nova era de encantamento e demonismo, pois as religiões de Brahman, Buda, Confúcio e Cristo estão sendo atacadas por um estranho vírus. “A civilização do homem, as instituições do princípio masculino e a dominância de valores alquímicos vão sendo marginalizadas. O macho recua em todas as frentes, com suas idéias lógicas, com suas deduções e inferências. O silogismo entra em agonia. De novo as feiticeiras, as antigas sacerdotisas dos templos pagãos, vão ter a palavra”.

Edwira Sandys, neta de Winston Churchill, certamente não leu Ney Messias, provavelmente conhece Kazantzakis, conhecerá ou não O Malho das Feiticeiras. Mas deve ter sentido na carne que os homens têm crucificado a mulher ao longo da História. Pois Edwira está expondo, em uma galeria em Nova Iorque, uma escultura em bronze de um Cristo na cruz, encarnado nas formas ondulantes de uma mulher.

— Eu quis apenas traduzir o sofrimento das mulheres, afirma Sandys.

A escultura foi batizada com o nome de Christa.


 

OTELO E A MULHER LOUREIRA

 

É bastante conhecida a história daquele governador que dava mais atenção aos presídios de seu Estado do que às escolas. Justificava com muito realismo sua atitude:

— Da escola estou livre. Da cadeia, não sei não.

Pois a História é mulher loureira, como dizia Machado. Otelo Saraiva de Carvalho que o diga. Era ontem comandante do poderoso Copcon e da Região Militar de Lisboa. Hoje, está na cadeia. Ontem, era a esperança de um Portugal socialista.

Hoje, é acusado de ter sido um dos principais conspiradores da fracassada rebelião de novembro passado. Tivesse êxito a rebelião, Otelo estaria no poder e Pinheiro de Azevedo na cadeia.

— Não sei de que me acusam, nem aos meus camaradas, diz Otelo. A minha detenção se deve à ofensiva de direita, que está eliminando um a um os obstáculos que se lhe opõem.

Otelo esquece — ou propositadamente omite — que se a esquerda estivesse no poder, também eliminaria um a um os obstáculos que se lhe opusessem. Em vez de Otelo e seus camaradas, seriam os integrantes do VI governo a não saber de que eram acusados.

Saberão os acusadores como acusar os prisioneiros políticos em Portugal? As prisões são verdadeiros sacos de gatos.

Nelas estão os PIDES c os defensores de Marcelo Caetano, derrubado no dia 25 de abril. A estes, foram fazer companhia os “conspiradores” do 28 de novembro, quando Spínola foi destituído da presidência da República. E há os “conspiradores” do 11 de março, tentativa de golpe antiesquerdista e fuga de Spínola. E agora, foram jogados no saco os “conspiradores” do 25 de novembro, tentativa de golpe esquerdista.

Quando Álvaro Cunhal estava no cárcere, a ponte sobre o Tejo chamava-se Oliveira Salazar. Em 74, Cunhal foi promovido de criminoso a herói, e a ponte passou a chamar-se 25 de abril. No ritmo em que as águas correm pelo Tejo, é bom que Cunhal atente para o próximo nome da ponte. Poderá significar sua volta à prisão.

Até abril de 74, Amália Rodrigues era, mais que cantora de fados, um monumento para exibição turística. Com o movimento militar, Amália passou a ser reacionária e fascista. Aliás, toda canção, livro ou peça de teatro que não falasse em fome, imperialismo, marxismo e coisas do gênero, era considerada fascista. A mania chegou a ridículos inacreditáveis. Assisti, em Lisboa, ao filme Toda uma Vida, de Lelouch, dramalhão com happy end envolto num pano de fundo histórico. Pois um dos méritos do filme, anunciado em cinemas e jornais, constituía no fato de ter sido concluído no “dia 24 de abril de 1974, um dia antes do movimento antifascista em Portugal”.

Sempre que escrevo sobre Portugal, não falta quem me pergunte se me defino pela direita ou esquerda. Como se toda pessoa tivesse obrigatoriamente de ser direitista ou esquerdista. Para começar, não conheço definição satisfatória desses dois termos. Esquerda é contestação ao poder? Então Solzhenitsin e Sakharov são esquerdistas? Direita é a posse do poder? Então Mao Tse Tung é direitista? Ser esquerdista é lutar pela democracia e livre expressão do pensamento? Então a União Soviética é um regime de direita? Na mesma linha de raciocínio, os Estados Unidos se situariam na esquerda, pois lá a liberdade de expressão é tal que os jornalistas podem pedir a cabeça de um presidente.

E mesmo que alguém me definisse com precisão os termos, eu não me definiria por nenhum dos dois. Pois na luta pelo poder, tanto esquerda como direita assumem atitudes totalitárias. Os que hoje morrem em nome de Che Guevara, amanhã estarão matando em nome de Che Guevara. A Igreja nasceu da cinza dos que morreram em nome do Cristo. E reduziu a cinzas, nas fogueiras da Inquisição, milhares de pessoas, sempre em nome do Cristo.

Minha posição sobre Portugal? Gosto de lados, dos cafés do Rossio, do bagacinho e da ginginha, com elas ou sem elas. De Amália Rodrigues e do “cheiro das raparigas”. Dos poemas de Pessoa e das ruas da Mouraria. O resto é veleidade ideológica.


 

DR. SCHLESINGER, UM HUMANISTA

 

Estelionato é o nome bonito que os advogados e juristas usam em lugar de vigarice. Não é de bom-tom chamar alguém de vigarista diante de um juiz. A palavra estelionatário soa melhor. E além disso valoriza o ofício do advogado. Pois se qualquer mortal sabe o que é vigarice, só os doutores da lei entendem de estelionato. E mais: o estelionatário é, geralmente, um senhor distinto e bem apessoado. Não fica bem chamá-lo de vigarista.

Estelionato é crime típico do homem civilizado e inteligente. Se o homem das cavernas desejava algo que pertencia ao próximo dava-lhe uma cacetada e pronto. O assaltante, em sua pobreza de idéias, arrisca a liberdade num assalto, em troca de alguns cruzeiros. Ao estelionatário repugna o uso de cacete ou faca. Sua arma é uma caneta. Ou uma boa conversa. E não visa o crânio ou o ventre da vítima. E sim, sua vaidade ou ambição.

Por isso simpatizo muito com certos artistas do ramo. E ainda mais quando operam internacionalmente. Os jornais nos trouxeram, na semana passada, notícias de um golpe de talento. Cientistas, intelectuais e pessoas de relevo social, na Austrália, foram agraciados com medalhas e diplomas honoríficos fornecidos pela Brazilian Academy of Humanities e pela Pró-Mundi Benefício, sediadas em São Paulo.

Os títulos e medalhas eram conferidos aos eminentes australianos por “sua crença na paz, na justiça social e na fraternidade”. O único endereço da Brazilian Academy of Humanities era um número de caixa postal, para o qual deveriam ser remetidos 195 dólares (Cr$1.800,00), a título de despesas administrativas. Sabe-se agora que das duas entidades só existia de concreto o número da caixa postal. Tampouco existe o “Dr. Schlesinger”, que assinava as propostas em nome de quem seriam emitidos os cheques. É o que dizem os jornais.

Mas todas as notícias, sem exceção, qualificam o caso como sendo uma vigarice internacional, descoberta pelo embaixador brasileiro em Sidney. E aqui discordo dessa qualificação apressada. Exista ou não o Dr. Schlesinger, não posso concebê-lo como vigarista. É, a meu ver, um humanista.

Baseado em que, pode alguém duvidar que os cientistas, intelectuais e pessoas de relevo social da Austrália creiam realmente na paz, na justiça social e na fraternidade? Seria excessiva má vontade de nossa parte para com os australianos duvidar que a elite de sua nação não cultue estes valores universais. Devo confessar, inclusive, que até hoje não encontrei pessoa civilizada que não creia na paz, na justiça social e na fraternidade. Que razões nos levariam a afirmar que os distantes australianos sejam exceção?

Ciente disto, o Dr. Schlesinger, ou quem quer que se esconda sob este nome, resolveu homenagear estes nobres anseios, conferindo a seus portadores um título honorífico. Qualquer homenagem a nossas virtudes é sempre um estímulo à sua preservação. Evidentemente, não podia o Dr. Schlesinger conceder um diploma honorífico em seu próprio nome. Como pessoa física, podia no máximo enviar uma carta ou postal, o que pode ser uma cortesia, mas jamais homenagem. E como Dr. Schlesinger queria homenagear os beneméritos cidadãos australianos, só lhe restava fazer o que fez. Criou a Brazilian Academy of Humanities e a Pró-Mundi Benefício, pessoas jurídicas. Não possuem sede nem estão registradas em lugar algum. Mas que importa este detalhe, se estão gravadas no coração generoso dos australianos?

A confecção de medalhas e diplomas, a manutenção de uma caixa postal e o trabalho de correspondência importam em custos administrativos. Alguém dirá que Cr$1.800,00 é uma taxa excessiva. Não me parece. Quando um estudante pode, num país onde o ensino se diz gratuito, pagar Cr$650,00 pela inscrição na Universidade, não creio que um cientista ou intelectual australiano esteja impossibilitado de pagar três vezes essa quantia, por reconhecimento a seus indubitáveis méritos.

Aliás, nenhum dos homenageados reclamou. Só o embaixador brasileiro. Vai ver que foi esquecido — pois estou certo que o Dr. Schlesinger gostaria de homenageá-lo — e está com ciuminho.


 

ELE, PERPÉTUA E A OUTRA

 

A lei é o precipitado histórico dos costumes, disse alguém. Os costumes mudam aceleradamente e a lei segue sempre atrás, em ritmo de lesma. Por exemplo, o direito da família. Existe, segundo a lei, um matrimônio monógamo e indissolúvel. Adultério e bigamia constituem crime. Em outras palavras, a regra é o crime e a exceção é o lícito.

Segundo as leis brasileiras, desquitado ou desquitada que volta a casar, dentro ou fora do país, é bígamo. Ou seja, é criminoso. Congresso carnal — nome que os juristas dão ao ato sexual — com outra pessoa que não o cônjuge é adultério, também capitulado como crime. Se os casos de bigamia são relativamente raros, adultério é rotina. Tornou-se tão rotineiro que a esposa intimamente aceita a infidelidade do marido, desde que longe de suas vistas. Mas se a esposa trai, o marido mata quando descobre. Se não descobre, continua sendo um homem feliz. É a descoberta do fato que o torna infeliz, e não o fato em si.

Para o marido, é perfeitamente natural ter casos paralelos ou aventuras rápidas. Perpétua deve ser fiel, mas ele pode dar-se ao luxo da Outra. Enquanto Perpétua, a Rainha do Lar, administra seu acanhado reino, Ele se diverte com a Outra, que por não ser rainha está livre do protocolo.

Perpétua sabe intimamente que existem outras. Quer apenas que o marido seja discreto, não freqüente com elas os mesmos círculos em que ela aparece. Perpétua começa a preocupar-se quando pressente que Ele não tem outras, mas sim Outra. Pois a Outra também quer exclusividade. Quer desbancar Perpétua.

É chegado o momento do golpe do marido incompreendido.

Ele conta então à Outra que Perpétua não o entende. Perpétua é sempre tímida no amor — e Ele se sente como touro na primavera. Perpétua não bebe — e Ele nada vê demais num traguinho ocasional. Perpétua não o estimula profissionalmente — e Ele está cheio de talentos inaproveitados.

Perpétua é castrativa — a Outra é criativa.

Então porque Ele não abandona Perpétua? — pergunta a Outra.

Por sorte Perpétua tem filhos. Pois Ele não hesitaria em deixar Perpétua para viver com ela, a Outra. Perpétua sofreria, é claro. Mas, enfim, quem passou pela vida e não sofreu, passou pela vida e não viveu, não é assim que diz o poema?

Mas Ele jamais seria um pai desnaturado, a ponto de abandonar seus filhos, todos em período crítico de formação. Tudo — menos isso. E a separação dos pais abala profundamente os filhos. Talvez mais tarde, quando todos forem adultos. Mas agora, de forma alguma.

Mas ela, a Outra, não precisa preocupar-se com Perpétua. Perpétua é apenas uma sombra em sua vida. Há muito não têm relações íntimas, e provavelmente não as terão tão cedo. Perpétua nem gosta disso. A maternidade mata o desejo. E as crianças ocupam tanto Perpétua que ela chega a esquecer que tem sexo. Quanto a Ele, sente-se em pleno vigor físico e mental. Bobagem ter casado com Perpétua, mulher pacata. Ela, a Outra, seria sua companheira ideal. Mas o fato é consumado: Perpétua existe, é legalmente sua esposa, e mãe de seus filhos. Se ela, a Outra, o ama, terá de aceitá-lo como Ele é.

E a Outra aceita. Realmente não havia motivos para ciúmes. Ele é sempre alegre e divertido, cheio de vida. Coitado, exuberante como é, ter de suportar a chata da Perpétua. Só ela, Outra, o entende. E ela é única, que mais poderia desejar? Casasse com Ele, seria promovida a Perpétua, e não faltaria uma Outra para entendê-lo.

Pena que Ele tenha de voltar cedo para casa. Em compensação, ela tem uma vida noturna que Perpétua jamais sonhou. Pena que aos domingos, ela, a Outra, esteja sempre só, pois ele tem de passear com Perpétua e seus rebentos. Em compensação, Ele a leva para “viagens de negócio” que Perpétua nem imagina.

Em casa ou na praia, a pacata Perpétua planeja. E sonha sonhos que um tilintar de telefone ou encontro de olhares podem tornar realidade.

E como Perpétua é discreta, Ele é sempre feliz.


 

A MORTE DO GAÚCHO

 

Maria Luiza Leão, pintora carioca, veio ao sul pintar o gaúcho. Não conseguiu.

— Para colocar uma coisa num quadro, o artista tem que mastigar essa coisa, quebrá-la em linhas e ângulos. O gaúcho é um personagem tão forte, tão senhor do mundo, que não consigo abstrai-lo para minha tela. Não tive ainda o distanciamento suficiente para fazer isso. O gesto do gaúcho é que eu acho lindo. Ele dá a impressão de flutuar sobre o cavalo, absolutamente sem peso.

Maria Luiza quer mastigar o gaúcho, quebrá-lo em linhas e ângulos. Quer abstrai-lo para suas telas. Não conseguiu. Nem vai conseguir.

Primeiro, porque não será um carioca quem terá dentes para mastigar o gaúcho. Muito menos carioca em turismo pelo sul. Maria Luiza terá as condições ideais para deglutir um carioca. Mas só um gaúcho poderá interpretar com fidelidade o gaúcho.

Segundo equívoco: o gaúcho que a carioca viu, flutuando sobre o cavalo, não existe. É alucinação. Se ela se refere ao peão de estância ou pequeno criador, que é o único que ainda anda a cavalo, enganou-se. Esse gaúcho não flutua em cima do cavalo. Ele sofre em cima do cavalo.

O gaúcho que Maria Luiza viu não existe mais. É lenda. E há um século, José Hernández já sabia disto:

Ah tiempos! — Si era un orgullo
Ver ginetiar un paisano —
Quando era gaucho vaquiano,
Aunque el potro se boliasse
No habia uno que no parasse
Con el cabresto en la mano.

Y mientras domaban unos,
Otros al campo salían
Y la hacienda recogían,
Las manadas repuntaban
Y ansi sin sentir pasaban
Entretenidos el dia.

Y verlos al cair la noche
En la cocina riunidos,
Con el juego bien prendido
Y mil cosas que contar,
Platicar muy divertidos
Hasta después de cenar.

Isso era o gaúcho. Nas coplas de Martin Fierro, Hernández descreve um gaúcho que já em sua época era mito. Apenas uma recordação.

Recuerdo! Quê maravilla!
Como andába la gauchada —
Siempre alegre y bien montada
Y dispuesta pa el trabajo —
Pero hoy en dia... barajo!
No se la vé de aporriada.

Estaba el gaucho en su pago
Con toda seguridá —
Pero aura... barbaridá!
La cosa anda tan fruncida,
Que gasta el pobre la vida
En juir de la autoridá.

Não sei se Maria entende esta linguagem. Se não entende, tampouco entende o gaúcho, isto é, o remanescente do mitológico gaúcho. O filho do gaúcho, o explorado peão de estância. Ou o gaúcho em busca de um salário de miséria na cidade. Aquele que flutuava como um Deus em cima de um cavalo, só existe na cabeça de algum carioca e na imaginação dos patrões de CTGs.

Há um século, Hernández já sabia que este gaúcho era mito. Quantos séculos serão ainda necessários para que Maria Luiza e tantos outros descubram que o gaúcho está morto e sepultado? E que o que resta dele é um proletário rural que usa chinelos de dedo e escuta Grenal em radinho de pilha?


 

MELHOR QUE TUBARÃO

 

Após a Quarta Guerra Mundial — ou Sexta, segundo alguns historiadores — homens práticos decidiram criar o ECB — Escritório de Catarse Emocional. Naquela época surgira uma necessidade urgente de uma paz permanente e duradoura. As armas haviam chegado a um ponto de saturação. Mais uma guerra seria a última, pois não haveria ninguém vivo para começar uma outra. O problema era estabelecer uma paz que se mantivesse após a morte de seus inventores. Impedir que a raça se destruísse a si mesma, sem eliminar os traços responsáveis por isso. Pois esses traços — a competição, o amor ao combate, a coragem diante de situações difíceis — eram a garantia da perpetuação da raça. Sem eles, a raça regrediria.

O ECB instituiu então o Clube dos Dez. Para ingressar nesse seleto clube, cada cidadão devia inscrever-se para matar dez outros sócios. Uma vez seria Caçador, outra vez Vítima e assim alternadamente. Se conseguisse matar dez sem ser morto, ingressaria no Clube. A Vítima recebia aviso uma semana antes do Caçador. E podia matá-lo. Havia penalidades severas para quem ferisse ou matasse pessoa errada, pois nenhuma outra espécie de crime era permitida. Crimes por dinheiro ou assaltos a mão armada eram punidos com a pena de morte.

Este é o esqueleto de um belo conto de Robert Sheckley, intitulado “A Sétima Vítima”. Quando o personagem central sai à caça da sétima vítima, um amigo comenta:

— Uma boa morte lhe fará um imenso bem.

Os homens práticos da época consideravam que os homens não eram anjos ou demônios. Mas simplesmente seres humanos, com alto grau de combatividade.

Segundo os críticos, Robert Scheckley é, antes de tudo, escritor do imaginário. A meu ver, nada tem a ver Sheckley com o imaginário. Seus contos podem se situar após a Quarta ou Sexta Guerra Mundial. Mas seus personagens estão a nosso lado.

Por exemplo, terça-feira, na Praça da Alfândega. Um homem, por volta do meio-dia, subiu em uma árvore, fez um discurso e ameaçou enforcar-se. Uma multidão se formou em torno da árvore. Para exigir que cumprisse o prometido.

Fui até lá. Não para contemplar o candidato a suicida — acho que quem não ama a vida não a merece — mas sim para ver e ouvir a platéia. E o que ouvi foi de arrepiar.

Alguns policiais subiram na árvore, o que deu suspense ao espetáculo. O candidato a suicida desmaiou e os assistentes suspiraram decepcionados. Então tudo terminaria ali? Mas não. Recobrou os sentidos e escapou dos policiais, subindo ainda mais alto. Em determinados momentos, ameaçava atirar-se, mas não o fazia, num total desrespeito ao público.

Embaixo, vozes iradas reclamavam:

— Como é, vais te jogar ou não?

— Te atira logo, que eu tenho de bater o ponto.

— Qual é a tua, reúne a gente aqui e depois não se enforca?

— Quero meu dinheiro de volta.

A meu lado, duas moças riam em estado próximo à histeria. E quando digo que o que ouvi foi de arrepiar, não estou usando figura de estilo. Uma delas, a mais excitada, com os olhos esbugalhados, gritava com a voz afogueada:

— Melhor que Tubarão! É ao vivo!

Me arrepiei mesmo. Então é isso que as duas e as multidões que lotam os cinemas estão buscando em Tubarão? No entanto, nas filas, parecem tão inofensivos...

E aí chegaram os bombeiros, esses brutamontes insensíveis ao inocente desejo de catarse das massas. São sempre uns estraga-prazeres. Apagam os incêndios, salvam os suicidas, frustram as multidões e ainda bancam os heróis. Numa atitude antipopular e antipática, desceram o falso suicida pela Magirus.

Uma multidão de pessoas, com a desagradável sensação de coito interrompido, voltou insatisfeita para seus trabalhos.

Muitas serão as razões que levam um homem a subir numa árvore, discursar e enforcar-se. Há quem se enforque sem discurso e até hoje dói em mim e em muitos amigos algo ocorrido em Munique. Mas um só é o motivo que leva centenas de pessoas a exigir o enforcamento. É um só — e me assusta.

Parece que futebol já não basta. Nem tubarões. O público quer espetáculos ao vivo. Ao que tudo indica, não viria mal uma guerrinha. Ou o Clube dos Dez.


 

COMO RATOS

 

Crise interna no Vaticano? Ao que tudo indica, sim. Pois em menos de duas semanas, do Vaticano saem duas opiniões divergentes sobre o mesmo tema.

Há pouco, em documento intitulado Código Sexual Contemporâneo, a Igreja condenava as relações sexuais pré-matrimoniais, o homossexualismo e a masturbação. Logo após, o “Osservatore Romano”, órgão oficial do Vaticano, reconhecia que alguns atos homossexuais podem não ser pecaminosos, devido aos diversos fatores psicológicos e físicos em jogo. E recomendou que as regras gerais da Igreja sobre o tema sejam aplicadas conforme cada caso.

Do modo como andam as coisas, ao condenar o homossexualismo, a Igreja vai perder muitos paroquianos. Pois homossexualismo não é vício ou anormalidade, mas uma atitude comportamental como qualquer outra, que em certos períodos históricos teve inclusive muito prestígio.

Na Grécia de Sócrates e Platão, todo aristocrata tinha seu efebo. Platão conta em seus “Diálogos” as investidas do mais corajoso guerreiro que a Grécia teve, Alcibíades, ao esquivo Sócrates. Nessa mesma Grécia, existiu o Exército dos Amantes e Amados. A estratégia era elementar e eficientíssima. Consideravam os generais que nenhum amante permitiria que o inimigo matasse o amado. E o amado, por sua vez, defenderia com a própria vida o amante. Consta que exército algum na História foi tão aguerrido.

Para os gregos de então, a mulher era um ser inferior. Segundo Aristóteles, tinha menos dentes que o homem, o que nos mostra que a distância entre o estagirita e as mulheres deve ter sido pequena. Mas era dever de todo heleno ter progênie. Num sacrifício ao Estado, o grego admitia relacionar-se com esse ser inferior, a mulher. Cumprido o dever, voltava aos braços do efebo. Ou ao convívio intelectual das hetairas.

Surgiu o cristianismo, e com ele uma nova moral. Segundo Nietzsche, o último cristão morreu na cruz. E tinha razão. Pois Cristo jamais incorreu no moralismo de seus seguidores.

Com os seguidores do Cristo, surge na História uma moral rígida e dogmática. Todo ato que não gerar filhos é pecado. Homossexualismo é sexo estéril? Então é pecado. Determinados atos não geram filhos? Então constituem pecado. A pílula impede a procriação? Então é pecado.

Esta filosofia vem dos tempos em que a Igreja estava intimamente ligada a nações guerreiras. Dos bons tempos em que reis vinham, de pés descalços sobre a neve, beijar as sandálias dos papas. Dos tempos em que a Igreja tinha poder. E para preservá-lo, necessitava de exércitos que a protegessem. No campo jurídico, esta ética inspirou o Código Napoleônico. Napoleão precisava de carne de canhão para satisfazer suas ambições? Então todo o ato que não gerar filhos é crime. O Estado invade o leito conjugal para saber se lá não são gerados filhos para sua preservação.

Mas os tempos mudaram. Com a bomba, os canhões só são utilizados para guerrinhas de brinquedo. Três ou quatro tripulantes de um bombardeiro fazem hoje, em segundos, estragos que Napoleão algum sonhou. Além disso, o crescimento demográfico está pedindo um freio. Antropólogos começam a intuir certos mecanismos ocultos de defesa da espécie. Observou-se que ratos, quando encerrados em espaço exíguo, tendem ao homossexualismo quando a população aumenta.

Tanto o Código Sexual Contemporâneo — que de contemporâneo só tem o nome — quanto as considerações um pouco mais permissivas do “Osservatore Romano”, devem ter sido elaboradas por teólogos. Mas teólogos entendem de Deus e dos anjos.

Do sexo dos homens entendia Fernando Pessoa, que dizia:

O amor é que é essencial.
O sexo é só acidente,
Pode ser igual.
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente
Embora às vezes doente.


 

BERGMAN AMEAÇA TRYGGHET

 

Ingmar Bergman — o cineasta da alma, segundo alguns críticos — está internado no Instituto Karolinska, em Estocolmo, em virtude de forte crise nervosa. Crise causada não por angústias metafísicas, mas por preocupações bem mais chãs. Pois Herr Bergman cometeu o mais abominável crime que um sueco pode cometer. Tentou burlar o Estado-Providência, num delito de lesa-igualdade. Herr Bergman está sendo acusado de sonegar 550 mil coroas (Cr$1 milhão e 100 mil) do onisciente estado sueco. Foi detido, interrogado durante cinco horas e teve o passaporte retido.

O estado sueco protege seus cidadãos do berço até o túmulo, e com eficácia. Todo cuidado hospitalar é gratuito, trate-se de uma pequena fratura ou de um prolongado câncer. Todo e qualquer medicamento é pago até a quantia de 15 coroas (Cr$30,00). O que sobrepassar esta quantia é pago pelo Estado. A instrução obrigatória é de nove anos. A universidade é totalmente grátis e não tem vestibular. Apenas nos cursos politécnicos e de medicina há uma pequena seleção.

Se Svensson — o sueco médio — quiser pedir um empréstimo mensal para custear seus estudos, não precisa nem mesmo comprovar situação econômica precária. Chega no banco, apresenta comprovante de matrícula na universidade, preenche um formulário e recebe na hora. Sem burocracia alguma. E só paga depois de formado, sem juros e com um abatimento. O Estado não permite que Svensson estude e trabalhe ao mesmo tempo. O trabalho lhe prejudicaria o aproveitamento escolar.

Um aborto custa doze coroas em Estocolmo. Nas demais cidades é grátis. Seja a mulher casada ou solteira.

Se Svensson está desempregado, o Estado lhe paga um generoso salário-desemprego, que lhe permite viver decentemente. Viver decentemente para um sueco significa comer, vestir, habitar bem, telefone e carro. Tudo isto o salário-desemprego permite. E o Estado ainda procura emprego para Svensson. E quando acha, vai até sua casa avisá-lo.

Trygghet — eis uma palavra que jamais está ausente nos discursos de políticos suecos. A palavra não tem um correspondente exato em português, mas pode ser associada a segurança, tranqüilidade, confiança. Svensson só sente trygghet em sua pátria, como uma criança sem angústias nos braços da mãe. Um dos mais populares ditados suecos diz: Bort bra, hemma bäst. No estrangeiro é bom, em casa melhor.

Mas os suecos pagam caro por esta segurança, tranqüilidade e confiança. A Suécia é o país de mais alta taxação do imposto de renda. E os mais ricos pagam mais caro. Herr Bergman faturou, em 1971 por exemplo, um milhão de coroas. Ou seja, a bela soma de dois milhões de cruzeiros, um salário sem dúvida à altura de seu talento. Mas Herr Bergman não viu nem sombra de seu milhão. Recebeu apenas 150 mil coroas, pois com essa renda, seu imposto está taxado em 85 por cento.

Herr Bergman, homem preocupado com o espírito, pouco ligava para dinheiro. Hollywood quis contratá-lo certa vez. Ofereceu 300 mil dólares, exigindo naturalmente certas concessões. O cineasta da alma foi inflexível:

— E as minhas angústias metafísicas onde é que ficam?

Existe um outro sentimento nórdico, de difícil tradução nas línguas dos países quentes, chamado grubbel. A forma verbal é att grubbla. Poderíamos traduzi-la por “ruminar prazerosamente pensamentos sinistros”. A grubbel é sentimento típico dos que vivem mais ao norte. Às vezes os jornais trazem notícias como esta: “Matou mulher e filhos a machadadas”. É a explosão da grubbel.

Pois Herr Bergman deve ter sido acometido pela grubbel no ver seus milhões taxados em 85 por cento. E fez a última coisa que um sueco poderia fazer — sonegar imposto. Já li em jornais suecos, no consultório sentimental, cartas como esta: “Meu marido sonega imposto. Devo denunciá-lo?” E a resposta era, invariavelmente: “Antes dessa atitude drástica, tente dissuadi-lo de seu gesto criminoso”.

A cada ano é editado em Estocolmo um livro intitulado Taxerings Kalender — Anuário dos Impostos. Nele está publicado tanto o imposto pago por Olof Palme, primeiro-ministro, como pelo obscuro Svensson. Por Herr Bergman ou Liv Ullman. Não lembro se o rei paga imposto. Se paga, lá estará a graça de Sua Majestade. E se alguém acha que alguém está pagando pouco imposto, pode dar uma telefonada à sinistra Skatthuset — a Casa dos Impostos.

O leitor já imaginou um livrinho como este nesta terra do dinheiro fácil? Ia dar congestionamento nos ramais telefônicos.


 

ELA

 

Ela não tem essas proeminências contundentes que nos faz o sangue subir aos olhos. Não tem aquela ginga que nos provoca taquicardia. Não tem aquele olhar-convite que interrompe qualquer papo. Não tem traços ou características fortemente distintas. É baixinha, discreta, não olha para os lados quando passa.

Por que então a Rua da Praia vem abaixo quando ela a percorre?

Duvido que alguém não a tenha visto na Rua da Praia. Está quase sempre envolta em brins. Muitas vezes, entre o eslaque e a blusa, nos brinda com uma generosa fatia de pele bronzeada. Na cabeça ainda não se sabe o que existirá dentro. Mas por fora, sempre a envolve um turbante ou boné. Quando usa boné, põe os óculos sobre ele. E suponho que ninguém desconhece os inefáveis dotes das mulheres que usam os óculos na cabeça.

Usa todas as cores ao vestir, com um senso absoluto de harmonia. O cordão do sapato combinando com o esmalte da unha e a fímbria do turbante.

Enfim, isso não explica nada. Mulher elegante, com umbigo de fora, pele bronzeada e óculos sobre a cabeça é rotina na Rua da Praia. A isso ainda associam um certo modo de caminhar — se é que se pode chamar certos ritmos de caminhar — ou impiedosas exuberâncias anatômicas, quando não, olhares que fazem os másculos gaúchos pensarem duas vezes, antes de qualquer investida.

Não. Ela não tem nada disso. Mas quando Ela passa, seja o assunto futebol, literatura ou mercado de capitais, é sempre interrompido. Não há fio de conversa que não se perca quando Ela desfila. E Ela passa com um ar safado de quem está perfeitamente consciente disso.

Kazantzakis dizia que o coração feminino do homem sente uma necessidade constante de consolação, necessidade que este sofista espertíssimo, a mente, está sempre pronto a fornecer. A velha história da raposa e as uvas. Como ser humano, não escapei dessa humana tendência. E formulei dezenas de hipóteses à guisa de consolo.

Primeira: eu não gosto de mulher bonita. Beleza depende dos padrões estéticos da época. Na época de Rubens, para ser bonita ela teria de pesar três vezes mais. Em certas tribos africanas, teria de ser esteatopígica. Já que a beleza é relativa, por que prender-me a padrões estéticos absolutos?

Segunda: Ela é bonita. Mas a beleza não está nela e sim nas roupas que veste. Então posso gostar de qualquer mulher, desde que se vista assim.

Terceira: vai ver que é burra de doer. Pitigrilli dizia que existem três tipos de mulheres: as inteligentes, as bonitas e a maioria. Se uma mulher é bonita, seria exigir demais da espécie que fosse inteligente.

Quarta: mulher bonita é metida a besta. Como é sempre o centro das atenções, se julga a tal e não dá colher de chá. Vai ver que é por isso que ela não me olha.

Quinta: as feias são muito mais humanas e simpáticas. Como a competição é violenta, têm sempre mais empenho.

Sexta: Ela não me liga porque desconhece minha riqueza interior. Como dizia Exupéry, o importante é o invisível.

Sétima: é muito jovem, não serve. Só os inexperientes preferem a impetuosidade da juventude ao ritmo lento e voraz das mulheres maduras.

Oitava: vai ver que não é de nada, todo aquele charme não passa de exibicionismo.

Nona: perfeita é a circunferência: Ax2 + By2 + Dx + Ey + F = 0. Jamais Ela chegaria à fórmula tão redonda. Por outro lado, qual matemático conseguiria reduzir a fórmula suas formas?

Décima: eu nem gosto dela, a troco de que estou me preocupando?

Décima primeira: etc., etc., etc.

No fundo, no fundo, gostaria de vê-la sem todos aqueles adereços. Só pra ver se todo aquele charme reside nela ou nos ditos.


 

PROFESSOR SHOEMAKER, UM OTIMISTA

 

Foi descoberto, em janeiro passado, por Eleonor Helin, o asteróide 1976 AA. Segundo o professor Eugene Shoemaker, o asteróide tem 75 por cento de possibilidades de se chocar com a Terra, mas isso só deverá ocorrer dentro de 24 milhões de anos, podendo provocar uma abertura de 16 quilômetros de raio. Mas o professor Shoemaker encara a hipótese com otimismo: até lá as pesquisas espaciais estarão suficientemente desenvolvidas e em condições de desviar o asteróide.

Com otimismo astronômico, diga-se de passagem. Pois o professor Shoemaker pressupõe que daqui a 24 milhões de anos ainda existam homens sobre a Terra.

Sean McBride, prêmio Nobel da Paz em 1974, já não partilha desse otimismo. Declarou há pouco em Boston:

— Acho que estamos caminhando para a III Guerra, a menos que possamos fazer duas coisas: acima de tudo progredir realmente rumo a um desarmamento completo e geral. Depois, poder garantir um acordo sobre a proscrição de diversas outras armas, o que não foi feito.

Ainda segundo McBride, o aumento dos armamentos foi “verdadeiramente colossal”, tanto por parte dos Estados Unidos como por parte da União Soviética.

— Novas armas estão sendo desenvolvidas, e parece que já chegamos a uma situação em que nenhuma das partes é realmente capaz de avaliar, corretamente, a força da outra ou sua própria força, ante as novas armas inventadas.

Em discurso pronunciado recentemente em Manila, por ocasião do encontro de representantes de 107 países em desenvolvimento, da Ásia, África e América Latina, o presidente filipino Ferdinand Marcos salientou que até o ano 2.000, 23 por cento da população, constituída por países ricos, será responsável por 80 por cento da produção. Se os resultados globais não forem repartidos eqüitativamente, será somente uma questão de tempo que o número sempre crescente de países pobres desafie o reduzido número de nações ricas para obter uma participação justa nesses benefícios.

— Em qualquer caso — diz o presidente filipino — a perspectiva pouco agradável é guerra ou morte, pois estamos num dilema entre os privilégios ameaçados e a sobrevivência ameaçada.

Enquanto isto, os países pobres do Sul começam a tomar consciência de que os países ricos do Norte não seriam assim tão ricos, não fosse a matéria-prima e mão-de-obra que importam do Sul, ao preço que bem entendem. Criança passando frio e andando descalça é rotina nos países do Sul. Mas estes mesmos países exportam calçados e lã para as ricas crianças do Norte.

No Sul há fome. No Norte se come o alimento exportado pelo Sul. Para manter o alto padrão de vida a que estão habituados, os habitantes dos países industrializados do Norte necessitam do petróleo. Petróleo que será comprado dos nouveaux riches de um mundo em crise de energia, os países árabes. Onde, em torno a príncipes, emires e xeques com fortunas mileumanoitescas, vive uma multidão faminta e analfabeta.

Os Estados do Sul tomam consciência de sua condição de fornecedores explorados de matéria-prima, e exigem tratamento mais justo. Henry Kissinger, o aguerrido paladino do assim chamado mundo ocidental, adverte que os Estados Unidos não permitirão ser levados de roldão pelos países do Terceiro Mundo.

Se os países ricos não dividirem suas riquezas, haverá guerra, diz Ferdinand Marcos. Mas quando, na História, algum rico dividiu suas riquezas espontaneamente?

Em suma, estão lançados todos os dados para a Terceira. Exércitos de ocupação e ogivas nucleares estão a postos. Mais e mais abrigos antiatômicos são cavados. E o professor Shoemaker está preocupado com o provável choque do asteróide 1976 AA com a Terra, daqui a 24 milhões de anos.

Enfim que pode fazer um astrônomo em meio ao apetite desvairado das potências, senão observar os corpos celestes? Astronomia é uma ciência fascinante, há, inclusive, quem perca a razão ao tomar conhecimento das dimensões do Universo. Sempre me fascinaram os astros. Mas como não disponho de instrumentos nem tempo para observá-los, fico à espreita dos corpos terrestres mesmo, tão próximos e tão pródigos.

Se sobrar alguém para ser esmagado pelo 1976 AA, isto é prova que, apesar de tudo, o ser humano é admirável por sua teimosia.


 

SELVAGENS REAGEM

 

Índios armados estão atacando brancos em povoados do Maranhão, Pará e Mato Grosso. A agressão dos índios é em geral provocada pela invasão de suas terras por posseiros e fazendeiros brancos. A FUNAI, entidade que tem por finalidade a defesa e assistência ao índio, se limita a evitar a represália aos brancos. Estes, por sua vez, invadem tranqüilamente as reservas indígenas em total impunidade.

Reação tardia, a dos índios. Este ataque ao invasor só teria eficácia se efetuado há cinco séculos. Mas como os índios de então não possuíam uma rígida política de imigração, os navegadores portugueses foram desembarcando e se instalando. Hoje, seus descendentes acossam os índios para áreas cada vez menores. Quando não os infectam com doenças urbanas e bebidas.

Poucas invasões foram tão devastadoras quanto as do branco europeu em suas incursões pelos demais continentes. Em nome de algo chamado civilização, o colonizador europeu varreu do mapa culturas altamente desenvolvidas, como a dos incas e maias. O que sobrou do massacre são esses poucos índios ou estão marginalizados em povoados, ou vêem seu espaço vital cada vez mais reduzido na selva.

Nos últimos anos, organismos internacionais têm se preocupado com as minorias raciais e culturas primitivas. Certos antropólogos começaram a desconfiar que a dita vida civilizada talvez não seja superior em qualidade ao tipo de vida levada pelos “selvagens”. Quando o homem urbano percebeu que o selvagem não padece de câncer, arteriosclerose, cardiopatias, varizes, passou a observá-lo com maior interesse. E essa observação condenou definitivamente à extinção tais culturas primitivas.

Pois o civilizado, ao aproximar-se do primitivo, leva consigo todos seus apetrechos urbanos. E por cima, quer auxiliar, assistir o primitivo, em vez de deixá-lo em paz. Essa tentativa de assistência arrasa qualquer cultura.

Um amigo que viajou pela Amazônia contou-me que os “selvagens” já estão cobrando para posar para uma foto. E mais: nem aceitam cruzeiros, exigem dólares. Foto sem armas, one dollar. Com armas, five dollars. Isto é, de primitivo esta cultura não tem mais nada.

Na Lapônia, os lapões continuam castrando renas com os dentes e tomando café com sal. Mas suas tendas encravadas na neve já foram invadidas pela televisão. Além do lapão, já falam o sueco ou finlandês. E, seduzidos pelas maravilhas que a televisão mostra, acabam descendo para as cidades menos frias do sul.

Tive a oportunidade, no ano passado, de conhecer os remanescentes de uma das mais antigas culturas conhecidas, os tuaregues, os nômades do Saara. Segundo a lenda, descenderiam dos atlantes, os habitantes daquela cidade da qual Platão deu notícias e até hoje é procurada em vão. Verdadeira ou não, a lenda atesta a antigüidade da cultura. Mas nem a aridez do deserto protegeu os tuaregues do invasor europeu. Pois os atuais tuaregues, de tuaregues só têm o nome.

Para começar, estão se sedentarizando. Com a criação de empregos ocasionada pelo desenvolvimento do turismo, os tuaregues estão abandonando o lento comércio do sal para se tornarem assalariados. Com o surgimento de rodovias e Land-Rovers, o camelo só serve para posar em fotos ao lado de turistas.

Pior que tudo, perderam até a língua. E quando uma língua morre, a humanidade se torna mais pobre. Falam hoje árabe e inclusive um francês áspero, quase sem vogais. Se quiserem aprender o tamahak, sua língua original, terão de aprendê-lo numa cartilha francesa, elaborada por Charles de Foucauld.

O homem que conhecia o segredo das pedras e dos ventos, as virtudes medicinais das escassas plantas do deserto, esse homem não mais existe. O que resta dele é um lacônico guia de turistas, rindo silenciosamente dos maravilhados europeus que viajam pelo deserto, sob as dobras da chéche que lhe encobre o rosto. O guerreiro assustador que reboleava uma lança num camelo a galope é hoje um pacato motorista de Land-Rover. Ou ciclista com as vestes enredadas nos pedais. O Amenokal, soberano das tribos tuaregues, é preservado como atração turística.

Se nem os tuaregues, protegidos pela vastidão inóspita do Saara, conseguiram escapar do branco, que esperança poderão alimentar indígenas vivendo em terras férteis e valorizadas?

Nenhuma, ao que tudo indica. Pois o branco é senhor e impõe seus valores e doenças. Em desespero, alguns índios passaram a atacar os brancos.

Mas agora é tarde.


 

AS DESLUMBRADAS E A MODA

 

Costureiros parisienses decidiram, no mês passado, qual a moda a ser usada pelas brasileiras em 76. Pois a mulher brasileira não tem personalidade suficiente para decidir que trajes deve usar. É necessário que um francês de sexo indefinido e com leve odor metafísico imponha o que a gaúcha ou carioca devem usar.

Não sei se conheço algo mais ridículo que a moda. Quando surgiu a minissaia, por exemplo, o vestido longo passou a ser considerado abominável. A minissaia tornou-se cada vez mais exígua e vulgar. Quando passou a ser usada em massa por domésticas, surgiu a maxissaia. E mulher alguma que se prezasse ousaria sair à rua com a antiquada minissaia. Quando a saia longa for encampada pelas domésticas, surgirá certamente uma nova opção. Pois os ditadores parisienses da moda não pecam por falta de imaginação. E confiam na pobreza de espírito de milhões de mulheres de países-satélites — do ponto do vista cultural — da França.

Tenho afirmado diversas vezes que estamos assistindo ao crepúsculo do macho e seus valores e assistindo a uma rápida ascensão da fêmea do homem. Mas quando observo a reação da mulher ante a moda, minha confiança na mulher se aproxima de zero. E vontade é o que não me falta de concordar com Aristóteles e São Tomás, que viam na mulher um ser inferior.

Para começar, não aposto um centavo na existência de células pensantes no cérebro de mulher que se veste segundo as determinações de Paris ou Londres. Mulher que se preocupa em estar a par do dernier cri das doidivanas parisienses, certamente desconhece algo mais inteligente com que preocupar-se. E esta posição não é preconceito. O convívio diário tem comprovado fartamente minha tese. As mulheres mais requintadamente vestidas que conheci, sempre se revelaram como sendo de inteligência escassa. Deve ser esta, aliás, a razão da recente moda do turbante: algo é necessário para disfarçar a transparência de uma cabeça oca.

E para cúmulo da ironia, a moda é ditada por homens. A mulher moderna se pretende emancipada e se submete aos caprichos do homem. Pois na verdade a moda é uma indústria que não só possibilita lucros fantásticos aos industriais do ramo, como também divisas aos países que a exportam. Mary Quant — uma das exceções femininas da moda — levou milhões de libras esterlinas para a Inglaterra. Como o fazem Courrèges, Saint-Laurent, Dior, Cardin e Gernreich, para seus países.

Enfim, considerações como estas dificilmente penetram no cérebro pouco permeável das moças que se vestem segundo a moda. Talvez consigam conceber que indústria significa algo mais que o prédio em que funciona uma fábrica. Mas dificilmente saberão em que consiste uma divisa.

E, a cada ano, se vestirão de modo diferente. Sempre achando que o último lançamento é mais requintado que o anterior. Sempre descobrindo, maravilhadas, que aquele desenho concebido em Paris “é exatamente o que eu queria vestir”. Para sorte de suas ilusões, as moças que se vestem segundo a moda nem sempre viajam a Paris. Pois correriam o risco de passar o vexame sofrido por conhecido nome da crônica social do Portinho. A moça estava de viagem para a capital francesa e resolveu chegar lá portando o dernier cri. Consultou os catálogos mais recentes, comprou vestidos em conceituada boutique carioca, e lá se foi com o propósito de épater les françaises. E espantou mesmo. Quando desfilava pelo Quartier Latin, envolta em túnica inconsútil, provocou o mesmo espanto que provocaria um dinossauro chafurdando no Sena. Pois em Paris ninguém se veste segundo a moda. Cada um anda com a roupa do dia-a-dia, seja em bares ou boates, seja no trabalho ou na universidade. A moda parisiense só existe para as deslumbradas de países subdesenvolvidos. E para a felicidade dos industriais franceses.

Em meio a tudo isso, Mary Quant levanta uma perigosa idéia no campo da moda, a idéia de democratização. “Cada mulher usa o que lhe parece melhor, em qualquer ocasião”.

Não será de espantar se, qualquer dia, Mary Quant for tachada de subversiva. Pois sempre é subversivo quem, em nome da liberdade individual, fere poderosos interesses econômicos. Que seria de grandes fortunas na indústria da moda, se cada mulher se vestisse como melhor entendesse?

Mas Saint-Laurent, Courrèges & Cia. certamente estão tranqüilos. Pois confiam na cabeça oca — condição para seguir qualquer moda — de milhares de mulheres.


 

O SUPREMO AFRODISÍACO

 

Participantes de um concurso para Miss Estados Unidos — numa comprovação cabal do que se diz a respeito do cérebro das misses — o consideraram o Maior Homem do Mundo. A esposa dele se queixa de úlceras, devido a suas constantes viagens. Indiferente a tais homenagens ou queixas, Kissinger proclama que “o poder é o supremo afrodisíaco”.

Henry Kissinger, o imigrante judeu melhor sucedido nos Estados Unidos, fugiu de Fuerth, na Alemanha, há 38 anos, perseguido pelos nazistas. Quando voltou a sua cidade natal, no ano passado, na condição de secretário de Estado americano, ouviu do ministro alemão das Relações Exteriores estas palavras:

“Kissinger e sua família tiveram que deixar o país quando nossos ideais democráticos foram traídos. Aprendemos, desde aquela época, que quando infringimos a liberdade alheia estamos renunciando à nossa própria”.

Se os alemães aprenderam, o mesmo não se pode dizer a respeito de Mr. Kissinger. Pois sua diplomacia — escudada por bombas nucleares, saliente-se — consiste na preservação do poder imperial americano, em detrimento da emancipação econômica das nações do Terceiro Mundo. Segundo fontes norte-americanas, dentro de duas décadas, das 17 matérias-primas fundamentais para a indústria civil e bélica dos Estados Unidos, 14 terão de ser importadas da América Latina ou de outras nações. Todo movimento de libertação econômica dessas nações deverá então ser sufocado. Com bombas ou dólares.

Quando assessor especial de Nixon, Kissinger foi responsável pelos bombardeios secretos sobre o Camboja. E enquanto defendia publicamente o direito do Chile escolher seus próprios rumos, idealizou a eufemística “desestabilização” da economia chilena. Deve ter se divertido muito nestes massacres, o homem que vê no poder o supremo afrodisíaco.

Numa reunião da Casa Branca, disse o secretário de Estado: “Não vejo porque devemos permanecer passivos diante de um país que está se tornando comunista por culpa da irresponsabilidade de seu próprio povo”. Em verdade, não é o comunismo que o preocupa. Prova disto, são seus sorridentes apertos de mão com Chu En-lai e seus amáveis brindes com Brejnev, senhores que, se estou bem informado, são notórios líderes comunistas.

Fala-se que hoje Kissinger é um estrategista em fase de decadência. Que sua visita ao Brasil seria comparável à vinda de um Frank Sinatra cansado e rouco. Neste confronto, confunde-se o homem Kissinger com o poder que ele representa. Não é Kissinger quem vive seus dias de decadência. E sim o império americano.

Não há notícias na História de império que tenha se prolongado indefinidamente. Como todos os seres vivos, as nações estão sujeitas a uma curva ontogenética: nascimento, evolução, decadência e morte. Se até os planetas obedecem a esta lei, não seriam os Estados Unidos os privilegiados a infringi-la. E o poder imperial norte-americano está dando mostras de indiscutível declínio.

Primeiro foi o Vietnã. Dispondo de um fantástico arsenal e de sofisticados recursos eletrônicos, capazes de detectar até mesmo as radiações caloríficas de um guerrilheiro na selva, os Estados Unidos, que jamais haviam sido derrotados, perderam a guerra contra uma pequena e aguerrida nação. Guerra que, ironicamente, nunca foi declarada em termos oficiais, apesar das toneladas de bombas e napalm jogadas sobre os vietnamitas.

Hoje, os interesses econômicos americanos começam a ser contestados na África e América Latina. Os países do Terceiro Mundo são ricos em matérias-primas, tanto em alimentos como em minerais. Mas seus habitantes têm as menores rendas per capita e amplas camadas da população padecem fome. Através das multinacionais — que de multinacionais só têm o nome, pois em geral provêm de uma nação apenas — os recursos dos países do Terceiro Mundo são canalizados para a manutenção do alto padrão de vida americano, considerado o mais elevado do mundo.

Mas o Terceiro Mundo está despertando. Dirigentes de muitos países estão descobrindo que suas riquezas devem, afinal, ser consumidas pelos seus próprios cidadãos. E os Estados Unidos, civilização de desperdício, hoje carecem de recursos naturais, embora lhes sobrem bombas.

Tempos difíceis se configuram para África e América Latina. Especialmente quando os donos dos arsenais vêem no exercício do poder a suprema volúpia.


 

A VERDADE ÚLTIMA DA RAÇA

 

Há pessoas que buscam o insólito em livros de ficção. Não me parece, no entanto, que a imaginação dos ficcionistas consiga ir além do que acontece de fato. Por isso, às obras de ficção prefiro a leitura da crônica policial, onde, como disse alguém, está a verdade última da raça humana. Senão, vejamos.

Pedro Catarina, carregador da feira de Natal, Rio Grande do Norte, desesperado por não ter dinheiro para alimentar mulher e quatro filhos, apelou para uma solução drástica: com uma faca afiada, em frente de sua casa, começou a golpear seu próprio corpo em troca de moedas de Cr$0,50. Imediatamente se formou uma pequena multidão em torno de Pedro Catarina, que prodigamente passou a jogar-lhe moedas, até a chegada da polícia.

Em Belo Jardim, Pernambuco, Jesuíno Batista Mourão, de 21 anos, incentivado pela canção “Coração Materno”, de Vicente Celestino, pretendeu matar a mãe, de 63 anos, e levar seu coração de presente à namorada, que o pedira como prova de amor. O esmero com que Jesuíno amolara um punhal, na noite anterior, e sua insistência para que a mãe fosse rezar, pela manhã, em uma capelinha distante do sítio em que moravam, despertou as suspeitas em Rosalina Maria da Conceição, que os seguiu e gritou por socorro quando viu o rapaz levantar o punhal para satisfazer o pedido da amada. Jesuíno largou a arma e fugiu. A namorada de Jesuíno, Carmelita Ramos Bandeira, sofreu uma crise nervosa ao saber do fato. Explicou que o rapaz lhe perguntara qual a maior prova de amor que gostaria de receber. Na ocasião, lembrou-se da canção de Celestino e disse, brincando, “quero o coração de tua mãe”. Carmelita brincava, Jesuíno não.

Em Ouro Fino, Minas, Diamantina de Jesus Felisberto, 55 anos, viúva, pagou Cr$300,00 a dois rapazes, e mais um relógio, para que a matassem. Diamantina queria ser assassinada porque não tinha coragem para suicidar-se. Com a mulher deitada e o dinheiro no bolso, João Batista de Oliveira, 22 anos, lavrador, deu-lhe a primeira facada no pescoço e ela tentou reagir. Os rapazes se irritaram com a desonestidade de Diamantina: “Você está querendo fazer a gente de palhaço. Agora você tem de morrer de qualquer maneira, foi o combinado”. Geraldo Adão da Silva, 19 anos, pedreiro, concluiu a empreitada com outra facada.

Carlos estava apaixonado. Matou o pai a pauladas. O fato ocorreu em Nova Iguaçu, no Rio. Segundo um investigador, ele matou o pai por causa da madrasta, por quem estava apaixonado.

Em Irai, Rio Grande do Sul, Valter Rodrigues, 22 anos, agricultor, matou Fátima Bueno, de 15 anos, com diversas facadas no pescoço. Valter entregou-se na delegacia de polícia, explicando que tinha matado Fátima porque ela se negava a namorá-lo.

Em Sarasota, Flórida, Chris Chubbik, de 30 anos, apresentadora de um programa de televisão, em especial atenção aos telespectadores, anunciou-lhes que iriam ver um espetáculo inédito em TV: uma tentativa de suicídio ao vivo. E disparou, ante as câmaras, um revólver 38 em sua testa.

Em Otawa, Canadá, Robert Poulin, estudante secundário, entrou na sala de aula com uma espingarda de repetição, matou quatro colegas e feriu dois e, no corredor, atirou contra si mesmo.

Em Anápolis, Goiás, um prélio amistoso entre o time local e o de Jaranápolis acabou com mais de 200 tiros, três mortos e quatro feridos. Tudo começou quando o torcedor Antônio Ferreira de Almeida, após um pênalti contra seu time, entrou em campo com revólver dizendo: “Quem bater morre”.

Em Vila Vitomirica, Iugoslávia, Nizreta Daudt, de 11 anos, que entrara em sono profundo por ocasião do nascimento de seu irmão, despertou subitamente 25 dias mais tarde, no momento em que o bebê falecia. Antes de mergulhar no sono havia exclamado: “Não preciso de outro irmão”.

Em Queensland, Austrália, Peter Reimers, de 35 anos, viveu toda sua vida obcecado por um invulgar pavor: tinha tanto medo de crocodilos que nunca se aventurava em áreas de mais de poucos centímetros de profundidade. Um belo dia suas pernas foram encontradas em diferentes pontos de uma pequena laguna onde fora banhar-se. O corpo foi encontrado dentro da barriga de um crocodilo gigante, mutilado. O monstro, ao qual faltavam a cauda e uma perna, tinha seis metros de comprimento. Segundo colegas da vítima, o crocodilo estaria a par dos hábitos de Peter Reimers, a quem seguiu até a laguna.

E depois ainda há quem prefira buscar mistérios nas das ficções de Agatha Christie ou Simenon!


 

MEDVETENSÄKTENSKAP

 

Enquanto brasileiros discutem o divórcio, franceses se interrogam se o casamento valerá a pena. Segundo M. Louis Roussel, do Institut National d’Études Démographiques, há trinta anos a questão era: “porque eles não se casam?” Hoje, a pergunta é outra: “porque eles se casam?”

Neste ano, o número de casamentos na França será menor que no ano passado. E enquanto havia um divórcio em quinze casamentos há vinte anos, hoje a proporção é de um para oito. E tende a aumentar.

Dos Estados Unidos vem outra notícia sintomática. Reno (Nevada), a capital do divórcio fácil está se transformando na metrópole do casamento fácil. Pois o divórcio foi se tornando cada vez mais fácil nos demais Estados, enquanto que o casamento passou a exigir um número crescente de formalidades e condições.

Conforme enquete feita por L'Express, verificou-se que, entre os jovens, o casamento perdeu seu caráter de instituição ou sacramento, passando a ser considerado como uma simples formalidade jurídica que permite a um casal viver em conformidade com os hábitos da sociedade. A maioria dos interrogados afirmou não ser o casamento forçosamente necessário para que duas pessoas vivam juntas. Outros consideraram-no até mesmo inútil. O ato de casar passou a ser, segundo M. Roussel, o simples registro de uma decisão, de um contrato privado.

Um outro fato significativo constatado pela pesquisa foi a importância do bom entendimento sexual na solidez do casal. Mais de 70 por cento dos jovens colocaram este item acima de outros, como mesma origem social, igualdade intelectual, boa situação material, crianças ou independência financeira mútua.

Ou seja, algo de novo está ocorrendo na sociologia da família. Se antes o casamento era um momento solene na vida dos nubentes, hoje é mera formalidade. Os jovens, a uniões de direito, preferem uniões de fato. E a status, origem ou nível intelectual, preferem um bom parceiro de cama. O fenômeno é característica dos países industrializados. Ainda segundo M. Roussel, houve época em que existiam outras coisas além da família. Um homem podia ser, ao mesmo tempo, um marido infeliz e cidadão bem sucedido. Mas hoje, as relações de camaradagem, de bairro e de famílias, estão aos poucos desaparecendo. A vida se torna anônima. Não que todos os prazeres residam no casamento. Acontece que os outros prazeres desapareceram nos grandes centros.

Desta pesquisa concluímos que os jovens acreditam no casamento. Isto é, têm esperanças no relacionamento conjugal. Mas já não crêem nas formalidades que o cercam.

Observei, na Suécia, a emersão de um tipo de casamento que ainda dará o que falar nas próximas décadas. É o medvetensäktenskap, literalmente, casamento de consciência. Os suecos se cansaram de prometer coisas, diante de um sacerdote ou juiz, que nem sabem se terão condições de cumprir. Para eles, o relacionamento entre duas pessoas é algo privado que dispensa papéis e assinaturas. O casal simplesmente junta os trapos e passa a morar sob o mesmo teto.

As estatísticas confirmam o avanço da nova instituição. Em 71, das 115.000 crianças nascidas no país, 20 por cento nasceram fora do matrimônio. Em Estocolmo, o índice atinge os 50 por cento. Cabe salientar que o Estado sueco dá mais proteção à mãe solteira que à casada. Na fila para aquisição de casa própria, a mãe solteira precederá a casada. O problema dos filhos não existe, pois o Estado protegerá a criança sem perguntar o estado civil dos pais. E a mãe solteira passará a ser chamada de senhora, desde o momento em que registra o filho. Em meio a isso, a Suécia apresenta um recorde em questão matrimonial, o mais baixo índice de matrimônios do mundo. Na década de 40, quando o casamento ainda era popular, em cada mil habitantes casavam-se nove. Em 71, apenas 4,9. E a tendência persiste.

“O Senhor Deus disse: não é bom que o homem esteja só; eu vou dar-lhe uma auxiliar que lhe seja semelhante”. Até hoje, homem algum prescindiu desta companheira anunciada no mito do Gênesis. Mas muitos estão cansados de dar explicações a terceiros ou ao Estado, ao satisfazer esta humana inclinação. O casamento, instituição formal, cede lugar ao acasalamento, necessidade da espécie.


 

PRIMEIRA EPÍSTOLA ÀS POSSESSIVAS

 

Uma amiga queixava-se outro dia de não se sentir exclusiva em suas relações afetivas. Reclamava dos homens que consideram a mulher como mais uma marca na coronha do rifle. Não podia conceber que alguém, homem ou mulher, amasse mais de uma pessoa. Amor exige exclusividade, ou não é amor, dizia. E anelava experimentar uma daquelas paixões que invadem o organismo como metástase incontrolável. Queria curtir um namoro daqueles antigos. Sonhava com abissais comoções de alma, com bocas entreabertas e olhares imóveis. Gesto que, aliás, sempre me traz à mente a imagem de um boi babando numa manhã de sol. Mas isto é outro assunto.

Um antropólogo inglês, que viveu algum tempo entre os bembas, na Rodésia, relata uma curiosa experiência.

Reunido com um grupo de nativos, o inglês contou-lhes uma lenda. A historieta falava de um príncipe que galgara montanhas de vidro, atravessara abismos e lutara com dragões para obter a mão da moça que amava. Os bembas não entendiam o porquê de tanto esforço, mas ficaram quietos. Por fim, um ancião, interpretando os sentimentos do grupo, tomou a palavra:

— Por que ele não escolheu outra moça?

Duvido que o antropólogo tenha conseguido explicar aos espantados bembas esse difuso sentimento civilizado que se convencionou chamar de amor. Sentimento que assumiu várias nuanças, desde os poemas de Safo de Lesbos, onde surge pela primeira vez na literatura ocidental, até o propalado amor conjugal dos últimos séculos. Mito que nasceu — com características homossexuais, saliente-se — evoluiu, atingiu seu auge lá pelo fim do século XI, com o chamado amour courtois, e hoje está em rápido declínio. Já houve quem o definisse como paixão ridícula, que não tem razão de ser, fora dos livros de recreação e dos romances. Outros o vêem como o contato de duas epidermes, ou ainda, um estado de anestesia perceptiva.

Falando sobre o namoro, Ortega Y Gasset foi implacável: “estado de miséria mental no qual a vida de nossa consciência se estreita, empobrece e paralisa”. E não fica nisto o pensador espanhol. Vai adiante: “um estado inferior de espírito, uma imbecilidade transitória. Sem anquilosamento da mente, sem redução de nosso mundo habitual, não poderíamos enamorar-nos. A alma de um namorado tresanda a quarto fechado de doente, a atmosfera confinada, nutrida pelos próprios pulmões que vão respirá-la. Quando caímos nesse estado de estreitamento mental, de angina psíquica, estamos perdidos”.

Não sei se por formação ou disposição psicológica, jamais entendi as tais relações exclusivas. Se ao menos fossem mútuas, teriam um certo sentido. Mas o dia-a-dia nos mostra que, em geral, fidelidade só existe da parte da mulher — quando existe. O homem sempre se permite aventuras paralelas, às escondidas. Os raros casos de fidelidade mútua que conheci não preenchem os dedos de uma mão. Como exceções, só confirmam a regra.

Por outro lado, gostar de uma única mulher e excluir as demais constitui, a meu ver, grave ofensa a tantas outras também amáveis. Por que razões seria uma mulher única na vida de um homem? Só por terem cruzado um pelo outro, certo dia, no mesmo ponto geográfico? E se fosse outra a cruzar?

Um amigo, muito impregnado em Dante, diz ter um critério infalível para saber se ama ou não uma mulher. Só existirá amor, quando enxergar naves no olho da amada. E vive me perguntando se alguma vez divisei naves vogando íris a dentro nos olhos de alguém. Não sei se serão os olhos pouco favoráveis à navegação, não sei se será minha miopia, o fato é que jamais vislumbrei as ditas naves.

Além disso, diz uma antiga maldição muçulmana:

“Se uma mulher o chamar para dormir com ela e você não vai, você está perdido. Deus não perdoa isto. Será colocado com Judas no mesmo abismo do inferno”.


 

SUOMI

 

A defesa do idioma é um caso de segurança nacional, disse recentemente Afrânio Coutinho. A afirmação, aparentemente exagerada, nada tem de exagero. Pois uma nação, antes de ser território, é língua e cultura comuns. E quando o idioma está ameaçado, está em perigo a própria nacionalidade.

A História registra um caso, talvez único, de uma nação que passou a existir a partir da criação de um idioma: a Finlândia.

O finês é uma língua relativamente nova, cujos primeiros textos escritos só surgem a partir do século XVI. Mikael Agrícola, bispo protestante de Turku, lançou os fundamentos da língua finesa escrita. Para pregar sua fé aos finlandeses, o bispo redigiu orações e uma tradução do Novo Testamento e de alguns trechos do Antigo, em um idioma derivado dos dialetos do extremo sudoeste do país.

Não foi fácil para Agrícola criar um vocabulário para exprimir a liturgia e expressar categorias de pensamento que os dialetos locais não podiam transmitir. Decalcando vocábulos latinos, alemães e suecos e adaptando-os aos dialetos, na esperança de se fazer entender pelo maior número de finlandeses, o bispo conseguiu, com sua Bíblia, erguer as bases do idioma atual. E aqui a Finlândia surge na História como nação.

Em 1809, após seis séculos de dominação sueca, o território finlandês passou a depender da coroa do Czar. Nesse momento, os patriotas reagiram: “Não podíamos mais ser suecos; não queríamos ser russos, só restava tornarmo-nos finlandeses”. E arregaçaram as mangas, dispostos a um trabalho nada modesto: continuar o trabalho de Mikael Agrícola, transformar o incipiente finês em língua que expressasse os sentimentos de um povo e fosse ouvida no concerto das nações. Hoje, a Finlândia tem voz própria, logo existe.

E se há algo que os finlandeses prezam, este algo é o idioma. Nada de estrangeirismos. Quando surge um fenômeno novo em qualquer campo, a Academia de Letras se reúne para criar a palavra que vai designá-lo. E o nome do autor ficará registrado nos dicionários ao lado da palavra. Assim, Agathon Meurman fabricou, em 1867, a palavra järjestelmä, sistema. Yrjõ Koskinen é autor de ohjelma, programa, que data de 1880. Karl Aejmelaeus criou, em 1847, os vocábulos kohtelias e kohteliaisuus, polidez e polido. E se quase todos os idiomas do mundo designam telefone por nomes bastante parecidos entre si, os irredutíveis finlandeses criaram o termo puhelin (de puhella, conversar), sugerido por um jornal de Porvoo, em 1897.

Imagino um finlandês chegando ao Brasil e ouvindo hot dog por cachorro quente, ou free-way por auto-estrada, ou ainda know-how, perfeitamente traduzível por saber-como, como o fazem os portugueses. Certamente faria o que fez o presidente finlandês, Urho Kekkonen: se internaria Amazônia a dentro, em busca do genuinamente brasileiro.

A visita de Kekkonen, ofuscada pelo brilho das lantejoulas dos atores Henry Kissinger e Raquel Welch, passou praticamente desapercebida por jornalistas e autoridades. Que mais não seja, era um chefe de Estado de um país cuja renda per capita, em 1966, era de 1.861 dólares, índice que os brasileiros nem sonham até o fim do século.

Em meio a isso, o consulado finlandês está realizando, no Museu de Arte Moderna do Rio, uma mostra de trinta designers finlandeses. (O designers fica por conta do redator da notícia, que não tem preocupação alguma com nosso idioma). Falando sobre o desconhecimento da arte de seu país, o industrial Asko Karttunen se queixava: “Para a maioria das pessoas, a Finlândia não passa de uma idéia vaga”.

É possível, Sr. Karttunen. Mas para mim, a Finlândia me fascina por ter sido erguida com o amor de seus filhos ao torrão natal. E a conheci através de Pami, camponesa tão doce quanto o nome, em cujos olhos ainda existia um brilho nostálgico dos mil lagos. Tenho hoje nas mãos um exemplar do Kalevala, e este presente chega a me irritar, pois para mim é como se estivesse escrito em chinês.

Mais que uma idéia vaga, Suomi — este é nome do país em finlandês — é um exemplo a ser meditado e analisado tanto por educadores como por políticos e militares. A pequena Finlândia, de cinco milhões de habitantes, resistiu com êxito tanto ao império sueco — pois a Suécia já foi potência — como ao colosso russo. E sua existência como nação independente se deve fundamentalmente a um fator — a defesa intransigente e apaixonada do idioma. Pode-se dizer que a Finlândia é filha do finês.

Quando permitimos que nossa língua materna seja violada por estrangeirismos, somos filhos do inglês ou filhos de que?


 

HOMENS E ABELHAS

 

Cinco mil delegados abriram, no início desta semana, o XXV Congresso do PC soviético, em Moscou. Paralelamente, membros dissidentes pediram anistia a companheiros presos. Em carta aberta ao secretariado político do Congresso, afirmam: “Há centenas de pessoas que sofrem por suas convicções, por atos não violentos que, em qualquer país democrático, não seriam considerados delitos”.

Nesta mesma data, apicultores brasileiros conseguiram modificar o código genético das abelhas africanas. Submetendo-as a radiações de cobalto, transformaram sua agressividade em produtividade. Os novos espécimes, após a mutação, não mais dão picadas. Dedicam-se agora a produzir, em maior quantidade, mel de melhor qualidade. Tudo pela felicidade da colmeia.

No início deste mês, chegou a Paris Leonid Pliouchtcli, matemático ucraniano. Por exigir uma democratização progressiva do regime soviético, passou maus bocados nas prisões e hospitais psiquiátricos. Diagnóstico: “esquizofrenia entorpecente após a adolescência”. Enquanto exigir democratização é considerado ato subversivo em muitos países, na União Soviética é considerado gesto esquizofrênico. Cada povo com seu uso.

Em um ensaio intitulado O Homem como Fim, Alberto Moravia pergunta:

— Que diferença há entre a colmeia, o formigueiro e o Estado moderno? Tanto na colmeia, no formigueiro como no Estado moderno, formigas, abelhas e homens não passam de meios do formigueiro, da colmeia e do Estado, sendo o fim a colmeia, o formigueiro e o Estado.

Considerando a preservação do Estado como um fim em si, os detentores do poder não se preocupam com meios utilizados para preservá-lo. O indivíduo é apenas uma peça da engrenagem. Se não for útil, deve ser dispensada. Ou eliminada. Pois os fins justificam os meios. Convencionou-se chamar esta prática de maquiavelismo, por ter sido expressada por Maquiavel.

Enquanto a política foi arte, dependia de habilidade, intuição, esperteza. Quando passou a ser técnica, o maquiavelismo, que antes mesmo de Maquiavel era atividade privada de príncipes e governantes, passou a ser o centro de convergência de todas as estradas da política.

Ainda segundo Moravia, mesmo se os Estados Unidos ou a Rússia Soviética quisessem não ser maquiavélicos, mesmo assim não lhes era possível. “Há quatro séculos a política podia já não ser maquiavélica, isto é, ter deixado de ser uma técnica. Hoje não pode deixar de sê-lo, porque ao mundo moderno faltam, completamente, as premissas para uma política que não seja maquiavélica.”

Se as abelhas africanas saem a dar picadas por aí em vez de produzir mel — para a alegria do apicultor, e aqui já vai uma dupla exploração — não faltará o técnico que transformará sua agressividade em produtividade. Da mesma forma, o Estado soviético, como tantos outros, não permite agressões ao sistema, nem mesmo em nome da democracia.

Enquanto apicultores tratam as africanas com radiações de cobalto, os psiquiatras russos tratam os dissidentes, conforme o relato de Pliouchtch, com dolorosas injeções de neurolépticos e de enxofre. O matemático conta ter assistido um episódio em que um dos “doentes” qualificou os médicos de gestapistas. Foi submetido a uma injeção de enxofre. O homem urrou de dor durante 24 horas. Desesperado, quebrou uma janela e tentou degolar-se com os cacos de vidro. Por essa tentativa incorreu em novas punições e foi violentamente espancado. Constantemente perguntava se iria morrer.

— Que visa um tal “tratamento” em tal regime? pergunta Pliouchtch. E responde. — Trata-se de quebrar o ser humano durante os primeiros dias, de destruir sua vontade de resistência. Depois começa o tratamento com os neurolépticos. Constatei em mim mesmo, com horror, quotidianamente, a progressão de minha degradação intelectual, moral e afetiva. Perdi rapidamente o interesse pelos problemas políticos, depois científicos, e por fim por minha mulher e meus filhos.

Enfim, para as abelhas a colmeia é o melhor dos mundos, e provavelmente nenhuma africana protestará contra as radiações de cobalto. Mas o homem, ao tomar consciência de que é meio, protesta. E neste protesto reside a vaga esperança de um mundo mais humano.


 

CERTAS SENHORAS

 

As assim chamadas corporações multinacionais não vendem apenas automóveis, cigarros ou gasosas, mas modos de vida no Terceiro Mundo. A afirmação é dos professores americanos Richard J. Barnet e Ronald E. Müller, e está no livro Global Reach: the Power of Multinational Corporations, obra que está pedindo para ser traduzida no Brasil.

Para começar, os autores mostram que as “empresas multinacionais” de multi só têm o prefixo. Não pertencem a muitos países, nem são dirigidas por eles. De modo geral, têm capital e executivos norte-americanos. E através da publicidade dos produtos lançados nos países subdesenvolvidos, estas empresas comercializam, com ótimos resultados, os mesmos sonhos que vendem nos países industrializados.

Assim, quando você compra um cigarro, não está comprando um cigarro. Mas toda uma aura de sofisticação e riqueza que envolve a imagem do cigarro. Quando compra um carro, não está comprando um carro. Mas um símbolo de elegância e status. Os autores fornecem um exemplo patético dos efeitos desta publicidade. Em certas aldeias peruanas, pedaços de pedra são polidos e pintados em forma de rádios transistorizados. Como os camponeses são demasiado pobres para comprar um verdadeiro, carregam uma dessas pedras como sinal de status.

Um outro exemplo: famílias pobres da América Latina adquirem caríssimos comestíveis patenteados para bebês, quando poderiam comprar leite recém tirado a preço muito inferior. É o caso da maizena. Para estimular seu consumo, a publicidade reproduz a imagem de um robusto bebê. Desta maneira, insinua que o produto, cuja única função é enganar o estômago do pobre, é alimento de alto teor nutritivo.

Em exemplos, os autores são pródigos. Outro: nas regiões mais necessitadas do México, onde as bebidas gasosas ocupam um lugar importante no regime alimentar, as marcas mais consumidas são Pepsi e Coca-Cola, em detrimento das nacionais. Em certas aldeias, a família vende frangos e ovos para comprar Coca-Cola para o pai, enquanto as crianças sofrem de falta de proteínas. Quando, do ponto de vista nutricional, beber Coca-Cola é uma forma de consumir açúcar importado a preço elevado.

Segundo os autores, os anúncios publicitários veiculados nos países pobres encerram esta sutileza: “Nem vocês nem suas criações valem grande coisa. Nós vamos vender-lhes uma civilização”. A americana, naturalmente.

Para Barnet e Müller, o impacto político que a ideologia de mercado provocou nos despossuídos deste século é comparável ao do estado eclesiástico nos séculos passados. Só que, enquanto a Igreja apaziguava os infelizes da terra prometendo-lhes uma vida futura e celestial, as agências mundiais de publicidade lhes oferecem alívio e consolo, aqui e agora, em troca do consumo.

Por estas e por outras, jamais entendi a figura do publicitário de esquerda.

Conheço não poucos publicitários bem pensantes que, em mesa de bar, vociferam contra multinacionais, imperialismo, Estados Unidos e o resto. Qualificam de criminosa a atuação da ITT no Chile, de corruptos os métodos da Lockheed, de monopolistas as atividades da Exxon. Como empresários, alimentam o sonho de um dia ter em mãos uma conta da menor das multinacionais. Ou até mesmo de uma firmazinha americana de porte médio.

Entre três ou quatro amigos, em meio a uma rodada de chope, são autênticos revolucionários, capazes dos mais extremados radicalismos... teóricos. Entre milhões de consumidores, através do rádio, televisão e jornais impõem a sugestão de que uma dona de casa jamais será feliz se não tiver tais e tais eletrodomésticos. De que um homem jamais será bem sucedido se não tiver o carro tal. Ou de que você será um fracasso com as mulheres se não fumar determinada marca de cigarro. E ainda há cientista que não identificou até agora os agentes do câncer!

Nosso amigo, o publicitário de esquerda, se justifica: “Preciso sobreviver”.

Conheço certas senhoras que têm a mesma humana necessidade. Mas, quando em serviço, mantêm certo recato: usam um nome de guerra.


 

CARTA DE AMOR PARA ETELVINA*

 

Não é fácil contentar leitores. Desde que comecei a ocupar este espaço, tenho recebido manifestações do mais vivo agrado e do mais violento desagrado. Não existiria mistério algum nisto se as mesmas manifestações partissem sempre das mesmas pessoas. Mas tem ocorrido que leitores que gostaram da crônica de ontem, detestam a de hoje e abominarão a de amanhã.

Por exemplo: escrevi que o macho revela sua incompetência quando mata a companheira que o troca por outro. Leitoras vibraram e leitores me chamaram de manso. Afirmei outro dia que gostar exclusivamente de uma mulher é grave ofensa às demais. Leitores vibraram e leitoras me chamaram de promíscuo. Escrevi sobre Portugal. Fui taxado de fascista. Escrevi sobre Kissinger. Fui catalogado como esquerdista. Comentei a intolerância da Igreja em relação aos homossexuais. Houve quem me chamasse de paladino. Tomasse posição contrária, seria pichado como intolerante.

Realmente, não é fácil contentar leitores. Hoje, numa atenção especial aos que me estimulam com suas críticas, quer favoráveis, quer desfavoráveis, tentarei agradar a maior gama possível de leitores.

 

POEMINHA DE ESQUERDA

Queria te falar de flores
nesta manhã de sol, Etelvina.
Mas é difícil porque Kissinger,
ave rapina
Com garras afiladas,
Ronda a América Latina.

Por isso, em vez de flores ou amores,
Te falo, Etelvina amada,
Das insuportáveis dores
De Nuestra America explorada.

POEMINHA DE DIREITA

Queria te falar de flores
Nesta manhã de sol, Etelvina.
Mas é difícil porque Kossiguin,
ave rapina
Com garras afiladas,
Ronda América Latina.

Por isso, em vez de flores ou amores,
Te falo, Etelvina amada,
Dos futuros horrores
Desta América ameaçada.

POEMINHA PORCO-CHAUVINISTA

Queria te falar de horrores
Nesta manhã de sol, Etelvina.
Mas é difícil porque
Minhas garras de rapina
Buscam sangue em tuas carnes,
Sem ligar para doutrinas.

Por isso, em vez de horrores ou dores,
Te falo, Etelvina amada,
Sem alimentar pudores,
Desta paixão alienada.

POEMINHA FEMINISTA

Queria te falar de amores
Nesta manhã de sol, Etelvina.
Mas é difícil porque
Tua alma feminista
Não admite cantadas
Deste porco-chauvinista.

Por isso, em vez de amores,
Te falo, Etelvina amada,
Da igualdade entre os sexos
E mulheres emancipadas.

(*) Paródia a um poema de Tarso Genro dedicado a Luciana Genro.


 

O RABO DO TIGRE IMORTAL

 

A vida imita a arte, disse Oscar Wilde. Durante muito tempo, este sofisma do escritor inglês gozou de grande prestígio entre poetas e sonhadores. Em verdade, não é a realidade que vai ao encontro de determinadas obras. Mas sim o autor destas que antecipa, com sua sensibilidade, notícias do futuro.

“Cada homem vivo é torturado, hoje em dia, pelo destino dramático de sua época”, diz Kazantzakis em sua autobiografia. “E o criador mais que todos. Existem certos lábios e pontas de dedos sensíveis que sentem um formigamento ao aproximar da tempestade, como se fossem espetados por milhares de agulhas. Os lábios e pontas do dedo do criador são desse tipo. Quando o criador fala com tanta certeza da tempestade que pesa sobre nós, o que fala não é a sua imaginação mas os lábios e as pontas dos dedos, que já começaram a receber as faíscas iniciais da tempestade. Nossa época há muito que penetrou na constelação da angústia”.

Ao que tudo indica, não serão exatamente cor-de-rosa as próximas décadas da humanidade. Pois toda uma literatura apocalíptica e desesperançada tem se desenvolvido a partir da I Guerra Mundial e do evento da fissão nuclear.

Muitos estarão lembrados do Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick. O filme baseou-se num livro de Peter George, intitulado Dr. Strangelove ou Como aprendi a não me aborrecer e amar a bomba. Nesta sátira sinistra, um general do Pentágono, preocupado com a pureza e essência de seus “fluidos naturais”, resolve desfechar um ataque nuclear contra a União Soviética. O general, que só bebia água da chuva ou álcool, fracassara em seus encontros íntimos com a amante. Como descobriu — felizmente a tempo — que sua impotência era devida a um ardiloso plano comunista de fluoretação da água, resolveu retaliar atomicamente os russos. A conspiração era óbvia: o flúor era introduzido nos preciosos fluidos corporais sem o conhecimento nem a anuência dos indivíduos. Assim operavam os comunistas...

Por um encadeamento de incidentes imponderáveis que, segundo uma certeza estatística não devem ocorrer mas acabam ocorrendo, o ataque nuclear não pode ser evitado. Um bombardeiro furou o sistema soviético de segurança aérea. Nesse momento, o embaixador russo nos EEUU anuncia o apocalipse: os russos, para não ter mais gastos na corrida armamentista, haviam construído o instrumento perfeito de dissuasão, a Máquina do Juízo Final. Diante de tal máquina, estava eliminado o perigo da guerra, pois a menor explosão atômica acionaria automaticamente um complexo sistema que destruiria toda vida no planeta. Para que tal sistema fosse eficiente, sua existência deveria ser de conhecimento público. Mas como o premier russo adorava surpresas, estava reservando a notícia para o desfile do 1.° de Maio. E a máquina fora calculada para explodir, mesmo quando alguém tentasse desarmá-la...

A catástrofe não pode ser evitada. Aqui entra em cena o Dr. Strangelove, cientista alemão refugiado, que antes se chamava Merkwürdigichliebe. Para Dr. Strangelove, nem tudo estava perdido. No fundo das minas, algumas centenas de milhares de pessoas poderiam se refugiar, vivendo e procriando durante cem anos, quando teriam desaparecido as radiações letais. Naturalmente, as mulheres seriam escolhidas por seus dotes sexuais para garantir uma boa fertilidade. Haveria dez para cada homem. E, a fim de manter os princípios de liderança e tradição, era condição basilar que os homens do governo e das forças armadas fossem incluídos nessa seleção.

Por enquanto, as decorrências da fissão atômica têm permanecido no campo da ficção. Mas as ficções têm insistido sombriamente em girar em tomo da bomba. E já não são apenas os ficcionistas a preocupar-se com o assunto. Falando da proliferação das usinas atômicas, diz o biólogo Charles Birch, da Universidade de Sidney: “É como segurar pelo rabo um tigre imortal. Cedo ou tarde, cansará a mão da humanidade, com resultados fatais”.

E quem monta num tigre, dele nunca mais desmonta.


 

NINGUÉM PÕE NADA PARA FORA,
SE NÃO TEM NADA POR DENTRO

 

La guitarra es palo hueco, y pa tocar algo bueno, el hombre debe estar lleno de claridades internas, diz Atahualpa Yupanqui, payador portenho. E adverte:

...al pulsar un instrumento,
hay que dar con sentimiento
toda la fuerza campera.
Pero nadie larga afuera
si no tiene nada adentro...

Me ocorrem estas coplas de Yupanqui a propósito da reapresentação das canções premiadas na última Califórnia da Canção Nativa. Simpatizo fortemente com as intenções do movimento por ver nele uma reação a uma cultura importada, quer do Rio ou São Paulo, quer de Paris ou New York.

Mas o que vi, terça-feira passada, na Assembléia Legislativa, foi mais cerebração de intelectuais urbanos do que manifestação autenticamente nativa. A platéia — onde não vi operários nem homens do campo, mas universitários e profissionais liberais — delirou com as canções. Canções compostas, de modo geral, por universitários e profissionais liberais. De elite para elite.

De intelectuais para intelectuais. Nas letras das canções, de elementos nativos só ouvi vagas imagens poéticas, sem qualquer vinculação com a realidade do interior gaúcho. Os aplausos foram entusiastas. Como dizia Yupanqui,

si uno pulsa la guitarra
pa cantar cosas de amor,
de potros, de domador,
de la sierra y las estrellas,
dicen: Oué cosa más bella!
Si canta que es un primor!

Pero si uno, como Fierro,
por ahi se larga opinando
el pobre se va acercando
con las orejas alertas,
y el rico vicha la puerta
y se aleja reculando.

Contei outro dia como conheci Martin Fierro, este poema que já tem um século e viverá enquanto viverem homens nestas plagas. Não foi em auditório, tampouco em disco ou rádio. Não foi nem mesmo em livro. Ouvi seus versos das bocas desdentadas de peões analfabetos, acompanhados de gestos feitos por mãos endurecidas por calos. Um poema escrito há um século ainda hoje é recitado de cor nos galpões, pois está no coração do homem do povo. Volto a Yupanqui:

Se pueden perder mil trovas
ande se canten quereres,
versos de dichas,
placeres, carreras y diversiones;
suspiros de corazones
y líricos padeceres.

Pero si la copla cuenta
del paisanage la historia
ande al peón vueltea la noria
de las misérias sujridas,
ésa, se queda prendida
como abrojo en al memória!

Os anos passam e Martin Fierro cresce. Quanto a estas doze canções premiadas na Califórnia, duvido que alguém — além de seus intérpretes — lembre suas letras daqui a um ano.

Um grave erro está sendo cometido pelos integrantes da Califórnia: não basta ter nascido no Rio Grande do Sul para ser gaúcho. Poderão interpretar sentimentos nativos, intelectuais que se criaram lendo Pato Donald e Batman e brincando de cowboy? Talvez conseguissem criar excelente música urbana, pois são, antes de tudo, homens urbanos.

Mas quando, na História, intelectual urbano conseguiu criar música nativa?


 

SAUDADES DA IDADE MÉDIA

 

Há gestos que vencem os séculos. Tocam fundo na alma humana e não há censura que os apague. Viajando pelo interior da Espanha, de Sevilha a Badajoz, deparei-me com um destes gestos. Esboçado há mais de quatro séculos.

O ônibus constituía quase uma casa de família. O cobrador, um espanhol imenso e temperamental, sentado sobre o motor discursava e opinava sobre os homens e o mundo, puxava assunto, reservando sempre para si a última palavra. Julgava a Espanha atual excessivamente liberal, um caos onde cada um fazia o que bem entendia. Bons tempos eram os da Idade Média, onde por qualquer deslize um homem ia para a fogueira.

Em sua casa, o espanhol guardava com carinho uma gravura do século XV, que ilustrava um fato ocorrido em Sevilha. Uma mulher traíra o marido. Segundo os costumes da época, ambos seriam enforcados. O marido, para salvar a mulher da forca, perdoou os dois.

Mas os sevilhanos não lhe perdoaram este gesto de amor. Foram apedrejados e expulsos — os três — da cidade, em meio aos insultos da multidão, com latas atadas ao pescoço. A gravura ilustrava esta cena e trazia a inscrição:

“Es considerado cabrón aquel que permite que su mujer con un otro concubine”.

Gesto forte, o deste sevilhano, ao perdoar mulher e amante. Quinhentos anos depois, ainda irritava visceralmente o apoplético cobrador de ônibus. E não só o cobrador. A atitude daquele homem, cujo nome foi esquecido mas não o gesto, neste exato momento deve estar provocando uma cava inquietação nos mecanismos psíquicos de meu caro leitor. Amigos já reclamaram que insisto demais neste tema. Em verdade, não é o cronista que insiste, mas o tema que se impõe. Senão vejamos.

Na edição de ontem deste jornal, duas notícias na mesma página nos relatam a absolvição de dois assassinos. Em Novo Hamburgo, foi absolvido pelo tribunal do júri um homem que matou sua mulher por esta ter compartilhado o leito com outro. E em Bagé, por ter matado sua amante, um réu foi absolvido no tempo recorde de 30 minutos. 20 minutos para acusação e defesa, 10 para deliberação dos jurados e sentença. A absolvição foi por unanimidade.

Na mesma página, há notícias de outros dois júris. Após nove horas de debates, foi condenado, em Caxias do Sul, a seis anos de prisão, um homem que matou um parceiro de jogo de cartas. Em Cruz Alta, um réu foi condenado a sete anos de reclusão por haver matado seu vizinho.

Nesta suspeita bolsa de valores do Tribunal do Júri, há diferentes cotações para a vida de um homem e para a vida de uma mulher. Quando um homem é a vítima, longos são os debates. Quando uma mulher é a vítima, bastam 30 minutos para absolver, por unanimidade, o réu. O desconsolado espanhol que tinha saudades da Idade Média, certamente se sentiria em seu elemento neste Brasil 1976.

Tenho afirmado repetidas vezes — e continuarei repetindo enquanto tais absolvições ocorrerem — que o homem contemporâneo, não tendo dimensões para aceitar a nova mulher que surge, mata. E mata sem preocupação alguma, pois está certo de ser absolvido. E os jurados o absolvem com uma intenção — a de alertar as demais mulheres para que permaneçam submissas a seus amos e senhores. Ê o crime institucionalizado e sacramentado com a ridícula alegação de legítima defesa da honra.

O fato é sintomático. Enquanto a mulher emerge das trevas medievais, o homem busca abrigo no obscurantismo e na violência. Mais direitos conquista a mulher, maior nostalgia sente o homem pela Idade Média.

Mas a Idade Média já está sepultada sob a poeira da História. E tanto o homem que mata sua mulher para lavar a honra, como os jurados que o absolvem, são cúmplices de uma farsa encenada pelo macho, para defesa de sua autoridade. Mas quando autoridade exige violência para sua preservação, não é mais autoridade.

O homem não é mais Senhor.


 

PROCURAM-SE HOMENS

 

“Machos existem aos montes”, me confessava uma amiga. Homem, que é bom, não se encontra nem pra remédio. Às vezes, dá vontade de por um anúncio nos jornais — Procuram-se Homens — e ver se aparece algum”.

Entre mulheres que não dependem de pai ou marido para sustentar-se, esta queixa é hoje lugar comum. Entre profissio­nais liberais o problema se agrava. E entre estas, médicas e advogadas são as que mais sofrem esta carência. Quase toda médica ou advogada que conheço é solteira ou desquitada, e talvez o leitor tenha experiência semelhante. Quanto às casa­das, tudo é uma questão de dar tempo ao tempo... Pois os homens, de modo geral, têm medo de mulheres independentes.

A amiga de que falo, mulher livre e sem preconceitos, vive em solidão quase monástica. Não que goste de viver só. Como toda mulher, necessita de sexo e afeto masculinos. Mas suas tentativas de relacionamento honesto com homens não foram exatamente exitosas. Pois todo homem, dentro ou fora do casamento, ao relacionar-se com uma mulher pretende domi­ná-la. Se não domina, foge. Pois o homem não aceita a idéia de uma mulher independente. Quando se depara com uma bate em retirada. E a chama de promíscua.

Da profissional, o homem não tem medo. Pelo contrário, mostra-se extremamente viril. Pois a domina com o dinheiro. Não está se relacionando com uma mulher, mas com uma mercadoria pela qual pagou à vista. E mercadoria não constitui ameaça.

Da esposa, também não. Pois escolheu para mãe de seus filhos uma mulher sem outra capacitação profissional que a de doméstica. Esta mulher não ousaria desafiar seu mando, pois poderia ser jogada na rua. E se ousar relacionar-se com outro parceiro, arrisca-se a receber um tiro ou punhalada. E o mari­do, ao matá-la, não arrisca nada, pois os jurados estão aí para absolvê-lo.

De comerciárias, industriárias, ginasianas ou colegiais, tam­pouco o homem tem medo. São moças humildes por sua pró­pria condição econômica, ou ingênuas em razão da pouca idade. E ele as compra com a ostentação do carro, pequenos presen­tes e esticadas noturnas. Ou ainda, com o apartamento mon­tado. Quando cansa de usá-las joga-as no lixo, como a um papel usado.

Mas a mulher que ganha com seu trabalho seu sustento esta não se vende. Nem por dinheiro, nem por presentinhos. Não se deixa dominar. E aqui o homem recua. Pois não ad­mite ouvir: “Hoje não vou te encontrar porque tenho de sair com outro amigo”. Ou: “Hoje vou tomar um chope com algu­mas colegas”. Ou ainda: “Não me serves. Boa noite!”

Ocorre então a ironia: as mulheres mais disponíveis e mais desejosas de uma companhia masculina acabam se reco­lhendo ao isolamento e à desconfiança. A andar em má com­panhia, preferem ficar sós. Pois o macho não admite ver sua companheira como igual. Só a aceita quando inferiorizada.

Alimento profundo carinho por estas mulheres solitárias que muitas vezes têm de afogar no álcool o desespero de uma noite vazia. Enfermas de amor, como canta Salomão, “seus seios são como cachos da vinha”, sem que haja vinhateiro para colhê-los. “Seus lábios destilam o mel, há leite e mel sob suas línguas”. Mas não há quem mereça sorvê-los.

Pois o homem prefere a boca insossa da mulher dócil.


 

ESPERANDO UM GURU

 

Mais dogmático que um católico, só mesmo um marxista. Se o Vaticano afirma que Maria, à semelhança de certos pulgões, concebeu pela partenogênese, é anátema para o católico duvidar deste dogma. Se Moscou defende que a sociedade sem classes só pode ser atingida através da ditadura do proletariado, quem ousar aventar outra hipótese será expurgado pelo Partido. Muita gente morreu na fogueira por duvidar da virgindade de Maria. E muita gente morreu em prisões por contestar a ditadura do proletariado.

O homem dogmático jamais pensa por si próprio. É necessário que outro pense por ele. E quando elege um mestre qualquer, tudo que o mestre diz é verdade absoluta. Quando o mestre se contradiz, o cérebro do dogmático entra em pane. Enquanto não encontra um novo mestre, vive em conflito consigo próprio.

Não é pois por acaso, que as esquerdas brasileiras estão traumatizadas pelo rompimento dos dois mais influentes PCs europeus — o francês e o italiano — com Moscou. Sem saber por que linha optar, as esquerdas estão à espera de um guru com suficiente carisma para guiá-las. Talvez ressurja agora o prestígio de Roger Garaudy, que foi expulso do Partido Comunista Francês por rebelar-se contra sua ortodoxia.

Impossível manter diálogo com um dogmático, pertença ele a esta ou àquela religião ou ideologia. O dogmático não vê a realidade com seus olhos, mas com os olhos do mestre. Se o mestre incorreu em equívoco, azar da realidade. Se a realidade se transforma, azar da evolução. A visão do mestre não pode ser contestada.

Conheço vários dogmáticos, seguidores dos mais diferentes dogmas. Em bate-papos ocasionais desisti, com o tempo, de tentar qualquer dialogo. Se afirmo, por exemplo, ter conhecido um país onde ninguém passa fome e os direitos humanos são respeitados, o dogmático não se contenta com estes fatos. Quer saber se o governo é de direita ou esquerda, se a propriedade é privada ou estatal, se a ideologia é esta ou aquela.

Se determinado país oferece a todos seus cidadãos condições dignas de um ser humano, isto não basta ao marxista. Tampouco ao católico. O primeiro quer saber se a propriedade é coletiva e se o proletariado está no poder. Sem estas duas condições não concordará com o regime, embora os direitos à alimentação, saúde, educação e expressão do pensamento sejam assegurados a todos. Já o católico está preocupado em saber se todos acatam a autoridade da Igreja, aceitam o Papa como representante de Deus na Terra, respeitam a ética sexual católica, etc.

Em ensaio intitulado Carta Aberta a todos os Surrealistas, afirma Henry Miller:

“Reunir homens em torno de uma causa, uma crença, uma idéia, sempre é mais fácil do que persuadi-lo para que vivam suas próprias vidas”.

Em toda pessoa que se apega a doutrinas, vejo medo e incapacidade de olhar para dentro de si. Homem que segue cegamente o pensamento de outro não pensa, apenas segue. É um seguidor, e não um indivíduo. Tanto Cristo como Marx, tanto Freud quanto Pavlov, deram importantes contributos à construção do edifício humano. Mas cometeram também seus erros, pois eram homens.

Mas o dogmático não concebe que o mestre possa errar.

“Infelizmente não há nada, absolutamente nada mais eficaz que crer em si mesmo”, continua Miller. “Quando um movimento morre, nada fica senão a lembrança do homem que originou o movimento, do homem que acreditava no que estava dizendo, no que estava fazendo. Os outros não têm nome; só contribuíram com sua fé em uma idéia. E isso nunca é bastante”.


 

OS IRMÃOS SEJAM UNIDOS

 

Os cegos duplicarão em 25 anos, avisa a Organização Mundial da Saúde. Se não forem tomadas medidas preventivas, especialmente nos países mais pobres, ao final do século, os cegos serão em número de 20 milhões, em lugar dos 10 milhões atuais. Apesar destas cifras, especialistas da OMS declaram ser muito difícil fazer um cálculo acertado de quantas pessoas cegas existem atualmente no mundo.

Na Argentina, mais uma bomba explodiu matando uma pessoa e ferindo 28. Aliás, terrorismo virou rotina naquele país. A única novidade de cada dia é o número e a cor política das vítimas.

Segundo as estatísticas da OMS, existem 90 cegos para cada cem mil argentinos. Olhando os números do terror, julgo muito tímido o cálculo da OMS.

Ernesto Sábato, sem dúvida alguma o mais lúcido escritor latino-americano vivo, preocupa-se obsessivamente com o avanço dos cegos. Em sua novela Sobre Heroes y Tumbas, há um capítulo fascinante intitulado Informe sobre Ciegos. Nele, Fernando Vidal Olmos, investigador do Mal, vê nos cegos os componentes de uma seita terrível e poderosa, cuja organização e alvos pretende investigar. Olmos, em sua paranóia que por vezes tem assustadoras coincidências com a realidade, vê nos cegos “chantagistas morais que abundam nos subterrâneos, por essa condição que os aparenta com os animais de sangue frio e pele resvaladiça que vivem em covas, cavernas e porões”.

A preocupação de Sábato com os cegos se desenvolve por páginas e páginas da novela e está presente em toda sua obra. Confessa não saber precisamente o que quer dizer com o Informe sobre Ciegos: “Não sei bem porque o escrevi. Comecei timidamente, é preciso dizer, não me animava de todo, mas à medida que me fui compreendendo e vencendo minhas próprias resistências — posso dizer que é a parte do livro que escrevi com mais violência — deixei-me levar pelo que me diziam meus instintos, pelo que me ditava meu mundo interior”.

Muitas interpretações admite a parábola de Sábato. Ao cavaleiro perdido na noite, basta soltar as rédeas ao cavalo para que este encontre o caminho de volta. Dando rédeas soltas a uma imagem que o obcecava, o escritor argentino propõe uma análise de nosso tempo a partir da idéia de um mundo dominado por cegos. Idéia que nada tem de imagem, mas é a realidade de cada dia.

A Argentina, por exemplo. Houve momento em que invejei os argentinos por sua consciência política. Em vez de futebol ou samba, preocupavam-se com problemas sociais, econômicos e artísticos. Enquanto o brasileiro lia Chico Anísio e Arthur Hailey, o argentino lia Borges e Sábato. Enquanto o brasileiro reverenciava uma cultura importada, o argentino se preocupava em elaborar sua própria cultura. Enquanto o brasileiro discutia sobre o menisco de um jogador qualquer de futebol, o argentino se preocupava com a saúde de Perón e o futuro do país.

Contando isto e outras coisas a um argentino, ouvi sua confissão, seu cansaço de violência:

“Olha, quando vejo dois, três cadáveres deformados por dia, vontade é o que não me falta de discutir samba e futebol”.

Cegos pelo ódio na luta pelo poder, os argentinos se trucidam entre si quais inimigos seculares. Cegos pela luta ideológica, não ouvem o apelo de Fierro:

Los hermanos sean unidos
Porque esa es la ley primera —
Tengan unión verdadeira
En cualquier tiempo que sea —
Porque si entre ellos pelean
Los devoran los de ajuera.


 

O SÉCULO DO CÂNCER

 

Você sabe perfeitamente que o cigarro é um poderoso agente cancerígeno. Mesmo assim você fuma, pois é um homem que sabe o que quer. Enfim, se sabe o que quer, deve saber qual tipo de câncer prefere. Se você quer suicidar-se lentamente, isto é uma escolha sua.

A lei pune severamente a indução ao suicídio. Curiosamente, fabricantes de cigarros e agentes publicitários vivem em plena liberdade. E chupar câncer é símbolo de status.

Na França, pelo menos, o governo achou que cem mil mortos por ano pelo tabagismo é muita coisa. E proibiu a publicidade de cigarros através da televisão, rádio, cartazes, salas de espetáculos, como também a distribuição gratuita dos mesmos. Exceção foi feita aos jornais e revistas, em função da difícil situação financeira por que passa a imprensa.

Suponhamos que você toma consciência disto e não quer arriscar-se a ser premiado. E abandona o hábito de fumar. Nem por isso estará livre do risco.

Fumar é supérfluo. Mas comer é uma necessidade. E ao comer carne e vegetais, ou ao tomar leite, você já está concorrendo a esta sinistra loteria. Pois agricultores empregam como inseticida o DDT, outro comprovado agente cancerígeno. Seus resíduos se acumulam nos vegetais e na carne e no leite dos animais que pastam o capim borrifado com DDT. Nos Estados Unidos, onde é fabricado, o DDT está proibido. O remédio é exportá-lo a outros países que não se preocupem com o fato de estar importando câncer.

Mesmo que você abolisse — como muita gente está fazendo — esse hábito burguês de comer todos os dias, nem assim estaria livre de riscos. Pois teria pelo menos de beber. E segundo o engenheiro químico Millo Rafin, a água que estamos bebendo possui nitritos, que unidos aos resíduos protéicos formam nitrosaminas. E estas produzem o câncer. Os nitritos decorrem da cloração da água, processo também proibido nos Estados Unidos, mas utilizado por nós.

Foi Ivan Illitch, se não me engano, quem afirmou ser errônea a classificação de doenças que utilizamos. Segundo este estudioso, as doenças devem ser classificadas sociologicamente. Assim, não mais teríamos doenças do coração, dos pulmões, dos genitais ou da pele, mas doenças da opulência e da miséria, da vida sedentária ou profissional, da fartura ou da subnutrição.

Médicos e cientistas, antes tão preocupados em remendar órgãos doentes, começam a voltar os olhos para as causas sociais das enfermidades. Segundo recente reportagem da revista Newsweek, uma dezena de Prêmios Nobel, reunidos pelo Instituto Nacional do Câncer (EEUU) e Sociedade Americana do Câncer, passaram a perguntar-se se o câncer não seria causado pelo próprio homem.

Não me parece ser necessário ostentar a láurea de Prêmio Nobel para chegar a concluir pelo óbvio. Wilhelm Reich, em meados deste século, vociferava furioso:

“Os imbecis andam em busca de um vírus, perdendo um tempo precioso para a medicina”.

Reich, que foi expulso de vários países europeus e acabou morrendo numa prisão dos Estados Unidos, até hoje é considerado louco. Quando a ciência oficial chegar às suas mesmas conclusões, talvez seja entronizado como sábio.

Estima-se hoje que 85 por cento dos casos de câncer são produzidos por fatores ambientais desencadeados pelo próprio homem. Entre eles: cigarro, organoclorados, inseticidas, aerosóis, uma longa lista de medicamentos (quase todos fabricados e proibidos nos Estados Unidos e vendidos livremente aqui), aviões supersônicos e outros que não me ocorrem agora.

Quando a própria água que bebemos é potencial agente cancerígeno, três conclusões se impõem:

— Vivemos no século do câncer.

— O homem está destruindo entusiasticamente a si próprio.

— Se você quer fugir a este risco, troque de planeta.


 

PAJARO PABLO

 

As esquerdas portuguesas — e alguns simpatizantes brasileiros — estão surpresas com as declarações feitas por Mário Soares a uma jornalista francesa. Pois o secretário geral do Partido Socialista português ousou confessar que gosta de uma boa mesa num bom restaurante, bons hotéis, teatro, cinema, balé e mulheres bonitas. Mário Soares inclusive admite: “Os meus hábitos são daqueles a que se chama, vulgarmente, burgueses”.

Gostei das declarações de Mário Soares, embora não participe de suas preferências. Boas mesas não me atraem muito. Acho o teatro muito teatral. Só vou ao cinema quando há um bom filme, isto é, raramente. Se contar nos dedos as vezes que fui a um balé, vai sobrar um monte de dedos. Quanto a mulheres bonitas, o dia-a-dia me ensinou fartamente que não são as mais interessantes.

Quanto a bons hotéis, me ocorre contar uma estorinha. Em Paris, parei certa vez num hotel que já teve como hóspedes Nicolas Guillén, Jorge Amado e Pablo Neruda. Não era hotel de luxo, pelo contrário. Não tem elevador, os corredores estão invariavelmente sujos, paredes rachadas aqui e lá, embora os quartos e camas sejam limpos. Conversando com a proprietária, ouvi suas queixas. Entre outras, me contou que Neruda só foi seu hóspede quando estudante pobre. Depois que virou gente fina, o decantado paladino dos pobres e oprimidos de todo o mundo só a visitava rapidamente por cortesia. Pois Neruda, mesmo antes de ser embaixador do Chile junto à França, já gostava de bons hotéis, bons restaurantes e boas mesas.

Que Mário Soares goste de boas mesas, isto não me espanta. Que me conste, nunca pretendeu ser algo mais que um pacato burguês. Quanto a Neruda — comunista convicto, membro influente do Partido, defensor das massas oprimidas, revolucionário ardente — não me soam bem suas preferências por boas mesas.

Neruda cantou a fome dos operários... nos intervalos entre lautas refeições. E enquanto Mário Soares apenas declara gostar de boas mesas, Neruda — Pajaro Pablo, como se autodenominava — entoou odes aos bons pratos. Vejamos algumas:

Ode ao Foie Gras: Hígado de angel eres! / Suavíssima substancia / peso puro / del goce, / sacrosanto / esplendor de la cocina, / compacto es tu regalo, / es intensa tu estática riqueza, tu forma / un continente diminuto, / tu sabor toca el arpa/ del paladar, extiende / su sonido a los tímpanos del gusto / y desde la cabeza hasta los pies / nos recorre una ola de delicia.

Excerto de um poema ao vinho 'Tokay: Doy al tokay translúcido / la copa de mi canto: / cae, fuego del âmbar, / luz de la miel, / camino / de topácio, / cae sin que termine / tu cascada, / cae en mi corazón, en mi palabra, / y que la transparência / de tu verdad de oro / enseñe a mis raices / a elevar la dulzura / desde la seca sombra subterranea / hasta la rectitud del mediodia.

Não entendo o escândalo das esquerdas ante as declarações do burguês Mário Soares. Como também não entendo que jamais tenham condenado Neruda, gourmet e gourmand. Que, não satisfeito em degustar e cantar a boa mesa, chegou a publicar um livro, Comiendo en Hungria, — escrito em parceria com Astúrias, outro revolucionário — do qual afirmou:

— Se há livros felizes — ou livrecos, libretos ou livrinhos — este é um deles. Não só porque o escrevemos comendo senão porque queremos honrar com palavras a amizade generosa e saborosa.

Neruda, o revolucionário, canta odes ao foie gras, leva a mais burguesa das vidas e ninguém reclama. Pelo contrário, é patrono das esquerdas. Soares, que se confessa burguês e diz gostar da vida mansa, como todo bom burguês, provoca histerias nas esquerdas quando admite publicamente esta preferência.

Não entendi.


 

PROCURA-SE

 

— indivíduo de estatura média e compleição robusta
— tez morena
— barba e cabelos longos
— aparenta uns trinta anos
— conversador
— sem profissão definida
— não porta carteira identidade, não tem CPF, nem nesmo certidão de nascimento
— não possui residência fixa
— freqüentador de maus ambientes
— vive rodeado de marginais, pescadores e prostitutas
— olhar inflamado e comportamento anormal
— paranóico total
— egocêntrico ao extremo: quanto mais acreditam nele, mais ele acredita em si próprio
— mania de Messias
— como não exerce profissão alguma, deve ter um grande número de cúmplices que o sustentam
— julga-se o centro do universo
— está tão convencido disso que convence a todos que lhe dão ouvidos
— anda falando mal dos ricos e suscitando a luta de classes
— mistifica as multidões com ilusionismos baratos, como andar sobre as águas e multiplicar pães e peixes
— proclama publicamente que não veio trazer a paz, mas a espada
— anarquista e místico, não admite o princípio da auto­ ridade, nem o Estado
— incita o povo contra comerciantes e tabeliões
— de temperamento violento e explosivo, agrediu fisica­ mente inocentes vendedores de souvenirs num templo
— pouco se sabe de seu comportamento sexual, mas é de conhecimento público sua intimidade com uma mulher de Magdala, de nome Maria
— anda proclamando por aí que quem tem duas camisas deve dar uma ao que não tem nenhuma
— como todo megalomaníaco, sofre de complexo de perseguição
— de índole rabugenta, chama todo mundo de hipócritas, fariseus e sepulcros caiados
— extremista e esquizofrênico, acha que quem não está com ele está contra ele
— carismático e virulento, é adorado por pessoas que se matam entre si, em nome dele
— vocifera contra sacerdotes e defende adúlteras
— nada possui além da roupa do corpo
— como nada tem a perder, é capaz de tudo
— anda desarmado, mas torna-se perigoso quando fala
— se julga o bom
— no auge de sua loucura, passou a proclamar-se o filho de Deus
— anda curando sem habilitação legal para o exercício da medicina
— para driblar a censura, fala por metáforas
— já foi preso, espancado, crucificado, morto e sepultado mas nem assim se regenera
— demagogo irrecuperável, nem na cruz deixou de lar­ gar frases de efeito
— foi mil vezes morto e mil vezes ressuscitou
— anda por aí incógnito, envolto em mil disfarces
— aparentemente inofensivo, tem levado homens à lou­cura e ao martírio
— de nome Jesus, também atende pelo apelido de Cristo
— Acautele-se. Ele tem mil faces e pode estar a seu lado.


 

©2013 — Janer Cristaldo
jcristaldo@gmail.com

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Setembro 2013

 

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