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FLECHAS CONTRA O TEMPO

Janer Cristaldo

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Flechas Contra o Tempo
Janer Cristaldo

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© 2001-2006 Janer Cristaldo


Flechas
Contra o Tempo

Janer Cristaldo

cristal@altavista.net
http://www.baguete.com.br


 :

ÍNDICE

Sobre o autor e a obra
Lisboa Revisitada
O Azul de Granada
O Esperpento de Bilbao
Réquiem para os Homos
A Síndrome de Garzon
Zamiatin e a Casa Idiota
Uma Voz de Viena
Como Fabricar Racismo
Ex-Europa ou Cio das Viúvas
Carla, Carnaval e Neologismos
Ator Pede Perdão
São Paulo Sabe o que Quer
Islã e Ginecofobia
Morte na Praia
A Arrogância do Terena
Flechas contra o Tempo
Europa Exporta Fantasmas
Esqueceram de Mim
Na Peninsulazinha da Ásia
Aos Hematófagos Profissionais
Condor Choca Militantes
O Antropólogo e as Tembés
Brasil Invade Amazônia
Um Édito e Três Inéditos
Da Eternidade do Padre Fermino
Dos Perigos da Leitura
Da Atualidade de Nietzsche
Álcool Alegra Sonâmbulos
Literatura Estatal
Brasil Financia Fidel
Manhã em Umeå
Sobre Caingangues e Jineteras
Khayam não Convence
Sobre Kursk e Kagebetes
O Velho e a Moça
Torquemada Redivivo
Menino Ameaça Brasil
Pragas Infestam Escandinávia
Viúvas Infestam Praga
Sobre meu Capitalismo
Milosevic e a Imprensa Gentil
A Nova Bandeira Palestina
Panelocídio na Selva
Em Defesa de Lula
Ser Gaúcho
Pedofilia e Histeria
Em Defesa do Lixo
ETA e Custo Submerso
Imprensa, Neonazismo e Mitterrand
A Indústria Textil
O Pão que Marx Amassou
Vinde a Mim as Criancinhas


 

Sobre o autor e a obra

 

Janer Cristaldo nasceu em 1947, em Santana do Livramento (RS). Formou-se em Direito e Filosofia e doutorou-se em Letras Francesas e Comparadas pela Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III). Morou na Suécia, França e Espanha. Lecionou Literatura Comparada e Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina e trabalhou como redator de Internacional na Folha de São Paulo e no Estado de São Paulo. Atualmente, reside em São Paulo e assina crônica semanal no jornal eletrônico Baguete (http://www.baguete.com.br). Para comunicar-se com o autor, escreva para cristal@altavista.net.

Outras obras publicadas pela eBooksBrasil.org:

Ponche Verde, romance

Laputa, romance

Mensageiros das Fúrias, ensaio

Engenheiros de Almas, ensaio

Qorpo Santo de Corpo Inteiro, ensaio

Ianoblefe, ensaio

A Indústria Textil, ensaios

Crônicas da Guerra Fria, crônicas

EleCrônicas, crônicas


 

Lisboa Revisitada

07/01/2000

 

Estive em Lisboa pela primeira vez em 1970, ainda durante a ditadura de Salazar, quando a cidade dava a impressão de ser habitada por velhos, mulheres e crianças. Jovem era mercadoria escassa naqueles dias. Ou estavam em Angola e Moçambique fazendo a guerra, ou na França ou Alemanha fugindo da guerra em Angola ou Moçambique. Na época, Lisboa era para mim sinônimo de Fernando Pessoa. Com alma de crente, percorri a via sacra do poeta pelas tascas onde escrevia seus poemas em guardanapos e cultivava diariamente a cirrose que o levaria à tumba. É célebre a foto de Pessoa apanhado em "flagrante de litro". Se Portugal soava para mim a conservadorismo, no obscuro gênio que morrera quase inédito e desconhecido eu via o estigma satânico que marca todo rebelde. Em cada um de seus cafés, ergui uma bagaceira em sua memória.

Voltei a Portugal em 1975, no auge do entusiasmo das esquerdas lusas, um ano após a Revolução dos Cravos. Bancos e empresas de seguro haviam sido estatizadas, como também a imprensa, a siderurgia, indústria petroquímica e até mesmo as cervejarias e fábricas de cigarros. Agitprops brasileiros, derrotados em 1964 e 1968, refugiados no Chile de Allende e de lá expulsos em 1973, apostavam agora suas fichas em Portugal. Ilustres comunossauros — gaúchos inclusive — entrincheirados em soberbas mansões com vista para o Tejo, erguiam suas flûtes de champanhe em saudação à "revolução proletária".

Mas Lisboa continuava a mesma, cheia de velhos e pobre de jovens. No mundo da imprensa, pelo menos algo havia mudado. Sugeri a um editor um de meus livros.

Só se for P & P — me respondeu o gajo.

Teriam os lusos criado um novo gênero literário? Que seria P & P?

Política e putaria. É só o que se vende hoje em Portugal.

O mundo editorial vivia um porre de liberdade. Voltei à Lisboa outras vezes, não em busca de P & P, mas do que Portugal tinha de eterno: fado e ginginha, Amália Rodrigues e Fernando Pessoa. E das ruelas decrépitas da Alfama e Mouraria, cujo charme eram as cuecas e meias penduradas nos varais pregados às portas e janelas.

Em 88, um incêndio arrasou parte dos prédios antigos do Chiado. Nada como o terremoto que destruiu a cidade no século XVIII e permitiu ao marquês de Pombal erigir uma outra no lugar da antiga. Mas já dava para tentar um lifting. Em 95, o centro da cidade era um canteiro de obras. Hoje o Chiado, sem perder a forma antiga, faz o transeunte sentir-se um pouco em Paris. Com a perspectiva da Expo 98, a febre de reformas foi tomando o espírito dos lisboetas e os muquiços da Cidade Alta e em torno ao castelo São Jorge foram — e continuam sendo — transformados em confortáveis prédios residenciais. Mantém-se a casca da arquitetura antiga e reforma-se o interior. Sem mudar, a cidade se renova.

Nos anos 70, o metrô lisboeta, além de precário, era mais um atestado do lusitanismo que tantas piadas nos inspira. Na avenida da Liberdade, uma das estações era mais curta que o trem. Para os utentes, que é como se diz usuário por lá, para descer naquela paragem bastava subir nos carros da frente. Já o estrangeiro, desconhecedor da idiossincrasia lusa, corria o risco de ficar emparedado quando queria desembarcar. Hoje, um metrô moderníssimo, com estações imponentes, liga o centro da cidade ao complexo da Expo 98, às margens do Tejo, onde uma nova cidade começa a surgir. A paragem Oriente nada fica a dever às estações da sofisticada linha Météore, inaugurada há dois anos em Paris.

As ruas, trens, lojas e cafés estão agora tomados por aquela fauna há tanto ausente, os jovens. Com o fim das colônias, já não há razões para emigrar rumo à Europa para fugir da guerra, esta peste que mata o melhor capital de um país, sua juventude. Os cravos de abril murcharam. O que fora estatizado, voltou a ser privado. Hoje, Lisboa é Europa. Sem perder o perfil antigo. Nas imediações da Expo 98 e em Amoreiras, a cidade vestiu-se de uma arquitetura que lembra Estocolmo ou Berlim. Mas em Alfama ou Mouraria, apesar do lifting nos prédios podres, continua tremulando às monções do Atlântico a última bandeira da resistência, as cuecas e meias penduradas nos varais.

Em outubro passado, um novo trem passou a circular em Portugal, o Intercidades. Tomei-o para ir a Évora. Junto comigo, entra uma daquelas velhotas de preto, com ar de Portugal antigo. Traz sacos e sacolas, mais um cachorro. Não é um cãozinho burguês de enfeite, de madame francesa, mas um honrado cachorro alentejano . Sobe ao comboio queixando-se da intolerância da nova linha e vai anunciando a quem queira ouvir:

Tive de pagar um bilhete pelo cão. Está com frio, o pobrinho. Coitado d'el.

Ao acomodar o coitado d'el, tenta abrir a janela. Não consegue.

Antigamente, ao sentir-se calor, abria-se a janela, ao sentir-se frio, fechava-se.

Hoje, faça frio ou faça quente, a janela não se abre nem se fecha. É o preço do progresso. Antigamente era outubro passado. Em poucos minutos de viagem, a velhota de preto já contou aos utentes do Intercidades toda a crônica da sua aldeia. Évora demora a chegar. A comadre quer saber as horas, puxa de um dos sacos do Portugal antigo um celular do Portugal contemporâneo e chama o sobrinho, em algum lugar do Alentejo.

Sobrinho, estás lá? Estou a chegar com o cão. Que horas são?

Ela viaja em um trem recém-inaugurado e usa telefonia móvel. Mas não tem relógio. Na aldeia do sobrinho, provavelmente o tempo ainda não corre.

Na volta a Lisboa, refestelo-me na Brasileira do Chiado, um dos bares de Pessoa. Desde alguns anos, o poeta está sentado em bronze à frente do café, junto à uma mesa de bronze, uma cadeira vazia também em bronze a seu lado. A estátua tem escala ligeiramente maior que a humana, para o turista fotografar-se sentado junto ao gênio. O tempo passa. De obscuro e ignorado marginal, Pessoa virou monumento, orgulho de Portugal. O tempo mata.


 

O Azul de Granada

14/01/2000

 

Dale limosna, mujer
Que no hay en la vida nada
Como la desgracia de ser
Ciego en Granada.

 

Faz tempo. Enquanto esperava um navio em Lisboa, dediquei-me a pesquisar seus cafés e gastronomia. No Paladium, restaurante da Avenida da Liberdade que hoje não mais existe, puxei a ementa — que é como se diz cardápio em bom português — e perguntei ao garçom como era o anunciado prato especial.

— Não o peça, cavalheiro. O prato especial, de especial nada tem.

Coisa de lusos, pensei. E pesquisei outros. Não sei qual pedi, mas a frase até hoje me resta na memória. Segundo uma experiência divulgada no último número da revista Science, o cérebro só processa a informação à qual se presta atenção. A experiência combina séries de imagens, palavras reconhecíveis e letras sem sentido com dados de imagens de ressonância magnética para analisar se o cérebro processa a informação que está diretamente à vista da pessoa mas não ocupa sua atenção. Os resultados indicam que quando não se presta atenção a algo o cérebro é mais cego que esquecediço.

É mais ou menos o que dizia Dona Clotilde. Só que em vez de ser pesquisadora de alguma prestigiosa universidade, era humilde professora primária rural na fronteira gaúcha. Tampouco tinha a mínima idéia da existência da Science, nem imaginaria que existissem revistas especializadas na publicação do óbvio. Ah! Dona Clotilde era minha mãe. Soubesse eu do fundamento científico de suas observações empíricas, talvez tivesse o traseiro poupado de muita vara de marmelo. A antiga pedagogia tinha métodos marcantes — e como! — para ativar a memória.

Trocando os queijos de bolso: quem já perambulou pela Andaluzia e visitou Granada, particularmente a Alhambra, talvez tenha trazido em sua tralha de turista um azulejo com os versos acima, encontradiço em qualquer quiosque. Granada é linda, mas isto nada tem de específico quando se fala de uma cidade na Espanha. Lindas também são Toledo, Salamanca, Ávila, Cuenca, Ronda, e isto para não falarmos das metrópoles. O palácio mouro, que teria inspirado a arquitetura onírica das criações de Escher, é uma festa não só para os olhos como também para os ouvidos. Homens do deserto, obcecados por águas, os árabes as puxaram de Sierra Nevada e os jardins da Alhambra estão cheios de córregos invisíveis e murmurantes que induzem à paz e contemplação. Não é raro, inclusive, encontrar-se uma turista, de gravador em punho, sentada em meio ao verde, gravando o silêncio cortado pelo rumor das fontes.

Até aí, nada demais. As diversas culturas que moldaram a Espanha foram pródigas em erguer monumentos para a contemplação dos pósteros. O específico de Granada seriam sua luz e seu céu, daí a desgraça de lá ser cego. Pelo menos para os poetas. A luminosidade e o azul granadinos encantaram não só as centenas de milhares de visitantes que por lá passaram, mas também escritores como Alexandre Dumas, Zorrilla e Lorca.

Javier Hernández, professor de ótica da Universidade de Granada, acaba de desmitificar cientificamente estas poéticas percepções: a luz e a cor do céu da cidade são similares às dos demais lugares do mundo. Para desenvolver sua tese de doutorado sobre as características espectrais e colorimétricas da luz-dia e luz-céu de Granada, o professor passou os últimos quatro de seus 28 anos olhando o céu. É o que nos conta o jornal El País. Vivendo e aprendendo. Até ontem, eu imaginava que masturbação intelectual era característica exclusiva dos cursos de humanidades!

O resultado do trabalho, aprovado cum laudae, lembrou-me o garçom do Paladium. Javier dedicou boa parte de sua juventude para concluir que a especial luminosidade de Granada, de especial nada tinha. "Durante a maior parte do dia, a luz nas ruas de Granada é acromática, sem cor. Durante o crepúsculo adquire um tom mais azulado ou púrpura". Quanto ao céu, se o azul intenso é sinônimo de pureza de céu, o azul de Granada é pouco saturado, pouco puro, puxando quase ao esbranquiçado". O pesquisador derruba por terra "a sensação que as pessoas têm de que o céu de Granada é muito azul".

A ciência avança.

Que físicos derrubem por terra hipérboles e metáforas de poetas, nada demais. Ocorre que o professor granadino fez, durante dois anos e seis meses — devidamente financiados pelo erário público — 2.600 medições da cor e da luz da abóbada celeste com um espectro-radiômetro, aparelhinho que custa a bagatela de cinco milhões de pesetas. As conclusões obtidas foram comparadas com outras publicações da década dos 60 sobre o céu de cidades dos Estados Unidos, Canadá e Japão.

Em minhas cartilhas de francês, sempre ouvi falar das eaux bleues de la Seine. Muito cedo descobri que as águas azuis do Sena, à semelhança do azul de Granada, de azul nada tinham. Mas minhas conclusões — fruto de quatro anos de contemplação quase religiosa de outros líquidos sem relação alguma com o azul — nada têm de científicas, nem tiveram o aval de um cum laudae da Sorbonne. Foram observações empíricas, feitas de longe, com a distância que separa um bistrô do rio. Assim sendo, o campo ainda está virgem para algum pesquisador nosso da área de Águas Comparadas, com pistolão junto à Capes ou CNPq, que queira desvendar este milenar mistério parisiense. A tese do professor andaluz de certa forma me reconforta em relação a esta pobre pátria. Regozijai-vos, doutores tupiniquins: dilapidação de dinheiro do contribuinte em pesquisas rumo ao inútil não é privilégio da universidade brasileira.


 

O Esperpento de Bilbao

21/1/2000

 

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

 

Em crônica passada, falei do autor destes versos, o homem que queria ser nada e hoje está sentado em bronze, frente à Brasileira do Chiado, em Lisboa. O poeta cirrótico, que morreu pobre e obscuro, hoje é atração turística de Portugal. Seus poemas, que tanto consolaram estudantes ou adolescentes encerrados em quartos miseráveis, hoje fazem parte do show business e servem de pretexto a teses universitárias, a melhor fórmula de fazer turismo às custas do contribuinte.

Quando a universidade assume um poeta, está na hora de procurarmos outro. Absorvido pelo sistema, Pessoa continua no entanto virulento. Se seus poemas se vulgarizaram e hoje são musicados até por baianos mercenários, seus ensaios ainda não perderam seu potencial subversivo. Ensaios inconclusos, talvez anotações feitas em guardanapos de tascas, mas nem por isso menos profundos. Sem ir mais longe, Heróstrato, suas considerações sobre a celebridade, esta peste do século que ora finda. Se o leitor se sente um tanto inculto por não gostar de percorrer museus, sugiro deter-se neste fragmento tipicamente pessoano:

"A pintura afundar-se-á. A fotografia privou-a de muito do seu atrativo. A futileza da estupidez privou-a de quase todo o resto. O que restou tem sido levado em despojo pelos colecionadores americanos. Um grande quadro significa uma coisa que um americano rico quer comprar porque outras pessoas gostariam de comprá-lo se pudessem. São assim os quadros postos em paralelo, não com poemas ou romances, mas com as primeiras edições de certos poemas ou romances. O museu torna-se uma coisa paralela, não à biblioteca, mas à biblioteca do bibliófilo. A apreciação da pintura torna-se não um paralelo à apreciação da literatura, mas à apreciação de edições. A crítica de arte cai gradativamente para as mãos dos negociantes de antigüidades".

O Centro Georges Pompidou, de Paris, reabriu após uma reforma que durou quase três anos. Assisti sua inauguração em 77, ocorrida na calada da noite. Isto é, o monstrengo estava totalmente coberto por tapumes e uma bela manhã surgiu desnudo em pleno Marais, para pasmo de turistas e parisienses. Genial, diziam jornalistas. Architeture du néant, rebatiam críticos. O prédio chocava. Pessoalmente, devo ter levado um ou dois anos para decidir se o achava lindo ou horrendo. Hoje, com apenas 23 anos de idade, o Pompidou, também conhecido como Beaubourg, integrou-se ao Marais e ao imaginário do turista e não é fácil conceber Paris sem ele.

Parece que abriga várias exposições de pintura no interior de seus sete andares. Digo parece, pois jamais me dei ao trabalho de conferi-las. No que não estou sendo nada original. Consta que apenas um quinto dos 175 milhões de visitantes que o Beaubourg recebeu entre 1977 e 1997, quando fechou para reforma, tenha sido atraído por alguma mostra. O resto — e eu atrás — seguia direto para o 7º andar, de onde se pode ver Paris do alto, sem enfrentar as filas e os preços da torre Eiffel. O que pretendia ser centro cultural virou belvedere.

Já fiz minha peregrinação obrigatória aos Louvres e Prados da vida, em meus primeiros anos de Europa. Em matéria de mitos, conheço de perto desde a Gioconda até Guernica. No Prado, uma professora cheia de fé tentava fazer-me ver bombardeios nazistas nas cenas de corridas de Picasso. Sobre a Vênus de Milo, tenho como definitiva a apreciação de Agripino Grieco: "Lembra o problema da agricultura no Brasil, a falta de braços". Hoje, entendo melhor aquele aforismo: turista inteligente é o que conhece os museus por fora e os bares por dentro.

Em matéria de museus, tenho gratas lembranças de um na Alemanha, o Berlin Museum. Visitei-o bem antes da queda do Muro, na Berlim Ocidental. Pagava-se alguns marcos de ingresso e aos domingos enfrentava-se fila. Não lembro bem o que guardava — creio que trens antigos — e suponho que tampouco o lembrem suas centenas de visitantes. Mas não esqueci, nem visitante algum terá esquecido, o simpático café que ficava ao final dos corredores, onde um garçom servia um vodca com figo e pimenta, este sim, inolvidável. Os alemães, pragmáticos, haviam entendido como atrair público a um museu.

Os arquitetos do Beaubourg também. Hoje, milhões de pessoas estão visitando museus sem preocupar-se muito com o que há dentro. Bilbao, na Espanha, cidade industrial e úmida, até bem pouco ficava mais ou menos ao largo das rotas turísticas. De repente, todo mundo — até mesmo eu — quer ir a Bilbao. Não pela cidade, mas pelo colossal museu da Guggenheim, de esperpêntica arquitetura. Se o leitor o procurar na Internet, poderá ter uma idéia do que é um esperpento, palavra criada por Don Ramón del Valle-Inclán.

Até mesmo os diretores do último 007 sentiram-se na obrigação de situar as peripécias de Bond na cidade basca, tendo como pano de fundo o Guggenheim. Se, para Pessoa, o museu se tornava uma coisa paralela à biblioteca do bibliófilo, um novo passo foi dado pelo mercado das futilidades: o museu é agora algo paralelo ao prédio da biblioteca.

A pintura é o que menos interessa. Quem intuiu isto com propriedade foi Salvador Dali, o genial vigarista catalão. No final da vida, ciente de que sua assinatura valia mais que qualquer quadro, assinou durante dias a fio milhares de telas em branco, a serem pintadas mais tarde por funcionários de seu ateliê. Ninguém pode alegar que são falsos Dalis, afinal levam o jamegão do autor. Com sua molecagem, Dali demoliu a crítica de pintura contemporânea. Os marchands detestam Dali.


 

Réquiem para os Homos

28/1/2000

 

Era Madri. Faz uns dez anos. Uma professora peruana de letras louvava a poesia de Lorca, quando um colega mexicano, com ares de Pancho Villa, deu sua colaboração ao debate:

Poeta sí. Pero maricón!

A peruana, em estado de choque, alegou que nada sabia sobre sua vida privada. O discurso da professora voltava no tempo. Ao chegar a Cervantes, o mexicano aguafiestas atalhou de novo:

Ese, parece que también!

A moça engoliu em seco, lembrou que o Miguelito vivia em um universo cristão.

Cristão em termos — atalhei — afinal foi prisioneiro durante anos de um bei em Argel, entre muçulmanos pouco chegado a mulheres. Isso sem falar em seus dias de Florença, junto ao cardeal Acquaviva, homossexual notório. Falar nisso, aventei, há uma tese de que o Cristo...

Foi falar no santo homem, a professorinha pediu seus sais e abandonou a roda. Era revelação demais para uma peruana numa tarde só. Isso que estávamos longe dos dias em que André Gide pesquisava discretamente os mictórios interessantes de Roma. Alertado por amigos de que estava se expondo demais, tranqüilizava-os:

Meu Nobel me dá cobertura.

Os tempos — e a geografia — eram outros que não os de Oscar Wilde, que teve a vida destruída no cárcere por ousar assumir seus amores por um jovem efebo.

Comportamento não só aceito como também louvável na Grécia de Platão e Sócrates, o homossexualismo foi satanizado por dois mil anos de cristianismo. O que era prazer virou doença e sua prática foi tipificada como crime pelos códigos penais.

Se esta nova conceituação gerou não poucas vítimas ao longo da história, só temos o registro dos casos mais gritantes. Dois ou três fatores conjuntos geraram o mártir mais célebre: uma Inglaterra puritana, um escritor de gênio e um processo penal desastroso. Se não era possível condenar a literatura de Wilde, os aforismos e paradoxos com que fustigava sua cultura e sua época, punia-se o homem.

O cristianismo conferiu ao homossexual uma aura satânica, a do rebelde por excelência, o que insiste em empunhar a bandeira de Lucifer: non serviam. Em bom português: não servirei. Se o Estado pede reprodutores, o homossexual sonega sua semente. Se a moral pede chefes de família, o homossexual é o excluído dos ambientes familiares. O celibato era seu cartão de visita. A partir de certa idade, todo celibatário tinha um só estado civil: suspeito.

Enquanto o hetero casado vivia preso ao sustento da família e à fidelidade — pelo menos formal — à esposa, o homo não tinha dependentes e todos os parceiros do mundo estavam ao alcance de seu desejo. Se ao pai lidar com a urina, ranho e fezes de suas crias, o homo vivia l'embarras du choix: com quem sair esta noite? Enquanto o hetero investia semanas e até meses para superar aquelas etapas do orgulho feminino, das quais falava Stendhal, ao homo bastava um olhar cúmplice para estabelecer contatos imediatos. Portava um estigma, é verdade. Mas gozava de uma liberdade não conferida a qualquer mortal.

Na mesma França em que morreu Wilde, em 1900, pobre e execrado, surge cem anos depois o enquadramento legal do rebelde. É o Pacte Civil de Solidarité (PACS), contrato assinado entre duas pessoas maiores, de sexo diferente ou do mesmo sexo, para organizar sua vida comum. Como o casamento parece ter-se tornado um jugo difícil de portar, cria-se a figura legal de uma espécie paralela de casamento, mais abrangente, menos burocrática e mais facilmente dissolúvel. Se você vive com outra pessoa e não quer ou não pode casar-se, mas quer organizar as modalidades da vida em comum dentro de um quadro jurídico estável, você vai até o cartório e faz um PACS com seu parceiro. A nova lei faz furor: promulgada em 15 de novembro passado, já foi utilizada por mais de 12 mil pessoas em seu primeiro mês e meio de vigência.

Se o novo contrato pode ser celebrado entre pessoas de sexo diferente, em Paris 75 % dos pacsados (pacsés, na nova terminologia francesa) são homossexuais. Na província, 40%. Algumas ressalvas são feitas, ao estilo do antigo casamento. Os candidatos à união não podem ser casados, nem ter celebrado PACS com outro parceiro. A união não pode ser legalizada entre avós e netos, pais e filhos, irmãos e irmãs, tia e sobrinho, tio e sobrinho, sogros e genro ou nora.

Mas por que não viver com o companheiro, sem papel passado? Ocorre que o PACS acena com vantagens pecuniárias, como herança e extensão de seguridade social, planos de saúde e moradia ao — como direi? — cônjuge. Recentemente, um recém-pacsado venceu uma longa luta jurídica para usufruir das mordomias de seu parceiro, funcionário da Air France. Nesta condição, o funcionário e seus familiares pagam apenas 10% dos bilhetes aéreos da empresa, para qualquer lugar do mundo. Um importante estímulo ao novo contrato, afinal 90% de abatimento numa volta ao mundo conferem charmes adicionais a qualquer comissário de bordo.

Estivesse Oscar Wilde pacsado com lorde Alfred Douglas, certamente não teria sofrido prisão nem opróbrio. Mas a história da literatura teria perdido um de seus grandes momentos, e nós, o De Profundis. O rebelde foi domesticado. Mais dia menos dia, estará visitando os sogros aos domingos e trocando fraldas de bebês de proveta. Non serviam? Serve sim, depende das vantagens com que o Estado acena.

Não bastasse o enquadramento legal do outlaw pela legislação francesa, neste janeiro o Brasil tentou canonizar a espécie. Um movimento gay na Bahia, que teria descoberto um caso de São Sebastião com o imperador Diocleciano, assumiu o santo como patrono da raça. É a contribuição tupiniquim ao debate, a sacralização do profano.

O homo pode dar adeus a seu charme de ovelha negra. De herético, foi promovido a santo. Requiescat in pace, caríssimo!


 

A Síndrome de Garzón

4/2/2000

 

Quando o procurador espanhol Baltasar Garzón pediu a detenção do general Augusto Pinochet na Inglaterra, para que respondesse na Espanha por crimes cometidos no Chile, ninguém imaginaria que, naquele momento, estava sendo criado um grande quebra-cabeça para os teóricos desta ficção que se chama Direito Internacional. Ficção porque Direito Internacional não existe. O que continua existindo é o antigo e brutal direito do mais forte. Se o Paraguai, sem ir mais longe, pedisse a detenção no Brasil de Bill Clinton por crimes cometidos na Iugoslávia, uma grande gargalhada reboaria nas redações dos jornais do mundo todo.

O governo de Tony Blair, que retém há quinze meses Pinochet, acusado de violação dos direitos humanos, é o mesmo que, sob a sombra protetora dos Estados Unidos, despeja bombas a granel em cidades e aldeias do que restou da ex-Iugoslávia. Blair retém o ditador chileno a pedido do promotor espanhol, que jamais denunciou alguém na Espanha por crimes do franquismo. Exigir o julgamento de ditadores na ex-colônia é bom, digno e justo. Exigir o julgamento dos colaboradores da ditadura dentro da qual Garzón nasceu e fez carreira... melhor esquecer, pode reabrir muitas feridas.

Nos idos da Guerra Fria, a Áustria permaneceu cercada pelos países satélites da finada União Soviética. Encrave europeu que avança rumo ao Leste, já deu ao Ocidente Sissi e Schwartzenegger, Mozart e Schickelgruber. Para quem não sabe, Schickelgruber é o cabo aquele de bigodinho, que virou chanceler da Alemanha e é mais conhecido como Hitler.

Viena, que repousa às margens do Danúbio, embalada em um passado de óperas e valsas, de repente saltou nas páginas de todos os jornais. Quando o Partido da Liberdade, liderado por Jörg Haider, fez uma coalizão para participar do governo, os 14 dirigentes da União Européia, que acusam Haider de direitista e xenófobo, ameaçaram cortar relações com a Áustria. Ou seja, a Europa se resguarda o direito de determinar a política interna dos países que a compõem. Esta mesma Europa que sempre manteve relações cordiais com assassinos do porte de Hoenecker ou Ceaucescu. Que recebe com tapetes vermelhos tiranos como Fidel Castro ou os responsáveis pelo massacre da praça da Paz Celestial, em Pequim. E que nem sonha em cortar relações com a Rússia, onde Vladimir Putin, em uma sangrenta campanha eleitoral, está arrasando a ferro e fogo a Chechenia.

Por falar em Hoenecker, os chilenos que pedem o julgamento de Pinochet são os mesmos que deram cordial acolhida ao campeão alemão de tiro na nuca, quando este fugia da justiça de seu país.

Haider, entre outras coisas, é acusado de nutrir simpatias por Hitler e chamou os membros das tropas de elite nazistas — as SS — de "homens de caráter, que permaneceram fiéis a suas convicções". Wolfgang Schuessel, ministro das Relações Exteriores e líder do Partido Popular, coligado ao partido de Haider, está indignado com a reação dos líderes europeus. "A Áustria não precisa de lições de democracia" — disse. "Não somos um país em desenvolvimento".

País em desenvolvimento é o eufemismo encontrado pelos líderes europeus para não pisar muito no ego colossal — às vezes do tamanho da própria geografia — dos países subdesenvolvidos. Como membro nato deste eufemístico conceito, penso que Herr Schuessel está precisando de algumas lições deste nosso país em desenvolvimento, onde admirar Hitler rende 30 milhões de votos. Em julho de 1979, quando presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, o líder petista Luís Inácio Lula da Silva deu uma entrevista à Playboy, na qual citou Hitler e Khomeiny como duas figuras políticas pelas quais nutria admiração. O então sindicalista elogiou a "disposição, força e dedicação" de Hitler e afirmou: "O Hitler, mesmo errado, tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer". Durante três eleições presidenciais, foi o candidato mais votado das oposições, sem que nenhum líder — europeu ou cá de baixo — se preocupasse com esta sincera admiração.

Lula, que se saiba, jamais nutriu maiores afetos por tiranos menores, como Pinochet, Galtieri ou Stroessner. Mas gostava também do aiatolá iraniano, "Eu não conheço muita coisa sobre o Irã, mas a força que o Khomeini mostrou, a determinação de acabar com aquele regime do xá foi um negócio sério".

Se foi. O aiatolá levou seu país a uma guerra que gerou um milhão de cadáveres. Quem mata um é criminoso, quem mata muitos é conquistador, quem mata todos é Deus — dizia Jean Rostand. Líderes cujas matanças vão de três a cinco dígitos são abomináveis. Toda glória aos genocidas de sete ou mais dígitos.

Uma espécie de síndrome de Garzón está contaminando os líderes europeus. Assim como o promotor espanhol quer fazer justiça na América Latina, os líderes europeus querem determinar a política interna dos austríacos. A Bélgica já cortou relações com a Áustria. Israel anunciou a retirada imediata de seu embaixador em Viena. Os EUA acenam com medidas semelhantes. Para mostrar a ameaça do perigo nazista, as TVs estão retirando dos baús cenas de extermínio do período hitlerista. Ora, não é preciso recorrer a arquivos. Bastaria filmar os escombros e cadáveres de Grozni, bombardeada por Vladimir Putin. Haider é xenófobo? Que horror. Putin não é.

País europeu algum pensa em cortar relações ou chamar embaixadores de Moscou. Putin é ex-KGB, militante da velha esquerda, aquela mesma longa linhagem na qual militaram Hoenecker, Ceaucescu e Fidel Castro. Além do mais, Putin tem arsenal atômico. E os chechenos são muçulmanos. Que Alá os tenha.


 

Zamiatin e a Casa Idiota

11/2/2000

 

Abençoados dias, estes que correm, os de Internet. Quando escrevia em Porto Alegre, em papel jornal, a crônica sequer atravessava o rio Uruguai. Nestes tempos de Web, a discussão ultrapassa o Equador. Dos EUA, reclama um interlocutor: "Quando eu jurava que ele iria dizer alguma coisa sobre a modelo que está vivendo numa casa de vidro em Santiago do Chile, e da celeuma que isto está causando na cidade, da falsa moral da América Latina, etc., ele me veio com uma dessas". A "uma dessas" foram minhas considerações sobre a lenta e merencória domesticação dos homossexuais. Mas pouco importa. Ocorre que a dose de estupidez que os jornais nos trazem é diária. E a coluna, semanal.

Não me parece que a celeuma em Santiago seja fruto de falsa moral, nem que falsa moral seja atributo exclusivo da América Latina. Jamais ocorreria a um latino, sem ir mais longe, pedir o impeachment do supremo mandatário da nação por felações de rotina. No Chile, a questão transcende a moral. Se a exibição da intimidade alheia em alguns causa repulsa, para outros pode ser fonte de prazer. Antes da casa de vidro de Santiago, a WEB já oferecia dezenas, talvez centenas de webcams, pelas quais os navegantes podiam espiar o cotidiano entre quatro paredes de moças em outras longitudes. Um site americano, o de Jennifer, foi pioneiro neste voyeurismo eletrônico. Com a diferença de que a intimidade de Jennifer, se estava à distância de um clique de mouse, não era imposta a transeuntes que nada querem com a vida alheia.

Esta idéia de transparência nada tem de novo. Em 1920, no seu romance de antecipação, Nós, o escritor russo Eugene Zamiatin já propunha este tipo de arquitetura. Não como modelo a ser imitado, mas como sátira a um Estado onipresente, que exige de seus cidadãos total transparência. Mais recentemente, em 1949, Orwell retomou a idéia em 1984, através do olho sempre vigilante do Big Brother.

Nós foi proibido pela censura soviética e só foi publicado nos países do Ocidente. Zamiatin, que além de escritor era matemático e engenheiro naval, sobreviveu por milagre às purgas stalinistas. Em função de seu ofício, foi testemunha de importantes momentos históricos. Estava em Odessa por ocasião da rebelião da tripulação do Potemkin e em Helsinki — então Helsingfors — durante a do Sveaborg. Em 31, ousou escrever a Stalin pedindo permissão para emigrar: "O autor desta carta, um homem condenado à pena capital, solicita-lhe a comutação desta pena. Você provavelmente conhece meu nome. Para mim, como escritor, ser privado da possibilidade de escrever eqüivale a uma condenação à morte". Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, que devia ter acordado de bom humor no dia em que recebeu a carta, deixou-o partir.

Zamiatin viveu algum tempo em Praga e morreu em 1937, praticamente esquecido, em Paris. Nós é narrado pelo cidadão D-503, homem dos séculos futuros, que acredita nos princípios da sociedade totalitária em que vive. As casas são transparentes. Nos dias previstos para atividades sexuais, o morador pode cerrar as cortinas. "Em nossas paredes transparentes e como que tecidas de ar resplandecente, nós vivemos sempre abertamente, lavados de luz, pois nada temos a esconder, e este modo de vida facilita a difícil tarefa do Benfeitor". Orwell conhecia a obra de Zamiatine. O Benfeitor é uma antecipação do Grande Irmão. Para D-503, "o vidro, nosso admirável vidro, transparente e eterno", é garantia de fidelidade do cidadão ao Estado.

Esta total transparência da vida do cidadão é o sonho de todo poder totalitário. Não espanta que o livro de Zamiatin tenha sido proibido na finada URSS. O que espanta é ver, em um regime democrático, alguém se propondo como cobaia de uma condição sonhada por todo ditador. A casa transparente de Santiago do Chile é decididamente idiota. Fosse erigida nos dias de Pinochet, a imprensa internacional estaria denunciando a invasão da privacidade do indivíduo pela prepotência do tirano.

Não sei se a moça de Santiago pretende baixar alguma cortina na hora sexual. Mas há momentos indubitavelmente mais íntimos que o sexual, e para isso a humanidade concebeu a privada cercada de quadro paredes. Vejo na primeira página dos jornais a moça baixando, não as cortinas, mas as calças, ao sentar em um vaso sanitário. Ora, este é um dos momentos íntimos do ser humano que a ninguém agrada assistir, muito menos ser compelido a assisti-lo quando passa pela rua.

O problema não é de falsa moral, mas de graus de civilização. Nem mesmo entre bugres do paleolítico — que ainda existem no Brasil, para alegria e sustento dos antropólogos — este momento é público. Para isso existe o mato. Ou talvez a modelo, em sua ânsia de transparência, queira transformar a esplendorosa Santiago numa espécie de São Paulo, onde baixar as calças na rua, na ótica dos defensores dos tais de Direitos Humanos, é garantia consagrada na Constituição de 88, a dita Cidadã.

A exposição da moça é superficial. Como expediente para gerar manchetes, nestes dias em que a mídia dá o mesmo destaque às aventuras de cama de uma piranha de sangue real que ao pronunciamento de um estadista, é método eficaz. Mas a transparência mais grave é outra. É aquela à qual o Estado tem acesso quando nos confere números. Diante do número pessoal, usado em todos os atos contratuais do cidadão — método de identificação já rotineiro em diversos países — a casa de vidro de Zamiatin vira inocente metáfora do passado.

Isso sem falar na transparência informática, preço a ser pago nestes dias, como dizia, abençoados. Do fundo desta telinha, leitor, 40 mil cookies te contemplam. Em verdade, nossa privacidade está muito mais devassada que a da moça de Santiago. Só que já nem ligamos.


 

Uma Voz de Viena

18/2/2000

 

Enquanto o ex-KGB Vladimir Putin reduz Grozni a escombros, como estratégia de sua campanha eleitoral, sem que nenhum estadista europeu ouse condenar o massacre dos chechenos, a imprensa internacional assesta seus holofotes sobre a pacata Viena. Para ilustrar a magra vitória de Jörg Haider nas eleições austríacas, a rede Globo retira das prateleiras centenas de cadáveres empilhados da Segunda Guerra. O espectador passivo, que não distingue fato presente de imagem de arquivo, já deve estar imaginando que o político austríaco matou milhões de judeus.

Áustria, nas últimas semanas, tornou-se sinônimo de xenofobia e racismo. Estes dois palavrões ideológicos substituíram, após o fim da União Soviética, insultos demodés como burguesia e capitalismo. Enquanto a Europa toda se fecha aos imigrantes, a conta é debitada aos austríacos. Ninguém parece mais lembrar das expulsões de imigrantes do governo francês, quando negros eram algemados em seus muquiços e devolvidos compulsoriamente à África, nos chamados "vôos da vergonha". Xenófobo era Le Pen, que nunca deportou ninguém. Tampouco lembram os jornais que, por mais discriminados que sejam os imigrantes na Europa, encontram nos países que os recebem melhores e mais humanas condições de vida do que nos países dos quais fugiram.

Em meio a este encarniçamento da imprensa, empenhada em denunciar a "serpente no ovo" que estaria sendo gestada na Áustria, não é demais ouvir vozes que pedem um pouco de sensatez. De Viena, uma brasileira, Andrea Gruber, pede espaço para falar. Transcrevo sua indignação, respeitando suas garrafais:

"Simplesmente estou perplexa com o que estão espalhando na imprensa internacional a respeito da Áustria. É lamentável saber que não podemos confiar nos noticiários internacionais. A história é a seguinte: o Haider não é nenhum neonazista ou coisas do tipo, ele pode ser até patriota, mas nunca nazi pois aqui na Áustria qualquer coisa que se diga a esse respeito é prisão na certa. Não sou a favor dele, sou do SPÖ (partido socialista). Na Áustria, estrangeiros e austríacos convivem na mais perfeita harmonia, nunca são discriminados e somos muito respeitados por todos. NUNCA houve qualquer manifestação de quem quer que fosse contra um estrangeiro!

"O Haider ganhou com 27% dos votos. Só para começar, 73% da população é contra ele. Segundo, a imprensa internacional não divulga qual foi a maior promessa de campanha dele, que atraiu tantos eleitores. Aqui, nós, pais, recebemos do governo cerca de 150 dólares para ajudar nos custos de cada filho. Inclusive eu, ESTRANGEIRA, recebo este benefício. O Haider prometeu elevar esta ajuda de custo para 300 dólares, o que as pessoas mais esclarecidas sabem ser impossível, pois quebraria a previdência do país. Só que aqui, como no Brasil, existem pessoas ingênuas que acreditam nisso. Então, desses 27% que votaram nele, 20% votou por esta razão. Só se falava nisso aqui na Áustria, as pessoas comentavam, "Ih.. será que vai aumentar mesmo? Vou arriscar". Os outros 7%, bom, aí eu não sei, é claro que deve ter aqueles velhinhos bem austríacos que não gostam de estrangeiros pois acreditam que a máfia russa vai entrar em peso no país. Esse é o maior medo dos velhinhos.

"E os racistas? Pode até ter, mas não se ouve nada a respeito deles, não há panfletos, grupos organizados, manifestações ou qualquer coisa do tipo. Que outro país do mundo garante ao estrangeiros os mesmos direitos de um austríaco nato? Na Suécia existem os grupos neonazistas que se reúnem em praça aberta, aqui isso levaria o exército na rua para reprimir tal barbaridade. Na Espanha, semana passada, colocaram fogo num bairro ocupado por marroquinos. A França quer expulsar estrangeiros de seu território, os EUA negam visto a torto e direito, porque os austríacos são racistas????

"Não tô entendendo, tá todo mundo louco e contra a Áustria! Até a Argentina, que acolheu todos os nazistas do pós-guerra, e que não se esforçou para investigar a bomba jogada naquela instituição judaica, e com todo passado de repressão militar, teve a coragem de mandar chamar o embaixador deles aqui de Viena! (O que para os austríacos tanto fez ou tanto faz, é bom lembrar). Cheguei a conclusão: o mundo está louco, estamos vivendo uma histeria coletiva, hoje em dia guerras começam com mal-entendidos. Se bobear os EUA vão tentar invadir a Áustria para pôr o Haider pra correr, e todos nós ficaríamos sem entender.

"WHY? Estou decepcionada com a imprensa internacional, cheguei à conclusão de que acompanhar as notícias ao longo de toda minha vida foi pura falta de tempo, não acredito em mais nada. Hoje em dia os boatos são transmitidos via satélite e para um número espantoso de pessoas ao mesmo tempo. Acho que o mundo precisa de um conflito pra vender jornal, dar emprego pra repórter, garantir audiência, não acha? Tudo isso me irrita. Meu filho é austríaco, não quero que ele cresça sendo discriminado por nascer num país onde dizem neonazi! Já tive até vontade de escrever, desabafar isso tudo para algum jornal aí do Brasil, mas não há espaço para enviar a verdade. Iriam era me chamar de louca..."

O espaço existe, Andrea, e cá está. Jamais me ocorreria chamá-la de louca. Até pode ser que o mundo o seja. Mas os jornalistas, não. Jornalista sabe muito bem o que faz. Há dez anos, morreu uma religião. A reação dos derrotados do século era previsível. Necessitava-se de um boneco para malhar. A Áustria foi o Judas da vez.


 

Como Fabricar Racismo

25/2/2000

 

Morar em São Paulo é circunstância que devo a Saddam Hussein. Melhor explicar. Com a Guerra do Golfo, a Folha de São Paulo criou um caderno especial para a cobertura dos eventos no Oriente Médio. Finda a guerra, restou o caderno. O noticiário internacional ganhava um espaço próprio no jornal e neste espaço vim trabalhar.

Minha primeira guerra foi a da Iugoslávia, nos dias de independência da Croácia. Nosso correspondente, responsável pelo Leste europeu, mandava suas matérias de Berlim, que isso de cobrir guerras no front é muito arriscado. Por volta das três horas da tarde, começava a enviar seus despachos, a partir do noticiário dos jornais da manhã. Isto é, os jornais haviam sido redigidos ontem, os fatos ocorridos anteontem e o leitor brasileiro os leria amanhã. As agências noticiosas, mais ágeis, nos enviavam notícias fresquinhas.

A nós, redatores, cabia substituir o lead da reportagem por material mais quente. Lá pelas cinco da tarde, o despacho enviado caíra para o pé do texto. Quando o Gabeira informava que os iugoslavos planejavam um ataque, nós já tínhamos os alvos destruídos e os aviões de volta às bases. A cobertura da guerra, em verdade, era feita da redação na alameda Barão de Limeira, em São Paulo. Que, de certa forma, estava mais próxima dos fatos que o correspondente na Alemanha. Podia não sobrar sequer uma linha do despacho original. Mas a matéria saía assinada pelo "enviado especial".

Em dezembro de 91, o jornal tinha mais uma correspondente em Berlim. Lá pelas tantas, ela envia um relato excitado do bombardeio de Dubrovnik pela marinha croata. As bombas caíram em minhas mãos. Telefonei para Berlim e pedi à moça para checar melhor os dados. A Croácia não dispunha de frota, nem teria razões para bombardear sua cidade mais linda.

"Mas eu estou vendo aqui na minha frente, com meus olhos, na televisão, a marinha croata bombardeando o litoral". Pedi que conferisse melhor os dados, ainda faltava uma hora para o fechamento do caderno. Vinte minutos depois, recebo uma chamada encabulada. "É, de fato, é a marinha iugoslava". Os olhos da brava correspondente de guerra, por mais lindos que fossem, se enganavam.

Me ocorrem estas lembranças a propósito do mail de Andrea Gruber, brasileira residente em Viena, que chegou a uma melancólica conclusão: "acompanhar as notícias ao longo de toda minha vida foi pura perda de tempo, não acredito em mais nada". Ora, Andrea, noticiário internacional é uma questão de fé.

Nos anos 90, os jornais publicavam, toda segunda ou terça-feira, o balanço de chacinas na África do Sul. A cada final de semana, tínhamos vinte ou trinta negros mortos. De tão rotineiras, as mortes já nem mereciam destaque. Uma pequena nota, em geral de nove linhas, em pé de página. Sem informação alguma sobre os autores do massacre. Muitas vezes, logo após a primeira frase, vinha outra: "o líder racista Eugene Terreblanche declarou que...". O leitor recebia trinta cadáveres de negros na cara, mais a notícia de que um líder branco, que teve o azar de ser batizado como Terreblanche, declarara qualquer coisa.

Para o leitor, ficava claro que os brancos, liderados por um certo Terreblanche, estavam massacrando os negros sul-africanos. Ocorre que as chacinas de negros eram cometidas por negros, em função de rivalidades tribais, açuladas pelo álcool nos fins-de-semana. Este detalhe era omitido ao leitor. Se na África do Sul são trucidados negros, os assassinos só podem ser os brancos. Brancos europeus e, portanto, racistas. Pois africano racista, por definição, não existe.

Um dos casos mais perturbadores de manipulação dos fatos ocorreu no verão europeu de 93, na Holanda. A reunião de pauta foi excitada naquele dia. Uma menina marroquina, Naima Quaghmiri, nove anos, morreu ao cair em um lago em Roterdã. Duzentas pessoas teriam assistido seu afogamento, sem prestar-lhe socorro. O pauteiro brandia o telex com fúria. A idéia era produzir uma manchete como RACISTAS HOLANDESES DEIXAM MORRER FILHA DE IMIGRANTES. Mais uma vez, a bomba aterrissou em minhas mãos. A notícia era absurda. Duas centenas de pessoas não observam, passivamente, uma criança se afogando. O lago, uma espécie de açude, como mostrava a foto, era raso. No meio dele, havia um bombeiro com água pela cintura.

Todo texto de jornal informatizado, mesmo quando não traz assinatura impressa, tem uma assinatura eletrônica, para eventual responsabilização do redator. Recusei-me a redigir aquela evidente distorção de um fato. Tentei mostrar a meus colegas a incongruência do relato. Em vão. A intenção era denunciar o racismo europeu. O texto foi feito por outro redator.

Dois dias depois, novo despacho retificava o anterior. Não havia uma menina se afogando e duzentos holandeses assistindo. Naima se afogara horas antes. Policiais e bombeiros haviam pedido aos veranistas que formassem um semicírculo, de mãos dadas, e percorressem o lago em busca do cadáver. Os veranistas se recusaram.

Perguntei ao editor se a reportagem seria retificada. "Não precisa" — disse — "Amanhã ninguém mais lembra disso". Mas jornalismo é o registro da história, é nos arquivos do passado que os pesquisadores do alegado amanhã buscam dados para seus ensaios, aleguei. "O que de fato acontece" — disse o editor — "só vamos saber meses depois. Jornalismo é assim mesmo".

Ao remexer os arquivos de jornais, os pesquisadores do futuro ficarão sabendo que a Holanda era um pequeno país europeu, habitado no século passado por cruéis racistas brancos, capazes de negar auxílio a uma criança marroquina que se afogava. Isto foi confirmado pela própria Folha. Em 94, um de seus redatores, em artigo sobre racismo, retoma o fato como verdadeiro.


 

Ex-Europa ou Cio das Viúvas?

3/3/2000

 

A Europa precisa de 150 milhões de imigrantes para continuar mantendo seus serviços básicos em funcionamento, disse a ONU. Fazendo eco à preocupação desta entidade especializada em retórica, o papa conclamou os italianos a mais esforços na cama, para que a população do país não diminua. Houve quem interpretasse o apelo pontifical como uma ordem aos italianos para fazer mais sexo. Nada disso. Se bem conheço Sua Santidade e Sua Santa Doutrina, o bispo de Roma apenas sugeriu que os italianos reproduzissem, não que se divertissem. Uma por ano, no bom lugar e no bom momento. E basta, porca miséria!

Mal 2.000 alvoreceu, os editores já nos anunciam um profeta do século XXI. Chama-se Ian Angell e vem da Inglaterra. Com aquela prudência de pitonisa que quer durar no tempo, aposta no apocalipse. Seus oráculos estão em The New Barbarian Manifesto, onde anuncia nada menos que o fracasso iminente da Europa, o fim do Estado-Nação e a falência da democracia.

Bastaram estes pronunciamentos para que as viúvas tupiniquins da finada União Soviética, já cansadas do luto e dos dias de nojo, rebocassem a boca de vermelho e saíssem álacres às ruas para anunciar a boa nova. "A EUROPA APAVORADA CONSIGO MESMA", titulou a Folha de São Paulo. "Os europeus são uma espécie em via de desaparição", vaticina Contardo Calligaris. "Em poucos anos, na Europa, haverá um aposentado para dois trabalhadores ativos: uma carga insustentável. É necessário receber imigrantes".

Como se a Europa já não os recebesse. Paris é a cidade que tem mais argelinos depois de Argel. Português já virou segunda língua na França. Alemanha, Áustria, Bélgica e países nórdicos recebem levas de imigrantes árabes, turcos, iugoslavos e agora romenos e albaneses, oferecendo-lhes condições de vida que jamais tiveram em seus países. Na pequena Dinamarca, uma ONG — reciclando a bolorenta luta de classes em luta racial — publicou um cartaz onde um negrinho dizia: "Quando eu for branco, quero ser professor". Os dinamarqueses responderam com outro onde um louro nórdico reivindicava: "quando eu for muçulmano, quero ter direito à moradia".

A comunidade européia se fortalece e unifica tanto a moeda como a curvatura do pepino, recebe como membros de pleno direito primos pobres como Espanha e Portugal e expande-se rumo ao Leste abandonado. As cassandras saltam excitadas proclamando seu fim. "A Europa só sobrevive se deixar entrar quem quiser, para substituir os brancos que não nasceram", escreve outra viúva, o Luís Fernando Veríssimo.

Se alguém tem alguma dúvida sobre a identidade do adversário contra o qual Marx assestou suas armas, basta reler a primeira frase do Manifesto. O inimigo não é exatamente das Kapitalismus. "Um fantasma ronda a Europa: o fantasma do comunismo". Fantasma é algo que ameaça. A ameaça de Marx, no caso, dirige-se ao continente que o gerou. Mas o mesmo profeta que odiava a Europa também escreveu: "Tudo que é sólido se desmancha no ar". O marxismo, que se pretendia científico e eterno, esfumou-se no ar, deixando atrás de si o fedor de milhões de cadáveres. Exorcizado o fantasma, a acusação tem agora novos nomes. A Europa não mais peca por ser burguesa ou capitalista. A Europa é racista.

É a versão up to date do velho insulto. Quem acompanha a imprensa há mais de dez anos, terá notado que de 90 para cá a palavra racismo se multiplicou por mil nas páginas dos jornais. Mas racismo só existe onde há brancos. Quando hutus decepam pernas, braços e cabeças dos tutsis, jornal algum fala em racismo. Na África negra, por definição, não há racismo. Só brancos, preferentemente europeus — ou, no mínimo, ocidentais — são racistas.

A viúva gaúcha, afinando com o coral das carpideiras, dá o passo que Marx não ousou dar: identifica a Europa a brancos e quer o seu fim, via luta racial. A pretexto de fazer humor, o irado cronista sonha com o dia em que, no Ocidente, "os 17 brancos que sobrarem se entrincheirarão num condomínio de segurança máxima no meio do Colorado, com todo o dinheiro do mundo, para tentarem recomeçar a raça". Mas não dá certo: três das adolescentes estão grávidas de Paco, o jardineiro.

Esta ojeriza de Verissimo à cultura que o embala e sustenta, lembra o brado de outra viúva, já defunta, o Darcy Ribeiro. "A expansão do homem branco foi a maior catástrofe da história humana". Fosse esta afirmação feita por um analfabeto qualquer, sem maiores noções de história ou geografia, a frase passaria como mais uma das tantas bobagens reproduzidas diariamente pela mídia. Ocorre que ela foi proferida por um senador da República, cujo pensamento, profissão, vida e carreira foram nutridos pela Europa.

Durante um século, hirta de medo, a Europa fez concessões à ditadura russa. Entregou territórios, fez-se surda à opressão dos países do Leste e tentou conviver diplomaticamente com o fantasma transalpino. Moscou dividia Berlim em dois com um muro que parecia eterno, fazia turismo blindado em Praga e Budapeste e, em meio ao alarido de intelectuais que faziam acrobacias para justificar o injustificável, erguiam-se algumas vozes isoladas contra o avanço dos tanques russos. Vozes heróicas, como Camus, Gide, Panaïti Istrati, Orwell, Kravchenko, Raymond Aron. Vozes talvez inúteis, pois o sistema soviético ruiu desde dentro. A partir de 1991, a Europa passou a respirar sem medo.

Quando o fim do império se impôs, uma atmosfera de luto baixou sobre as redações do mundo todo. Havia quem achasse ser cedo demais para se falar em Ex-URSS. Não era cedo coisa nenhuma. Era Ex-URSS mesmo. Logo agora que o continente começa a sentir-se dono de seu futuro, as viúvas estão propondo uma nova manchete: Ex-Europa.

Só pode ser cio. E cio pós-menopausa.


 

Carla, Carnaval e Neologismos

10/3/2000

 

Os últimos carnavais, a pretexto de prevenção da Aids, têm sido precedidos por campanhas maciças recomendando o uso de preservativos. Profundo mistério. Parece que todo folião, nestes dias, só está pensando naquilo. Até pode ser. Mas uma pergunta se impõe: depois de uma noite de muito samba e muito álcool, sobrará espaço ou energias para sexo?

Jamais participei de carnavais em minha vida. Se não tenho autoridade para falar do assunto, tenho dúvidas: quando e onde? Após ter lutado com unhas, dentes e muita grana por um lugar num salão, bloco ou arquibancada, quem abandonará esse território conquistado a duras penas para dedicar-se a uma refrega sexual, que pode muito bem ser adiada para os demais 360 dias do ano? Vivêssemos em uma sociedade repressiva, onde só naqueles dias o sexo fosse permissível, o delírio erótico que a mídia insiste em nos vender como típico do carnaval seria não só inteligível, como também compulsório. Ora, não é o caso.

Não acredito em sexo em carnaval. Deve ser mais uma dessas associações para enganar incautos, como aquelas em que cavalos vendem câncer ou bundas vendem carros. Os ditos carnavalescos acenam com erotismo a granel, orgasmos, orgias. No fundo, querem vender coreografia, camarotes, cerveja, uísque, cigarro, preservativos e até mesmo o carnaval. Esta imagem de festa erótica já contamina até o governo. A pressão chega a ser constrangedora, a ponto de levar o cidadão comum a pensar que sexo é obrigatório no carnaval. Neste último, a preocupação das autoridades sanitárias teve rebotes inesperados.

A Associação Brasileira de Negros Progressistas ingressou com uma representação ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a abertura de processo contra o ministro da Saúde, José Serra, por racismo. Questiona-se a escolha de uma atriz negra para a campanha de prevenção à Aids no carnaval, na qual a moça pede que seu último parceiro faça o teste de HIV.

Para a entidade, a mulher negra foi ofendida ao ser exposta no anúncio como prostituta. O Ministério da Saúde reage: a atriz foi escolhida entre trinta candidatas, grupo que incluía louras, morenas e negras. Só teria ocorrido racismo se a melhor candidata não pudesse estrelar a campanha pelo fato de ser negra.

Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. Não fosse a modelo negra a escolhida no concurso, este poderia ser contestado por dar preferência a brancas. Curiosamente, não ocorreu aos sedizentes negros progressistas perguntar o que acha do assunto a principal interessada, a atriz Carla Leite. Que de modo algum se sentiu inferiorizada. "Pelo contrário, tenho orgulho de ter passado uma mensagem importante, por mais que haja polêmica", disse Carla.

Ao que tudo indica, não existe prostituta negra no Brasil. O diretor de Comunicação da Associação Brasileira de Negros Progressistas, Aguinaldo Triumpho Avellar, alega que os negros deveriam ser consultados sobre o teor do comercial. Assim, cada atriz negra que quiser trabalhar, terá de pedir prévia licença aos negros progressistas para saber se pode ou não candidatar-se a determinado papel.

A lei nº 7.716, de 1989, que define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, está sendo brandida a torto e a direito não para dirimir, mas para acirrar conflitos raciais. Em Brasília, um negro já foi para a cadeia por ter chamado outro negro... de negro. Como os conflitos raciais no Brasil jamais foram tão intensos como nos Estados Unidos, os progressistas tupiniquins estão fazendo o que podem para que possamos atingir os invejáveis níveis de ódio racial de um país de Primeiro Mundo.

O pior está por vir. Há uma tendência na imprensa internacional a considerar o Brasil como majoritariamente negro. Se você disser hoje a um americano médio que o Brasil é um país de maioria branca, ele ficará no mínimo desconcertado. Nos Estados Unidos, para efeitos de classificação racial, não existe o mulato. Ou você é branco, ou é negro. Se tiver uma gota de sangue negro lá no tronco de sua árvore genealógica, você é negro ad aeternum. Como negro passou a soar como insulto, negro agora não é negro: é afrodescendente. É o que se convencionou chamar de linguagem PC (politicamente correta), eufemismo gestado nas universidades americanas, para travestir uma velha palavra hoje desprestigiada: stalinismo.

A classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) admite outras nuanças. Temos brancos, negros, pardos, amarelos e indígenas. Segundo dados de 1996, a população brasileira é composta por 55,2% de brancos, 38,2% de pardos, 6% de negros, mais percentuais ínfimos de amarelos e indígenas.

Como servis imitadores da grande nação ianque, a afrodescendentada tupiniquim assumiu a linguagem PC. Que já é motivo de pilhéria, na mídia, literatura e cinema americanos. Entre nós, sempre na rabeira das modas dos grandes centros, continua a viger na imprensa e agora será adotada por organismos oficiais. No próximo censo, em obediência ao "politicamente correto" ianque, o IBGE deve incluir o termo "afrodescendentes". Acredita-se que o índice supere 45%.

Ou talvez não. O mulato — ou pardo, como quisermos — tem um pé em cada raça. A não chamar-se de mulato ou pardo, pode ser tanto preto como branco. Afrodescendente ... ou eurodescendente, se é que o IBGE aceita mais neologismos.

Quanto a você, leitor, melhor precaver-se. Daqui para a frente, cuidado com a lei 7.716, ao saudar aquele amigo ou conhecido como "meu negrão". Por via das dúvidas, melhor usar: "tudo bem, afrodescendentão?"


 

Ator Pede Perdão

17/3/2000

 

Sua Santidade pediu perdão, domingo último, pelos pecados cometidos no passado pela Igreja, enfatizando o tratamento aos judeus e crentes de outras religiões e as violações dos direitos de grupos étnicos, entre estes os negros e índios reduzidos à escravidão. Os mea culpa foram pronunciados na cerimônia do Dia do Perdão, na basílica de São Pedro, no Vaticano. Mas atenção: Sua Santidade não pediu perdão às vítimas. Nestes dias de ressarcimento monetário de crimes passados, nunca é demais ter cuidado com as palavras. João Paulo, prudentemente, pediu perdão a Deus. O Senhor, em sua infinita misericórdia, certamente se contentará com o mea culpa e deixará de lado a vil pecúnia.

Karol Woitilla começou sua carreira como ator na Polônia comunista. Desde logo viu que não iria muito longe nos acanhados palcos de Varsóvia e os trocou pelo grande palco de Roma. Não interpreta mais papéis menores, de dramaturgos do século. Em idade madura, assumiu o prestigioso papel de vice-Deus, o representante terreno daquele outro personagem de ficção bem mais antigo, Jeová.

Será que o papa acredita em Deus? Esta dúvida, aparentemente ociosa, não deixa de ter seus fundamentos. Os papas são em geral homens cultos, conhecem línguas vivas e mortas e têm ao alcance da mão bibliotecas prestigiosas. Conhecem não só a Bíblia como também história das religiões. Um homem com tal formação, a meu ver, há muito já descreu de deuses ou verdades absolutas.

Se João Paulo acredita em Deus, não deve ser no mesmo que nos mostra a Bíblia. Jeová regulamenta a escravidão e ordena massacres, guerras de extermínio, sacrifícios cruentos de crianças. Nestes dias em que, num estupro à semântica, até Pinochet é acusado de genocídio, o deus judaico-cristão é o primeiro responsável na história por uma matança das boas. Diante da ira divina, os bombardeios de Clinton à Iugoslávia são obra de aprendiz de genocida. Irritado com a humanidade pecadora, Jeová inunda a terra toda e mata todo ser vivo, salvando apenas Noé, sua família e um casal de cada espécie viva. Pelos pecados humanos, pagaram até as bestas. Quem mata um é assassino, quem mata milhões é conquistador, quem mata todos é Deus — costumava dizer Jean Rostand.

Robert G. Ingersoll, em um ensaio indignado sobre os textos bíblicos, pergunta-se se pode ser amoroso o deus que assim fala:

Trarei grandes castigos contra eles; enviarei flechas contra eles; eles serão queimados com fome e devorados com o calor sufocante e com amarga destruição.

Enviarei contra eles os dentes das bestas, com o veneno das serpentes do deserto.

A espada para fora e o terror destruirão os jovens e as virgens; os bebês também e os homens com cabelos grisalhos.

Deixemos as crianças sem pais e as mulheres viúvas; deixemos as crianças permanecer dispersas e pedindo; deixemos que elas procurem seu pão fora de seus lugares desolados; deixemos que saqueadores subtraiam tudo o que têm e que o estrangeiro estrague seu trabalho; deixemos que ninguém tenha piedade delas e não deixemos que ninguém ajude as crianças órfãs.

Comerás o fruto de teu próprio corpo — a carne de teus filhos e filhas.

E o céu sobre vós se transforme em brasa e que a terra abaixo de vós seja de ferro.

Amaldiçoados sejais vós na cidade e amaldiçoados vós, nos campos.

Farei minhas flechas bêbadas de sangue.

Eu rirei da vossa desgraça.

Sugiro um pequeno exercício intelectual. Nestes dias em que a Áustria foi satanizada como país potencialmente nazista, apenas porque os socialistas foram alijados do poder, imagine o leitor um Jörg Haider lendo em altos brados estes textos em seus comícios. Não faltaria jornalista bem informado — tipo aqueles que, sentados em uma poltrona no Brasil, acompanham campanhas eleitorais em Viena — para jurar de pés juntos que Haider estava lendo trechos de Mein Kampf. Verdade seja dita, Hitler jamais usou de retórica tão entusiasta em seus propósitos.

A Bíblia, no melhor estilo dos filmes-catástrofe, começa com um extermínio da humanidade e faz desfilar em seus livros guerras, banhos de sangue, vendetas. Mas todo este massacre patrocinado por Jeová não basta. Seu último livro, o Apocalipse, é escrito com ódio cru. Pela primeira vez vemos o Cristo montado em um cavalo, arma de guerra, trazida à Palestina pelo invasor romano. O Cordeiro volta para exterminar o que sobrou do dilúvio. Dificilmente encontraremos, na história da literatura universal, obra tão eivada de ressentimento e desejos de vingança como a de João de Patmos.

Teriam os bárbaros de qualquer país, em qualquer tempo, adorado um deus mais cruel? — pergunta-se Ingersoll. "Brahma era milhares de vezes mais nobre, assim como Osíris, Zeus e Júpiter. E também o ser supremo dos astecas, para quem eles ofereciam apenas o perfume das flores. O pior deus dos hindus com o colar de crânios e sua pulseira de cobras vivas, era terno e piedoso comparado com Jeová".Admitamos que Woitilla, impregnado pelo clima hodierno de defesa de direitos humanos e minorias, sinta-se compelido a pedir perdão por atrocidades passadas cometidas por sua Igreja. Tal pedido, procedendo de quem procede, soa a demagogia barata. Ao matar e exterminar multidões em nome da fé, a Igreja nada mais fez senão seguir as instruções de Jeová. Se os católicos quiserem adaptar-se aos ideais contemporâneos de democracia e direitos humanos, devem começam renegando o livro sanguinolento no qual se apoiam.

Seria esperar muito de um ator, mais preocupado com a mídia que com a coerência. Os padres católicos, que se alimentam de sangue humano todas as manhãs, sabem disto: enquanto houver no mundo pobres de espírito, sempre será possível vender o odiento Jeová como um deus amoroso e capaz de perdoar.


 

São Paulo sabe o que quer

24/3/2000

 

Quem acompanha estas crônicas, já deve saber que sou um pedestre inveterado. Não tenho carro, jamais tive, aliás nem sei dirigir. Meus pais também não tiveram carro, meus avós por ambos os lados tampouco. Muito menos meus bisavós, tataravós ou ancestrais mais longínquos. Deste pecado ecológico, minha estirpe toda, desde o Gênesis, é inocente.

A condição de pedestre me concede tanto graças como desgraças. Posso contemplar com vagar certas arquiteturas, que o motorista só percebe como um vulto. Também tropeço em mendigos, dissabor do qual está livre o homem protegido em seu útero metálico. Por outro lado, minhas necessidades de locomoção geram um mercado de sonho para os amigos do dinheiro fácil.

O pedestre paulistano, ao sair das bocas de metrô no centro, perceberá em torno a elas algo no mínimo estranho. Dezenas de barracas de camelô vendem passes de ônibus a R$ 1,00. Ora, o preço deste bilhete, emitido pelo sistema de transporte coletivo de São Paulo, é de R$ 1,25. Para o usuário, o preço normal é de R$ 1,15. Num passe de mágica, ao comprá-lo de camelôs, você economiza dinheiro. Milagre para santo algum botar defeito: o intermediário que revende o passe, contrariando toda a lógica do comércio, barateia o produto e ainda tem lucro.

Em recente reportagem, a revista Veja explicou o milagre, mais simples que a multiplicação de pães ou vinho. A chave do mistério reside no vale-transporte, bilhetes emitidos pelas empresas para seus funcionários. Quem não os utiliza ou precisa de dinheiro vivo imediato os revende aos camelôs por R$ 0,90. Ao comprá-los por um real, o usuário economiza 15% e dá ao camelô um lucro de 10%. Estes passes são aceitos pelo sistema clandestino de transporte, que hoje tem dez mil peruas transportando 30 milhões de passageiros por mês em São Paulo. Sendo clandestinos, os perueiros não podem resgatar esses vales. Repassam-nos então aos postos de gasolina, que os repassam aos sindicatos de transportadores, que os repassam à Prefeitura.

Até bem pouco tempo, os ônibus desta orgulhosa "maior metrópole da América Latina" mantinham a obsoleta figura dos cobradores. Para modernizar o sistema, cortar gastos e baratear o transporte, a Prefeitura decidiu substitui-los por catracas eletrônicas. E passou a exigi-las nos ônibus. Instaladas as ditas, os sindicatos alegaram ameaça de desemprego e conseguiram manter a instituição do cobrador. Hoje, ao tomar um ônibus, você tem uma máquina para enfiar o tíquete, instalada ao lado de um inútil que observa você enfiar o tíquete na máquina. Além de receber salário para observar você enfiar um papelucho numa catraca, os inúteis servem não só para onerar os custos, já onerados pelas catracas, como também para lavar os vales-transporte oriundos das peruas clandestinas.

Parece vigarice menor, quebra-galho da economia informal. Mas aquelas inocentes barraquinhas que cercam cada boca de metrô agilizam um comércio que movimenta a singela soma de 18 milhões de reais... por mês. Dez milhões de dólares. Pode parecer pouco. Mas Vicente Viscome — ex-engraxate que se tornou vereador e milionário e hoje está na cadeia — conseguiu amealhar apenas 16,5 milhões de reais... em toda uma laboriosa vida de corrupção.

Estão causando espanto no país as denúncias envolvendo a administração municipal de São Paulo, com prefeito, secretários e vereadores, todos atolados no mesmo mar de lama. Esta corrupção, segundo os analistas, não seria fenômeno exclusivo da gestão Celso Pitta, mas teria suas raízes no malufismo, janismo e ademarismo. Esta análise, a meu ver de pedestre, peca pela timidez.

A grande São Paulo, em números habitacionais, faz cinco Uruguais. A economia da cidade é vasta reserva de caça, para repasto de predadores. Fartam-se primeiro os leões e mamíferos de maior porte. O resto da carniça é disputado por abutres, hienas e chacais. O que cai do espalitar de dentes destes predadores menores vai nutrir ratos e bagrinhos, formigas e baratas. A grande massa de eleitores paulistanos jamais cometeria a insensatez de eleger representantes que interrompessem esta lubrificada cadeia alimentar.

Terminar com o substrato deste trambique, nem pensar. Vale-transporte é como filme nacional, abate-se no imposto de renda. Quem o paga, em última instância, não é o empresário. E sim eu e você, nós, os eternos panacas de plantão, vulgo contribuintes. As autoridades municipais, ao fazerem vista grossa a esta falcatrua generalizada, alimentam sua clientela. Milhões de passageiros se julgam muito espertos pagando 15% a menos do valor de venda do vale. Como também os funcionários, que recebem dinheiro vivo por títulos de transporte não utilizados. E a fauna toda de predadores se regala neste generoso rega-bofe de dinheiro público.

Há países — e não é no território da lenda — onde os cidadãos utilizam transporte coletivo sem vales-transporte nem tíquetes nem cobradores nem catracas. Levam no bolso uma carta previamente adquirida e têm consciência de que viajar sem pagar não é comportamento honesto. Mas isso é deformação de Primeiro Mundo, coisa de europeus sem malandragem alguma, que ainda não descobriram a arte de lucrar com as necessidades mais comezinhas de seus semelhantes. Construíram sociedades que invejamos, é verdade. Mas cada cidadão tem de pagar um preço caríssimo: a honestidade.

Se alguém pensa que pobre é honesto só por ser pobre, jamais entenderá São Paulo. Só almas mais castas, de uma ingenuidade nórdica, inconcebível nesta geografia tropical, poderiam imaginar que o grande eleitorado paulistano tenha algum interesse em eleger representantes incorruptíveis. Eleitor pode ser burro. Mas coerência é o que não lhe falta.


 

Islã e Ginecofobia

31/3/2000

 

Xenofobia é a palavra da moda, nestes últimos dias, na imprensa francesa. Recente pesquisa, entregue ao primeiro-ministro Lionel Jospin, mostrou que seis entre dez franceses acreditam haver "estrangeiros demais no país". A pesquisa, feita entre 1.012 cidadãos franceses, foi preparada pela Comissão Nacional Consultativa dos Direitos do Homem (Cncdh). O sentimento de "não se sentir mais em casa" é compartilhado por 55% dos entrevistados. O principal alvo continuam sendo os árabes. Para 63%, eles deveriam estar em outro lugar.

Para mim, também. Antes que algum leitor mais suscetível me atribua preconceitos anti-árabes, devo lembrar que esta acusação acaba de ser feita a Microsoft, na França. O corretor ortográfico do Word, ao encontrar a expressão "anti-stress", corrigiu-a para "anti-árabes". Racismo! — gritaram os mais excitados. Os movimentos de apoio aos imigrantes querem proibir o software infame. A Microsoft pediu desculpas e promete colocar em seu site um novo programa.

Precisemos pois o conceito de preconceito. O iéti, por exemplo, esse ser mítico que parece habitar os cumes do Himalaia. Raras vezes teria sido entrevisto e já é universalmente conhecido como o "abominável homem das neves". Abominável por que? É o que chamo de pré-conceito: ninguém conhece de perto o fenômeno e já o considera abominável. Até pode ser que seja. Mas isto é o que resta provar.

Se, no entanto, após longo convívio e intimidade com os iétis, concluo que eles são realmente abomináveis, não temos mais um preconceito. Temos um pós-conceito, e há horas venho insistindo na necessidade de dicionarizar esta palavra. Este pós-conceito em relação ao universo cultural árabe, só passei a alimentá-lo após viver na França. Antes disso, árabe era palavra que me atraía, pelo simples fato de designar homens, instituições e culturas distintas da minha.

Um de meus colegas de universidade em Paris era argelino. Na época, Giscard d'Estaing estava oferecendo dez mil francos, mais passagem aérea, a todo imigrante que quisesse voltar a seu país. "Nem que me dêem a França inteira, não volto" — me dizia Slimane — "não posso levá-la no bolso". Ele adorava Paris. Só não gostava muito de certos hábitos locais, como por exemplo aceitar que mulheres tivessem os mesmos direitos que um homem.

— Para nós, me dizia o argelino, mulher não tem voz. As francesas não entendem porque um árabe não aceita um não. É que mulher não tem vontade própria. Certa vez, perguntaram a um rei árabe o que ele achava de Golda Meir. Ele disse: "Não acho nada". Não podia achar outra coisa. Meir era mulher.

Slimane me explicou também como uma ocidental podia fazer para escapar ao assédio de um árabe nas ruas de Paris.

Se disser que está indo ao encontro do marido, aí então o árabe aceita uma negativa. Não por respeito a ela — ela não tem vontade — mas por respeito ao homem que é seu dono.

Ora, dirá o leitor politicamente correto (se é que os tenho), isto é a visão de apenas um árabe em Paris. Ocorre que não é. Mulher não tem voz entre muçulmanos, sejam estes árabes ou negros. Milhões de mulheres na África toda são obrigadas, ainda hoje, a esconder o rosto com véus.

Na infância, são mutiladas para o prazer, com o corte do clitóris e a infibulação da vagina. Como estas "cirurgias" são feitas com facas e mesmo cacos de vidros, não é raro ocorrer que ânus e vagina formem uma cloaca. Que isto ocorra em um universo muçulmano, poder-se-ia até mesmo entender, em nome dessa coisa vaga que se chama diversidade cultural e só alegada pela antropologia — a mauvaise conscience do Ocidente — em defesa de selvagens.

No entanto, não é raro que uma adolescente, filha de árabes, vivendo em Paris, estudando em Paris com suas amiguinhas francesas, tenha de abandonar a escola para casar com um primo a quem fora vendida ao nascer. Ou que, por ordem dos pais, esta menina insista em freqüentar uma escola laica com um véu cobrindo o rosto. Ou, como também acontece, surge aquele dia entre os dias em que uma sage femme chega em um vôo da Argélia, munida de uma navalha ou cacos de vidro, para executar o trabalho infame que os médicos franceses não aceitam executar. No país em que as mulheres alcançaram um invejável grau de independência pessoal e profissional, uma menina, pelo fato de pertencer a uma cultura muçulmana, é tratada como mercadoria e sexualmente mutilada... só porque uma tradição de brutos do deserto assim o quer.

Esta ginecofobia é o nó górdio que separa árabes de ocidentais. Enquanto não for cortado, será impossível qualquer diálogo entre Oriente e Ocidente. Este medo, diga-se de passagem, não é originalmente árabe. Em As Mil e uma Noites, a mulher pode ser serva e esposa, mas também é amante, guerreira e líder. Quem introduz este ódio ao feminino é o Islã. Não por acaso, em alguns países islâmicos, como Irã e Egito, esta obra máxima da língua árabe foi proibida.

Slimane era honesto comigo, não escondia sua visão da mulher. Mas como poderia eu convidá-lo à minha casa, não só habitada por minha mulher como também freqüentada por brasileiras, latinas e eslavas, acostumadas a olhar o homem de igual para igual? Como apresentar a uma amiga ou colega alguém que a veria como um zero à esquerda? Só posso concordar com os 63% de franceses que preferem ver os árabes em outro lugar. O que me espanta são os 37% restantes. Por certo constituirão aquele percentual de derrotados do século, que vêm no imigrante africano a última arma para banir da história algumas conquistas irreversíveis da cultura ocidental.

Não só na França há árabes em excesso. Estes senhores, que adoram virar o traseiro para a lua ao cultuar Alá, deveriam aprender a ver a mulher como ser humano antes de pretender viver na Europa.

Mas agora é tarde.


 

Morte na Praia

7/4/2000

 

No início dos 70, na Suécia, conheci dupla das mais curiosas. Jovens e mulatos, esquiavam, jogavam tênis com a nonchalance de nórdicos e moravam em Lidingö, bairro elegante de Estocolmo. Poliglotas, falavam sueco, inglês e português com fluência e cursavam universidade. Não lembro seus nomes. Exceto a cor da pele, nada os distinguia dos demais jovens nascidos no welfare state escandinavo.

Eram brasileiros, ex-pivetes das praias do Rio. Haviam feito uma ponta no filme Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus, e foram adotados por um casal sueco. Os adeptos de teorias sobre supremacia racial bem que poderiam debruçar-se sobre este tipo de migrantes. Ali estava a prova cabal de que inteligência ou aptidão não dependem de raça ou cor, mas de fatores ambientais como boa alimentação, saúde e educação. No Rio, dificilmente escapariam da condição de trombadinhas ou soldados do tráfico. Com sorte, talvez não passassem de vendedores de amendoim ou sorvetes na orla. Na Suécia, eram cidadãos plenos e tinham pela frente esta perspectiva tão rara entre nós, um futuro. O anjo da fortuna que, como se sabe, reside no Primeiro Mundo, decidira fazer um tour pelos trópicos. Adejou sobre as areias cariocas e decidiu salvar duas crianças de uma vida miserável.

Me ocorrem estas lembranças a propósito de Elián González, o balserito de Miami. Um grupo de cubanos — mais um entre milhares — jogou-se ao mar em uma balsa improvisada, em novembro passado, arriscando suas vidas em busca de uma outra vida. Não eram dissidentes políticos nem militantes anti-castristas. Apenas cidadãos comuns em busca dessas coisas mínimas encontradiças em economias fortes: salário decente, carne na panela todos os dias, opção de escolha na hora de comprar um par de sapatos ou calças. O anjo, que flanava sobre o gulag caribenho naqueles dias, viu a balsa espatifar-se nas ondas, os náufragos bracejando em meio ao mar. Ao divisar o menino flutuando em uma câmara de pneumático, a mãe já morta nas águas, decidiu cumprir sua cota de generosidade destinada a Cuba. Salvou Elián.

Mais que do mar, salvou-o de uma vida infame em Cuba. Futuro, no fundo, é o bem que todo migrante busca, ao deixar para trás pátria, família, amigos, infância. Migrar é tarefa para os espécimes mais diferenciados, os que optam por cortar laços e mesmo reptar a morte, se for o caso, em busca de uma geografia mais humana. Se a mãe de Elián morreu na tentativa, o futuro conseguiu pôr os pés em terra firme.

Ao escrever O Outono do Patriarca, Gabriel Garcia Márquez por certo não tinha idéia do caráter premonitório da obra, nem de que o personagem-título era, no fundo, seu compadre Fidel Castro Ruz. Nas vascas de seu outono, o patriarca que mandou ao paredón milhares de dissidentes, que forçou ao exílio três milhões de cubanos, condói-se agora com a sina de Elián.

Uma criança é bandeira de sonho em qualquer lugar, particularmente nestes dias em que as utopias sanguinolentas mostraram ao que vinham. Castro, desmoralizado como o último ditador da América Latina, agarra-se com unhas e dentes neste último refém da Guerra Fria. Acusa os Estados Unidos de seqüestro e faz da volta de Elián uma questão de brio nacional. Elián não quer voltar. Como perante a lei não tem vontade própria, depende do pátrio poder do pai, que ficou na ilha. Em decisão apoiada pelo presidente Clinton, o Serviço de Imigração e Naturalização (INS) americano decretou que Elián deve ser entregue a seu pai em Cuba. Juan González chegou ontem pela manhã a Virginia (EUA), para trazer o filho de volta.

Que curta é a memória das gentes, disto todos sabemos. Mas os jornalistas, com acesso a gordos arquivos, poderiam pelo menos ajudar a refrescá-la. Faz-se todo esse escândalo em torno a um menino, sem mencionar-se o maior êxodo de crianças já ocorrido no hemisfério ocidental. De 1960 a 1962, nada menos que 14.048 crianças desacompanhadas, entre seis e dezoito anos, abandonaram Cuba para viver nos Estados Unidos. Esta operação, mantida inicialmente em segredo, recebeu o nome de Operation Peter Pan, em alusão ao primeiro menino recebido em Miami, em 15 de novembro de 1960, Pedro Menéndez, 15 anos. A CIA foi acusada de espalhar boatos de que os adolescentes cubanos seriam enviados por Castro para a Sibéria. Verdadeira ou não a acusação, só numa ditadura comunista este rumor poderia causar temores. Mais tarde, Castro acabou enviando o melhor da juventude cubana para matar e morrer na África, a mando de Moscou. Se ir para a Sibéria era boato, morrer em Angola foi fato.

Com a crise dos mísseis cubanos, o último vôo comercial de Havana a Miami ocorreu no dia 22 de outubro de 1962. Nesse período, o anjo conseguiu embarcar 14 mil crianças. Outras 50 mil, com um visto de entrada nas mãos, ficaram a ver navios na ilha privada de Castro. Quatro décadas de tirania depois, Elián conseguiu atravessar o mar que o separava da condição de homem livre. Ao que tudo indica, não terá a mesma sorte dos ex-pivetes cariocas.

Em recente artigo, Garcia Márquez toma o partido de seu compadre. Defensor incondicional da ditadura castrista — tique ideológico cada vez mais freqüente em prêmios Nobel — para o escritor o verdadeiro naufrágio de Elián não teve lugar em alto mar, mas quando ele pôs os pés em território americano. Para um ficcionista famoso por suas incursões na literatura fantástica, não é difícil jogar com palavras. A realidade é bem menos literária. O grande náufrago nesta história toda, não é Elián. É Cuba.

O eleito pelo anjo da fortuna deve voltar à ilha nestes dias. Sobrevivente de um país que afunda, Elián González está prestes a morrer na praia.


 

A Arrogância do Terena

14/04/2000

 

"Penso que o caminho do índio daqui pra frente, e é esse meu trabalho, é educar a sociedade brasileira a respeito da filosofia da civilização indígena" — disse Marcos Terena, em recente entrevista para a revista Caros Amigos. As declarações do líder Terena em muito me lembraram meus dias no magistério em Santa Catarina. Encontrei, no currículo do curso de Filosofia da UFSC, uma exótica disciplina. Nada menos que História da Filosofia Catarinense. O Brasil ainda não criou o que poderia se chamar de filosofia e Santa Catarina já tinha, nos anos 80, nada menos que uma História da Filosofia ilhoa. Enfim, neste Brasil em que Marilena Chauí ou Carlos Nelson Coutinho disputam com Kant ou Platão o prestigioso título de filósofo, nada de espantar que Santa Catarina tenha uma história da filosofia ou que exista, no imaginário do Terena, uma filosofia da civilização indígena.

Se milênios antes de Cristo os fenícios já haviam descoberto o alfabeto, dois mil anos após a morte do judeu as culturas indígenas brasileiras mal conseguiram chegar a um preâmbulo de gramática. Culturas ágrafas, precisaram que o colonizador lhes emprestasse um alfabeto para chegar a uma expressão gráfica de seus idiomas. Inermes no tempo, vivendo em uma economia de caça e coleta, não têm vocábulos para designar as coisas novas que o engenho humano produz. Assim, não há uma palavra para trem em língua Terena. Diz-se ru mumocóti ituko-xané. Que quer dizer, mais ou menos, "aquele que caminha no trilho".

Ainda segundo Marcos Terena, os índios só conseguem contar até três. Depois de três, é muitos. Ou seja, nossos indígenas, sem sequer chegar a usar os cinco dedos de uma mão para criar uma aritmética, sem ter em sua língua palavras específicas para coisas de nosso dia-a-dia, já têm em seu bestunto o sofisticado conceito de filosofia. E mais: filosofia da civilização indígena. No ritmo em que marcha a universidade pública brasileira, não seria de espantar que amanhã nos oferecesse uma História da Filosofia Indígena Brasileira.

Comemora-se, semana que vem, os 500 anos do Descobrimento. Uma "Marcha Indígena 2000" chegou ontem à Brasília e ruma à Bahia, para protestar contra os eventos. Não pouparão esforços para provocar confrontos com a polícia, o que dará vibrantes manchetes no exterior. Com a aproximação das cerimônias, uma histeria anti-ocidente tem tomado conta da imprensa nacional e estrangeira. Divulga-se, com foros de dogma, a informação de que no Brasil havia seis milhões de indígenas por ocasião da chegada dos portugueses. E hoje só restariam 350 mil. Logo, temos mais um genocídio cometido pelo branco europeu. Segundo os líderes indígenas, não há nada a comemorar. Pois o Brasil pertence aos índios e todo branco é invasor.

A cifra dos seis milhões não é fortuita. Remete ao holocausto. Faz-se uma conta de chegar, e através de um complicado malabarismo intelectual, baseado em estimativas migratórias, lingüísticas e arqueológicas, chega-se lá. No fundo, um desejo de condenar o colonizador branco e por extensão a Europa. Que coincide com estes dias em que as utopias desvairadas estão em baixa. Mesmo que fossem milhões os indígenas, como comprovar o massacre? Quantos morreram de guerras tribais, endemias, pandemias, subnutrição e mesmo em confrontos bélicos com os colonizadores? Ninguém sabe.

Sem estes caluniados navegantes não existiria Brasil nem América Latina, com tudo o que esses dois conceitos significam, tanto para o melhor quanto para o pior. Qual a contribuição significativa do indígena a isto que se chama Brasil? Fora alguns topônimos, nenhuma. Índio só serve para cartão postal e ganha-pão de ongueiros. Humano sendo — condição que lhe foi negada pelos padres que hoje os defendem — como tal deve ser tratado. E também emancipado. Mas emancipar-se nem todos querem, pois significa responder ante a lei por atos definidos como crime. O que para um deputado seria um sonho, para o silvícola é direito.

Em um revelador documento, elaborado pelo Christian Church World Council, em julho de 81 em Genebra, recomendava-se aos missionários "educar e ensinar a ler os povos indígenas, em suas línguas maternas, incutindo-lhes coragem, determinação, audácia, valentia e até um pouco de espírito agressivo, para que aprendam a defender os seus direitos. É preciso levar em consideração que os indígenas desses países são apáticos, subnutridos e preguiçosos. É preciso que eles vejam o homem branco como um inimigo permanente, não somente dele, índio, mas também do sistema ecológico da Amazônia. É preciso despertar algum orgulho que o índio tenha dentro de si. (...) É preciso insistir no conceito de etnia, para que desse modo seja despertado o instinto natural de segregação, do orgulho de pertencer a uma nobreza étnica, da consciência de ser melhor que o homem branco".

Este documento, divulgado há duas décadas na imprensa brasileira, é tido como apócrifo pelos defensores da causa indígena. Até pode ser. Mas seus autores — pois mesmo os apócrifos têm autoria — estavam antecipando o que assistimos hoje. Bugres que, sem sequer ter chegado a uma gramática, empunham conceitos como filosofia e genocídio, para condenar os imigrantes que realmente criaram este país.

Está em cartaz nas salas brasileiras, O Informante, denúncia das manobras da indústria tabagista americana, que espalhou câncer mundo afora omitindo dados sobre os efeitos da nicotina. Todo fumante que vê o filme, horroriza-se ante o cinismo dos capitalistas yankees. Ora, se há uma contribuição verdadeiramente universal dos índios deste continente à humanidade, este legado é o tabagismo. Mas disto ninguém quer lembrar.


 

Flechas contra o tempo

21/04/2000

 

Um dos mais fascinantes relógios — entre os muitos que existem na Europa — foi inaugurado em 1979, por Jacques Chirac, no Marais, perto do centro Beaubourg, em Paris. Um autômato munido de uma espada, o Defensor do Tempo, entre as 9h e 22h, é atacado a cada hora por um dos três animais que o rodeiam, o caranguejo, o dragão e uma ave, simbolizando o mar, a terra e o céu. O ventre do dragão, que ronrona com um chiado metálico, forma o pêndulo. Às 12h, 18h e 22h, o Defensor é atacado pelos três animais ao mesmo tempo. Segundos antes da luta, três batidas anunciam o espetáculo. Um tambor em bronze dá as horas. Sempre que estou em Paris, procuro passar pelo Quartier de l'Horloge no momento do combate total, para contemplar, comovido, aquele poema em metal.

Chez nous, os relógios são outros, e profundamente irritantes. A semana foi farta em fotos, montadas para consumo do Primeiro Mundo. Um frade se ajoelha ante um grupo de policiais, armados com cassetetes e escudos, como se seu gesto pudesse conter o pelotão. Para marcar os 500 anos do Descobrimento, uma outra foto está correndo mundo, um índio ameaçando com arco e flecha o presidente do Congresso Nacional. Os motivos são mais de chorar que de comemorar: em pleno ano 2.000, ícones do paleolítico são usados à guisa de argumento. Mas a foto mais emblemática, que merece algumas reflexões, terá sido a do relógio comemorativo alvejado pelos índios. Os antipáticos relógios da Globo, que agridem a paisagem e os cidadãos em 28 cidades do país, até amanhã contarão as horas e minutos que faltam para fechar os cinco séculos decorridos desde o descobrimento.

No relógio do Marais, o homem defende o tempo contra os elementos que o ameaçam. Em Brasília, com suas armas precárias, alguns indígenas alvejaram o mostrador de um dos relógios. Há quem veja neste gesto um protesto contra o ufanismo da Globo, que pretende vender a idéia de cinco séculos para um país que mal tem dois. Ora, não sendo os índios telespectadores irritadiços, o ataque admite outra leitura. Os contestadores assestam seus arcos contra o transcurso da História. Em falta de instrumentos mais eficazes, os descendentes dos primitivos habitantes de Pindorama defendem sua cultura tentando parar o tempo com flechas.

Quando ouço falar em cultura indígena, puxo do coldre a História. Se me debruço sobre a Rússia, por exemplo, lá vou beber em fontes como Dostoievski, Kuprin, Scriabin, Eisenstein. Se me viro para a Suécia, lá estão Liné, Lagerlöf, Lagerkvist, Boye, Bellmann, Bergman, Taube. Se rumo à Finlândia, encontro Sibelius, Alvar Aalto, o Kalevala, a Nokia, etc. Se volto pela Alemanha, lá estão Goethe, Schliemann, Nietzsche, Einstein. Viro rumo à "nazista" Áustria, lá me esperam Mozart, Freud, Klimt, Koestler. Na França, tenho desde Rabellais a Balzac, Rodin ou Bizet, Concorde ou camembert. A Espanha deu ao mundo Cervantes, Cela, Goya, Gaudi, Dali, Picasso, flamenco, cante hondo.

Da Itália, nem se fala: Dante, Da Vinci, Rafael, Verdi, Vivaldi, Papini, Puccini, Fellini, spaghetti, Sofia Loren. O festival é tamanho que lá se origina a chamada síndrome de Stendhal, a crise que acomete todo viajante sensível perturbado com as manifestações da arte. Da Grécia, posso trazer um farto legado, que vem de Sócrates e Platão a Kazantzakis, passando por Theodorakis ou Costa Gavras. Mesmo o modesto Portugal, me oferece desde Eça e Pessoa, fados e caravelas, Porto e ginja. Isso sem contar as Notre Dames da vida, os Schonbruns, Versailles, Neuschwansteins e Hermitages. Já nem falo das cidades em si, festas que deslumbram o viajante, nem das arquiteturas, universidades, bibliotecas, museus, tecnologias, transportes, vinhos e queijos, cozinhas.

São estas conquistas humanas que me fascinam, e nisto não estou sendo nada original. Volto-me então para o universo indígena brasileiro. Onde encontrar algo que possa deslumbrar alguém, servir como emulação ou exemplo para gerações futuras? Mas algo intrinsecamente indígena, por favor. Missões não vale, é obra dos jesuítas.

Quando faço esta pergunta, não falta quem me brinde com um sofisticado palavrão: eurocêntrico. Em parte, até concordo. A Europa é pequena mas ativa e dela provém os melhores achados do Ocidente. Não vejo razões para não gostar do que é bom. Em parte, discordo. Na Europa também se desenvolveram pestes como o cristianismo, marxismo, nazismo, freudismo, antropologismo. Grafo antropologismo mesmo, pois a antropologia já virou religião, com dogmas, mártires, crentes e militantes.

Nestes dias de celebrações dos 500 anos, o jornal francês Libération lança a pergunta: o que é ser brasileiro, hoje? Ser brasileiro hoje — responderia eu se interrogado fosse — é aplaudir e endossar o que de pior o pensamento europeu produziu e deixar de lado o melhor de seu legado. Mas falava da cultura indígena, desta cultura tão decantada pela mauvaise conscience européia.

Passo a pergunta ao leitor. Que fizeram os índios de admirável, em sua trajetória imemorial? Não chegaram sequer a um alfabeto e hoje seus líderes empunham com aisance palavras greguíssimas como filosofia ou ecossistema. Já houve quem me respondesse: rede, artesanato, pinturas de urucum, lendas, cantigas. Vá lá. Mas é muito pouco para milênios de existência. Não tendo conseguido dominar a História, os autóctones de Pindorama parecem pretender interromper seu curso com toscas flechadas.

Decididamente, prefiro o Defensor do Tempo.


 

Europa Exporta Fantasmas

28/4/2000

 

Dias curiosos, estes nossos. Intelectuais urbanos, comodamente instalados em suas poltronas, escrevendo, pesquisando e se comunicando através de potentes computadores, via Internet, fazem das tripas coração para encontrar virtudes em civilizações que estacionaram no neolítico. Antropólogos e outros óologos já criaram, a partir de vagas suposições, uma cifra safada, a de seis milhões de nativos no Brasil por ocasião da chegada dos portugueses. (Há quem já avente dez milhões). Nestes dias, o Conselho Indígena Missionário (CIMI) está enviando uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da ONU, condenando o governo atual por omissão ante o genocídio. Ou seja, genocídio não mais se discute, já virou dogma. O que se discute é a omissão.

Em sua crônica de domingo passado, na Folha de São Paulo, Carlos Heitor Cony planta uma idéia mais ousada, a de 160 milhões de assassinos. Se pegar, pegou. Basta um Le Monde ou New York Times endossar a cifra, e a cifra vira verdade inconteste. Passaremos, do dia para a noite, à condição de genocidas desde o berço. Como esta culpa, ao que tudo indica, é congênita, milhares de mulheres estão parindo, hoje, nas maternidades do país, milhares de genocidazinhos.

Os tais de 500 anos parecem ter estimulado poderosamente a capacidade ficcional tupiniquim. Na véspera das comemorações, um estudo realizado por cinco professores do Laboratório de Genética da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concluiu que 61% da população do País tida como branca — segundo classificação do IBGE — tem linhagem materna de origem negra e índia. De cada cem pessoas brancas só 39 têm apenas linhagem exclusivamente européia. As demais têm a marca da miscigenação (33% de índios e 28% de africanos).

O estudo, intitulado Retrato Molecular do Brasil, ostenta foros de ciência. Tem a chancela de uma universidade e fundamenta-se em análises de DNA do universo pesquisado. Que universo é este? São apenas 247 homens e mulheres, de apenas nove Estados do país. Ou seja, a mostragem é menor que o número de condôminos de meu prédio. Até pode ser que este percentual seja real. Se é, o é por acaso. De uma observação de 247 pessoas nada se pode inferir, com precisão científica, para 160 milhões de habitantes. Ou assassinos, como diria — e disse — o Cony.

Ora, a partir de uma mostragem significativamente maior, o Le Monde já anunciou Monsieur Lula como le futur président du Brésil. Com o ego inflado por pesquisas anteriores às eleições, Fernando Henrique já sentou na cadeira de prefeito de São Paulo. O que só deu a Jânio Quadros o trabalho de desinfetá-la no dia seguinte. O estudo dos professores mineiros foi considerado por Elio Gaspari uma "verdadeira aula, motivo de orgulho para a ciência brasileira". É de espantar a docilidade com que jornalistas se dobram ante uma afirmação feita a partir de mostragem tão ínfima.

Não bastasse tanta besteira, impressa e reimpressa em páginas nobres, somos agora brindados com um primor de achado nestes dias de saturação de questões indígenas: o de que o banho seria a grande contribuição do índio brasileiro à cultura do colonizador. De ilhapa, vende-se a idéia de que a Europa, antes da descoberta do Brasil, era um continente de imundos folclóricos, que só viriam a ter noções básicas de higiene ao entrar em contato com os autóctones de Pindorama.

Difícil definir a causa desta histeria. Uma crise axiológica parece acometer os intelectuais contemporâneos, levando-os a tentar achar qualquer coisa de resgatável em culturas mortas ou moribundas. Os banhos estão já nos textos bíblicos, isto é, são tão antigos quanto a prostituição. Romanos e árabes os transformaram em momentos de convívio, lazer e luxúria, funções nada simpáticas aos olhos dos fanáticos católicos, que procuraram sepultá-los para sempre nas ruínas herdadas pela Europa cristã. Os romanos prezavam de tal forma os banhos, que chegaram a construir aquedutos para abastecê-los, aí estão as termas de Caracala como testemunho mudo da época.

Carlos Rangel nos esclarece melhor esta crise. No ensaio Del Buen Salvage al Buen Revolucionário, o escritor e diplomata venezuelano analisa o mais potente mito dos tempos modernos criado pelos colonizadores, o mito do bom selvagem, da inocência humana antes da queda, divulgado por Colombo e continuado por Montaigne e Rousseau. Em uma Idade de Ouro teria existido um homem bom, corrompido mais tarde pela civilização.

Homens da Idade do Ferro ou do Bronze, nos maravilhamos ao encontrar esse ser primitivo existindo em nosso tempo, ao constatar que esses seres não contaminados pela civilização permaneceram inocentes em nossos dias. "Por causa do mito do Bom Selvagem — escreve Rangel — o Ocidente sofre hoje de um absurdo complexo de culpa, intimamente convencido de haver corrompido, com sua civilização, os demais povos da terra, agrupados genericamente sob o qualificativo de Terceiro Mundo, os quais, sem a influência ocidental, teriam supostamente permanecido tão felizes quanto Adão e tão puros como o diamante".

Em crônica passada, escrevi que da Europa costumamos importar o pior. Estamos agora importando fantasmas. Os europeus são em grande parte responsáveis pelos mitos da América Latina, escreve Jean François Revel, em prefácio ao livro do autor venezuelano. Como potência colonizadora e forjadora da sociedade latino-americana, a Europa, "em nossos dias, na falta de seus soldados e sacerdote, persiste em remeter-lhe, hoje como ontem, seus próprios fantasmas".

As esquerdas rousseauneanas contemporâneas, ao empunhar a defesa histérica dos "bons selvagens", nada mais fazem do que realimentar o imaginário do colonizador.


 

Esqueceram de mim

5/5/2000

 

Arrependimento, pelo jeito, virou moda. Em Jerusalém, o papa pede perdão a Deus pelo tratamento da Igreja a negros, índios, judeus e crentes de outras religiões. Na Bahia, enquanto cardeais e bispos pedem perdão a negros e índios, um bispo pede desculpas a um cardeal enviado pelo papa — aquele mesmo papa que pediu perdão a negros e índios — porque um índio neto de negros não aceitou o pedido de perdão dos cardeais aos negros e índios. A meu ver, a Santa Madre esqueceu de pedir perdão a um importante segmento social. Ao que tudo indica, nós, brancos, não merecemos um acenozinho sequer de parte dos pedintes de perdão.

O perdão, gesto aparentemente simples, é algo complicado. Pedir perdão a alguém implica acusar-se ou acusar outrem. A CNBB, dividida entre o amor a Marx e a fidelidade a João Paulo, já começa a perceber estas sutilezas da penitência. Pedir perdão aos indígenas de Pindorama significa negar a ação evangelizadora de missionários como Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Evangelizar, de nobre missão virou arrogância do colonizador. Se os missionários julgavam estar salvando os gentios para a verdadeira fé, considera-se hoje que estavam destruindo culturas autóctones.

Não bastassem Manuel e José pertencerem ao panteão dos vultos da pátria, o cadáver de Anchieta espera pela canonização há mais de século nos escaninhos do Vaticano. E aqui reside o conflito. Verdade que a Igreja está repleta de contradições. Paulo, o fundador do cristianismo, foi o maior assassino de cristãos de sua época. Joana d'Arc foi antes queimada em fogo lento para só mais tarde ser canonizada pela mesma instituição que a jogou na fogueira. Os tempos eram outros. A imprensa da época não difundia os fatos à velocidade de nossos dias, nem o universo alfabetizado era tão importante a ponto de questionar contradições. E para anular contradições, havia um antídoto infalível, a inquisição. Nos dias que correm, não é fácil conferir a auréola de santo a quem começa a ser ungido com a pecha de colonizador.

Com a arrogância de quem se pretende portador de uma verdade única, a Igreja mexeu no calendário, na história, na legislação, na língua e até nos feriados dos povos. O nascimento do Cristo foi transferido para 25 de dezembro, para cobrir os festejos pagãos do solstício de inverno na Europa. Para eliminar da história as comemorações dos solstícios de verão, foram instituídas as festas juninas. Lusófonos, herdamos essa violência até no vocabulário. Enquanto nas demais línguas civilizadas os dias da semana correspondem a planetas ou deuses pagãos, no português temos essas excrescências referentes a feiras. O dia da lua vira segunda-feira, o de marte terça-feira, etc. O dia do sol virou domingo, dia do Senhor. Esta invasão católica do calendário atrapalha inclusive as relações de trabalho. Quando os padres metem o bedelho nos assuntos de Estado, proíbe-se o trabalho nos domingos. Não porque a Igreja esteja preocupada com o repouso semanal, afinal deveria caber ao interessado repousar quando bem entendesse. Ocorre que o trabalho nos domingos afasta a clientela das missas do dia do Senhor.

Vão longe os dias de Constantino, em que a Igreja ordenava ao Estado perseguir os defensores da antiga e tolerante cultura pagã. No entanto, mesmo tendo-se separado do Estado, os padres continuam enfiando a machado, na cabeça dos adolescentes, sua fé em crendices de povos do deserto, e ai de quem ousa contestar as aulas de religião no ensino público. Anátema seja!

Para excluir da história os saudáveis costumes gregos, a Igreja fez do sexo um pecado e o matrimônio virou sacramento. A ser ministrado, é claro, pelos padres. Em nome desta concepção dogmática das relações entre pessoas, proibiu-se o divórcio e o sexo fora do matrimônio. Gerações e gerações foram torturadas por estes conceitos vaticanos, em muitos países transformados em lei. Não contente em vetar o divórcio onde tinha e tem influência, a Igreja tentou e continua tentando proibir o aborto, condenando casais a um inferno particular e milhões de mulheres a arriscar suas vidas em clínicas clandestinas. Recusando-se ao controle de natalidade e à divulgação de técnicas anticoncepcionais, em nome de seus dogmas medievais, a Igreja condena multidões inteiras ao vírus da Aids. Isso sem falar na miséria decorrente da natalidade desbragada dos países do Terceiro Mundo.

Em fevereiro passado, cerca de 400 ONGs pediram ao secretário-geral da ONU, Koffi Annan, a expulsão da Santa Sé do organismo, alegando que esta bloqueia constantemente iniciativas sobre o controle de natalidade. Este tipo de notícia, é claro, não sai em capa de jornal.

"Não se compreende porque uma entidade de um hectare de terra, algumas atrações turísticas e uma cidadania que exclui mulheres e crianças deve sentar-se com os governos e estabelecer políticas que afetam a sobrevivência de mulheres e crianças", alegam os promotores da campanha. "É como se o Conselho de Segurança da ONU reservasse um lugar para a Eurodisney".

Não recebi dos padres e cardeais penitentes nenhum pedido de perdão por sua intromissão na legislação do país em que vivo. Esqueceram de mim. Por mim, no caso, não entenda-se eu. Mim somos todos nós, não negros nem índios, cidadãos de Estados laicos, que nada temos a ver com os dogmas de Roma e a eles Roma quer nos submeter, via legislação.

Felizes são os índios — assim pensei titular esta crônica. Felizes seriam eles, já que os padres agora se penitenciam de abafar suas culturas. Pensei, mas não titulei. Ao ver as fotos dos audazes contestadores da colonização, sentando bonitinho ante um altar, para reverenciar a religião do Deus em nome do qual foram catequizados, desisti do título inicial. Coitados deles. Foram enganados mais uma vez.


 

Na Peninsulazinha da Ásia

12/5/2000

 

Terça-feira passada, a Comunidade Européia completou 50 anos. No dia 09 de maio de 1950, os ministros Robert Schuman, Alcide de Gasperi e Konrad Adenauer lançaram as bases do que hoje conhecemos como a Europa dos Quinze. A data merece algumas reflexões.

Os insultos mudam conforme a época. Nos anos 70, predominavam palavras como reacionário, direitista, imperialista. Com a queda do Muro de Berlim, estes clichês ideológicos tornaram-se obsoletos. Urgia encontrar novos palavrões. Foi a vez de supremacista, racista e genocida. Já fui alvo de todos estes, e não só destes. Nas recentes discussões sobre os 500 anos fui brindado com insulto mais sofisticado: eurocêntrico. Em meio a estes debates, surgiu a insólita tese de que Moscou faz parte da Europa. Antes que algum leitor desavisado me julgue também moscovita, esclareço meu conceito de Europa.

O mesmo de pessoas tão díspares como Darcy Ribeiro e Guimarães Rosa. Em Mestiço é que é bom, Darcy a definia, despectivamente, como aquela peninsulazinha da Ásia, dobrada sobre a África. Em uma entrevista concedida a Günter Lorenz, em Diálogo com a América Latina, Rosa a definia como pequena e ativa. Tanto na "peninsulazinha" de Darcy, como no "pequena" de Rosa, não cabe o colosso russo. Antes de ser acidente geográfico, Europa é um conceito político, até hoje em construção. Juridicamente, a Europa atual é configurada pelo Acordo de Maastricht, que criou a União Européia, por sua vez baseada na Comunidade Européia. Neste espaço não se incluem nem a finada União Soviética, nem os países do Leste Europeu, assim denominados justamente por não pertenceram ao que, politicamente, se considera Europa. Isto é, a Europa dos Quinze. Que pressupõe democracia, sistema que a coitada da Rússia até hoje não conhece. Do tzarismo caiu no comunismo. Morto o comunismo, caiu nas mãos da Máfia.

Desde meus verdes anos, sempre tive obsessão por viagens. Minha primeira tentativa de sair de Pindorama não foi para a Europa, mas para Moscou. A Patrice Lumumba oferecia bolsas? Então é pra lá que eu vou. Na ocasião já fiquei sabendo, pelo Nosso Homem em Moscou, que Moscou não era Europa. Nosso Homem em Moscou é como chamávamos o diretor do Instituto Cultural Brasil-URSS, de Porto Alegre. Quando perguntei-lhe por preços de hotel em Moscou, já foi me avisando:

Não te preocupa, disso vais saber antes de partir. Só podes entrar na Rússia com hotel reservado e pago. Moscou não é aquela bagunça européia, onde podes chegar de mala em punho e escolher hotel no Quartier Latin.

Nosso Homem em Moscou era um visionário. Já nos 60, partilhava do atual conceito de Europa. Diz-nos a Enciclopédia Britânica: Geógrafos modernos tratam a antiga União Soviética como uma unidade territorial distinta, comparável a um continente, separada da Europa ao oeste e do resto da Ásia ao sul e ao leste. Esta distinção indubitavelmente deve ser mantida para a Rússia, que ocupa três quartos da União Soviética.

Não ganhei bolsa e acabei viajando rumo à bagunça européia. Enfim, prefiro deixar de lado citações de enciclopédias e relembrar minhas deambulações por "aquela peninsulazinha da Ásia".

Estocolmo, 1971. Fui postar uma carta. Na fenda de uma caixa automática, pus uma moeda de duas coroas. Em vez de uma cartela com selos, recebi de volta um impresso com um pedido de desculpas. Não havia mais selos na caixa. Para recuperar minhas coroas — ou os selos — teria de telefonar para o número tal.

Decidi pagar para ver. Estava na Suécia há menos de um mês e falava o sueco com precariedade. Os problemas começaram com meu nome, que na língua lá deles se pronuncia "Ianér". Do outro lado da linha, uma voz me pediu para soletrá-lo. E como é que diz jota em sueco? Pacientemente, a moça aventou outras palavras. Confirmei a letra que, descobri então, pronunciava-se "ií". Mas o pior estava por vir. Eu morava na Öregrundsgatan, informação que tampouco foi fácil de passar. Muito bem — disse a moça — amanhã, às 11hs, o senhor receberá o equivalente, em selos, a duas coroas. O senhor prefere a série do rei ou a série da ponte?

Recém-chegado naquelas bandas, apenas balbuciando o idioma local, eu preferia mesmo era piedade. Qualquer uma, respondi. Dia seguinte, mal passavam dois ou três minutos das onze, o carteiro enfia um envelope em minha porta. Nele vinham os selos, série do rei, com um compungido pedido de desculpas dos Correios.

Estou na Europa! — pensei, incrédulo. Este terá sido o episódio mais marcante de meus dias de Suécia. Lá, o Estado respeitava os direitos mínimos do cidadão. Um ano depois, encerradas minhas deambulações por aqueles nortes, voltei ao Brasil. Em Porto Alegre, fui telefonar de um orelhão e a máquina engoliu a ficha. Chamei a CRT, expliquei o caso, perguntei como devia fazer para telefonar. Ora, ponha outra ficha — me respondeu a moça.

Subi em meus tamancos. Eu quero a minha ficha de volta. A moça disse nada poder fazer. Pedi para falar com seu superior. Ela me passou alguém que também me sugeriu pôr outra ficha. Respondi que não pretendia pôr ficha nenhuma, queria a minha de volta, etc., pedi falar para com seu superior, falei com outro superior, repetiu-se toda a lengalenga e esta terceira e última instância me bateu o telefone na cara. Indignado, fui à televisão reivindicar meus direitos. O próprio jornalista que comentou o fato deveria estar pensando que eu havia voltado pirado da Escandinávia. Evidentemente, eu não estava mais na Europa.

No final dos 70, voltando de uma viagem da ex-Iugoslávia para a França, reservei um assento em uma cabina no trem Skopje/Belgrado. Escolhi uma cabina vazia e peguei assento na janela: se não dormisse, poderia praticar esse esporte que tanto me apraz, ver florestas, montanhas e neves desfilando ante meus olhos. Mal sentei, entrou o cobrador, seguido de uma prolífica família de iugoslavos. Junto com o cobrador, vinha um policial — acompanhado de um cão da mesma raça — com uma submetralhadora em punho. O cobrador mandou-me sair da cabina. Ingênuo e indefeso, eu exibia meu bilhete, mostrava o número nele e no assento, tentava explicar em todas as línguas que conhecia que tinha direito àquele lugar. Lacônico, o homem da submetralhadora me indicou a porta com o cano da arma. Que fazer ante tão sólida argumentação? Evidentemente, eu não estava mais na Europa. Iugoslávia, já em seu étimo, quer dizer eslavos do Sul.

Para meu consumo, entendo Europa como um espaço onde você pode reclamar o selo que a máquina não deu e ser gentilmente ressarcido. São pequenas coisas. Que pressupõem séculos de história atrás de si. Mas se você, ao defender o direito a um assento, recebe um cano de metralhadora na boca... bom, aí já não é mais Europa.


 

Aos Hematófagos Profissionais

19/5/2000

 

O papa João Paulo II iniciou ontem de manhã cedo, na Praça de São Pedro, no Vaticano, as comemorações de seus 80 anos, com uma missa em ação de graças na qual milhares de sacerdotes, bispos e cardeais de todo o mundo foram convidados a participar de um banquete regado a carne e sangue humanos.

A época nos inunda de palavras, palavras brandidas a torto e a direito, sem que muita vezes quem as empunha tenha a mínima idéia de seus significados. Em meus dias de magistério, perguntei a meus alunos que religião professavam. Melhor diria alunas, pois era um curso de Letras. A maioria quase absoluta disse ser católica. Duas ou três eram protestantes ou evangélicas e os raros varões da sala se declararam ateus ou sem religião. Muito bem. Que significa a palavra católica? — perguntei.

Aluna nenhuma soube responder. Continuei minha investigação. Os pais de vocês são católicos? Eram. Pois bem: perguntem a eles o que quer dizer a palavra católico e, por favor, tragam-me amanhã a resposta. Não chegou resposta alguma. Nenhum dos pais católicos das universitárias católicas sabia o que significava a palavra católico.

E assim caminham as humanidades. Milhões de gentes dizem professar esta ou aquela religião ou filosofia sem ter a mínima idéia do que esta ou aquela religião ou filosofia significam. O que importa é sentir-se partícipe de um rebanho. O século passado foi pródigo neste tipo de seres. Na universidade, vivi cercado de colegas marxistas que jamais haviam lido Marx. E se o lessem, pouco ou nada entenderiam. Havia ainda os que se diziam não-marxistas mas no fundo assumiam toda a filosofia marxista sem saber. Nem mesmo os militares, anti-marxistas por ofício, escaparam desta contradição. Ernesto Geisel, para não ir mais longe, levou o país a um estágio de estatização ao qual mesmo um petista da gema pensaria duas vezes antes de ousar levá-lo.

Não pouca gente neste mundo nega a existência de Deus mas assume toda a ética decorrente desta idéia. São ateus pró-forma, no fundo cristãos empedernidos. Castas alminhas iletradas, citam Cristo como um arauto da tolerância, logo aquele profeta irado que disse não vir trazer a paz, mas a espada. Que proclamou ainda, no melhor estilo stalinista: "quem não está comigo, está contra mim".

Mas falava de palavras. Uma outra, das mais repetidas pela imprensa, é ex-padre. Que um telespectador inculto fale em ex-padre, entende-se. Mas um jornalista devia conhecer melhor a matéria sobre a qual escreve. Os padres católicos da ordem de Melquisedec são sacerdos in aeternum, isto é, sacerdotes para a eternidade. Podem ser excomungados, abandonar a batina, renegar a fé, cometer heresia, mas continuam sacerdotes. Suas mãos preservam os poderes que lhes foram conferidos durante a ordenação. Assim, quando o padre, seja ateu ou apóstata, ergue as mãos sobre o pão e recita a fórmula mágica hoc est enim corpus meus, e repete o gesto sobre o cálice de vinho, dizendo hic est enim sanguis meus, nesse momento se realiza o mistério da transubstanciação, a transformação do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo.

Ex-padres e ex-homossexuais em muito se parecem. São aporias que nenhum Kant escreveu. Esta condição eterna do sacerdote foi muito bem captada em um filme francês de 1954, Le Défroqué. Escapa-me o nome do diretor, mas o personagem-título era interpretado por Pierre Fresnay. Por défroqué entende-se o sacerdote que largou o froc, isto é, a batina. No caso, o personagem era um padre que optara pelos ditos prazeres mundanos. Um seminarista jovem, imbuído disso que se chama amor cristão, tenta trazer o apóstata de volta ao rebanho. O défroqué o desafia, certa noite, a visitar um cabaré.

Em meio à alegria geral, cercado de mulheres, música e bebida — em suma, das coisas boas da vida — o padre descrente ergue as mãos sobre uma jarra de vinho e pronuncia as palavras fatais: hic est enim sanguis meus. O seminarista se desespera. Sabe que naquela jarra não há mais vinho, mas sangue de Cristo. Não pode deixar a espécie sagrada exposta em um ambiente de pecado. Sorve a jarra até a última gota e sai aos tropeções do cabaré, bêbado do sangue divino que, bem ou mal, não perdera as virtudes espirituais (no sentido de álcool) do vinho.

Quando um padre ou fiel come o pão ou bebe o vinho, depois de ambos consagrados, não está comendo simbolicamente o corpo de Cristo ou bebendo simbolicamente seu sangue. O santo Concílio de Trento é claro: "pela consagração do pão e do vinho se opera a transformação de toda a substância do pão em substância do Corpo de Cristo Nosso Senhor e de toda a substância do vinho na substância de seu Sangue; esta transformação, a Igreja Católica chamou com justeza e exatidão de transubstanciação". Em meados do século passado, alguns teólogos mais prudentes e com malandragens semânticas, tentaram cunhar os termos transignificação e transfinalização, para serem usados em lugar de transubstanciação. Mas Paulo VI, na sua encíclica Mysterium fidei, de 1965, reitera o dogma com a terminologia na qual foi expresso pelo concílio tridentino.

O padre católico, além de ser padre para a eternidade, é um hematófago profissional, que come e bebe carne e sangue humanos todos os dias. A recente missa dos 500 anos do Descobrimento, celebrada na Bahia, foi ironicamente emblemática. Na primeira missa, em 1500, os autóctones que mais tarde iriam devorar o bispo Sardinha, assistiram os padres de Roma comer e beber o corpo e sangue de Cristo. Nesta última, os bugres já se haviam civilizado, não mais comiam carne humana. Os padres, hieráticos e milenares, continuavam comendo a carne e bebendo o sangue do judeu. Como ontem, em Roma.


 

Condor Choca Militantes

26/5/2000

 

Para eles, as nações não tinham fronteiras e o palco de lutas era o planeta todo.

Em 35, uma judia berlinense, oficial do Exército Vermelho soviético, veio coordenar a revolução no Brasil, assessorada por aparatchiks belgas, alemães, franceses e argentinos. Osvaldo Peralva, membro brasileiro do Kominform, sediado em Bucareste, ao denunciar a conspiração toda em O Retrato (Editora Globo, 1962), foi banido do mundo intelectual e classificado como agente da CIA. O que Peralva denunciou com conhecimento de causa, foi mais tarde documentado por William Waack, no excelente Camaradas (Companhia das Letras, 1993), com pesquisas nos arquivos do Kremlin.

Em 36, foram todos para a Espanha, dar apoio bélico e moral a Stalin, que tentava imobilizar a Europa estrangulando-a com o controle do Mediterrâneo. Juan Negrín, ministro da Fazenda do governo Largo Caballero, raspou os cofres da Espanha em troca de aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas com 65 quilos de ouro cada uma (três quartos das reservas espanholas), Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: "Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém pode ver as orelhas". Aproveitando a vaza, um vigarista malaguenho fez fortuna internacional, dando o título de Guernica a um quadro em torno à morte de um toureiro.

Em 59, eles deram apoio logístico e de mídia a Fidel e Che, para instalar a mais longa ditadura da América Latina. De Paris, um filósofo feio, baixinho e confuso veio dar seu aval ao tirano do Caribe. Uma foto da época é das mais emblemáticas: Sartre, de pescoço espichado para o alto, adorando Castro como um Deus. Em La Lune et le Caudillo (Gallimard, 1989), Jeannine Verdès Leroux nos relembra este momento de extraordinária poesia.

Todos os homens têm direito a tudo que eles pedem — pontifica Castro. — E se eles pedem a lua? — pergunta Sartre. O ditador retoma seu charuto e se volta para o filósofo baixinho: — Se eles pedem a lua, é porque têm necessidade dela.

Pediam a lua no bestunto do ditador e do filósofo. Em verdade, queriam dólares, pão e liberdade. Da mesma forma que a Espanha, em 36, foi um campo de treinamento para a Segunda Guerra, a América Latina era laboratório de experimentos sociais para os filosofadores europeus que, no dizer de Camus, assestavam suas poltronas no sentido da História.

Também dos salões de Paris vinha o apoio teórico a Che Guevara e seus celerados, através de Régis Debray, mais tarde ministro de Mitterrand. Che morreu em odor de santidade e hoje é cultuado na Bolívia, como San Ernesto de la Higuera. Danielle Mitterrand, a viúva enamorada pela figura romântica do guerrillero, dá apoio a guerrilha zapatista em Chiapas, comandada por um agitprop branco travestido de líder indígena, o subcomandante Marcos. E a mulher de Debray criou a biografia fictícia da guatemalteca Rigoberta Menchú, embuste que mereceu o prêmio Nobel da Paz de 92.

Nos anos 60, eles tentaram reeditar no Brasil a Intentona de 35. Para isso, foram treinados na China, União Soviética, Cuba e Argélia.

Fracassados e escorraçados em 64, os sobreviventes migraram ao Chile para assessorar Allende e ao Uruguai para dar apoio aos tupamaros. De Cuba, vinha o brado de guerra: "un, dos, tres, mil Vietnãs". Derrotados no Uruguai em 73 por Bordaderry, deixaram o país conhecido como a "Suíça latino-americana" em destroços, com mais da metade de sua população ativa refugiada no exterior. Para simbolizar o apoio de Cuba ao regime marxista que se instalara no Chile, Castro presenteou Allende com uma submetralhadora. Presente de grego: foi a mesma que o líder marxista usou para suicidar-se em 73.

Derrubado o regime de Allende, eles rumaram à Argentina e Portugal, onde a "Idéia" estava em marcha. Em 76, instaura-se, com Videla, a ditadura militar na Argentina. Era o momento de dar de rédeas rumo a outros nortes.

Em 75, alguns militares lusos, entusiasmados com a derrocada de um salazarismo já moribundo, tentaram instalar na península ibérica a república socialista que os espanhóis já haviam exorcizado. A esperança migrara para Portugal. Ou para o Peru, onde o Sendero Luminoso e o Tupac Amaru assassinaram, nos 80, milhares de peruanos, sob a inspiração humanitária do Grande Timoneiro.

Era o que, em Paris, chamávamos de la grande randonée. Aventureiros de todos os quadrantes, alguns imbuídos de nobres ideais, outros de ressentimentos e vontade de poder, migravam de um país a outro para "fazer a Revolução". Em qualquer geografia sentiam-se em casa: sempre havia um comitê para recebê-los como heróis e delegar-lhes novas tarefas. Só no Rio de Janeiro, o cardeal Eugenio Sales alugou 80 apartamentos para abrigar aparatchiks de toda a América Latina, que chegaram a acolher grupos de 150, simultaneamente. O total de militantes hospedados, entre 76 e 82, chegou a cinco mil pessoas.

Eles percorreram o século e o continente latino-americano, receberam doutrinação ideológica e treinamento de guerrilha em diversos países. Quem atesta esta internacionalização são os próprios guerrilheiros em suas memórias. Foram financiados pela China, ex-URSS e até pela miserável Cuba. Além de dispor santuários para onde quer que fugissem, gozavam de exílios confortáveis nas sociais-democracias européias. Se um aparatchik era preso na mais discreta fronteira do mundo, no outro dia manifestantes em Paris, Berlim, Estocolmo ou Londres pediam sua libertação. A luta não tinha fronteiras. Agora condenam, indignados, a chamada operação Condor.

Que horror! Os militares da América Latina trocavam informações e serviços para combatê-los. Isto me lembra um debate dos anos 70 em Estocolmo. Pacifistas denunciavam as Forças Armadas suecas, porque estas usavam armas que feriam e matavam. Um oficial, muito pedagógico, teve de vir a público para esclarecer: "a função de uma arma é ferir e matar".

Consta que os responsáveis pela operação Condor até se comunicavam em código. Maquiavélicos, estes senhores.


 

O Antropólogo e as Tembés

2/6/2000

 

Em um rádio de táxi, ouvi um resto de notícia: em algum lugar do Brasil, índios reclamavam de assédio sexual por parte de soldados brancos. O alvo do assédio eram — cabe salientar — as índias da aldeia. Sem ter prestado atenção ao lead da notícia, fiquei sem saber o local dos fatos. Mas a idéia de índios empunhando um conceito de um crime tipicamente urbano, tão recente que ainda nem foi tipificado em nossa legislação penal, permaneceu zumbindo em minha cabeça.

Se o conceito contemporâneo de assédio sexual — harassment, em inglês — nasce nos Estados Unidos com os movimentos feministas, a condenação deste comportamento é antiquíssima, e já pode ser encontrada no Código de Justiniano (533 DC), no qual proibia-se seguir uma mulher de perto contra a sua vontade ou chamá-la a gritos por seu nome em via pública. Ao contrário do que possa parecer, nos Estados Unidos o assédio sexual não é crime punido pelo Código Penal. O fauno do Salão Oval teve o pescoço ameaçado por um impeachment não pela facilidade com que abria a braguilha, mas por perjúrio. Suas "assediadas" não queriam exatamente vê-lo na cadeia, mas sim reparações de caráter patrimonial, pelos danos morais sofridos. O conflito se resolve na esfera civil.

No Brasil, onde as novidades do Primeiro Mundo chegam com uma boa década de atraso, assédio por enquanto não constitui crime. Segundo projeto de lei da deputada federal Marta Suplicy, assim é definido: "Importunar alguém, com o objetivo de obter favores de natureza sexual, abusando de relação de autoridade ou ascendência, inerentes ao exercício de cargo ou função". No caso, tal atitude seria tipificada como crime, com pena de três meses a um ano de detenção ou multa. Um outro projeto, da senadora Benedita da Silva, quer também enquadrar o assédio na esfera penal.

Tal legislação livrará muita mulher — e mesmo homens — de coações embaraçosas, que beiram a uma espécie de prostituição forçada. Verdade que muita gente não vai gostar da futura legislação. Pois assédio tem suas contrapartidas. Com habilidade, a assediada pode cobrar vantagens consideráveis do agressor. Sem ir mais longe, Paula Jones e Monica Lewinski salvaram suas lavouras. Tenho grande carinho pelas prostitutas, as de verdade, que prestam seus ofícios mediante paga imediata. Mas sempre fui hostil àquelas moças que, no serviço público, galgam posições em trocas de favores sexuais.

E não só no serviço público, bem entendido. Esta prática simbiótica é rotineira em qualquer empresa de porte. Nas universidades, faz parte do currículo. Desde há muito vem sendo denunciada, no mundo acadêmico, a endogamia universitária. A instituição é antiga. Diz a lenda — ou as más línguas — que no frontispício da universidade da Basiléia havia uma inscrição, anunciando suas três vias de acesso: per buccam, per anum, per vaginam. O que não mudou muito de lá para cá. Hoje, professores se acasalam com professoras e geram professorinhos.

Pelo menos no universo urbano, a nova legislação deve produzir muito nariz torcido. Assédio, para quem gosta, pode ser muito lucrativo. O projeto de lei parece já ter chegado à selva, antes mesmo de ser ratificado no Congresso Nacional. Não menos estranho é que só agora venha-se a falar no assunto. Para os antropólogos tupiniquins, há meio século esta prática já era rotina.

Assédio a índias me lembra Mestiço é que é bom (Rio, Editora Revan, 1996), livrinho dos mais interessantes, cuja leitura recomendo a devotos da intelligentsia tupiniquim. Trata-se de entrevista com o senador e antropólogo Darcy Ribeiro, publicada postumamente e conduzida por Antonio Callado, Antonio Houaiss, Ferreira Gullar e Oscar Niemeyer, entre outros. Não resisto a reproduzir um dos grandes momentos desta charla. Pergunta Antonio Callado:

Darcy, a primeira fez que eu fui ver os índios, em 50 ou 51, já estava estabelecido que índia não se comia, para não bagunçar muito o coreto, era mais ou menos tradicional, para não começarem a comer as índias todas. Tanto é assim que, quando eu estive lá, o Leonardo Villas-Boas já estava na Fundação Brasil Central, sendo forçado a deixar o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) porque ele tinha comido uma índia, com que se casou. Quando é que você chegou lá pela primeira vez? Nessa época já tinha essa lei?

Responde o antropólogo:

É verdade. Eu comecei com os índios em 46. Essa lei existe até hoje, por causa do Rondon e da antropologia clássica. Eu fui educado para não trepar com índia porque, para o antropólogo, no meu caso específico, pesquisas longas eram difíceis. Hoje em dia é que as moças começaram a dar para os índios, as antropólogas dão para os índios, gostam de transar com eles, para fazer intimidades. Tão dando mesmo, dão para eles também. Coitado, índio também é gente. Então, dão. E como elas dão, os homens também começaram a comer as índias, antropólogos da nova geração.

Isso, para nós, sempre foi tabu e por uma razão muito séria, se você come uma índia é evidente que vocês têm uma relação de pessoas fudíveis e ela passa a ser sua mulher, o irmão dela passa a ser seu cunhado, o pai dela passa a ser seu sogro, o primo dela passa a ser seu primo e você passa a ter obrigações. Você fica obrigado a servir àquele povo e fica limitado. Eu passei meses com os índios, arranjava um jeito de ter uma. Por exemplo, eu não comia as índias Urubu-Kaapor porque eu estava trabalhando com os Kaapor, mas comia índia Tembé, que eram umas índias decadentes que havia lá.

Para o celebrado humanista, as bugrinhas não passavam de pessoas fudíveis. O neologismo e a elegância vernacular são da lavra de entrevistador e entrevistado.


 

Brasil Invade Amazônia

9/6/2000

 

Tantos são os boatos travestidos de fatos a circular na mídia, que hoje a melhor forma de negar um fato é transformá-lo em boato. É o que parece estar acontecendo com as ameaças de internacionalização da Amazônia. Nestes dias, anda rolando nos jornais e na Internet a denúncia de uma brasileira residente em Austin, de que os mapas usados nas escolas dividem o Brasil em duas partes: a do sul, o Brasil propriamente dito, e a do norte, como "zona internacional de preservação". Como até agora ninguém forneceu à imprensa os tais mapas, tudo não passaria de mais um dos tantos hoaxes que infestam os meios de comunicação.

A existência dos mapas até pode ser infundada. Mas não o são as pretensões internacionais à Amazônia brasileira. A história está longe de ser nova. Em 1971, em Estocolmo, minha professora de sueco afirmou com todas as letras: "O Brasil está invadindo a Amazônia". Há trinta anos, já se considerava naqueles nortes que Amazônia é uma coisa e Brasil é outra. Quando tentei mostrar-lhe que a Amazônia pertencia ao Brasil, ela nem discutiu. Olhou-me com a comiseração que reservamos aos defensores de idéias bobas.

De lá para cá, personalidades de mais prestígio que uma anônima estocolmense manifestaram posições semelhantes. François Mitterrand, que defendia o direito de ingerência da França nos países do Terceiro Mundo, chegou a proclamar: "O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia". Segundo Madeleine Albright, Secretária de Estado dos EUA, "quando o meio ambiente está em perigo, não existem fronteiras". Margaret Thatcher, ex-primeira ministra da Inglaterra, ia mais longe, em 1983: "Se os países subdesenvolvidos não conseguem pagar suas dívidas externas, que vendam suas riquezas, seus territórios e suas fábricas". Até Mikhail Gorbachev, administrador da massa falida soviética, se permitiu um palpite, em 1992: "O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes". John Major, ex-primeiro ministro da Inglaterra, foi curto e grosso: "As campanhas de ecologistas internacionais a que estamos assistindo, o passado e o presente, sobre a região amazônica, estão deixando a fase propagandista para dar início a uma fase operativa, que pode definitivamente ensejar intervenções militares diretas sobre a região".

Mas as pretensões à Amazônia não datam das últimas décadas. Entre 1840 e 1860, um obscuro tenente da Marinha dos Estados Unidos, Matthew Fontaine Maury, funcionário do Departamento de Cartas e Instrumentos do Departamento da Marinha de Washington, nutria um projeto simples e pragmático: uma vez alforriados os escravos negros de seu país, estes seriam enviados para colonizar a Amazônia brasileira. A república da Libéria, na África, resultou de um destes projetos. Deu no que deu.

E por que não colonizar a região amazônica com brancos? Maury empunhava argumentos de ordem geográfica. Se o europeu e o índio haviam lutado com suas florestas por 300 anos sem imprimir-lhe a menor marca, sua vegetação só poderia ser subjugada e aproveitada, seu solo só poderia ser retomado à floresta, aos répteis e aos animais selvagens e submetido ao arado e à enxada, pela mão-de-obra do africano. "É a terra dos papagaios e macacos e só o africano está à altura da tarefa que o homem aí tem de realizar".

O projeto de Maury não era original. Desde a década de 1830, os EUA planejavam abrir a navegação do rio Amazonas a todas as nações. Antes do oficial sonhador, um certo Joshua Dodge pensou estabelecer 20 mil imigrantes norte-americanos nas margens do Amazonas. Todos se comprometiam a reconhecer a soberania brasileira, pelo menos nos primeiros anos de colonização. À semelhança do que foi feito com o Texas, pretendia-se anexar a região aos Estados Unidos. A estratégia era simples. Bastaria comprar alguns brasileiros em Manaus, que passariam a ser "legítimos representantes de uma República da Amazônia, que se declararia estado independente do Império do Brasil, inclusive por discordar da forma como o país era governado, com sua monarquia".

Caso o governo brasileiro enviasse navios e tropas para restabelecer sua soberania, os cidadãos do novo estado amazônico independente apelariam para a proteção norte-americana. Uma força de protocapacetes azuis se apresentaria na foz do Amazonas para proteger a vida e os bens ameaçados dos cidadãos americanos.

Quem nos conta este quase desconhecido projeto de expansão americana é a professora Nícia Vilela Luz, em A Amazônia para os Negros Americanos (Rio, Editora Saga, 68). Segundo a autora, muitos americanos, bem antes da eclosão da Guerra Civil, achavam ser mais interessante libertar todos os escravos e enviá-los para fora da América. O intérprete maior desta vontade é o tenente Maury: "Convencido da superioridade do branco, só podia admitir o negro na condição de escravo e nunca numa posição de igualdade com o branco. Que fazer então com essa população negra uma vez posta em liberdade e cuja multiplicação ainda poderia submergir a raça branca?"

Felizmente, "Deus preservara a Amazônia deserta e desocupada para que os problemas do Sul pudessem ser resolvidos — prossegue Vilela Luz -. Acuados ao Norte onde não encontrariam mais terras do Mississipi por desbravar nem mais campos de algodão por subjugar, os sulistas, para se livrarem do seu excesso de população negra, salvando ao mesmo tempo sua economia e sua peculiar instituição, encontrariam a safety valve mais ao Sul, no vale amazônico".

Os mapas de Austin podem ser boato. Mas para a opinião pública lá fora, há muito o Brasil está invadindo a Amazônia.


 

Um Édito e Três Inéditos

16/6/2000

 

Quando se fala em livro eletrônico, não falta o neoludita que proteste: não vai pegar. E por que não vai pegar? Porque não dá pra levar pra cama. Porque não tem cheiro de livro novo. Porque não dá pra folhear. Vai gerar problemas sociais. Onde fica o emprego dos gráficos? Devem ter sido mais ou menos estas as alegações dos contemporâneos de Gutenberg, que se recusavam a abandonar os pergaminhos ao ouvirem falar do livro impresso. Não dá pra desenrolar. Não tem cheirinho de cabra. Vai causar desemprego dos copistas. Que será feito daquele auxiliares que desenrolavam o pergaminho para que o leitor o lesse?

Uma vez destampada a garrafa, não é fácil mandar o gênio de volta pra dentro. Na época do pergaminho, havia leitores aficionados que vendiam um rebanho de ovelhas para adquirir uma obra. Com a prensa do velho Guta, mais as inovações de Aldus Manutius, o livro democratizou-se e foi um fator poderoso de avanço cultural da humanidade. Os neoluditas contemporâneos podem achar insubstituível o livro-papel. Mas para quem já degustou um livro eletrônico, é insuportável a ausência de um search no antigo livro em papel.

Saí em busca, outro dia, de um livro editado há poucos anos, Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson. Como não estava disponível nas livrarias mais próximas, um balconista tratou de encomendá-lo à editora, daqui de São Paulo mesmo. Cinco dias depois, recebi o livro. Ora, é tempo demais em pleno ano 2.000.

Na mesma semana, recebi visita de um amigo escritor, que vinha de parir sua última cria. Acompanhara a gestação do livro com todos os cuidados de escritor antigo, angústias de gráfica, composição, revisão e agora tratava de divulgá-lo na mídia. Quis saber se eu publicara algo recentemente. Bom, eu havia publicado quatro livros no dia anterior. No mesmo dia, todos já estavam à disposição de qualquer leitor em qualquer quadrante do planetinha. E ninguém precisava esperar cinco dias para recebê-lo. Mesmo vivendo nas antípodas, poderia ter o livro em suas mãos em questão de uns trinta segundos.

O livro eletrônico está à distância de um clique de mouse. Editá-lo, uma vez digitalizado o texto, é coisa que se faz em meia hora, sorvendo um cervejinha ao lado do teclado. Com esta tecnologia, são eliminados outros obstáculos no percurso entre autor e leitor. Tais como editor, gráfica, distribuidor e livreiro, que constituem 90% do custo de um livro. A edição em papel não deixa de ser uma forma de censura. Más notícias, portanto, para aqueles escritores que apostavam no escasso raciocínio dos censores para divulgar seus livros.

Estas tribulações são passadas. Assim sendo, sugiro ao leitor alguns títulos meus, um édito e três inéditos, que por estas ou aquelas razões não foram publicados. Para lê-los, é preciso baixar o soft eRocket, em http://www.eBooksBrasil.org. Para adquiri-los, o leitor não precisa esperar cinco dias, nem mesmo cinco minutos. Clique no site supra e faça download dos livros.

Crônicas da Guerra Fria são crônicas publicadas em pequenos jornais do sul do Brasil. O fato de serem pequenos é fator importante: na grande imprensa, sempre soou como heresia rir dos sagrados ideais marxistas.

Engenheiros de Almas é um estudo sobre os fundamentos stalinistas da literatura de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Útil para quem tiver interesse em saber o que é realismo socialista.

Laputa são os conflitos de um escritor que, para ganhar seu pão, leciona Letras numa ilha tropical.

Mensageiros das Fúrias é minha tese de doutorado em Letras Francesas e Comparadas, defendida na Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III). Teve uma pequena edição em papel pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, há muito esgotada. Aborda o tema da revolta na novelística de Ernesto Sábato e Albert Camus. Hoje, considero ingênuos vários capítulos deste ensaio. Mas não renego minha cria. Afinal, financiou-me quatro anos de viagens, vinhos, queijos e amizades nos bistrôs de Paris e adjacências.

Que mais não seja, baixar o eRocket não deixa de ser uma boa idéia. O site oferece outros 600 títulos em português, mais edições de casas como a Barnes & Noble. Não deixe de baixar, da página da eBooksBrasil.org, uma raridade, os Pareceres, de Machado Assis, o patrono da censura no Brasil.


 

Da Eternidade do Padre Fermino

23/6/2000

 

"Vi como os católicos se revoltam com suas afirmações — escreve um leitor -. "Não se conformam, brigam, discutem, retrucam, ora com mais precisão ora com menos. Curioso".

Também acho. Até hoje não entendo como pode alguém irritar-se com um texto. Ora, se o autor propõe uma idéia ou visão de mundo distintas da minha, posso concordar ou discordar, aceitá-las ou rejeitá-las, mas não vejo motivo algum para irritação. Sou grato aos autores e amigos que demoliram convicções que a cultura oficial tentou enfiar-me goela abaixo, via escola. Verdade que hoje tenho uma base mínima de certezas e já não resta muito a demolir. Mas sempre encaro com simpatia opiniões contrárias ao que penso. Desde que não firam os fatos, é claro. Não vou concordar, sob pena de renunciar à minha inteligência, afirmações do tipo Moscou é Europa, Mozart é alemão, Cristo é filósofo, Allende foi assassinado. Tolerância tem limites.

Desde adolescente, tenho irritado não poucos crentes. Para quem tem alma gaudéria, não é fácil responder a esta pergunta: "qual é tua cidade?". Vivi em tantas que tenho de parar para pensar na resposta. Em primeiro lugar, não nasci em cidade, mas no campo, na fronteira seca do Upamaruty, Livramento. Só fui conhecer cidade aos onze anos de idade. No caso, Dom Pedrito, onde vivi cinco anos. Ou seja, apenas um décimo de minha existência. Mas se entendermos "minha cidade" como aquela em que enfrentamos os primeiros embates da vida, é bem possível que a minha seja mesmo Dom Pedrito.

A Igreja foi buscar-me ainda no campo. Uma catequista uruguaia apanhava-me em um jipe na Linha Divisória entre Livramento e Dom Pedrito para jogar-me nas aulas de catecismo. Na cidade, fui estudar em colégio católico, dirigido por padres oblatos. A eles agradeço minha iniciação em latim, francês e inglês. E só. Para desgraça de meus catequistas, muito cedo comecei a ler a Bíblia. Como não há fé em Deus que resista a uma leitura atenta da Bíblia, minhas dúvidas começaram a inquietar os oblatos. Um sacerdote de Bagé, franzino e inquisitorial, veio às pressas para tentar trazer o herege em potencial de volta ao rebanho.

Discutimos um dia todo, com várias jarras de água e um almoço de permeio. A cada preceito de fé que eu contestava, o padre Fermino Dalcin me jogava no rosto a acusação: "Arrogância. Orgulho intelectual. Quem és tu para contestar, aqui em Dom Pedrito, o que autoridades decidiram em Roma?"

Era um argumento pesado para um piá de uns quinze anos. Eu só tinha como defesa descrer do que não conseguia entender. Mas resisti e consegui, ainda adolescente, libertar-me do deus judaico-cristão. Bem sabia a Igreja o que fazia, ao proibir a leitura do Livro a menores de trinta anos. Como cachorro que sacode o corpo para secar-se, sacudi minha alma e procurei, nos anos seguintes, livrar-me da craca ética que vinha grudada ao cadáver do deus cristão. Esta é, a meu ver, a grande função da leitura, libertar o homem de mitos e superstições.

E, principalmente, da educação oficial imposta pela escola. Anos mais tarde, quando exercia o magistério em Santa Catarina, recebi de uma universitária o que considero ser a láurea suprema que pode receber um educador. O chefe de Departamento chamou-me à parte, constrangido. "Professor, uma aluna veio queixar-se de que tinha certezas ao entrar na faculdade. Depois de suas aulas, ela já não sabe mais em que acreditar".

Foi a gratificação maior, jamais superada, de meus anos de magistério. Eu havia conseguido semear a fértil semente da dúvida. Claro que não esquentei cátedra por muito tempo na universidade.

De outro fiel leitor, recebi esta ironia, a propósito de uma discussão em torno ao dogma da transubstanciação: "A cúpula da Igreja deve estar preparando um Concílio, para debater as questões levantadas pelo Janer. Balançam as colunas da Capela Sistina. João Paulo II, dizem, perdeu o sono várias noites, e desistiu de viajar pelo mundo para se dedicar ao assunto. Pela primeira vez, desde a invasão dos mouros, a Igreja Católica sente-se ameaçada, pelo Califa de Dom Pedrito".

Quando eu imaginava que padre Fermino pertencia a meu passado, cá está de volta, quatro décadas depois, o espectro do homenzinho. Se alguém nasce ou vive em Dom Pedrito, deve renunciar, ipso facto, à sua capacidade intelectual. Roma locuta, causa finita!

Pois naquela aldeia da fronteira, que em meus dias de ginasiano tinha apenas 13 mil habitantes, líamos muito Voltaire, escritor que passou os últimos anos de sua vida defendendo os direitos da razão, sempre polemizando contra "l’infâme", ou seja, a Igreja Católica, segundo ele a fonte dos piores abusos e superstições. Voltaire nasceu em geografia mais prestigiosa, Paris. Mas não seria de duvidar que lá no século XVIII, estivesse o eterno padre Fermino a censurá-lo: "Mas quem és tu, François-Marie, para contestar o que autoridades decidiram em Roma?" O mesmo devem ter ouvido Galileu, Giordano Bruno, Savonarola, Calvino, Lutero e Nietzsche.

O melhor estava por vir. Quando já pensava ter ouvido tudo quanto de insólito há para ouvir no mundo, o padre Fermino redivivo me surpreende: "Até que ponto é minimamente elegante, para não dizer justo, estarmos em um espaço aberto a todos os tipos de público, a desmoralizar as convicções alheias?"

Os cadáveres de Nietzsche, Swift, Voltaire devem estar se contorcendo sob a terra. Onde fica o ridendo castigat mores, tão caro a Molière? Deverá ser banido da história como símbolo de intolerância? Até os ossos do velho Marx, tão fanático e iracundo, devem ter sofrido um sobressalto. Afinal, de omnibus dubitandum era seu lema preferido: de tudo deve-se duvidar.


 

Dos Perigos da Leitura

30/6/2000

 

Em irônica mensagem dirigida ao fórum dos colunistas, um leitor com evidente pseudônimo quer saber quais são minhas leituras, para fazer afirmações, segundo ele, com tanta convicção. O espaço é curto para falar de quase meio século de bom convívio com os livros. Há os que lemos por prazer, outros por necessidade profissional e, os mais importantes, os que lemos por necessidade vital. Detenho-me, então, nalguns títulos e autores que me foram decisivos.

Nasci no campo e só aos dez anos fui conhecer cidade. Meu primeiro contato com literatura devo a meu pai, um camponês apaixonado por Fierro. Nas madrugadas de inverno, antes de buscar as vacas no campo, lágrimas escorrendo no rosto com a fumaça da madeira verde que alimentava o fogo no galpão, eu ouvia meu pai recitando as coplas de Hernández. Assim, antes mesmo de ler a Bíblia, Cervantes ou Platão, eu já sabia de cor várias estrofes do mais belo e telúrico poema que a América Latina produziu. Tenho hoje em minha biblioteca várias edições de Martin Fierro, desde solenes tomos com capa de madeira a uma que cabe no bolso da camisa. É para quando ando longe dos pagos.

Na cidade, estudei em colégio de padres oblatos. Sem querer, estes personagens vulturinos constituíram um excelente guia de leituras. Bastava um padre dizer lá em Dom Pedrito que tal título ou autor era proibido, e lá saímos correndo atrás do dito, mesmo que tivéssemos de importá-lo de Porto Alegre ou Montevidéu. Os oblatos nos enfiavam o catecismo católico goela abaixo. Mas, cientes dos perigos da leitura, não gostavam que os alunos lessem a Bíblia. Então devia ser leitura interessante. E foi lendo o Livro que perdi a fé no deus judaico-cristão, fé tão laboriosamente erguida pelos padres. Pois não há fé em Deus que resista a uma leitura atenta da Bíblia.

Nos dias de ginásio, caiu-nos nas mãos um autor argentino bastante difundido na época, José Ingenieros. Gostei de ler El Hombre Mediocre e me interessei por um outro título seu, Hacia una Moral sin Dogmas. Encomendei-o por uma freira que iria a Montevidéu. Na volta da irmã, fui excitado até o Colégio do Horto, ávido por trechear Ingenieros.

Eu trouxe teu livro — me dizia a freirinha, olhos esbugalhados. — Esse autor é diabólico, me queima nas mãos. Desculpa, mas não vou te entregar.

Eu havia apenas encomendado o livro. Se a irmã dera uma espiada no seu conteúdo, isso era por sua conta e risco. Aleguei que agora mesmo é que iria dar um jeito de consegui-lo. Assim sendo, melhor entregar-me o livro e continuarmos bons amigos. Foi o que ela fez. Soube mais tarde que havia abandonado o hábito. É possível que, sem querer, naqueles dias de guri eu tenha salvo uma alma do obscurantismo.

Depois surgiu Porque Não Sou Cristão, de Bertrand Russel. Mais uma História da Filosofia, de Will Durant. A biblioteca da prefeitura era pequena, mas sólida. Lá nos esperavam, cobertos de poeira, Platão, Cervantes, Poe, Balzac, Voltaire. O que faltava, dávamos um jeito de mandar buscar, em Santa Maria ou Porto Alegre: Rousseau, Montaigne, Montesquieu. Certa vez, fui abastecer-me na livraria Globo, em Santa Maria. Do alto de minhas calças curtas, para pasmo do balconista, fui pedindo: você tem a Suma Teológica? Na época, nem fora ainda traduzida no Brasil. Ainda bem: eu imaginava que fosse apenas um tomo só.

Não sei até que ponto 14 ou 15 anos é a melhor idade para ler estes senhores. Posso assegurar que mal não faz. Verdade que nos faltavam maiores conhecimentos para situar os autores em suas respectivas épocas. Mas lá do fundo dos séculos eles nos arejavam o espírito, deixando bem claro que não existe a Verdade, mas verdades. Que os conceitos de bem e mal são relativos e a justiça varia conforme as latitudes. Já daqueles dias, uma frase me acompanhou durante meus estudos de Direito: "Divertida justiça que um rio limita, erro aquém, verdade além dos Pirineus". Se hoje os professores se escabelam porque os alunos insistem em não ler nada, os perplexos oblatos se escabelavam porque líamos demais.

Nem nossos pais gostavam de tanto debate. Tínhamos de procurar a ágora para nossas tertúlias. Como os escassos bares fechavam cedo e os invernos lá da fronteira são vergastados pelo minuano, nosso último recurso eram os bordéis, onde discutíamos desde a enteléquia aristotélica até a constitucionalidade ou não da reforma agrária. Com o tempo, vendo que daqueles bolsos saía tudo menos grana, as profissionais decidiram pôr uma atalaia para vigiar nossa chegada. Mal nos aproximávamos, fechavam a casa: "Lá vêm os filósofos, a noite está perdida".

Assim, quando fui estudar Filosofia em Porto Alegre, a melhor parte dos gregos estava lida e anotada. Leônidas Xausa, cientista político gaúcho, discípulo de Harold Laski, me guiou com mão segura pelos meandros da República. Dagmar Pedroso esmiuçou o bom manejo do silogismo. Suas aulas de lógica foram o melhor legado de meus dias de universidade. Impossível discutir com quem não conhece lógica, já dizia Aristóteles. Muito advogado ou jornalista — particularmente os meninos egressos dos Cursos de Comunicações — hoje nem sabe o que é uma petitio principii. Se souber, talvez ignore que suas diferentes modalidades já estão no Organon.

De muitos livros e autores se forma a biblioteca de quem lê. A pergunta do leitor ensejaria um gordo ensaio. Destas leituras, restou-me uma lição: os melhores autores, não vamos encontrá-los na escola ou universidade. Quando um pensamento chega lá, já está fossilizado. Meus anjos tutelares, encontrei-os em geral em conversas de bares. Sobre Nietzsche, o mais decisivo, morto há um século, falo na próxima.


 

Da Atualidade de Nietzsche

7/7/2000

 

Aconteceu nos dias de universidade. Um colega um tanto inquieto, cujos interesses oscilavam do pugilismo às matemáticas, me abordou com o olhar desvairado. Empunhava um livro com verve. "Tens de ler este alemão. Urgente". Era o Ecce Homo — Como se chega a ser o que se é, de Nietzsche. Seriam umas dez da manhã. Acostumados àqueles humores repentinos, pensei dar uma vista de olhos no livro, para que meu instável amigo não mais me chateasse. Já no índice, comecei a irritar-me. Primeiro capítulo: porque sou tão sábio. Segundo: porque sou tão sagaz. Terceiro: porque escrevo bons livros. O último capítulo, uma pergunta: porque sou uma fatalidade?

É o tipo de introdução que convida o leitor desavisado a jogar o livro longe. Mas uma música qualquer, uma cantata de eremita que volta do deserto, emanava das páginas sublinhadas com fúria naquele livro ensebado. Deixei-me levar pela música, fui entrando na atmosfera rarefeita do pensador. "Ouvi-me!" — alerta Nietzsche já na introdução — "eu sou alguém e, sobretudo, não me confundais com qualquer outro".

Mergulhei com fúria na leitura. Sentia estar perto de algo vital. Este livro, no qual o alemão furibundo se apresenta aos pósteros com as palavras com que Pilatos entrega o Cristo às turbas — Eis o Homem — foi escrito pouco antes de seu mergulho na loucura. É certamente o pensador que com mais energia lutou contra a hipocrisia do cristianismo e contra o próprio Cristo, a ponto de assinar-se, em seus dias de insanidade, como o Anti-Cristo. Ao falar da morte dos deuses pagãos, completava: sim, os deuses gregos morreram. Morreram de rir, ao saber que no Ocidente havia um que se pretendia único.

A manhã se foi, entrei meio-dia adentro, esqueci de almoçar e, lá pelas três da tarde, tive de engolir esta: "Não me são desconhecidas as minhas qualidades de escritor; em determinados casos compreendi como se corrompia o gosto com o manuseio de minha obra. Acaba-se, simplesmente, por não suportar mais a leitura de outros livros, pelo menos os filósofos. (...) Disseram-me que é impossível interromper a leitura dos meus livros, porque eu perturbo até o repouso noturno. Não existem livros mais soberbos e, ao mesmo tempo tão refinados quanto os meus".

Tarde demais para voltar atrás. Procurei imediatamente as obras completas do autor. Primeira escala, Assim falava Zaratustra: "Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres". Zaratustra é o eremita que, ao voltar da montanha, encontra um santo em uma cabana no bosque, que entoa cânticos para louvar a Deus. O eremita se espanta: "Será possível que este santo ancião ainda não tivesse ouvido no seu bosque que Deus já morreu?"

Para um jovem sufocado pela propaganda de Roma, sorver Nietzsche era como beber água límpida, não poluída pelos construtores de mitos. Passei inclusive a estudar alemão, para degustar no original seus ditirambos. Mas a vida tem outros projetos para os que nela entram, e acabei aprendendo sueco. De qualquer forma, Nietzsche foi decisivo para minha libertação. Títulos como A Origem da Tragédia, O Crepúsculo dos Ídolos, Humano, Demasiado Humano, Além do Bem e do Mal, Anti-Cristo já antecipam o que este doublé de filósofo e poeta se propõe.

Postumamente, publicou-se uma versão apócrifa de Vontade de Potência, devidamente adulterada por sua irmã, Lisbeth Förster-Nietzsche — que morreu refugiada no Paraguai — para atender aos interesses do nazismo. Durante boa parte deste século, Nietzsche, inimigo jurado de filosofias coletivistas, foi associado ao nazismo. Principalmente pelos marxistas, que intuíam em seu pensamento uma condenação avant la lettre dos regimes socialistas. Esta associação é desonesta. Basta lermos as invectivas de Nietzsche aos alemães e à cultura alemã em Ecce Homo, para descartarmos este absurdo: "Em Viena, em São Petersburgo, em Estocolmo, em Copenhague, em Paris, em Nova York, por toda parte estou descoberto: não o estou somente no país mais ordinário da Europa, a Alemanha". Ou ainda: "Por onde quer que passe, a Alemanha destrói a cultura". Cabe lembrar que Nietzsche nasceu em Röcken, Prússia.

Este autor, dificilmente você encontrará nos currículos universitários. Seu pensamento demole sistemas, e a academia adora o pensamento sistematizado. Tampouco serve para criar qualquer espécie de culto ou religião: Zaratustra não quer discípulos. Nietzsche fala a homens livres, capazes de respirar a atmosfera das grandes alturas, que não temem a intempérie metafísica e dispensam muletas espirituais.

Há cem anos, morria Nietzsche. Nestes dias em que uma nova inquisição, o pensamento politicamente correto, quer impor sua vontade, o Anti-Cristo certamente lhe renderia uma carrada de processos. Este livro, que escandalizou — e ainda escandaliza — a Europa, é uma contundente catilinária contra o Cristo e seus discípulos e um entusiasta elogio de César, Nero, César Borgia, Napoleão e Goethe. Nas páginas finais, lemos um projeto de Lei contra o Cristianismo, dada no dia da Salvação do ano Um (a 30 de setembro de 1888, pelo falso calendário).

Art. 1º — É vício qualquer tipo de antinatureza. A mais viciosa espécie de homens é o padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não temos razões, temos a casa de correção.

Art. 2º — Qualquer participação num ofício divino é atentado contra a moral pública. (...) Quanto mais próximo se está da ciência, maior é o crime de ser cristão.

Art. 3º — O lugar de maldição onde o cristianismo chocou os seus ovos de basilisco será completamente arrasado, e sendo sobre a terra o local sacrílego, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Aí serão criadas serpentes venenosas.

E por aí vai. Leia Nietzsche. É salutar.


 

Álcool Alegra Sonâmbulos

14/7/2000

 

Enquanto o bispo de Roma, num rompante de autoritarismo medieval, afirma que os atos homossexuais são contra a lei natural — como se alguma lei natural existisse — os avançados nórdicos são tentados pela infame instituição ianque da discriminação positiva. O debate hoje na Suécia é uma decisão do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, que rechaçou na semana passada a prioridade das mulheres no acesso à função pública. A história tem origem em um incidente de 1996, quando a universidade de Gotemburgo anunciou a vaga de um posto de professor em Ciências da Hidrosfera.

Apresentaram-se três candidatos, duas mulheres e um homem. O jurado selecionou os três, dando o primeiro lugar a uma professora, o segundo ao candidato masculino e o terceiro à outra candidata. Como a candidata melhor qualificada renunciou ao cargo, o reitor decidiu-se pelo terceiro lugar, deixando de lado o segundo colocado, o candidato masculino. Antes que a moda chegue ao Brasil, que adora imitar os piores achados do Primeiro Mundo, o tribunal europeu sediado em Luxemburgo cortou as asinhas da incipiente discriminação sexista do reitor sueco.

Em um belo ensaio sobre a evolução do saber humano, The Sleepwalkers, Arthur Koestler compara o avanço da humanidade aos passos de um sonâmbulo, com suas idas e vindas, ora para diante, ora para trás. A Suécia, país pioneiro em matéria de direitos femininos, tende a instalar como norma a discriminação profissional. Mais ainda: a sociedade que nos 70 apregoou a liberação sexual, tipifica hoje a prostituição como crime, ao arrepio do bom senso e de quase todas as legislações do Ocidente.

Com um agravante: a pena, de seis meses de prisão, incide não sobre a profissional, mas sobre o cliente. Ou seja, prostituir-se não é crime, crime é pagar a prostituta. Os hiperbóreos parecem ter sido acometidos pelo sonambulismo de que falava Koestler.

Se os sonâmbulos recuam, também avançam. Em décadas passadas, o Welfare State sueco gozou da peculiar fama de uma sucursal terrestre do paraíso. Sua grife mais exportável era o erotismo, que escandalizava até mesmo outros países europeus marcados pelo catolicismo. Mas a abertura de espírito dos luteranos nórdicos não se estendia a um prazer perfeitamente lícito aos católicos, o álcool. Na Suécia, beber em bares era proibido. Beber álcool, bem entendido. Café, água, chá ou coca-cola eram perfeitamente permissíveis. Vinho, cerveja ou destilados, apenas em restaurantes, com comida, e só a partir das 12 horas até a meia-noite. As ruas de Estocolmo eram hostis a bares. A Suécia — e seus vizinhos nórdicos — constituía uma espécie de fortim puritano e sem graça em meio à alegria etílica européia.

Café ou água não excitam os espíritos. Não por acaso, bebida alcóolica em inglês é spirit. Em sueco, sprit. (Mesmo no português, temos espirituosos, palavra quase esquecida). Tampouco por acaso, nas ilhas gregas preferidas pelos Svenssons, nas ruas principais podia-se encontrar centenas de placas com os letreiros SPRIT ou TANDLÄKARE. Tandläkare é dentista. O estado-previdência sueco, além de taxar violentamente o sprit, não incluía em sua política de saúde o tratamento dentário gratuito.

A Suécia atual, particularmente no verão, tornou-se uma festa cotidiana ao ar livre. Estocolmo encheu-se de bares e restaurantes por todos os lados e mais parece Paris ou Madri. Com suas peculiaridades, cabe salientar. Como o verão nórdico não é exatamente o que, seres tropicais, entendemos por verão, além de calefação, alguns bares oferecem cobertores aos clientes.

Costumo afirmar que os bares constituem um dos grandes achados culturais do Ocidente. Lares sempre abertos ao solitário por vocação ou ao homem em busca de companhia, neles buscamos desde isolamento ou confraternização até abrigo. Para Buñuel, eram lugares de recolhimento e meditação. Se você tirita numa cidade hibernal, a distância entre seu corpo congelado e um útero quentinho, cheio de vida, tem a espessura de uma porta. Se você derrete em uma canícula de 40 graus, o oásis está do outro lado da maçaneta. Bar é a sala de estar por excelência, tanto do intelectual cansado da própria casa, como do estudante pobre que não tem um refúgio decente para receber amigos ou amigas. Pelo preço de um cafezinho ou um chope, conforme o grau de civilização da cidade que você habita, você pode oferecer a seu interlocutor um ambiente simpático e, eventualmente, sofisticado. Com a vantagem de ter à sua disposição um serviço solícito de cozinha e criados que você, por conta própria, jamais poderia pagar.

Freqüentador compulsivo de bares, sou às vezes confundido com aqueles outros espécimes da fauna cafeeira, os bebuns. Certa vez um esculápio, daqueles que acreditam em Deus e têm preocupações mais éticas do que científicas, perguntou-me: "Que vai fazer um homem em um bar?" Sua pergunta era como de vestibular, só admitia uma opção correta. Queria ouvir uma só resposta: beber. Ocorre que estou já longe da idade dos testes de múltipla escolha. "Em um bar, doutor, vai-se para fazer muitas coisas. Inclusive beber". Em bares troquei idéias, debati, conheci novas visões de mundo, descobri os melhores livros e autores, escrevi contos e crônicas, desenvolvi uma tese e orientei outras, namorei, fiz amigos. E até mesmo bebi.

Os cafés parisienses têm sua origem nesta necessidade antes intelectual que alcóolica. Como os universitários do Quartier Latin, nos primórdios da Sorbonne, não dispunham de calefação em seus studios, refugiavam-se nos cafés para estudar. Os suecos parecem finalmente ter entendido o espírito — sem trocadilho — da comunidade européia e suas cidades tornaram-se, hoje, cheias de vida.


 

Literatura Estatal

21/7/2000

 

Se o conhecimento das outras artes não é pré-requisito para a maioria das carreiras universitárias, por que o de literatura o é? — perguntava-se recentemente o professor Aldo Bizzocchi, em artigo para a Folha de São Paulo. Para este herege, o conhecimento literário só deveria ser exigido dos candidatos ao curso de Letras. "Se o objetivo do ensino de literatura na escola média é estimular no aluno o hábito da leitura, então, por que, em vez de obrigá-lo a ler obras de ficção de séculos passados, não se propõe a ele a leitura de obras importantes de não-ficção da atualidade, como os livros de Sérgio Buarque de Hollanda e Milton Santos, por sinal muito bem escritos, ou os de Carl Sagan, que possuem, aliás, excelentes traduções em português?"

Neste eterno festival de corrupção que é a pátria nossa, denúncias não faltam no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, nas administrações federais, estaduais e municipais. Há no entanto um setor, quase um Estado dentro do Estado, que permanece imune a quaisquer denúncias, a universidade pública. O país tenta desenferrujar sua economia, privatizando telefonia, bancos, empresas estatais. Mas não ouvi em lugar algum, por mais que afine os ouvidos, alguém falar em desestatizar a literatura. Pois o livro, neste país, tornou-se uma questão de Estado. Quando alguém pensa em comprar carro, sempre prefere um modelo estrangeiro. Se falamos de uísque ou vinho, bom mesmo é o importado. Se o assunto é literatura, ai de quem não consuma — ou ouse dizer que abomina — os autores nacionais. É suspeito de crime de lesa-pátria.

Tal suspeição recaiu sobre minha cabeça no mês passado, quando manifestei em artigo para a revista Exame meu desagrado em relação a uma literatura que é enfiada goela abaixo dos estudantes pela universidade brasileira. "Causou-me indignação Janer Cristaldo — diz um irado leitor — considerar soporíferos Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector e, além de tudo, afirmar que os jovens só os lêem porque são obrigados". Diga-se de passagem, não é de hoje que denuncio esta reserva de mercado. Durante meus anos de magistério, coagido pelo currículo, tentei em vão fazer com que meus alunos lessem Lispector, autora que nem mesmo eu suportava ler. Clarice — como tantos outros "autores estatais" — é uma imposição curricular que só serve para afastar um aluno da literatura. Em 95, falei deste impasse na PUC de Porto Alegre. Ao final da palestra, uma professora me procurou e confessou aliviada: "Fiquei confortada, professor. Eu também não suporto Clarice, meus alunos não suportam Clarice e somos obrigados a ler Clarice".

E por que somos obrigados a ler o que não gostamos? Porque poderosas instâncias, sediadas em Brasília, Rio e São Paulo (leia-se USP) assim decidiram, para alegria e regalo de editores com livre tráfego entre os donos da cultura.

O Brasil foi marcado, nos anos 70, pelo antipático slogan "ame-o ou deixe-o", versão tupiniquim do love it or leave it ianque, que pelo menos fazia aliteração. Gostar do Brasil era tido como dever patriótico, e não gostar beirava o crime contra a segurança nacional. Como a palavra de ordem era brandida por militares, para os militantes de esquerda passou a ser sinônima de mais um arbítrio da ditadura.

Os tempos mudaram, os militares abandonaram o poder, os militantes hoje posam de heróis e recebem obscenas aposentadorias, mas o slogan, embora discreto, continua imperativo. Não gostar de Brasil ou de literatura brasileira continua a soar como heresia para certas alminhas patrioteiras mais sensíveis. É como se o infeliz mortal que teve a desgraça de nascer neste território tivesse, ipso facto, a obrigação moral de louvar as ditas "coisas nossas". Entre elas, a literatura tupiniquim, cujo cultivo parece ser obrigação cívica.

Para entrar na universidade, você precisa dissertar sobre Machado, Guimarães, Lispector et caterva. Mesmo que ignore quem foram ou o que escreveram Platão, Cervantes, Nietzsche, Fustel de Coulanges, Dante ou Dostoievski. Isto sem falar em autores fundamentais para o entendimento deste século passado, como Aldous Huxley, George Orwell, Arthur Koestler, Bertrand Russel, Raymond Aron e mais dezenas de outros, mais vitais que os romances água-com-açúcar de Machado. Nestes dias em que uma família se dá por feliz se não tem um filho aidético, o drama maior da literatura nacional, desde há um século, é saber se Capitu traiu ou não traiu Bentinho.

Imagine se, para comer em um restaurante, você fosse obrigado a consumir vinho nacional. Claro que qualquer cidadão, em nome do elementar direito a beber o que bem entendesse, estrilaria. Curiosamente, quem pretende entrar na universidade é coagido a ler autores obsoletos, só porque são nacionais.

Curiosamente, os jovens, tão rebeldes e tão contestatários, engolem sem tugir nem mugir este ranço imposto pelos gerontes que dominam o ensino no país. "E por que os exames vestibulares não exigem dos candidatos à universidade cada vez mais o domínio de uma cultura geral, indispensável a qualquer profissional de nível superior, em lugar de cobrar deles apenas o conhecimento histórico da literatura portuguesa e brasileira?" — pergunta o professor Bizzocchi.

A resposta é simples. Os restaurantes são privados. E o ensino é público. Neste país que excele em profissões inúteis, como ascensoristas, juízes classistas e flanelinhas, deixar a literatura flutuar no livre jogo do mercado seria tirar o ganha-pão destes vendedores de vento, os professores de letras.


 

Brasil financia Fidel

28/7/2000

 

Nestes dias em que se debate a tecnologia dos alimentos transgênicos, poucas pessoas sabem quem foi Lyssenko. E quem sabe prefere não lembrar. Em 1935, surgiu no campo das ciências biológicas, na finada União Soviética, o agrônomo Trofim Lyssenko. Em uma tentativa de domesticar os genes e submetê-los às sagradas leis da dialética, ele proclama que a aparição de caracteres novos transmitidos pelo organismo à sua descendência depende do meio. Isto é, que os caracteres específicos adquiridos podem ser deliberadamente transmitidos. Sua ascensão é imediata e ele se torna presidente da Academia de Ciências Agronômicas. A ciência passa a dividir-se então entre ciência burguesa e proletária. Nos meses de julho e agosto de 1948, em sessão pública da Academia, Lyssenko exibe híbridos como prova de sua tese. Experiências grosseiramente truncadas deram couves transformadas em rutabagas, palmeiras em pinheiros. Os "mencheviques idealistas" que não aprovavam os resultados seriam excluídos da Academia, transferidos e mesmo deportados para a Sibéria. A menos que reconhecessem publicamente seus erros.

O caso teve grande repercussão nos meios intelectuais do Ocidente. David Caute, em Le Communisme et les intellectuels français, cita as moções de apoio a Lyssenko da parte de homens de letras francesas. "O povo soviético em peso — escrevia Jean Triomphe — aplaudiu Lyssenko por ele recusar-se a abdicar ante a natureza, porque ele crê na ciência, porque ele tem confiança no homem". Para Pierre Daix, Lyssenko havia liberado a genética do império da política reacionária.

Os genes, infelizmente, não estavam totalmente de acordo com Lyssenko. O professor Anton R. Zhebrak, geneticista de reputação internacional, foi denunciado na Pravda por ter dito a uma revista americana que muitos geneticistas russos apoiavam a teoria Morgan-Mendel.

Imediatamente após a denúncia, o professor Zhebrak faz chegar ao jornal sua autocrítica: "Eu, como membro do Partido, considero que não me é permitido abrigar opiniões que foram reconhecidas como errôneas pelo Comitê Central". Galileu do século XX, Zhebrak julgou melhor dobrar-se à inquisição marxista.

As experiências fajutas de Lyssenko quase arrasaram com a agricultura russa, tornando-a dependente, até hoje, de grãos do Ocidente. Mas o que a Santa Madre Rússia proclamava era então dogma para a intelectuália tupiniquim. Até mesmo em Porto Alegre tivemos um lyssenkista, o agrônomo Luiz Carlos Pinheiro Machado, que durante décadas pretendeu submeter os genes às leis da dialética.

As reações mais histéricas aos avanços contemporâneos da engenharia genética — estes sem as trucagens do agrônomo russo — provêm precisamente dos herdeiros tardios do stalinismo. Ora, os engenheiros genéticos pretendem suprimir atividades de genes e transferi-los de uma espécie para outra, a mesma ambição de Lyssenko. No Brasil, o PT, a CUT e o MST constituem os principais bastiões de resistência aos alimentos transgênicos, contra os quais até agora não há prova alguma de malefícios ao meio ambiente ou ao organismo humano, após cinco anos de cultivo de 41 milhões de hectares em doze países. Como a engenharia genética é uma área amplamente dominada pelos americanos, os transgênicos são intrinsecamente maus. Fossem os transgênicos socialistas, constituiriam o sumo bem para a humanidade.

Y a las pruebas me remito.

Por exemplo, as famosas vacinas cubanas contra a meningite, importadas pelo Brasil pela bagatela de 250 milhões de dólares. Na grande São Paulo, a vacina cubana foi administrada em 1989 e 1990 para 2.400.000 crianças, na faixa etária de três meses a seis anos de idade. Após a campanha de vacinação, não foi observada queda do coeficiente de incidência da meningite.

Mas as vacinas eram socialistas. E quem duvida — salvo reacionários irrecuperáveis, como este que vos escreve — da excelência da medicina cubana? Em abril de 94, o ministério da Saúde brasileiro decidiu liberar o uso destas vacinas, suspensas desde 91. Na época, a Organizacão Panamericana de Saúde (Opas) já constatara que sua eficácia era baixa em menores de quatro anos e quase nula em menores de dois. Mesmo assim, o Rio de Janeiro formalizou o pedido das vacinas. Consulto quem entende do assunto, o professor e pesquisador Isaías Raw, do Instituto Butantã. Responde-me o professor Raw:

"A verdade é que a vacina cubana não imuniza crianças abaixo de dois anos (nem de quatro) onde a meningite B é mais freqüente e pode ser fatal. Crianças pequenas usualmente não respondem a polisacarídeos. Para maiores de quatro anos a vacina funciona, evitando que adultos espalhem a meningite para filhos, etc., o que não justifica o seu uso generalizado que deu a Cuba 250 milhões de dólares".

Há um sentimento de revolta generalizado contra a corrupção que assola o país. Terça-feira passada, manifestantes do PT, CUT e MST organizaram em São Paulo o Dia do Basta. O protesto denunciava, entre outros escândalos, o desvio de 169 milhões de reais na construção de um prédio do TRT, pelo ex-juiz do Trabalho Nicolau dos Santos Neto — Lalau para os jornalistas -, foragido há três meses. No mesmo dia, o MST invadia em Recife, com coquetéis molotov, um cargueiro de bandeira liberiana que transportava milho transgênico, importado como ração animal.

Ora, o rombo produzido pelo Lalau, em moeda forte, é de 89 milhões de dólares. Quase um terço do que foi tungado do contribuinte brasileiro para a compra de um placebo socialista. Esplêndido país, este nosso: suas crianças estão expostas à fome e à delinqüência nas ruas e seus dirigentes se dão ao luxo de financiar uma ditadura no Caribe. Contra esta corrupção, nem a imprensa nem as oposições pedem investigação.

Não pedem nem vão pedir.


 

Manhã em Umeå

4/8/2000

 

A Noruega, aquela tripinha de país mais magra que o Chile, tem 4,8 milhões de habitantes. Superfície agricultável de 3% do território, força de trabalho de 2,3 milhões de homens e renda per capita de 24.700 dólares. Tem também um rei, personagem obsoleto nestes dias republicanos. Este colosso que habitamos, "gigante pela própria natureza", tem hoje 170 milhões de habitantes, força de trabalho estimada em 57 milhões e uma renda per capita de 6.100 dólares. Sem ser monarquia, tem um presidente, também conhecido como o Príncipe dos Sociólogos.

Nas metrópoles deste gigante, gerido pelo Príncipe dos Sociólogos, temos de cuidar para desviar nas calçadas de uma informe massa humana que vive em condições eméticas. A maior parte de sua população, sem ser criminosa, vive atrás de grades, para proteger-se da violência dos que estão do outro lado das grades.

Perambulando em um fim-de-semana em Oslo, observei dois flagrantes de exclusão social, para usarmos uma expressão de moda. Na Karl Johansgate, rua principal da capital norueguesa, um pedinte, de terno preto e gravata borboleta, estendia seu chapéu aos passantes. Como paga, cantava trechos de ópera. Mais adiante, no parque Vigeland, outra cena não menos insólita. Duas menininhas, algo entre oito e dez anos, muito bem vestidas, pediam alguns trocados aos turistas. Em troca, cantavam antigas canções nórdicas. De partitura em punho, bem entendido.

Semana que vem, o rei Harald V, da Noruega, estará viajando para a Espanha. Rei sendo, e de um dos países mais ricos do mundo, seria de supor-se que viajasse em uma aeronave real, equipada à altura de sua majestade. Nada disso. O rei Harald viajará em classe econômica, sentado ao lado de turistas que só viajam em classe econômica por não ter como pagar melhor viagem. "Posso confirmar que não há desperdício de dinheiro no palácio", afirmou o secretário do gabinete real, Knut Brakstad. A propósito, visitando a Islândia no último final de semana, Sua Majestade, acompanhado da rainha Sonja e de uma pequena delegação, viajou pelo país em um ônibus de turismo comum.

O Príncipe dos Sociólogos — que, longe de ser V, é Único — em seus freqüentes périplos pelo exterior, não iria submeter-se ao desconforto de viajar como o rei Harald, ao lado de qualquer mortal. Nossas ruas podem estar cheias de pedintes, empunhando não partituras mas porretes, para extorquir alguns centavos dos passantes. Mas nosso príncipe viaja em aeronave especial, com aposentos privados, para não misturar-se nem mesmo com seus bufões.

Verdade que o avião presidencial, já mais para sucata que para aeronave, está proibido de entrar em vários aeroportos do Ocidente, para não poluir o silêncio das cidades com seus estrondos de carroça velha. Mas que se vai fazer? Melhor uma carroça particular do que o horrível contato com a gentalha de todos os dias. Tudo muito coerente. Pobre tem uma necessidade patológica de posar de rico. Senti brutalmente isto em uma manhã de verão em Umeå, pequena cidade sueca, no fundo do golfo de Bótnia. A Suécia, é bom lembrar, tem 8,8 milhões de habitantes, uma força de trabalho de 4,5 milhões de homens e uma renda per capita de 19.700 dólares. Dado o alto custo de vida naqueles nortes, para um Svensson, passar férias nas ilhas gregas ou Canárias é refresco.

Estava em Umeå, dizia. Mais precisamente na Storegatan. (Toda cidade sueca tem uma Storegatan, geralmente a rua principal). Era sábado e os bares estavam repletos de suecos e suecas, desfrutando o tímido sol do Ártico. Os habitués, para os quais uma Mercedes ou BMW não constituiria grande rombo no orçamento, haviam deixado em casa seus carros e chegavam aos bebedouros em bicicletas. Crianças, jovens, velhos e velhas, todos deslizando mansamente pela Storegatan, sem que o ruído de nenhum motor perturbasse a paz sabática da aldeia. Em meio aos bares, agências de turismo anunciavam sol barato no Egeu ou no Mediterrâneo. Para qualquer um daqueles suecos, estar três ou quatro horas depois refestelado sob o sol helênico era questão apenas de puxar um cartão de crédito e largar a bicicleta em casa.

Difícil não evocar, naquela manhã de sábado, este ridículo país em que me coube viver. Meus vizinhos retiram da garagem seus carros do ano, para percorrer dois ou três quarteirões e estacioná-los junto aos botecos chinfrins de meu bairro. Mesmo diabéticos ou cardíacos, condições que exigem caminhadas e exercícios físicos, não conseguem libertar-se da necessidade de ostentar status. Demora mais circular pelo quarteirão à procura de uma vaga onde estacionar do que ir até lá andando? Pode ser. Mas chegar ao bar a pé ou de bicicleta, seria sinal de desqualificação social.

Depois, a apreensão constante, um olho no copo e outro na carroça, questão de cuidar se algum outro carro ou mendigo não tromba ou risca o precioso símbolo. Aos fins de semana, rumam ao litoral. Como todos parecem ter tido a mesma idéia, rodam às vezes cinco horas para fazer cem quilômetros. O mesmo tempo que o pacato ciclista do fundo do golfo de Bótnia leva para chegar a Mikonos ou Gran Canaria.

Pobre, dizia, precisa posar de rico. Rico mesmo, não precisa. Mas vivemos em um país onde até mesmo ecologistas e malucos outros cultores de Gaia têm carro. Seu raciocínio é simples: todos os carros do mundo constituem ameaça ao meio ambiente. Menos o meu.

Impossível condenar o Príncipe dos Sociólogos por suas manias principescas. Apenas reflete a mentalidade do país onde impera.


 

Sobre Caingangues e Jineteras

11/8/2000

 

Contou-me um fazendeiro da região de Dourados, Mato Grosso do Sul. Índios bêbados encontraram duas prostitutas num bar e acabaram por estuprá-las. Na delegacia, o delegado perguntou a uma delas, ou ao que dela restava:

Quantos foram?

Não sei, Doutor — respondeu a menina — Contei até 25.

O delegado, sem poder prender uma tribo toda, tratou de conseguir um ônibus e mandar os índios de volta à reserva. O relato parece retirado de uma página de García Márquez, aquele compadre de Fidel Castro. Mas meu interlocutor não era chegado à literatura fantástica.

Lembrei do episódio, ao ler uma série de reportagens em edições da Zero Hora desta semana. Se tais fatos são concebíveis em regiões isoladas do país, habitadas por selvagens, mais difícil é imaginar tais estupros no Rio Grande do Sul. E, no entanto, lá está o relato de Carlos Wagner, sobre esta prática ritual dos caingangues, o puxirão.

A iniciação da prostituta indígena freqüentemente ocorre por meio de um ritual chamado pelos caingangues de "puxirão das macegas". A expressão, equivalente a mutirão, denomina a formação de um grupo de jovens embriagados para estuprar a jovem. (...) O grupo se reúne e escolhe uma menina para atacar, geralmente filha de um desafeto do cacique. Enquanto a família da escolhida é mantida sob vigilância armada, a jovem é estuprada em meio a arbustos. Nas semanas seguintes, de duas em duas noites, uma fila de meninos se formará na porta da casa da garota. Um a um, eles a estupram. Muitas vão para o hospital. No início de julho, uma garota de doze anos foi medicada devido aos ferimentos nos órgãos sexuais.

Uma estranha aliança traçará o destino da menina violentada. O medo da família de denunciar o estupro e a dependência econômica e política em relação aos líderes se unem, e o episódio é esquecido. Resta à garota a prostituição como forma de vida, porque nenhum homem da tribo irá casar-se com ela. (...) Um líder indígena de Cacique Doble costuma justificar o ritual:

— Antes de as nossas mulheres serem dos brancos, elas precisam ser nossas.

Estupro brutal, coletivo, continuado. Com agenda e data certa: duas vezes por semana os brutos voltam a massacrar a menina. Onde andarão as aguerridas feministas, tão preocupadas com assédio sexual? E os defensores dos direitos humanos? E o sedizente governo "popular e democrático do Rio Grande do Sul"? Que é feito do valente secretário de Justiça, o ex-juiz Paulo Bisol? Pelo jeito, continuam silentes, desde que o cacique Paulinho Paiakan — o homem que pode salvar a humanidade, segundo a imprensa americana — estuprou barbaramente uma professora, com o auxílio de sua mulher, Irekran. Julgado e absolvido, julgado novamente e desta vez condenado, o cacique caiapó continua livre como um passarinho em sua reserva. São índios, podem estuprar à vontade, com data e hora marcada.

Se no Rio Grande do Sul as meninas caingangues são constrangidas à prostituição para sobreviver, em Cuba o caso é um pouco diferente. Prostituição não é questão privada, mas de Estado. Não há turista que desconheça as virtudes das jineteras, esta versão caribenha do antigo ofício. Em um discurso para a Assembléia Nacional, em 1992, Castro dizia:

"Não existe mulher forçada a vender-se para um homem, para um estrangeiro, para um turista. Aquelas que o fazem, fazem-no de própria vontade, voluntariamente e sem necessidade disso. Podemos dizer que elas são jineteras altamente educadas e muito saudáveis, pois somos um país com o mais baixo número de casos de AIDS... Em verdade, não há turismo mais saudável que o de Cuba".

De lá para cá, estrangeiros do mundo todo acorreram com seus dólares para prestigiar o turismo saudável apregoado pelo Comandante Máximo.

E por que jineteras? Quem nos explica é a jornalista Silvana Paternostro, do New Republic. Prostituta denota vitimização. Call girl sugere alta sociedade. Jineteras soa melhor. "Enfermeiras, dentistas, nutricionistas, advogadas, professoras, universitárias, elas circulam pela cidade vestidas com Lycra amarela, púrpura ou preta, esperando encontrar estrangeiros. Economicamente, suas duplas vidas fazem sentido. Professoras e funcionárias da saúde, o orgulho da revolução, recebem salários muito miseráveis para colocar carne na mesa de jantar. Por outro lado, entretendo um estrangeiro, compram carne de porco e frango, e mesmo lagosta e vinho — isso sem falar em roupas, sapatos, perfumes, moeda forte e a possibilidade de namoro, casamento e uma vida na Itália ou Espanha".

Sem falar que o novo eufemismo dá a idéia de alguém que doma um animal. Um estudo feito pela Universidade de Havana concluiu ser impossível determinar o número de prostitutas no país. Jinetear tornou-se algo tão banal como ir à praia ou ao cinema.

As facilidades que a prostituição traz parecem estar produzindo efeitos sociais e ideológicos sobre os quais o governo perdeu o controle. Ainda segundo a repórter, as Brigadas Especiais da Polícia Revolucionária Nacional, acusando as moças de agredir al extranjero, passaram a proibir suas atividades. Não por razões éticas. O Estado quer as jineteras colhendo dólares para a revolução e não para si mesmas e seus gastos frívolos. Más novas para os turistas em busca de sexo barato. As antigas "promotoras de turismo" voltaram a ser prostitutas e como tal reprimidas. No início do século, Lênin definiu o anarquismo como a doença infantil do comunismo. O final do século encontrou sua doença senil, o proxenetismo.

Estupros coletivos aqui, Estado proxeneta lá. Algo em comum têm os dois fenômenos: humanista algum de plantão ousará condenar estas práticas dos caciques caingangues ou do cacique cubano. Estão acima de qualquer lei.


 

Khayam Não Convence

18/8/2000

 

Semana passada, a imprensa caiu em cima do cidadão pernambucano Alexandre dos Santos Selva Neto, também conhecido como Omar Khayam. Apresenta-se ora como o maior intelectual do mundo, ora como o homem mais culto do planeta. Conhecedor de 33 idiomas e 72 dialetos, laureado com 107 títulos de doutor honoris causa e com três indicações para o Prêmio Nobel, proferiu palestra na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e foi entrevistado em sites da internet, revistas e talk shows. Só no de Jô Soares, duas vezes, com direito a efusivos aplausos de uma clap organizada. Exibiu sua sapiência na revista Istoé e tinha até espaço alugado para uma conferência no prestigioso Parlamento Latino-americano, em São Paulo. Mas não faltou o jornalista arguto que lhe cortasse a brilhante carreira, denunciando-o como vigarista.

Como se muita argúcia fosse necessária para desmascarar o maior intelectual do mundo.

No entanto, nem o cosmopolita e poliglota Jô Soares, nem a Istoé, nem a reputadíssima Unicamp, por um momento sequer puseram em dúvida o currículo do 107 vezes doutor. Sem falar no sotaque do cabra da peste e em sua insistência em soltar proparoxítonas mal abria a boca. Não há pessoa inculta que não se sinta culta ao usar proparoxítonas. Líder sindical nordestino, mal pronuncia dialética, já se sente intelectual. Nem mesmo os vultos mais ilustres do Nordeste escapam deste cacoete, vide Augusto dos Anjos.

Isto é o de menos. Mentir não é exatamente um crime, que mais não seja aí estão os políticos no horário eleitoral. Grave mesmo foi a imprensa denunciá-lo como vigarista. Se alguns são jogados à sanha do público, para escarmento, outros, mais afortunados, são aceitos com rapapés. Não exibem vulgares títulos de doutorado. Apostam mais alto. Ano passado, o Brasil recebeu com todas as honras um tibetano cheio de parangolés, laureado com o prêmio Nobel da Paz, que se pretende a 14ª encarnação de Buda. Apresenta-se como o Oceano de Sabedoria. Pois assim se traduz, em português, Dalai Lama.

Sem falar naquele outro, que se diz vice-Deus. Para o polaco, o título de maior intelectual do mundo é insuficiente. Além de ser o representante de Deus na Terra, pretende-se nada menos que infalível. Já veio e voltou ao Brasil, deu nome a praças, tem percorrido o mundo todo e sempre é recebido com honras de chefe de Estado. Selva Neto não ousou apresentar-se como infalível nem como oceano de sabedoria. Em sua timidez de nordestino, intitulou-se apenas o maior intelectual do mundo. Ferrou-se.

Os jornais denunciaram com gosto a vigarice menor do Alexandre. Mas não se importam em conceder páginas generosas a outro prêmio Nobel da Paz, a albanesa Agnes Gonxha Bojaxhiu, mais conhecida como Madre Teresa de Calcutá, morta em 97 e candidata à santa com apoio do vice-deus polaco. (Esprit de corps é o que não falta à categoria). Agnes Bojaxhiu — já contei nesta coluna — costumava depositar flores na tumba de seu conterrâneo, Enver Hoxha, um dos mais sanguinários ditadores comunistas deste século. No Haiti, durante a tirania de Baby Doc, recebeu de suas mãos uma comenda pouco recomendável para quem morreu em odor de santidade, a "Légion d'honneur" haitiana.

A futura santa — pois santa será, já que seu colega sediado no Vaticano assim o quer — pediu clemência junto à Suprema Corte dos Estados Unidos para Charles Keating, vigarista condenado a dez anos de prisão por lesar os contribuintes americanos em 252 milhões de dólares. Deste senhor, Madre Teresa recebeu a simpática quantia de 1,25 milhão de dólares e a oferta de um jato privado para suas viagens.

Outra que o trem não pega é Rigoberta Menchú, a índia guatemalteca também premiada com o Nobel da Paz. Enganou não só os noruegueses, como também todo o Ocidente. Já contei estas histórias. Como curta é a memória das gentes, vamos repeti-las. A guatemalteca foi desmascarada pelo antropólogo americano David Stoll, no livro Rigoberta Menchú and the Story of All Poor Guatemalans. Segundo o autor, Menchú descreve com freqüência experiências pelas quais nunca passou. Em suas memórias, devidamente maquiadas pela mulher de Régis Débray, militante da gauche caviar parisiense, afirma nunca ter freqüentado escola, nem saber ler, escrever ou falar espanhol até a época em que ditou sua autobiografia. Mas sua incultura era postiça: recebeu o equivalente à instrução ginasial em internatos particulares mantidos por freiras católicas.

A luta de Menchú pela terra, contra latifundiários de origem européia, era em verdade uma antiga rixa familiar de seu pai contra parentes próximos. O irmão mais jovem que dizia ter visto morrer de fome nunca existiu. Um outro, que dizia ter visto morrer queimado, não morreu queimado nem ela viu sua morte. Menchú, do alto do prêmio Nobel, ignora solenemente as acusações: Foram escritas 15 mil teses sobre mim no mundo todo por pessoas que leram o livro, afirma. Não me dedico a conferir dados, não nego nem desminto o que é dito nos livros a meu respeito. Não é problema meu.

O guru pernambucano foi infeliz em sua estratégia. Apostou em um mercado saturado, o do misticismo. Ora, não passa dia sem que se apresentem, na televisão nacional, pessoas que falam com Deus com mais intimidade do que eu converso com meus companheiros do botequim da esquina. Outros fazem milagres, operações astrais, exorcizam demônios. Nenhum jornalista arguto denuncia estes vigaristas de todos os dias. Razões para este silêncio não faltam: alguns são proprietários de TVs. Sobrou para o coitado do pernambucano.

Nos títulos que exibe, Selva Neto ostenta apenas três indicações ao Nobel. Tivesse paparicado o prêmio, mereceria a mesma deferência conferida a um Dalai Lama, Madre Teresa ou Rigoberta Menchú. Sem Nobel, não convence.


 

Sobre Kursk e Kagebetes

25/8/2000-11-16

 

Se você anda em crise de auto-estima, sentindo-se por baixo por ser brasileiro, nada melhor que umas férias conjugais. Abandone por uns dias essa relação incestuosa com a mãe-pátria. E visite a Rússia. Você voltará revigorado. Mas atenção: não pense que é só fazer as malas e partir.

Hoje como ontem, continuam vigendo as mesmas restrições impostas aos pobres mortais para entrar no paraíso soviético nos dias de Guerra Fria. Sem hotel reservado — e previamente pago — você não recebe sequer visto para entrar no país. O visto, uma vez recebido, só vale pelo tempo pago em hotel. No último dia, queira ou não queira, você tem de fazer as malas e abandonar o paraíso, digo, o país.

Pelo jeito, comentei com um agente de turismo, os russos ainda não abandonaram o complexo de espionite. Não, disse-me o agente. Hoje, para os russos o turista não é mais um espião. É um saco de dólares. Pois então poderiam, objetei, deixar o saco perambular mais à vontade, que mais não seja para ser melhor esvaziado.

Uma vez na Rússia, você sente o poder do dólar. Nos hotéis de São Petersburgo, bocejando em meio às noites brancas, lá estão elas, as eternas Olgas, Tatianas, Irinas, ao dispor do saco de dólares. Falei outro dia da doença senil do comunismo, o proxenetismo de Estado. Falava das jineteras cubanas.

Na Rússia, são mais conhecidas como kagebetes. Toda russa é uma prostituta potencial, dizia-me um colega, ex-correspondente em Moscou. Pus em dúvida sua afirmação. Ele manteve sua tese: achas que uma médica ou engenheira, ganhando vinte dólares por mês, vai resistir a uma proposta de vinte dólares por hora?

"Toda" é palavra muito abrangente. Sem endossar a tese de meu colega, concordo, no entanto que não é fácil.

Meu guia em São Petersburgo, professor universitário, confessou-me receber vinte dólares por mês. Isto é, quando recebia. A mãe, viúva de um alto funcionário do Partido, tinha uma excelente pensão: trinta dólares ao mês. Um subcomandante de submarino nuclear, cargo com algumas responsabilidades a mais que as do magistério, confessou recentemente ao Corriere della Sera estar recebendo algo em torno de cem dólares por mês. O preço de cinco kagebetes/hora. Com a diferença de que o oficial recebe em rublos. Quatro dias de uma faxineira em São Paulo.

Na desesperada caça ao dólar, as Forças Armadas russas oferecem aos turistas a possibilidade de pilotar seus caças. É só marcar hora e data na base aérea de Zhukovsky, próxima a Moscou. Por algo entre 11.500 a 18.200 dólares, você tem uma boa gama de escolha, desde um MIG 21 Fishbed, que voa a Mach 1, até um Mig 25 Foxbat, Mach 3.2. Melhor que Disneyworld. O que há poucos anos era segredo militar, hoje está ao alcance de qualquer turista endolarado.

Falidos, mas orgulhosos. Um oficial da marinha de guerra pode receber menos que uma faxineira no Brasil. Mas a Rússia preserva seu poder de fogo. O submarino nuclear Kursk, que naufragou dia 12 passado, pode lançar 24 mísseis simultaneamente, isto é, destruir uma frota de guerra com um simples disparo. Ou melhor, podia. Em um exercício de rotina, tornou-se uma tumba de aço para os 118 membros de sua tripulação. Pobres, mas atômicos.

Um Vladimir Putin com lágrimas nos olhos voltou de suas férias na praia — com lágrimas, mas bronzeado — para deplorar a morte dos marinheiros sepultados no mar de Barents. A imprensa ocidental, ao lado de naves de resgate de alta tecnologia, publica fotos de mães chorosas, acendendo velas junto a ícones de igrejas ortodoxas. Tudo muito fotogênico. A liturgia ortodoxa fotografa bem. E amor de mãe comove.

Exceto o das mães chechenas, que também devem ter chorado ante o bombardeio impiedoso de Putin, bombardeio que consolidou sua candidatura a presidente na farsa eleitoral organizada para mostrar ao Ocidente que a Rússia, hoje, é uma democracia. Chechenas choram? É de supor-se que sim. Mas este pranto não parece interessar à imprensa ocidental. Putin, "eleito" com o sangue dos chechenos, hoje chora os cadáveres russos.

Segundo os analistas, a tripulação poderia ser salva, não fosse o orgulho do Kremlin, a preocupação de não mostrar ao mundo que teve de recorrer ao Ocidente para salvar seus marinheiros. A poderosa Frota do Norte não poderia depender de engenhocas ocidentais, como as da Noruega ou Inglaterra, para resgatar seus soldados. Quantos cadáveres valem a imagem do poder russo? No caso, custou 118. Alegou-se, inicialmente, que a Rússia não poderia expor ao Ocidente seus segredos militares. Mas que segredos são esses, em um país onde um turista pode pilotar um Mig por alguns dólares a mais que o preço de uma kagebete?

Segundo a imprensa russa, Putin roubou quatro dias de vida aos náufragos, ao recusar todo e qualquer auxílio ocidental. Se o Kremlin insiste em manter esta distância ante o antigo inimigo, o mesmo não pensam os russos. O deputado comunista Aldo Rebelo, que quer banir expressões em inglês do vernáculo brasileiro, teria no mínimo uma eclampsia ao visitar a Rússia. Lá, se você quer um cachorro quente, peça... um hot dog. A palavrinha, que invade os quiosques de calçada, está grafada em cirílico, bem entendido. Ao atravessar as ruas, preste atenção ao sinal vermelho: stop. Também está em cirílico. A cultura segue a espada, dizia-se. Hoje, segue o míssil. Sem alimentar os pruridos de Putin, o cidadão russo, mais pragmático, começa a balbuciar a língua do vencedor.

Nestes dias em que o moderníssimo Kursk jaz no lodo do Barents, o Brasil ainda não conseguiu fazer navegar a réplica da nau em que os portugueses chegaram aqui há 500 anos. Mas já projeta seu submarino nuclear. Emoções à vista para as gerações vindouras.


 

O Velho e a Moça

1/9/2000

 

Ele, 63 anos. Ela, 32. Ele, diretor de redação de um dos maiores jornais do continente. Ela, editora de Economia do mesmo jornal. Ela morreu com dois tiros, um pelas costas e outro na cabeça. O autor dos disparos foi ele. Razões do assassinato? Fui traído pessoal e profissionalmente. É o que os advogados vão alegar para defendê-lo. Para bom leitor, não é preciso ler as longas reportagens sobre o fato para intuir as razões do crime. A idade já basta.

A tragédia de periferia explode desta vez no centro nervoso de uma das mais influentes instituições nacionais, O Estado de São Paulo. O crime, típico de brutos que já começam a fazer parte do passado, é cometido agora por um jornalista bem sucedido, poliglota e cosmopolita. Cidadão de Araraquara, exercia em São Paulo uma profissão onde liberdade sexual sempre foi, mais que questão de honra, um direito adquirido e não negociável.

Qual a fórmula para um editor sexagenário ser agraciado com os favores de uma jornalista jovem, rija e linda? Não há mais que duas: poder e dinheiro. O velho dispunha destas duas moedas. Para a moça, anônima assalariada, as duas moedas eram bem-vindas. Não o fossem, não teria porque alugar sua juventude à vaidade do velho.

Há três ou quatro décadas, matar uma mulher não saía caro. A amante, teúda e manteúda, tinha de ser mais fiel que a própria esposa. Em caso de infidelidade, uma bala resolvia o litígio. O assassino era invariavelmente absolvido, com a alegação de legítima defesa da honra. Mas que honra é essa — escrevi na época — que exige sangue para ser lavada? Além do mais, a tal de honra tinha duas particularidades no mínimo curiosas. Primeiro, era atributo masculino. Só o macho podia matar, pois só o macho tinha honra a ser defendida. Segundo, sendo atributo do macho, era portada pela mulher. No corpo dela, ofendia-se a honra dele.

Mal os jornais anunciaram o fato, os advogados empunharam a tese de crime passional e legítima defesa da honra. Pelo que se tem notícia, este argumento foi usado pela primeira vez no Brasil em 1809, quando um marido matou a mulher, surpreendida em uma rede com um estranho. (Estranho para ele, é de supor-se). O assassino pedia sua liberdade ao Desembargo do Paço, pois levado de honra e brio cometeu aquela morte em desafronta sua, julgando-se ofendido. O assassinato, segundo os desembargadores, era desculpável pela paixão e arrebatamento com que foi cometido.

Mas 1800 já vai longe. O Código Penal vigente tem 60 anos, quase a idade do velho que matou a moça. Mesmo obsoleto, não aceita essa conduta masculina, pois a pena de prisão passou a ser aplicável inclusive a homicídios por violenta emoção. Se os membros do júri costumavam absolver machos assassinos, hoje não será fácil apoiar em um tribunal a defesa arcaica brandida pelo velho, a tese do crime passional. Menos fácil ainda em redações tomadas por moças.

Há uns vinte anos, Porto Alegre testemunhou situação semelhante. Ele era velho e também jornalista, com veleidades de literato. Como todo literato, era um humanista. Teria seus 60 anos, creio. Ela tinha 35. De novo, o peso dos trinta anos de diferença. Ela foi fuzilada com quatro tiros. Ele freqüentava meu bar e, eventualmente, minha mesa. Razões do crime? Ela havia posto açúcar demais na caipirinha. São criativos, estes senhores sexagenários. Em falta de honra ofendida, uma colher a mais de açúcar foi suficiente para esgotar suas reservas de humanismo.

Dias após o crime, ele voltou ao bar, de olhar baixo. Com cara de cachorro triste que implora perdão, estendeu-me a mão. Retirei a minha. Não consigo apertar uma mão que desfere quatro tiros contra uma mulher indefesa. Que foi que eu te fiz? — perguntou-me. A mim, não havia feito nada. Mas havia matado uma mulher. Poderia até ser absolvido, como suponho que foi, pois jamais soube que tivesse sido preso. Absolvido pela justiça. Mas não por mim. Não sendo deus, juiz ou jurado, não me compete condenar ninguém. Tampouco absolver.

Nada há de novo sob o sol, dizia há séculos o Coélet. Desde o começo dos tempos, Otelos furiosos vêm matando suas Desdêmonas. Althusser, o respeitado pensador marxista, não estrangulou a companheira de toda uma vida? Volto ao Otelo de Araraquara. O crime surpreende por ter como personagens profissionais que, do alto de seus humanismos, vivem condenando tais crimes. Justiça pelas próprias mãos, dissera o velho em uma entrevista à televisão, é "atributo de sociedades primitivas".

O amor da moça era pouco e se acabou. A capa de civilização do velho era de vidro e se quebrou. O episódio traz à tona o eterno tráfico sexual nas redações de jornais. Claro que, sobre este aspecto, a imprensa manterá um silêncio obsequioso. A moça, no início de carreira, ganhava apenas 1.500 reais por mês. O velho aumentou seu salário para mais de oito mil. Para adquirir carne jovem, o velho pagou quatro vezes mais o valor de mercado da moça.

Fosse só de carne a carência do velho, sua fome poderia ser saciada nos diversificados açougues de carne humana, encontrados em todas as metrópoles, especialmente nesta São Paulo, tão pródiga em serviços. Bastaria uma olhadela nos classificados do jornal que dirigia, onde a carne é oferecida a varejo, no máximo por cem dólares. Pelo soldo de um oficial da Marinha russa, compra-se no Brasil carne de primeira.

Vaidade das vaidades — já dizia também o Coélet — vaidade das vaidades, tudo é vaidade. O velho queria amor. Quem ama não mata, diziam as feministas dos anos 70. Frase boba de efeito. Em verdade, só mata quem ama. Homem algum tem queixas de uma prostituta. De uma jornalista, pode ser. A moça, ao confundir os ofícios, entrou na alça de mira do assassino. Eu te fiz e posso te desfazer, ameaçara o velho, em arroubo típico de um deus. Podia mesmo. E desfez a moça.


 

Torquemada Redivivo

8/9/2000

 

Todo anticomunista é um cão — escreveu um dia Sartre, entrincheirado na Rive Gauche, poltrona assestada no sentido da História, como diria Albert Camus. O insulto tinha um alvo definido, o próprio Camus, um dos primeiros escritores franceses a denunciar o totalitarismo marxista. Ao proferir seu anátema em Paris, foi como se falasse urbe et orbi. A bula do pontífice das esquerdas ultrapassou as pontes do Sena. No Ocidente todo, o que seria um dever moral de todo homem livre, a luta contra a tirania, virou pecha infamante.

Foi preciso que o muro ruísse, o império afundasse e terminassem as mordomias com que o Kremlin brindava os intelectuais ocidentais para que os "cães" fossem reabilitados. Não por acaso, neste Brasil sempre a reboque do pensamento europeu, O Homem Revoltado, o mais importante ensaio de Camus, foi traduzido só cinco décadas depois de publicado. Atrás deste atraso, a maldição sartreana.

Em 1954, ao voltar de Moscou, Sartre declarou: A liberdade de crítica é total na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o cidadão soviético melhora sem cessar sua condição no seio de uma sociedade em progressão contínua. Lá por 1960, antes de 1965, se a França continua estagnada, o nível médio de vida na URSS será de 30 a 40% superior ao nosso.

Era um homem de visão. Meio século depois, nem a França, nem a Europa, conseguiram sequer chegar perto das excelências da medicina russa, onde médicos pressurosos vagam pelas ruas, com seringas em punho, prontos a aplicar calmantes pelas costas em russas à beira de uma crise de nervos. Tratamento ambulatorial, na Rússia de Putin, é prática obsoleta. Hoje, os médicos acompanham ombro a ombro mesmo cidadãos saudáveis, nunca se sabe quando uma crise qualquer pode ocorrer.

Mal se fala em comunismo, não falta viúva reclamando: não se chuta cachorro morto. Curiosos, estes cães, pelo menos no que ao Brasil diz respeito. Ocupam ministérios, colunas em jornais e recebem gordas aposentadorias especiais. Cães previdentes, não esqueceram de nomear procuradores bastantes para defendê-los postumamente. A palavrinha adquire distintas conotações, conforme quem a profere, quando é proferida e a quem é endereçada. Em 54, na boca de Sartre, cães é um insulto virulento. Hoje, cachorro morto é adjetivação carinhosa. Coitadinhos dos cachorrinhos, tão lindinhos e tão injustiçados.

Imagine o leitor se Sartre, ao invés de definir os anticomunistas como cães, tivesse afirmado que todo judeu é um cão. Seria condenado como nazista e proscrito dos jornais e universidades do Ocidente. Mas algo parece estar mudando no universo dos anátemas. No final do século 18, Giovanni Maria Astai, de nobre família italiana, além de mandar revolucionários romanos para a guilhotina, chamou os judeus de cães e os confinou em um gueto em Roma. Mais conhecido como Pio IX, teve sua beatificação anunciada no domingo passado, na praça de São Pedro, pelo papa João Paulo II. É o que nos contam os jornais.

Beato, na hierarquia católica, é o primeiro degrau a galgar para chegar à condição de santo. Pio IX, entre outros feitos, instituiu os dogmas da infalibilidade papal e da imaculada concepção da Virgem Maria. João Paulo II, fabricante de beatos e santos em série, é o mesmo papa que, há pouco, em Jerusalém, pedia perdão aos judeus pela perseguição a eles promovida pela Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR). Beatos e santos, segundo o cânon 1187 do Código Canônico, são aqueles servos de Deus aos quais é lícito venerar, mediante culto público. A partir desta semana, é lícito a todo católico venerar o beato que comparou os judeus a cães. Se quiser repetir a comparação e for enquadrado em alguma lei anti-racismo, sempre poderá citar em sua defesa o piedoso Giovanni Maria Astai.

Em verdade, quem estava na linha de montagem da fábrica vaticana de santos era Pio XII, o papa conivente com o Holocausto (leia O Papa de Hitler, de John Cornwell, editora Imago). João Paulo, cauteloso, preferiu beatificar o que os chamou de cães. Vituperação à qual pode faltar humanidade, mas não lógica. Se Deus é um só, se seu representante na terra, além de único é infalível, só podem ser cães os demais seres humanos que não aceitam tais verdades. Pio IX pontificou entre 1846-78, no rescaldo das fogueiras da Inquisição, que só acabou em 1834.

No final de agosto passado, reuniram-se na ONU, em Nova York, mais de mil líderes religiosos, representando 75 distintas religiões. Só não pode participar da cúpula o Oceano de Sabedoria tibetano, vulgo Dalai Lama. A China, que invade o Tibete, vetou o Oceano. Devido ao grande número de religiões presentes ao encontro, os organizadores tentaram definir o que é uma religião. Uma diretriz geral — concluíram — é que a religião deve ter mais de cem anos e seu fundador ou líder carismático não deve mais estar presente em corpo. Para não ferir suscetibilidades, evita-se a palavra morto.

O mercado se aquece. Os gigolôs do absoluto começam a montar um sindicato. Paulo já intuíra isto. Ao criar o cristianismo, empunhou o cadáver de um judeu. Daqui para a frente, religião é assunto para profissionais. Amadores e novatos, favor abster-se.

Não bastasse a reserva de mercado proposta pela guilda do além, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, preocupado com tantas fés, decidiu botar ordem no pedaço. No documento intitulado Dominus Iesus, declara que só existe uma religião, a católica. Que história é essa de 75 religiões, se Deus é um só? Somente o cristianismo merece ser qualificado como fé, disse o cardeal. As outras religiões não são religiões, são crenças. Compre ICAR, a única que possui ISO 9002. Quando os mercadores das angústias humanas pareciam ter chegado a um acordo sobre a divisão do mercado, renasce das cinzas o rosto eterno de Torquemada.


 

Menino Ameaça Brasil

15/9/2000

 

Como se nada mais houvesse para chocar neste país, onde só na cidade de São Paulo são assassinadas mais de 50 pessoas a cada fim de semana, um menino de quatro anos, desfilando no 7 de Setembro, provocou indignação entre ministros, parlamentares e até entidades internacionais. A reação mais forte partiu da representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef), Reiko Niimi, que enviou carta de protesto aos ministros da Defesa e Justiça, Geraldo Quintão e José Gregori.

O que chocou tão ilustres autoridades, foi o fato de Lucas — que assim se chamava o menino — ter desfilado com réplicas de metralhadora, algemas e revólver ao lado do Batalhão de Choque da Polícia Militar do Distrito Federal. Para Reiko Niimi, a foto de Lucas nos jornais transmite uma imagem infeliz aos pais e às crianças, de que brincar de soldado não é apenas aceitável como louvável. O ministro da Justiça, José Gregori, classificou a cena de "inaceitável" e o uso de réplicas de armas de extremo mau gosto. "Seria até aceitável o menino desfilar sem arma, mas da maneira como ocorreu não".

Como curta é a memória das gentes, cabe lembrar alguns fatos recentes. Foi graças a este senhor que os seqüestradores do empresário Abílio Diniz, presos, julgados pelo Tribunal do Júri e condenados a penas que iam de 26 a 28 anos de prisão, estão hoje livres como passarinhos. Os criminosos (sete estrangeiros e um brasileiro) mantiveram a vítima em cárcere privado, exigiram um resgate milionário e compraram até mesmo um caixão para o caso de ter de matar o seqüestrado. O crime é tipificado em nossa legislação como hediondo. O diligente defensor dos seqüestradores, na época secretário de Direitos Humanos, teve em seu pleito o apoio de Fernando Henrique Cardoso, do então ministro da Justiça, Renan Calheiros, do cardeal Evaristo Arns e demais sedizentes defensores dos Direitos Humanos. Se terroristas merecem clemência, por que não estender esta generosidade aos coitadinhos que assaltam, matam e estupram nas cidades brasileiras?

O ministro que se escandaliza com a foto de um menino, filho de policial, que quis desfilar com o uniforme do pai, acaba de apresentar ao Congresso um projeto de reforma do Código Penal, que revoga a Lei de Crimes Hediondos e pode devolver às ruas estupradores, traficantes de drogas, assassinos, assaltantes e seqüestradores. Pelo novo projeto, condenados por crimes hediondos poderão começar a cumprir pena já em regime semi-aberto, com direito de sair da cadeia cinco vezes por ano e receber autorização para trabalhar e voltar à prisão apenas para dormir. O governo, que já não tem como abrigar o universo de criminosos condenados no país, quer esvaziar o presídios, transferindo o ônus desta libertação ao Judiciário.

Se aprovado o novo código, um belo futuro se abre, por exemplo, para aquele assassino batizado pela imprensa como o maníaco do parque, que violentou e matou dez mulheres. Sem ainda ter sido julgado por estes assassinatos, já foi condenado a mais de cem anos de prisão por ter roubado e violentado outras mulheres. Poderá cumprir sua pena apenas dormindo no presídio, mantendo o dia livre para seus passatempos prediletos. Sem falar que, pelo código proposto, criminoso algum poderá ficar mais de vinte anos na prisão. Um traficante de crack em porta de escola será condenado a prestar serviços à comunidade. Um pai violento que quebrar o braço de um filho numa surra, corre o risco de ser proibido a não dar ordens à criança durante um ano. Inaceitável mesmo é um menino de quatro anos desfilar com uma arma de brinquedo.

Este mesmo ministro José Gregori assinou ainda portaria determinando uma faixa de horário para exibição de programas na TV não aconselháveis aos menores de 16 anos: após as 22h. Quando for classificado para maiores de 18 anos, o programa deverá ser exibido após as 23h. Programas de indução de sexo somente poderão ir ao ar entre meia-noite e 5h. Segundo o Ministério da Justiça, uma cena como a que foi ao ar há pouco numa das novelas das oito da Globo, onde um tal de Pedro rasga a roupa de uma tal de Cíntia e a joga em cima de uma mesa, "poderá ou não ser considerada como de indução ao sexo". Numa época em qualquer adolescente tem acesso a toda e qualquer pornografia, a qualquer hora, mediante um simples clique de mouse, o zeloso ministro quer impor horários à TV, que na verdade só mostra algumas esfregações bobas entre casais.

Sobre técnicos e jogadores de futebol, que induzem o país todo a sonegar imposto de renda e trazer muamba na volta de suas viagens, a portaria não diz nada. Afinal, são heróis. Sobre pastores televisivos que extorquem crentes ingênuos até o último centavo, em troca de privilégios no Além, muito menos. Tampouco nada se diz sobre novelas anódinas, anódinas mas impregnadas de marketing, que induzem bestas embrutecidas a assaltar e seqüestrar para ter acesso imediato aos supérfluos impostos pela publicidade. Há marginais matando adolescentes no Brasil por um boné ou um par de tênis. Não será de filmes eróticos ou policiais que decorre esta compulsão ao latrocínio.

Políticos medíocres, alguns com larga folha corrida, não só invadem a sala dos telespectadores em horário nobre, com seus discursos obscenos, como também têm assegurado por lei o direito de invadi-la. Filmes e documentários fazendo a apologia dos terroristas que tentaram fazer do Brasil uma espécie de Cuba atlântica, bem-vindos sejam. A grande ameaça aos valores nacionais são os filmes eróticos. E uma criança com uma arma de brinquedo.

Faltou lembrar ao zeloso ministro e à moça da Unicef que Che Guevara e Carlos Lamarca também usavam uniforme e metralhadora. Luquinha seria então aplaudido como herói nacional.


 

Pragas infestam Escandinávia

22/9/2000

 

Bolonha, por suas tradições comunistas, é conhecida como a Cidade Vermelha. Nesta cidade italiana, o cardeal milanês Giacomo Biffi reclamou do governo uma política que favoreça a entrada de imigrantes católicos, para preservar a "identidade do país". Os imigrantes muçulmanos, que hoje representam um terço do total de 1,25 milhão de imigrantes que vivem legalmente na Itália, deveriam, segundo o cardeal, ficar fora das fronteiras italianas. O alerta politicamente incorreto do purpurado soa como algo insólito nestes dias em que a idéia de pluriculturalismo ameaça a Europa. E merece algumas reflexões.

A Europa nasce como uma unidade política marcada pelo cristianismo. Antes de chamar-se Europa, chamou-se Res Publica Christiana. Foi invadida pelos árabes e invadiu, com as cruzadas, territórios árabes. Após estas escaramuças, que provocaram rios de sangue, ficou mais ou menos decidido que Jeová exercia seus poderes no continente europeu, ficando o africano reservado a Alá. Ambos os deuses são dogmáticos e ciumentos. Mas Jeová desistiu — ou foi levado a desistir — de imiscuir-se na vida civil de seus súditos. Nesta separação entre Igreja e Estado reside um dos fatores de desenvolvimento do continente. Apesar de papas e cardeais saudosistas das tardes cinzentas da Inquisição, os estados europeus são hoje laicos. Nos estados muçulmanos, imperam os regimes teocráticos. Este sistema, resquício da Idade Média, na Europa ficou circunscrito a um hectare de terra, o Vaticano.

Jeová, apesar de seu obsoletismo, mostrou-se um deus dinâmico, levando os europeus a um padrão de vida invejável entre os povos. Alá, mais conservador e teimoso, manteve boa parte de seus domínios imerso na miséria. A Europa, como toda boa idéia, teve e continua tendo inimigos. Sua maior ameaça neste século que passa, o marxismo, acaba de morrer por entropia. Mas a ameaça permanece, via movimentos de Direitos Humanos, defesa incondicional da migração e de respeito à "cultura do outro". Todo migrante de país pobre, particularmente da África, teria direitos adquiridos sobre a Europa.

O problema é quando Igreja é igual a Estado e leis, ética e religião são uma coisa só. O imigrante muçulmano, proveniente desta cultura, ao chegar na Europa confunde preceitos éticos ou religiosos com normas legais e o conflito se estabelece.

Particularmente quando está em jogo a mulher. Se, na Europa, a mulher luta em igualdade de condições com o homem na construção da sociedade, no mundo islâmico ainda está reduzida a uma semi-escravidão. O que explica o atraso econômico e cultural dos países árabes. Talvez ainda chegue o dia em que os muçulmanos se dêem conta de que rende mais o trabalho feito por dois do que o feito por um. Por enquanto, continuam na Hégira, atrasados quatro séculos em relação ao mundo cristão.

O desprezo ao feminino dos imigrantes árabes é flagrante em toda a Europa. Começa na excisão do clitóris e infibulação da vagina, prática que insistem em perpetuar mesmo em geografias onde a legislação as caracteriza como mutilação e as pune como tais. Continua com a insistência no uso do véu, por parte de alunas de escolas laicas. Até aí, mesmo transgredindo leis locais, estendem seu obscurantismo à comunidade muçulmana. O conflito mesmo surge quando esta mentalidade se traduz em hostilidade às mulheres dos países que os acolhem. Cito dois casos, ocorridos em sociedades onde a mulher alcançou um elevado status na Europa.

Os países nórdicos vêm sendo assolados, nos últimos anos, por gangues de adolescentes árabes, cujo lazer predileto é estuprar nórdicas. Para estes pobres diabos, uma mulher sueca independente não é uma mulher sueca independente. É apenas uma "puta sueca". E como tal pode ser tranqüilamente estuprada. Se for árabe, não. Pois não é o mesmo violentar uma sueca e uma árabe. "A sueca recebe um monte de ajuda depois, além disso já foi fodida" — afirma um dos participantes de uma gangue -. "Mas a árabe têm problemas com sua família. Para ela, é uma grande vergonha ser violentada. É importante para ela ser virgem quando casar".

Praga pior que estes árabes na Suécia, só os somalis na Finlândia. A Somália, se o leitor não sabe, é aquele país africano que chegou ao estágio final do comunismo, segundo Marx: o desaparecimento do Estado. O poder é exercido por hordas armadas, comandadas pelos "senhores da guerra", seja lá o que isto quer dizer. As guerras intestinas na Somália geraram uma legião de famintos que buscam refúgio nas sociais democracias européias.

Famintos, mas arrogantes. Está até hoje atravessado na garganta dos finlandeses um episódio ocorrido há dois ou três anos em uma das escolas do país. Acolhidos com generosidade pela Finlândia, os meninos somalis não nutrem o menor respeito pelas professoras que tentam educá-los. É que são mulheres. Um dos meninos se recusou a falar com sua professora, porque um macho somali não dirige a palavra a uma mulher, e muito menos tem de obedecê-la. Claro que não faltou na Finlândia defensores do multiculturalismo, defendendo a idéia de que a "cultura do outro" deve ser respeitada. Que o Estado providencie um professor macho para educar o macho somali.

Os muçulmanos, que um dia foram expulsos da Europa a ferro e fogo, estão agora voltando, sob a proteção de um falso humanismo. As preocupações do cardeal milanês são as de todo homem culto. Não que o cristianismo seja um modelo de humanismo. Mas pelo menos, forçado pelos séculos, já admitiu a separação entre Estado e Igreja.

Imagine o leitor o que restará desta civilização, quando os brutos vindos do Oriente, apoiados pelos defensores da "cultura do outro", assumirem cadeiras no Legislativo e passarem a legislar na Europa.


 

Viúvas Infestam Praga

29/9/2000

 

Sexta-feira passada, falei das pragas que infestam a Escandinávia. Falo hoje de outras pragas que infestam Praga. A semana foi marcada pelos protestos contra a abertura oficial da reunião do fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial na capital tcheca. "London, Seattle, continue the battle", gritavam os manifestantes. Para Frei Betto, "agora os pobres ocupam também os espaços simbólicos. Seu clamor fez-se ouvir em Seattle, em dezembro do ano passado, em Washington, em abril deste ano, e, de novo, ressoa na reunião de Praga". Curiosos pobres estes, que transitam de Seattle a Praga, passando por Davos, Londres e Washington e já têm encontro marcado em Quebec, em abril de 2001, na conferência da Zona de Livre Comércio das Américas. Protestar contra o capitalismo parece ter virado privilégio de gente fina. Pois este tour não é para qualquer pé-rapado.

Nas raras incursões que fiz pelo mundo socialista, bem antes da queda do Muro, só tive uma vontade ao voltar ao Ocidente: imitar o polaco aquele, ajoelhar-me e beijar o bom chão capitalista, com todas suas mazelas e disparidades. Por chão capitalista, quero dizer Europa e Estados Unidos, bem entendido. Não este arremedo de capitalismo caboclo que sofremos no Brasil, onde um cidadão raramente consegue chegar a um bem-estar mínimo com o fruto de seu trabalho.

Na Romênia, onde passei duas semanas, ofereceram-me uma terceira, com hotel e refeições de graça. Recusei-a sem hesitar. Queria Paris, urgente. Na finada Alemanha Oriental, bastou-me um dia de Berlim, da Berlim do lado de lá, para desejar voltar correndo aos encantos da Kurfürstendam. Mesmo depois da queda do Muro, as seqüelas do socialismo ainda se fazem sentir. Praga e Budapeste são hoje cidades pobres se comparadas às capitais européias. Mais recentemente, conheci a Rússia. Há muito tempo, não visitava um país onde tivesse de dar graças por viver no Brasil. Se você, leitor, anda com problemas de auto-estima por ser brasileiro, compre imediatamente uma passagem para Moscou ou São Petersburgo. Voltará curado, orgulhoso de ter nascido nesta pátria amada, salve, salve.

"Queimem os ricos, queimem os ricos", berram os manifestantes em Praga. Mas não espere ouvir esta frase em tcheco. Os católicos, trotskistas, comunistas, punks, skinheads, filhos e netos dos "revolucionários" de 68 e ecologistas que lá estão, protestam em inglês, francês, alemão ou italiano. Os tchecos, remanescentes de um sistema comunista, nada têm contra os ricos. Assistem, perplexos, às manifestações contra suas mais profundas aspirações. Cá entre nós, quem não quer ser rico? É preciso cultivar um alto índice de insanidade mental para considerar a riqueza um mal em si.

Desta insanidade, participam as viúvas do socialismo. Já tivemos quatro Internacionais. Em falta de melhor bandeira, começa a organizar-se uma quinta, a Internacional das Viúvas. Como vivandeiras em volta dos quartéis, seguem atrás dos vencedores, na busca ávida de holofotes. Onde vão os representantes do capital, lá vão as viúvas. Esta confluência de velhos comunistas, soixanthuitards e ecologistas não deixa de ser sintomática. Com a morte do marxismo, os eternos sedentos de absoluto passaram a cultuar a natureza. Se a História fracassou como ersatz de Deus, Deus então é a natureza. Daí os malucos adoradores de Gaia. Fanáticos e incultos, concebem a história como um lago de águas rasas, onde tudo é um eterno presente.

Vissem um pouco mais longe, veriam que nada têm de original: na Grécia, Roma ou Índia antigas, panteísmo já foi religião. Numa defesa absurda do planeta, os contestadores de Praga protestam contra o financiamento, pelo Banco Mundial, da construção de hidrelétricas em países do Terceiro Mundo. Eles têm calefação, boa iluminação e bebem água filtrada. Os cidadãos do Terceiro Mundo, para fazer jus à qualificação, devem continuar passando frio, bebendo água podre e usando bosta de vaca como combustível.

Como esta palhaçada é global, é claro que não faltariam palhaços no mundo todo para protestar, de Copenhague a Madri, de Paris a Buenos Aires. Nem no Brasil, é claro. Em São Paulo, punks, ecologistas, estudantes e sindicalistas fizeram seus protestos junto à Bolsa de Valores. Se interrogados, jamais saberiam dizer para que serve uma Bolsa. Mas protestam. Se a mídia já deu a palavra de ordem, nada mais cabe senão protestar. Não protestam contra os 250 milhões de dólares que o governo brasileiro pagou à ditadura cubana por um placebo, as famosas vacinas fajutas contra a meningite, nada disso. Tampouco protestariam se o governo brasileiro se fizesse representar junto a fóruns africanos ou caribenhos. Associar-se a Angola, Moçambique, Cuba ou Timor Leste é salutar, digno e justo. O pecado é tentar dialogar com países ricos.

Em Moscou, Budapeste, Bucareste, Varsóvia, nas capitais de países que sofreram o socialismo, não vemos protesto algum. Lá, já estão todos vacinados contra a peste. Tampouco participam deste protesto os deserdados do mundo, os pobres de fato, que arriscam suas vidas em barcos ou furgões tentando entrar na Europa. Em junho passado, 58 chineses morreram sufocados em um caminhão em Dover, tentando chegar à capitalista Inglaterra. No dia seguinte, 37 magrebinos foram interceptados em Málaga, tentando chegar à capitalista Espanha. De todas as nações miseráveis do globo, pobres diabos desesperados deixam para trás passado e famílias, em busca de capital.

Abaixo o capitalismo, berra a Internacional das Viúvas. Morte aos ricos. Só a miséria é capaz de inspirar sentimentos nobres. Shut down FMI. Viva a miséria, última bandeira para os filhos ingratos do conforto capitalista.


 

Sobre meu Capitalismo

6/10/2000

 

Só porque louvei, na última crônica, as virtudes dos regimes capitalistas, fui apresentado na chamada de capa deste jornal de "capitalista assumido". Ora, vai uma distância muito grande entre constatar um fato e assumir uma filosofia. Que os países capitalistas são o que mais se aproxima de uma utopia, que o digam os milhares de imigrantes que arriscam suas vidas para neles entrar. Falei outro dia dos 58 chineses que morreram sufocados em um caminhão, em julho passado, tentando chegar à Inglaterra. No que vai deste ano, já são 61 os magrebinos que morreram no mar tentando chegar à Espanha. Mais de 10 mil já foram detidos pela mesma razão. Só nesta terça-feira passada, 445 africanos foram presos tentando entrar no país pelo Estreito de Gibraltar. Isso sem falar nos cubanos e chicanos que morrem todos os meses tentando chegar aos States. Não temos notícias, por outro lado, de pessoas arriscando a vida ou morrendo para chegar a Cuba, Pequim ou Moscou.

Daí a ser capitalista, são outros quinhentos. Por capitalista, entenderíamos um homem que põe o lucro acima de tudo, que respira dinheiro o tempo todo e vive imerso num universo de bancos, ações, dividendos, juros, sempre preocupado em aumentar seu capital e rendas. Ora, de lucros nada entendo, ou já seria rico. De assuntos de banco, me atrapalho com minha conta corrente. Dinheiro, jamais soube juntá-lo. Em meus dias de Florianópolis, cheguei a acumular dois bi: uma bicicleta e uma biblioteca. Vendi a bicicleta há algum tempo e, hoje, de meu, só me resta a biblioteca. Jamais tive carro nem mesmo cartão de crédito, indícios mínimos, a meu ver, de um capitalista que se preze. Assim, só posso classificar como grossa calúnia a pecha que este jornal, sem querer, me pespegou.

Mas se alguém quiser ouvir de novo, repito: as sociedades capitalistas, com todas suas mazelas — que não são poucas — continuam sendo a melhor fórmula de convívio humano até hoje encontrada. Da mesma forma, sou um incondicional defensor do consumo, esta instituição tão caluniada por esquerdistas e igrejeiros.

Sempre que lembro do assunto, recordo uma véspera de Natal de meu passado. Quem não esteve numa tarde de um 24 de dezembro em Madri, não tem idéia do que seja consumo compulsivo. Na Puerta del Sol e arredores, os madrilenhos corriam como formigas tontas fugindo de um temporal, em busca do que comprar. Entravam desesperados na Preciados e Corte Inglés e delas saíam, os braços estocando mercadorias como se esperassem o fim dos tempos. Em meio àquela turba ensandecida, uns gatos pingados católicos, envoltos em pelerines, condenavam o consumo e o capitalismo.

Ali estavam os inimigos da humanidade. Em sua insensatez, estavam pedindo desemprego e miséria para o último camponês nos confins da Espanha, que vendia seus queijos, chouriços ou vinho para a satisfação dos espanhóis. Consumo, por estúpido que seja, é sinônimo de emprego. A gula dos madrilenhos sustentava os criadores de suínos, os produtores de queijos, vinicultores, comerciantes e transportadores da Espanha toda, da mesma forma que a gula do parisiense sustenta criadores de ganso até mesmo na Hungria. Qualquer objeto besta de consumo, seja uma caneta mais sofisticada ou um brinquedinho bobo, significa horas de trabalho e salário na outra ponta do mercado. Isto, os igrejeiros que protestavam na Puerta del Sol contra os hábitos natalinos dos madrilenhos pareciam não entender.

Sou defensor incondicional do consumo. Sem ser consumista. No que dependesse de mim, o capitalismo morreria à míngua por falta de clientela. Sou completamente cego à publicidade, seja televisiva, em jornais ou banners. Propaganda em jornal, para mim é preto: não enxergo. Antes que os politicamente corretos protestem, vou explicando. Em jornal, quando recebemos as provas de página, o espaço destinado à publicidade vem em preto. É desse preto que falo.

O tabagismo, sem ir mais longe. A cada dia que passa, aumenta o número de fumantes que se sentem vítimas da publicidade. Nos Estados Unidos, milhões de americanos estão recebendo grossas indenizações das companhias tabagistas, pelas seqüelas do cigarro, sem que nada ou ninguém os tenha constrangido a fumar. Pelo jeito que evoluem as leis na grande pátria, dentro em breve os familiares de suicidas estarão processando o farmacêutico da esquina por ter vendido barbitúricos.

A intenção manifesta do legislador é excluir toda e qualquer responsabilidade individual. Se você morre de câncer, a culpa é da sociedade, das empresas, de qualquer um que não seja você, que compra voluntária e religiosamente sua dose diária de câncer.

Ora, nasci em meio ao bombardeio maciço da publicidade do tabaco. Além disso, reforço em casa não me faltava: meu pai era fumante. Ainda criança, pus certa vez um cigarro na boca. Não gostei, joguei fora e ponto final. Jamais me passou pela cabeça que eu teria mulheres lindas, status ou êxito profissional fumando o cigarro tal. Que alguém fume por gostar de fumar, até entendo. Difícil é entender que alguém fume em função de uma publicidade idiota.

Se um último louvor me é permitido fazer às sociedades de consumo, vamos lá: nelas só consome quem quer consumir. Se você quiser manter-se à margem das tentações da publicidade, se quiser levar vida monástica, esteja à vontade. Ninguém vai impedi-lo de não consumir.


 

Milosevic e a Imprensa Gentil

13/10/2000

 

O homem não consiste apenas em corpo e alma, dizia Thomas Mann. É corpo alma e passaporte. Dou uma olhadela em meus passaportes passados e constato que já são peças de museu. Neles há vistos que não se repetirão, pois a tendência contemporânea é a abolição de fronteiras. E há também aqueles vistos, mais preciosos para o viajante, de países que não mais existem. Tenho carimbos da finada RDA, da Tchecoeslováquia, quando ainda era Tchecoeslováquia, e da Iugoslávia, quando ainda, além da Sérvia e Montenegro atuais a que se viu reduzida, era também Croácia, Macedônia, Bósnia e Eslovênia. Andei por lá nos dias da morte do marechal Tito, em 1980. O regime, se não era tão fechado como na Alemanha Oriental de Honecker ou na Romênia de Ceaucescu, aberto também não era.

Eu era hóspede de pessoas ligadas ao Partido Comunista Iugoslavo e mesmo estes mudavam de assunto quando sentavam-se em mesas próximas às nossas aqueles indefectíveis senhores com ar de polícia política. E isso que falávamos em francês, idioma pouco cultivado no país. Se até membros do Partido, falando uma língua desconhecida, sentiam medo, pode-se imaginar o sentimento dominante do cidadão comum. O marechal podia ser anti-stalinista, mas isto não fazia dele exatamente um liberal. Mesmo assim, os iugoslavos gozavam de um privilégio extraordinário em relação a seus demais vizinhos do Leste comunista: podiam viajar ao exterior. A Iugoslávia era então uma espécie de ponte para a Europa. Uma vez lá, qualquer cidadão tcheco, polonês ou búlgaro sentia-se um pouco mais perto da liberdade.

Com a morte de Tito, o construtor da Iugoslávia, temia-se o fim da federação. Que não ocorreu imediatamente após a morte do marechal. Era preciso mais um piparote para que o país se desintegrasse, a queda do Muro e o desmoronamento da URSS. Slobodan Milosevic, herdeiro do comunismo titista, tentou barrar a ferro e fogo a separação das repúblicas. Apesar de ter massacrado algo em torno de 250 mil conterrâneos, não conseguiu. Encastelou-se no que restou da antiga Iugoslávia, a Sérvia e o Montenegro. Em seu feudo, exerceu por 13 anos sua ditadura particular. Até cair de podre, na semana passada. Milosevic, acredite se quiser, até hoje, dia 13 de outubro, concorria ao prêmio Nobel da Paz. Considerando-se que carniceiros como Kissinger e Arafat já foram contemplados pela Noruega, não seria de espantar que o colega dos Balcãs também o fosse.

Leio no Estadão que a queda de Slobodan Milosevic pode apagar os últimos traços do Partido Comunista no Leste Europeu, surgidos com as ocupação pelo Exército Vermelho em 1945. Embora a Iugoslávia de Josip Broz Tito rompesse com a União Soviética em 1948, os comunistas na República da Sérvia não sucumbiram à onda contra-revolucionária de 1989 que varreu outros regimes comunistas à sua volta, diz o jornalista. Quer dizer então que ainda existiam comunistas? Ora, não passa dia sem que alguém me lembre que comunistas são coisas do passado, que as discussões hoje são outras, que não se chuta cachorro morto, etc. Mas isto é o de menos.

Importante é observar quem assina o artigo do Estadão. Não é nenhum jornalista brasileiro, mas Robert D. Kaplan, do The New York Times. Pois se o leitor quiser encontrar alguma menção ao regime comunista sérvio na imprensa nacional, terá de procurar com lupa. Mesmo assim, só encontrará esta menção nalguma declaração de Vojislav Kostunica ou de algum intelectual iugoslavo. Para os redatores tupiniquins, na semana passada caiu "o último ditador europeu". A Zero Hora concede a Milosevic o título de carniceiro dos Balcãs. Mas na hora de precisar sua extração ideológica, fala na queda do "último ditador socialista da Europa". O Globo, em editorial, diz que foi desfeita a camisa-de-força do socialismo titista. Quer dizer então que Tito era socialista? Gentilezas da imprensa nossa.

Certa vez alguém perguntou a Confúcio qual a primeira coisa que ele faria se tivesse de governar, condição à qual ele jamais chegou. Respondeu o sábio chinês: Retificar a língua. Teria ocupação para muitas vidas, apenas retificando o linguajar deste século que passou. O leitor pode fazer um teste, a partir desta página mesmo. Na coluna à esquerda, clique em "Jornais estrangeiros". E viaje, de país em país, de jornal em jornal. Procure notícias referentes à Iugoslávia. Dificilmente encontrará alguma menção ao regime comunista de Milosevic.

Nos dias da derrocada, fiz este percurso. Não percorri todos os jornais, mas andei em muitos países. Só fui encontrar a bendita palavrinha na imprensa americana, que não tem papas na língua, nalgum jornal inglês, nos franceses Le Monde e Libératíon e no italiano >Corriere della Sera. A imprensa espanhola reproduziu a declaração de Aznar: caiu o último pedaço do Muro. Em outros jornais pelos quais passei, silêncio obsequioso.

Por que será a imprensa tão gentil? Deixo a pergunta aos leitores.


 

A Nova Bandeira Palestina

20/10/2000

 

O líder israelense Ariel Sharon decidiu fazer uma visita ao Monte do Templo, em Jerusalém. Os palestinos consideraram o passeio de Sharon uma afronta e desfecharam uma nova intifada. Nos últimos 20 dias, o saldo de mortos é de mais de cem pessoas. Preocupado com o morticínio, Bill Clinton deslocou-se até Sharm el-Sheik, o mais sofisticado balneário do Sinai egípcio, para discutir soluções de paz com Yasser Arafat e o premier Ehud Barak. Participam ainda do encontro o presidente do Egito, o rei da Jordânia, um representante da União Européia, Javier Solana e o secretário-geral da ONU, Kofi Annan. A matança está em todas as capas da imprensa internacional.

Ainda nesta semana, conflitos raciais deixaram pelo menos cem mortos na Nigéria, em apenas dois dias. São negrinhos subsaarianos. Seis linhas para eles em página interna de caderno. Com muita generosidade, nove. A imprensa sabe privilegiar cadáveres. Não culpemos os jornalistas. Em verdade, fazem a vontade do leitor. Ou alguém aqui está interessado nas guerras tribais dos negros nigerianos?

Só na cidade de São Paulo são assassinadas, a cada fim-de-semana, algo em torno de cinqüenta pessoas. Estas estatísticas são de 1996 para cá, quando começou a ser divulgada nos jornais a cifra de mortes. De lá para cá, não se tem notícia de reunião alguma para fazer cessar a carnificina. A meia centena de assassinatos dos fins-de-semana tornou-se parte da rotina urbana, algo tão previsível como a meteorologia ou engarrafamentos. A vida não vale muito abaixo do Equador. Vivêssemos em geografias como Israel ou os Balcãs, por muito menos cadáveres teríamos as atenções dos poderosos do mundo.

A violência política é mais prestigiosa que a violência perpetrada por dívidas de droga. Droga só tem prestígio se unida à ideologia. As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), guerrilha marxista que desde 1964 provocou trinta mil mortes no país e provocou a migração de dois milhões de colombianos, que o digam. Conseguiram unir marxismo e tráfico de drogas, o ópio dos intelectuais ao ópio do povo. Graças a este exótico coquetel gozam de prestígio e apoio internacional. No Brasil, seus porta-vozes conversam com governos e dão palestras em universidades, com a nonchalance de quem luta por boas causas.

Em setembro passado, foi preso Francisco Antonio Cadenas Collazos, sacerdote católico há mais de 12 anos incorporado à guerrilha. Além de estar em situação irregular no Brasil, portava documentos falsos. Mal foi preso, as Farc pediram ao presidente Fernando Henrique Cardoso para não deportá-lo. O companheiro Cadena estava em sua atividade de gestões diplomáticas e, quando se deslocava por uma região fronteiriça entre Brasil e Paraguai, foi detido pela Polícia Federal, afirmou o porta-voz das Farc junto ao governo colombiano.

Ongs, sindicalistas, estudantes e representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Movimento Nacional de Direitos Humanos, fizeram manifestações em favor de sua libertação, obtida na terça-feira passada, por força de uma liminar. Colazzos disse que vai manter o trabalho de divulgação dos objetivos da guerrilha. Quero ficar mais cinqüenta anos no Brasil, como embaixador oficial das Farc, disse o padre. Não seria de surpreender que, dentro em breve, o Itamaraty, com seu viés terceiromundista, reconheça o chanceler da droga.

No Rio de Janeiro, ser policial virou roleta russa. Só no que vai deste ano, oitenta foram assassinados, em geral por traficantes. Nem a OAB nem o Movimento Nacional dos Direitos Humanos, muito menos estudantes ou sindicalistas moveram sequer um dedo, que mais não fosse para solidarizar-se com as viúvas e órfãos gerados pelo narcotráfico. Mas se o comércio de drogas é feito por marxistas, louvados sejam os porta-vozes do tráfico.

Seqüestro também pode render dividendos. Os canadenses e chilenos que em 1989 seqüestraram um empresário brasileiro, tiveram a feliz lembrança de alegar razões políticas para seu crime. Graças às boas instâncias de Fernando Henrique Cardoso, do então ministro da Justiça, Renan Calheiros, do secretário de Direitos Humanos, José Gregori, do cardeal Evaristo Arns e demais sedizentes defensores dos Direitos Humanos, acabaram sendo reenviados para seus países. Dia 29 próximo, Marta Suplicy será eleita prefeita de São Paulo. A militante petista pediu em porta de cadeia, ao lado do marido, o senador Eduardo Suplicy, pela libertação dos terroristas. E ainda há quem diga que o crime não compensa.

Volto a Israel. Nestes dias, os palestinos apresentaram ao mundo uma nova e brutal bandeira, as mãos cobertas de sangue. Pode ser sangue de palestino ou de judeu, o que importa é que seja sangue. O novo estandarte, ao que tudo indica, se repetirá ad nauseam nos jornais. Por falar em foto, quem não lembra a daquele menino, filho de policial, que desfilou uniformizado, em Brasília, com uma arma de brinquedo no último Sete de Setembro? O episódio provocou indignação nacional e foi inclusive denunciado por entidades internacionais.

Nestes dias, a foto de um outro menino andou nas páginas da imprensa, a de uma criança palestina brandindo uma metralhadora feita de pau. Estas crianças são educadas em cartilhas que ensinam: é belo morrer por Alá. Por mais que afine os ouvidos, não ouço protesto algum dos eternos defensores dos direitos humanos. Ora direis, no Hino Nacional cantamos: não teme quem te adora a própria morte. Mera retórica de hinários. Ninguém é maluco a ponto de dar a vida pelo Brasil.


 

Panelocídio na Selva

27/10/2000

 

Paris, anos 70. Recebo em meu studio uma amiga gaúcha, de passagem para Moscou. Na época, a Nova Jerusalém soviética era destino de peregrinações de jovens do mundo todo. Para antecipar à moça as excelências do socialismo, convidei-a a dar um giro por Paris. Vamos tomar o PC, sugeri. É o ônibus do Partido Comunista.

Na parada, o PC surgiu, mostrei uma carteirinha e entrei. Ela teve de pagar seu bilhete. Queria saber por quê. É que eu sou estudante, expliquei. Estudantes e operários não pagam nada no ônibus do Partido. Tu pagas porque és turista.

A moça voltou ao Brasil exultante. Na França, estudantes e operários tinham transporte grátis nos ônibus do Partido. Ai de quem dela discordasse. Ela havia tomado o PC, na frente do ônibus a sigla PC era visível à distância. Ora, PC, no caso, significa Petite Ceinture, o ônibus que faz o contorno dos pequenos boulevards. Eu não pagara bilhete porque tinha a carte orange, título de transporte à disposição de qualquer residente, ou mesmo turista, em Paris. Mas ela gostava de crer. Então dei-lhe razões para tanto.

Minha piada era inocente. Imagine o leitor o que não faz um Estado forte e organizado com turistas em busca de fé, que não conhecem a língua local. Assim, se algum leitor gaúcho ouviu alguém dizer que o PC francês subsidia transporte de estudantes e operários, saiba que a fonte da boa nova é este que vos escreve.

A vontade de crer é um poderoso auxiliar dos gurus, ditadores e vigaristas. Já devo ter contado neste espaço, a história da francesinha deslumbrada que foi fazer turismo na Disneylândia das esquerdas. Ao ler em um muro PAREDÓN PARA LOS TERRORISTAS, foi logo interpretando a palavra de ordem conforme sua fé: Pardon pour les terroristes? Ils sont gentils, ces Cubains.

Para a ditadura cubana, nem foi preciso pintar a realidade com cores lindas. A moça, crente da "revolução" castrista, se via paredão, lia perdão. E ai de quem lhe dissesse o contrário: ela havia estado em Cuba, ela havia visto o pedido de perdão no muro.

Falar nisso, lembro de Cristóvão Colombo. Ao chegar a Cuba, estava convicto de que havia chegado a Cipango, o Japão. Os geógrafos espanhóis discordavam. Consultavam os mapas e concluíam que o navegador não poderia ter chegado lá. Colombo deve ter rido às gargalhadas dos acadêmicos de gabinete que, sem terem navegado, pretendiam saber onde ele havia estado. Ocorre que estar no centro dos acontecimentos nem sempre é garantia de saber o que está acontecendo. Imagine se Colombo dispusesse na época da mídia atual, e que esta mídia assumisse sua convicção de que estivera no Japão. Seriam necessárias algumas décadas para desfazer-se o torto.

Mutatis mutandis, foi o que ocorreu com os ditos ianomâmis. Uma aventureira romena de passaporte suíço fotografou índios de quatro tribos em Roraima. Para expandir seus territórios, promoveu uma campanha de vacinação e batizou-os todos de ianomâmis. Liberou na imprensa internacional fotos idílicas, de índios beijando beija-flores, saltitando em igarapés com arcos e flechas, seres angelicais integrados à natureza. Os ianomâmis passaram então a existir. Como vontade de crer é o que não falta no Ocidente, o blefe passou.

Para melhor sublinhar suas existências, uma freirinha italiana espalhou um boato de que ocorrera na selva um massacre de ianomâmis, em agosto de 93. Falou-se em até120 índios chacinados. Na falta de qualquer cadáver, reduziu-se a cifra para 16. Mesmo assim, corpo algum foi encontrado. E por que não? Aqui surgem os antropólogos, estes agentes da mauvaise conscience ocidental, para explicar. Não foram encontrados cadáveres porque os ianomâmis queimam seus mortos para guardar as cinzas. E onde estão as cinzas? Dentro de cabaças. Fotos de índios com cabaças com as cinzas dentro foram divulgadas nos jornais. Pode-se examinar as cinzas? Ah, não pode. São sagradas. Mas quem não gosta de acreditar em um bom massacre? Ainda mais quando os vilões são brancos malvados e as vítimas os pobres indiozinhos.

Sem cadáver não há crime, diz a boa doutrina jurídica. Mesmo assim, um juiz condenou a vinte anos de prisão cinco garimpeiros. Pelo assassinato de índios de uma tribo que não existe. Em Roraima, foi atada com nó de tope a maior farsa jornalística, política e jurídica jamais ocorrida no Brasil, com sérias conseqüências para a integridade territorial do país. A imprensa registrou alguns sinais de violência na aldeia venezuelana onde teria ocorrido o massacre, várias panelas perfuradas por tiros. E só. Teríamos então um panelocídio, figura jamais contemplada por qualquer código penal.

Depois de a imprensa internacional anunciar a matança de ianomâmis no Brasil, quem duvidará de suas existências? Tanto existem que são até massacrados. Se o Papa e a ONU deploram publicamente o genocídio, o que não existe e o que nunca aconteceu passam a ser fatos históricos. Minha piadinha em Paris não teve conseqüências maiores, senão uma gaúcha que jura de mãos juntas que o PC francês dá transporte de graça a operários e estudantes. O boato da freirinha, lançado nos confins de Roraima, cresceu e tomou conta das primeiras páginas da imprensa do planeta todo. Milhões de leitores no mundo juram hoje de mãos juntas que no Brasil ocorreu um genocídio.

Denunciei esta farsa em Ianoblefe, que agora você pode baixar de http://www.eBooksBrasil.org/. Escrevi o livro em 94, enviei-o a umas vinte editoras e nada feito. Alegaram que os jornalistas são corporativos e não pretendiam queimar o nome da casa. Um editor gaúcho considerou irreverência falar em teocracias na selva e me sugeriu eliminar do debate qualquer menção aos padres. Como se fosse possível falar em índios sem falar de padres. A farsa já pertence à História e como tal merece ser revisitada. Além do mais, o leitor poderá ver como é fácil, para jornalistas, criar um fato a partir de nada.


 

Em defesa de Lula

3/11/2000

 

Almoçávamos em três, em um restaurante de Perdizes. Este gaúcho que vos escreve, mais dois amigos jornalistas, um judeu e outro negro. Como seria de esperar-se neste tipo de encontro, logo surgiram as piadas. Contei as que lembrava de gaúchos, de judeus e quando comecei as de negro, o negrão a meu lado protestou:

Vamos fazer uma coisa. Gaúcho conta piada de gaúcho, judeu de judeu e negro de negro.

Ali estava, a meu lado, o racista atroz. Contaminado pelo fanatismo dos movimentos negros americanos, ele pretendia regulamentar conversas em mesa de bar. Contar piadas de negro era politicamente incorreto, a menos que um negro as contasse.

Ora, faz parte do humor — e particularmente do humor negro, sem trocadilhos — rir das desgraças alheias. Em boa parte das piadas, sempre há uma vítima. A vítima, de modo geral, é quem está por baixo. Antes ser rico e ter saúde, que ser pobre e doente.

Ocorreu-me então uma piadinha que, espero, ainda não seja proibido contar. Três pessoas perambulavam perdidas no deserto, um judeu, um negro e um alemão. De repente, o alemão tropeça numa lâmpada. Pega, esfrega e dela salta um gênio, que se propõe a satisfazer três desejos, um de cada um dos três. Pergunta ao judeu o que ele quer.

— Bom, eu gostaria que você varresse da face da terra a raça negra.

— Muito bem — diz o gênio — E você? — pergunta ao negro.

— Quero que você extermine a raça infame dos judeus.

O gênio dirige-se ao alemão. O alemão pondera:

— Você vai mesmo atender os pedidos desses dois?

— Claro. Prometi, vou cumprir.

— Bom, então acho que vou pedir uma cervejinha — respondeu o Fritz.

Dentro dos critérios de meu amigo negro, a quem caberia contar esta piada? Me ocorrem estas reflexões a propósito de uma bobagem inofensiva dita pelo ex-operário que hoje é líder do sedizente Partido dos Trabalhadores, a respeito de Pelotas. A cidade é exportadora de veados, disse Lula em um momento de descontração.

Escândalo nacional: Lula chamou os pelotenses de homossexuais. O escândalo tomou tais proporções que o próprio Lula, renunciando a sua espontaneidade de ex-operário, sentiu-se na obrigação de pedir desculpas, assumindo o dogma do Politicamente Correto, tão caro aos intelectuais que o monitoram. A emenda foi pior que o soneto: ao considerar que ofendia os pelotenses ao chamá-los de homossexuais, deixou claro que vê a homossexualidade como algo infamante.

Então não se pode mais fazer piada com os pelotenses? Se gaúcho pode fazer piada com gaúcho, por que não poderia fazê-lo um nordestino? Por extensão, suponho que já seja passível de condenação o farto repertório de piadas em torno ao gaúcho bicha. Imaginemos que Lula, em vez de fazer alusão à folclórica fama de Pelotas, contasse uma das tantas e muitas vezes saborosas piadas em torno a gaúchos homossexuais. Sentir-se-ia ofendido o Rio Grande do Sul inteiro?

Nada disso. Os gaúchos do Rio Grande do Sul — e ainda existem alguns no Rio Grande do Sul — cultivam o salutar hábito de rir de si próprios. As piadas em torno a gaúchos nascem no Rio Grande do Sul mesmo e são editadas em vários volumes por editoras de Porto Alegre. Suponho, inclusive, que boa parte das piadas sobre Pelotas sejam de lavra dos próprios pelotenses. Só uma elite intelectual, irremediavelmente contaminada pela tirania do Politicamente Correto, consegue condenar o inocente comentário de Lula.

Chegamos ao cúmulo de uma juíza eleitoral decretar censura à imprensa, a pedido de Lula, proibindo os meios de comunicação social de fazer qualquer notícia, comentário ou referência à referida imagem. Sua decisão por certo não terá sido motivada pelo desejo de proteger a honra dos pelotenses.

Condenar Lula pela piadinha inocente é deixar de lado afirmações bem mais graves, que não foram ditas em tom de piada. Em julho de 1979, quando era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista e articulava a criação do PT, Lula deu uma entrevista à revista Playboy, na qual citou Hitler e Khomeiny como duas figuras políticas pelas quais nutria admiração. No alemão, Lula elogiou a "disposição, força e dedicação" e afirmou: O Hitler, mesmo errado, tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer. Sobre o aiatolá, disse: Eu não conheço muita coisa sobre o Irã, mas a força que o Khomeiny mostrou, a determinação de acabar com aquele regime do xá foi um negócio sério. Isso sem falar em sua notória simpatia pelo ditador Fidel Castro.

Em sintonia com as práticas dos homens que admira, Lula requereu agora à Justiça Eleitoral a concessão de medida liminar para determinar aos demandados que abstenham (sic!) de tornar a veicular em sua propaganda, a imagem e as manifestações do requerente, isto é, suas próprias palavras sobre a exportação de veados, como também liminarmente sustar de imediato, na emissora geradora do programa eleitoral de televisão, a veiculação das mesmas. Exigiu ainda notificar outros órgãos de comunicação, como o Jornal Diário Popular de Pelotas, Sistema RBS de Comunicação, Empresa Jornalística Caldas Júnior; Rede Globo de Televisão, para que também se abstenham de fazer qualquer notícia, comentário ou referência a (resic!) referida imagem.

Em respeito ao analfabetismo do representado, seu advogado não poupa o vernáculo. Lula exige não só a censura do que disse, como também da empresa em que assina coluna. Digo assina, pois ninguém em sã consciência acredita que Lula seja capaz de escrevê-la. Se como candidato o ex-operário já exige a censura do próprio discurso, pode-se imaginar o que censuraria se presidente fosse. A Justiça Eleitoral proíbe a divulgação da frase, dizem os jornais. Mas omitem quem exigiu judicialmente a proibição.

Isto sim, é grave, e não uma piada boba. Os jornalistas contaminados pelo Politicamente Correto, que se escandalizam com a piada boba, mantiveram sobre o fato grave um silêncio obsequioso.


 

Ser Gaúcho

10/11/2000

 

Aconteceu em Paris, numa madrugada qualquer. In girum imus nocte et consumimur igni. Girávamos na noite — eu e um amigo — e nos consumíamos no fogo, e certamente nosso fogo nada tinha a ver com o fogo do palíndromo latino. Num bistrô, por milagre ainda aberto, encontramos uma uruguaia que morava em Oslo. Conversa vai, conversa vem, perguntei qual pátria a moça considerava como sua. Soy gaucha, me disse a uruguaia. Uma gaúcha na Noruega? Paguei pra ver. Dei o santo:

Aqui me pongo a cantar,

al compás de la vigüela.

Ela deu a senha:

que el hombre que lo desvela,

una pena estrordinaria,

como la ave solitaria,

con el cantar se consuela.

Este é meu critério para reconhecer um gaúcho. Ou ele conhece estas coplas, ou gaúcho não é. Anos mais tarde, em curso que proferi em Passo Fundo, observei que meus alunos sequer tinham noção do poema de Hernández. O gaúcho, aquele ser humano nascido entre vacas e cavalos, em uma geografia sem alambrados, que habitou a pampa argentina e uruguaia e a fronteira sudoeste do Rio Grande do Sul, não mais existe. Se este personagem começava a morrer na época do Martín Fierro, o que dele hoje resta é um estado de espírito.

Vistos de São Paulo, todos os gatos são pardos. Com as 35 prefeituras conquistadas, diz-nos a Veja, o PT vai governar 3,5 milhões de gaúchos, ou 35% da população do Estado. Para os jornalistas destas plagas, quem habita o Rio Grande do Sul é, ipso facto, gaúcho. O senador Pedro Simon, por exemplo, é um senador gaúcho. Vão longe os dias em que era chamado de Turquinho Simão, para que bem fosse diferenciado de um gaúcho. Os Centros de Tradições Gaúchas (GTGs) venceram a batalha: hoje é gaúcho qualquer gringo que come polenta e dança a tarantela ou oriundos da colônia alemã que se lambuzam com chucrute e falam português com sotaque.

Platão explica. Nos Diálogos, Crátilo considera que os nomes das coisas estão naturalmente relacionados com as coisas. As coisas nascem — ou são criadas, descobertas ou inventadas — e em seu ser habita, desde a origem, o inadequado nome que as assinala e distingue das demais. Já Hermógenes pensa que as palavras não são senão convenções estabelecidas pelos homens com o propósito de entender-se. As coisas aparecem ou se apresentam ao homem e este, defrontando-se com a coisa recém nascida, a batiza. O significado das coisas não é o manancial do bosque, mas o poço escavado pela mão do homem, diz Camilo José Cela, comentando Platão. O animal doméstico e familiar do qual há muitas espécies e todas ladram, poderia ter-se chamado lombriga, e o che muove il sole e l'altre stelle, de Dante, poderia chamar-se reumatismo, se assim os homens o quisessem.

Se os rio-grandenses houveram por bem chamar-se gaúchos, que se vai fazer? Seguiram Hermógenes. O que não se pode é ao mesmo tempo chamar de amor e de reumatismo o mesmo fenômeno. Foi o que fez o mais bem sucedido ex-seminarista gaúcho, ao confessar-se marxista e cristão. Ou se trata de um analfabeto, ou age de má-fé. Como analfabeto não há de ser o governador de um dos Estados mais alfabetizados do Sul, tenho de optar pela segunda hipótese. Prefiro Crátilo: os nomes das coisas devem estar relacionados com as coisas. Considero gaúcho apenas quem nasceu na pampa, entre vacas e cavalos, e hoje provavelmente tem uma tapera em seu passado. E que conheça alguma copla de Fierro. Nada a ver com seres urbanos nascidos no asfalto.

O petismo no Rio Grande do Sul se perfilou ao lado do gauchismo, diz a reportagem. O que me lembra uma piada catarinense: Qual é o menor circo do mundo? A bombacha. Só cabe um palhaço dentro. A mitologia cultivada pelos CTGs dá razão aos catarinenses. Em seus clubes de elite, os chamados tradicionalistas cultuam uma imagem clownesca do "centauro do pampas". O homem que, em sua origem, era um marginal e ladrão de gado, vira, num passe de mídia, herói. O PT gaúcho, fiel a suas origens stalinistas, quer fazer com o gaúcho o mesmo que os comunistas tentaram fazer com Lampião.

Não é à toa que Olívio Dutra usa bombachas no dia 20 de setembro, a data nacional gaúcha, e exibe seu sotaque pampeiro, diz Veja. Ora, bombacha é veste inerente ao campo e às lides de campo, não traje de "bundinha da cidade". Esta expressão popular não deixa de ter sua razão de ser. Com as calças justas, os glúteos ficam salientes. Mas o circo tomou posse do Piratini e o bundinha do palácio oculta a sua nas bombachas.

Não bastasse os cetegistas se apossarem da imagem deste pobre diabo, as esquerdas começam a se apropriar da mitologia gaúcha. Isso pode ter pouca importância na maior parte do Brasil — diz o repórter — mas é fundamental no Rio Grande do Sul, o único Estado do país a ter sido cantado num épico literário da estatura de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Ignorando os bastidores da literatura gaúcha, o jornalista cita como arauto do gaúcho o escritor que distribuía questionários a estancieiros, para saber como era de fato o personagem que queria cantar. Foi através dos livros que se consolidou aquilo que o gaúcho se orgulha de ter em maior medida que qualquer outro Estado brasileiro: uma mitologia. E aqui o repórter tem razão: há muito o gaúcho é mito morto, preservado em formol por livros obrigatórios nas listas de vestibular.

Na Feira do Livro de Porto Alegre, Sandra Jatahy Pesavento deu palestra intitulada "Ah, eu sou gaúcho" e arrancou aplausos da platéia ao esmiuçar a gênese da mitologia. Ora, neste Rio Grande do Sul contemporâneo, já vi jovens de Passo Fundo, que ignoram quem foi Caldas Júnior, fazendo excursões a São Paulo para ver o U-2. A Dona Maria da Vila da Lata, lá em Dom Pedrito, sem saber quem foi Gumercindo Saraiva, é capaz de discorrer sobre o demônio da Tasmânia, visto nas reportagens do GNT.

Os rio-grandenses que me desculpem. Cultivar gauchismo, nesta altura do milênio, é demonstração de atroz provincianismo.


 

Pedofilia e Histeria

17/11/2000

 

Comentei, em crônica passada, as diferentes atitudes entre duas fotos, a de um menino desfilando em Brasília, na Semana da Pátria, vestido de soldado e com uma arma de brinquedo na mão e a de um menino palestino empunhando uma metralhadora de pau. A primeira provocou protestos no Brasil e no mundo. Sobre a segunda, silêncio. Nesta semana, a imprensa internacional nos trouxe uma bem mais dramática. O Estadão a publicou na primeira página, em três colunas. Meninos palestinos, com idades entre 7 e 11 anos, treinam no sul do Líbano. Embuçados e com Kalashnikovs em punho. São rifles reais, não são armas de mentirinha. Enquanto isso, Yasser Arafat luta pela constituição de um Estado palestino em Israel. O exército, ao que tudo indica, já está sendo treinado.

Onde estão Koffi Annan, Clinton, Tony Blair, Jacques Chirac, esses poderosos xerifes do mundo, sempre prestes a legislar urbi et orbi, que não dão sequer um pio em relação aos senhores que treinam um exército infantil? Mas ai do soldado que um dia provocar um arranhão naqueles inocentes meninos armados com rifles de assalto. Merecerá no mínimo o epíteto de genocida.

As preocupações atuais do Ocidente em relação à infância são outras. O grande crime é a pedofilia. Que é crime — e dos mais abomináveis — não se discute. O problema é a histeria com que as autoridades investem contra este crime, histeria que as leva à negação de princípios universais e consagrados do Direito. Claro que tal cruzada contra a pedofilia perde seu ímpeto quando enfrenta o Islã. Ninguém condenará um potentado árabe que casa com a prima de 10 ou 11 anos, que aliás lhe estava prometida desde o berço. As diversidades culturais devem ser respeitadas.

Aconteceu em Paris. Amnon Chemouil, funcionário dos transportes públicos franceses, descobriu em 92 a praia de Pataya, na Tailândia, para onde voltou em 93 e 94. Na terceira viagem, em companhia de um turista suíço, Viktor Michel, decidiu iniciar-se na pedofilia. Viktor trouxe-lhe uma menina de 11 anos, que praticou uma felação em Chemouil, pelo preço módico de 125 francos. Até aí, nada fora do previsível. Não sei se a prostituição infantil é legal na Tailândia, mas é internacionalmente sabido que o Estado tailandês tolera tais práticas, daí boa parte do afluxo turístico àquele país. O suíço, que além de pedófilo era voyeur, filmou a cena. De volta ao mundo europeu, Chemouil recebeu do amigo suíço uma cópia do vídeo, para sua coleção. E aqui começam os problemas do funcionário.

Anos depois, em uma revista no apartamento de Viktor, a polícia suíça encontrou o vídeo e enviou uma cópia do mesmo à gendarmeria francesa. Chemouil foi detido e levado ante um tribunal parisiense, que o acusava de transgredir o código penal francês de 94, pelo crime de violação sexual de menor. Além do mais, uma lei aprovada em 17 de junho de 1998, autoriza os tribunais franceses a julgar as "agressões sexuais cometidas no estrangeiro", mesmo quando os fatos imputados ao acusado não sejam considerados delitos no país onde foram cometidos. Transcrevo esta história a partir de artigo de Mário Vargas Llosa, publicado em El País.

Vamos brincar de História? Começa a esboçar-se no Ocidente, a partir dos Estados Unidos, a hipócrita tendência a permitir-se a prostituição ao mesmo tempo que se condena o cliente. Algo como as restrições à droga: tende a absolver-se o usuário, mas punir o traficante. Mas onde vai o usuário abastecer-se, senão junto ao traficante? Volto às prostitutas. Em alguns Estados americanos, na Suécia e na Itália, procurar uma prostituta já é motivo de prisão para o cliente. Na França, ainda não.

Mas quem sabe o que nos reserva o amanhã? As práticas yankees fazem escola até na Europa e não seria de duvidar que, mais ano menos ano, não só a França como os demais países europeus andem à cata dos consumidores do mercado do sexo. Como fica então M. Dupont, que foi à Cuba curtir os encantos de uma jinetera a preço de baguete? Ou os Fritz que vêm ao Brasil em busca das celebradas mulatas do Rio e Baía? Serão recebidos com cárcere ao voltar ao país de origem? Vai faltar prisão para tanta gente.

Para Vargas Llosa, o precedente estabelecido pela França é impecável, pois “uma democracia moderna não pode aceitar que, saltadas as fronteiras nacionais, seus cidadãos possam ser exonerados de responsabilidade legal e delinqüam alegremente porque, no país estrangeiro, não existem normas jurídicas que proíbam aquele delito. (...) Os legisladores franceses decidiram estender a jurisdição das leis e códigos a esta sociedade globalizada de nosso tempo, o que permitiu assentar um precedente e um exemplo, como ocorreu, já não no campo dos delitos sexuais, mas no dos crimes contra a humanidade, com o general Pinochet na Espanha e Inglaterra”.

O lúcido Vargas Llosa parece ter-se imbuído da arrogância européia, que se julga no direito de julgar um chileno por crimes cometidos no Chile, mas jamais ousaria pedir a cabeça de um Clinton ou Blair pelo bombardeio de populações civis na Iugoslávia.

Por uma lei de 1998, Amnon Chemouil foi condenado na França a sete anos de prisão. Por um fato ocorrido em 1994, na Tailândia. Não é preciso ser versado em Direito, para entender-se que tal atitude gera uma insegurança total no campo dos atos humanos. Ora, no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, lemos: Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento de sua prática, não constituíam ato delituoso à face do direito nacional ou internacional.

A França derruba princípios universais do Direito para punir a pedofilia, via o absurdo jurídico de uma lei que retroage. Quanto às crianças enviadas à morte pelos palestinos, não vemos pronunciamento algum, nem de Llosa, nem de juizes, nem de xerife algum do planeta.


 

Em Defesa do Lixo

24/11/2000

 

Continua a novela das novelas. Foi concedida, terça-feira à noite, liminar que derruba recurso conseguido pela TV Globo, na segunda-feira, garantindo exibição de Laços de Família, com a participação de menores de idade a partir das 20 horas, que fora proibida por decisão judicial do Ministério Público do Rio.

Se há algo que abomino na televisão são as tais novelas. Às vezes, dou uma olhadela no Sílvio Santos, Ratinho, pastores evangélicos. É uma maneira de ter uma idéia do nível geral de mediocridade do mundo que me cerca sem sair de casa. Julgo aconselhável dar uma passada nesses programas, para pelo menos vermos o que o brasileiro, de um modo geral, gosta. Assistir um programa de grande audiência é uma fórmula de fazer pesquisa sem sair a campo. Ora, direis, então seria bom dar uma olhadela nas novelas da Globo. Não consigo, nem como pesquisa sociológica. Os trejeitos dos atores, a mediocridade dos entrechos, a presunção dos autores, tudo isso me faz passar voando pela Globo. Abomino tanto seus atores que nem os vejo quando fazem cinema. Aliás, a última vez que entrei numa sala para ver um filme brasileiro, foi em 1979, em Túnis, na Tunísia. Fazia a cobertura de mais um festival de cinema de Terceiro Mundo e o diretor me convidou para ver seu filme, Aleluia Gretchen. Depois disso, nunca mais. Que mais não seja, não vejo filmes feitos com dinheiro do contribuinte.

Mas porque abomino novelas, se não as vejo? O asco começa pelo que leio na imprensa. Os episódios vazam da televisão e entram até em capas de jornais, como se fatos históricos fossem. Neste momento, até os jornais me irritam. Que tenho eu, leitor, a ver com o lixo televisivo? No entanto, tendo em vista o debate instaurado em função da censura que se abate sobre este lixo, me sinto impelido a defender a Globo e sua produção de lixo.

Há uns trinta anos — quem sobreviveu deve estar lembrado — livrinho pornô dava cadeia, fossem sofisticados livrinhos suecos em policromia ou o nosso prosaico Carlos Zéfiro, em preto e branco. A pornografia era vista como uma ameaça aos valores da moral e da família, estratégia comunista para desestabilizar o Ocidente. Passadas três décadas, compra-se pornografia no quiosque da esquina, aluga-se filmes pornôs em qualquer locadora e a família vai tão bem — ou tão mal, como quisermos — como nos dias em que pornografia era proibida. A pornografia vulgarizou-se, exauriu-se e os cinemas pornôs entram em falência e dão lugar a templos evangélicos.

Uma nova onda de moralismo agora se abate sobre a televisão. Um juiz, que já proibiu os mamilos de vedetes do Moulin Rouge em outdoors no Rio, quer agora censurar a Globo porque emprega menores em suas novelas. No fundo, o que está em jogo não é o trabalho infantil, nem a exposição de crianças a ambientes malsãos, afinal qualquer criança de família pobre desde cedo é obrigada a lutar pela vida, em ambientes certamente menos recomendáveis que os estúdios da Globo. Alega-se que a Globo, com suas novelas, contribui para a desagregação familiar.

A Constituição determina enfaticamente — diz o Estadão em editorial — que as emissoras de rádio e televisão respeitem 'os valores éticos e sociais da pessoa e da família'. E são esses valores que a novela achincalha, exibindo uma família dissoluta em que a filha rouba o homem da mãe e fazendo promoção da prostituição como meio de vencer na vida.

Voltamos à mesma alegação dos milicos em relação à pornografia. Moralistas de cueca, na quarta ou quinta mulher, apontam o dedo acusador para telinha: lá está a culpa do fracasso de meus casamentos. O Estadão, que sempre lutou pela liberdade de imprensa, associa-se agora aos que querem impor a censura à televisão, sob o eufemismo de "controle legal de seus excessos".

Onde ficam as peças do maior dramaturgo nacional, Nélson Rodrigues? Vamos proibir a transmissão de peças filmadas, como Toda Nudez Será Castigada ou Os Sete Gatinhos? As peças de Nélson são recheadas com incesto e infidelidade, atitudes que em nada rimam com família. São os mesmos componentes das peças de Shakespeare. Vide Hamlet, sem ir mais longe, onde filha roubando o homem da mãe é café pequeno: o rei da Dinamarca é assassinado por seu irmão Claudius que, além de usurpar o trono casa com Gertrudis, a viúva do morto. Ou filmes como Teorema, de Pasolini — onde um estrangeiro chega em uma casa e traça a família toda, filha, filho, mãe e pai — ou Feios, Sujos e Malvados, de Ettore Scola, que não foram proibidos nem mesmo pelo regime militar. Aliás, vamos mais longe: proibamos o teatro de Sófocles, onde Édipo e Jocasta, Tiestes e Pelopia, Clitemnestra e Egisto achincalham, de alto a baixo, os valores éticos e sociais da família.

Muito cuidado com a Bíblia. Ló, o único varão justo de Sodoma, gera Moabe e Ben-Ami com suas filhas. Antes, as havia oferecido em orgia aos sodomitas, para que poupassem os anjos que eram seus hóspedes. Isso sem falar no santo rei Davi. Pela mão de Mical, o rei Saul lhe pede cem prepúcios de filisteus. Davi, muito diligente, mata duzentos e entrega o dobro de prepúcios pedidos. Mais tarde, põe Urias, o heteu, na frente de batalha, para ficar com sua mulher. Ponde Urias na frente onde for mais renhida a peleja, e retirai-vos dele, para que seja ferido e morra. Edificantes exemplos para a família nos traz o livro sagrado.

A televisão compulsória, aquela que invade salas públicas, consultórios, bares, ônibus e até mesmo hospitais, ninguém fala em proibir. Esta sim fere um direito nosso, o direito de não ver televisão. Pois nem o recurso de desligá-la nos é dado.

Uma outra telinha está invadindo os lares, a do computador. Quando o cinema digital e a banda larga forem generalizados, a julgar pelas reações dos moralistas de cueca, a censura recairá sobre o último território livre da mídia.


 

ETA e Custo Submerso

1/12/2000

 

Enquanto alguns espanhóis celebram, nestes dias, os 25 anos do fim do franquismo, centenas de milhares de outros se manifestam pelo fim do Euskadi ta Askatasuna, ou ETA, como é mais conhecido o sanguinolento grupo basco. Em uma época de repúdio universal ao terrorismo, o ETA encontrou um ilustre aliado na América Latina. Fidel Castro recusou-se a assinar uma declaração de repulsa ao terrorismo — e particularmente ao ETA — na última reunião de cúpula dos países ibero-americanos, realizada no Panamá. Uma virtude não podemos negar ao tirano: ele é coerente com sua filosofia totalitária e homicida.

Coerência que não podemos atribuir a Luís Inácio Lula da Silva, que, no Brasil, enche a boca com palavras como liberdade e democracia e está agora em Cuba, aos abraços e beijos com seu guru. A militância política ensinou a Lula o cinismo: declarou com todas as letras que Cuba é uma democracia. Candidato a uma quarta derrota nas urnas nas presidenciais de 2002, o líder petista ainda vive na mesma atmosfera paranóide em que vive Castro. No fundo, julga-se um campeão dos Direitos Humanos. Como neobolcheviques é o que não falta nas redações de jornais do mundo todo para manter viva a paranóia, a ficção ainda tem força no, cada vez mais restrito, clube das viúvas.

E o clube está ficando cada vez mais exclusivo. A Unicamp acaba de cancelar a votação para decidir se concederia ou não o título de Doutor Honoris Causa ao ditador cubano. É a segunda vez, este ano, que a instituição suspende a análise da proposta. Faltou aos campineiros a extraordinária coragem dos professores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que há muito tempo conferiram o título de Doutor Honoris Causa ao tiranete caribenho.

Mas falava do ETA. A fêmea de um certo tipo de vespa, chamada escavadora, deposita os ovos fecundados em um sulco exaustivamente cavoucado e, junto com os ovos, deposita também no sulco a nutrição destinada às futuras larvas. Depois recobre tudo e volta periodicamente a visitar o ninho submerso.

Ocorre às vezes que uma outra fêmea, na sua ausência, deposite os seus ovos e nutrição em um sulco muito próximo, ou quase no mesmo sulco. Em tais casos se desencadeia uma luta furibunda entre as duas fêmeas, que continua até que uma delas abandone para sempre o ninho submerso. A fêmea vencedora não é aquela que depositou no ninho mais ovos que a outra, nem a mais robusta nem a maior das duas. A mais combativa, e por isso vencedora, é quase sempre aquela que mais trabalhou na escavação e que depositou no ninho mais alimento para a prole. Submerso é, pois, não só o ninho, mas o investimento em trabalho e material que isso representa.

Esta analogia foi empunhada por um jornalista do Corriere della Sera, para explicar a teimosia dos franceses e ingleses em lutar pela manutenção no ar de um pássaro caro e inviável como o Concorde. No entanto, serve como luva para analisar-se a pretensão dos bascos. Têm uma autonomia política invejável, gozada nem mesmo pelas Länder na Alemanha, com idioma, escolas e polícia própria. Mesmo assim, alguns celerados continuam matando, com pistolas e carros-bomba, desde militares, políticos e autoridades a pessoas comuns — e estas constituem a maioria dos assassinados — na luta por um Estado próprio. Agora não há como parar, me dizia um amigo vasco. Pesa muito o sangue todo derramado. Em suma, a lei do esforço submerso. Já que assassinou quase um milhar de espanhóis em sua trajetória, o ETA tem de vencer.

É um propósito. Mas o século que está findando tem mostrado sobejamente no que resulta o preço do sangue: países afundados no atraso, economias desestruturadas, populações vivendo à beira da fome. Se desvairados, sem estar no poder, matam a torto e a direito pessoas inocentes, com balas e bombas, arriscando a perder a vida e mesmo a liberdade, podemos ter uma idéia razoável do que farão uma vez no poder, controlando as leis e armas do Estado.

Para Jorge Luís Borges, que sempre procura esconder a ascendência basca em sua genealogia, os bascos me parecem mais inservíveis que os negros, e olhe que os negros não serviram para outra coisa senão para ser escravos. (..) E lembro agora, isto que disse em um de meus contos: os vascos não fizeram outra coisa na história senão ordenhar vacas, passaram os séculos ordenhando vacas.

Borges deve ter acordado com o pé esquerdo no dia em que fez estas declarações. De qualquer forma, esqueceu um dado fundamental: antes de ordenhar vacas, os bascos são profundamente católicos. Sempre julguei que esta mania católica de beber sangue humano todas as manhãs deve ter profundas conseqüências na psicologia dos hematófagos. O ETA, como poderia parecer à primeira vista, não se origina na filosofia sangrenta dos marxistas. Mas nasce, não por acaso, em igrejas e seminários. Tem a proteção da cúria e clero basco e em sua lista de anjos tutelares estão padres, bispos, cardeais e mesmo um papa. Monsenhor José Maria Setien, bispo de San Sebastian e o cardeal Enrique Vicente y Tarancón foram ardorosos defensores dos terroristas etarras. Este último cardeal defendeu junto ao Vaticano uma clemência papal para onze condenados à pena capital, e Paulo VI ameaçou excomungar Franco e mais 31 autoridades do governo caso levasse a condenação a cabo.

Dado o apoio incondicional de Roma, não é de espantar-se que os etarras matem com a serenidade dos justos. Tampouco causa espécie que Castro, ditador que vive nas graças do Vaticano, apoie o ETA. O peso do sangue derramado não pode ser subestimado. Dentro deste ponto de vista, a História passa a ter um trágico sentido: mate à vontade e a vitória será sua. As vespas escavadoras que o digam.


 

Imprensa, Neonazismo e Mitterrand

8/12/2000

 

É fácil fabricar racismo. No início deste ano, comentei o caso de uma menina marroquina, Naima Quaghmiri, de nove anos, que morreu ao cair em um lago em Roterdã, no verão de 93. Duzentas pessoas teriam assistido seu afogamento, sem prestar-lhe socorro. Racistas holandeses deixam morrer filha de imigrantes, disseram os jornais. Dois dias depois, novo despacho retificava o anterior. Não havia uma menina se afogando e duzentos holandeses assistindo. Naima se afogara horas antes. Policiais haviam pedido aos veranistas que formassem um semicírculo e percorressem o lago em busca do cadáver. Os veranistas se recusaram. Mas o estrago já estava feito. Para milhões de leitores no mundo todo, duzentos racistas europeus haviam assistido, impassíveis, a morte da filha de um imigrante.

Sordidez semelhante invadiu a imprensa internacional no mês passado. O Estadão titulou com gosto:

MORTE DE CRIANÇA POR NEONAZISTAS ENVERGONHA ALEMANHA

Vamos à notícia:

Berlim — No dia seguinte à revelação do assassinato do garoto Joseph, de seis anos, do qual um grupo neonazista é o principal suspeito, surgiram vozes em toda a Alemanha pedindo justiça. Enquanto isso, no local do crime, o povoado de Sebnitz, na Saxônia, vivem-se momentos de vergonha após a cumplicidade silenciosa de seus habitantes.

O jornal Bild denunciou a história de Joseph, filho de pai iraquiano e mãe alemã, que, perante a indiferença de 300 banhistas, foi espancado, torturado e afogado por um grupo de neonazistas em uma piscina pública. Na época, o caso foi encerrado como um acidente normal e, graças apenas à tenacidade da mãe da criança, a promotoria reabriu agora o caso.

A história da morte do menino ocupou, hoje, a capa de todos os principais jornais do país e o Bild reproduziu, também na primeira página, uma fotografia do garoto morto, junto com a mãe.

Esta é a notícia. Mesmo fractal da anterior: filho de imigrante se afogando, uma multidão de banhistas assistindo. Detalhes novos: criança espancada, torturada e assassinada. Os banhistas, desta vez são trezentos. Este tipo de notícia tende a aumentar nos próximos anos. É fácil acusar uma multidão. Como ninguém é acusado individualmente, ninguém reclama. Mais difícil é acusar uma ou duas pessoas. Pode dar processo. O desmentido veio alguns dias depois:

NEONAZISMO É DESCARTADO EM MORTE DE MENINO

Berlim — Autoridades da província alemã da Saxônia descartaram nesta quarta-feira a hipótese de um garoto de seis anos de idade, encontrado morto em uma piscina, em 1997, ter sido vítima de violência neonazista. (...) O chefe de gabinete civil da Saxônia informava nesta quarta-feira sobre a inexistência de evidências convincentes de que neonazistas foram responsáveis pela morte do garoto. (...)Promotores informaram ontem que nenhuma das testemunhas viu realmente como Joseph morreu. A principal testemunha tinha apenas 12 anos quando ocorreu o incidente, em junho de 1997.

Ou seja: não havia criança alguma sendo morta por neonazistas, nem a Alemanha tinha porque se envergonhar de coisa alguma. Enquanto isso, Sebnitz, mais a Alemanha toda — e por extensão a Europa — foram difamadas, como geografias onde grupos neonazistas afogam filhos de imigrantes, como lazer.

O mesmo ocorreu no início deste ano com a Áustria, quando o Partido da Liberdade, liderado por Jörg Haider, fez uma coalizão para participar do governo. O país foi denunciado no mundo todo como nazista. Quatorze dirigentes da União Européia acusaram Haider de direitista e xenófobo e ameaçaram cortar relações com a Áustria. Mais tarde, tiveram de pedir desculpas. (a imprensa não pediu desculpa alguma). Mas o país já estava universalmente conhecido como semental de nazistas.

Outros fatos, bem mais óbvios e mais persistentes no tempo, são tratados com extrema reserva pelos jornais. De 1954 a 1962, os franceses desfecharam uma cruenta luta contra a Argélia, que tentava separar-se da França. Só em um episódio desta guerra, a batalha de Argel, foram executados nas prisões 3.024 fellaghas, os combatentes argelinos. Quase a mesma cifra de chilenos mortos durante todo o regime de Pinochet.

Quem era o ministro do Interior nessa época? François Mitterrand, em 54 e 55. Que depois foi ministro da Justiça, em 56 e 57. Tortura foi moeda corrente naqueles dias em que, segundo De Gaulle, a França ia de Paris a Tamanrasset. Tudo isto sob a batuta de Mitterrand. Quando perguntava a algum jornalista francês o que ele achava de ver como presidente o homem que havia sido conivente com a tortura — e mesmo responsável — eu recebia de volta um olhar de perplexidade. O mesmo que meus coleguinhas tupiniquins me dirigem quando digo que não existem ianomâmis no Brasil. Estaria por acaso acusando de torturador o prestigioso líder social democrata?

Quarenta anos depois, a tortura na Argélia está voltando aos debates parisienses. Dois generais, Massu e Aussaresses, resolveram confessar seus assassinatos e torturas. No que pouco há de novo. Nos anos 70, Massu admitira tranqüilamente ter torturado e assassinado na Argélia.

Os mesmos jornalistas que não hesitam um segundo em acusar de neonazistas países inteiros, tratam o assunto com discrição. Não espere o leitor ver manchetes como Mitterrand torturou na Argélia. O fato é que homem algum bem informado sobre a história contemporânea da França podia ignorar a responsabilidade do futuro presidente francês nas matanças e torturas dos fellaghas. Muito menos comunicadores. Mas Mitterrand era o líder das esquerdas.

Jogar Mitterrand na mesma vala comum de um Pinochet ou Fidel Castro? Depois de anos e anos construindo o monumento? Jamais. Mais fácil fabricar racismo acusando multidões e países de neonazistas.


 

A Indústria Textil

15/12/2000

 

A palavra bordel, já comentei, nasce em Paris. Na época em que as maisons closes ficavam às margens do Sena, quando alguém ia em busca de mulheres, dizia eufemisticamente: j'vais au bord'elle. O Sena não é un fleuve, mas une rivière, ou seja, é feminino, la Seine. Portanto, quando alguém dizia au bord'elle, queria dizer au bord de la Seine. Daí, bordel. Não é de espantar que a capital que deu ao mundo esta palavra queira homenagear, nos dias 20 e 25 de março próximos, no 18º Salão do Livro de Paris, a prostituta maior das letras contemporâneas.

O Brasil será o país homenageado do Salão e terá como convidado de honra e representante de nossas Letras, Jorge Amado, o mais vendido escritor nacional, que começou sua carreira como estafeta do nazismo, continuou como agente do stalinismo e hoje é roteirista oficioso de Roberto Marinho. Amado ainda receberá, na ocasião, o título de Dr. Honoris Causa por uma universidade parisiense. Nada de espantar: os parisienses, de longa tradição colaboracionista e stalinista, não perderiam esta oportunidade de homenagear, neste século que finda, o colega que desde a juventude militou nas mesmas hostes.

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Rechaçar a expansão do branco, ou seja, a cultura européia, é negar Sócrates e Platão, Cervantes e Shakespeare, Dante e da Vinci, Schliemann e Champolion, Fernão de Magalhães e Armstrong, Pasteur e Einstein. Sem falar em Hegel e Marx, que no fundo embasam a Weltanschaaung de Darcy Ribeiro. Se aceitamos sua ótica fundamentalista, que as telas de Van Gogh ou Bosch sejam largadas aos papeleiros, para reciclagem industrial. Os grandes acervos dos museus poderiam servir para construir diques na Holanda. Que sejam fechados o Louvre e o Hermitage, queimadas as bibliotecas, hemerotecas e filmotecas, e proibidos os computadores e as antenas parabólicas, como aliás já está ocorrendo no mundo islâmico. A primeira providência dos fanáticos talebans, ao entrar em Cabul, no Afeganistão, foi destruir os aparelhos de televisão.

A tecnologia branca transportou Darcy Ribeiro com seus jatos aos países onde degustou "o amargo caviar do exílio". Na hora de escolher refúgio, optou por países de cultura branca, a cultura que, ao expandir-se, segundo sua acusação, foi a maior catástrofe da história. Já perto da morte, Darcy decidiu virar o cocho em que se nutriu.

Hierático, gozando da absolvição que a morte confere, morreu em aura de santidade. Nem por isso podem ser perdoadas as infâmias que proferiu postumamente, graças ao esforço editorial de seus compagnons de route. Tantas besteiras proferidas por um intelectual de renome internacional têm uma explicação: Darcy foi toda sua vida um embuste.

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As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de tráfego — continua Lobato — Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, como outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa é índice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a pressa. Tudo nela é sossegado.

Enfim, para sonhar não se paga imposto. Mas Lobato vai mais longe. Miss Jane considera superada a revolução da roda. Segundo a moça, o homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda.

O rádio matará a roda, segundo Miss Jane. A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé. O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância.

Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de terabytes diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela WEB, intuiu muito bem suas conseqüências. O teletrabalho — trabalho "radiado" para o escritório, como diria Lobato — já é um fenômeno em expansão. Hoje, qualquer trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia ou em busca de solidão e deserto em Tamanrasset. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas redações há muito não constituem mais novidade.

* * *

O Brasil já deixou de constituir uma unidade territorial. Por um punhado de linhas na imprensa internacional, Collor de Mello entregou a dez mil aborígenes que, existindo há milênios, não conseguiram emergir de uma cultura ágrafa, um território equivalente a três Bélgicas, uma para cada três mil índios. Uma recente edição da revista Geografia já tem um chamado de capa sobre "o país dos ianomâmis". Que ninguém se iluda: os latifúndios entregues de mão beijada àqueles autóctones que sequer chegaram aos preâmbulos de uma gramática, não pertencem mais ao Brasil. Os ianomâmis, que vivem do ócio e da devastação da floresta amazônica, podem ter um país para uso próprio. Gaúcho, catarinense, paulista, gente que trabalha e produz, não pode sequer pensar no assunto. É crime contra a segurança nacional.

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Estas e mais outras você pode ler em A Indústria Textil (textil assim mesmo, sem acento), compilação de ensaios que publiquei a partir de 1967. Faça o download de http://www.eBooksBrasil.org/


 

O Pão que Marx Amassou

22/12/2000

 

Falei outro dia da manipulação dos fatos pelos jornalistas, para contrabandear ideologia em seus textos. Conto hoje mais algumas histórias de bastidores.

O jornalismo contemporâneo, para atingir o maior número de leitores, baliza o texto com fotos ou grafismos de modo a tornar o mais esquemática possível a mais complexa das realidades. Como a mente do leitor já vem alimentada por um imaginário do cinema e da TV, os ícones do século são preciosos sinais de tráfego para orientação da leitura. As reportagens assumem a estrutura romanesca e os personagens são apresentados de forma que o leitor perceba onde está o bem e o mal, quem é herói e quem é vilão, vítima ou algoz.

De uns tempos para cá, a mídia foi invadida pela figura do neonazi. Se um grupo de jovens, brancos e preferentemente europeus ou de origem européia, sai a fazer balbúrdias e agride imigrantes, negros ou árabes, está configurado o neonazismo. Podem até mesmo jamais ter ouvido falar de nazismo, Hitler ou Segunda Guerra. Mas são evidentes neonazis. Se o grupo de agressores é composto por negros, não são neonazis. Negro, por definição, não pode ser nazista.

Se não há agressão alguma, cria-se pelo menos atos criminosos por omissão. Foi o que aconteceu em Sebnitz, na Alemanha, no mês passado. Trezentos banhistas teriam assistido passivamente neonazis afogando um filho de imigrante. Versão atualizada do boato difundido em Roterdã, na Holanda, em 93, quando duzentos banhistas teriam assistido uma menina, filha de imigrantes, é claro, afogar-se.

Se há neonazistas na Europa, tem de existir também no Brasil. Assim, quando ocorre qualquer incidente nalgum país europeu, preferentemente em países germânicos ou nórdicos, os editores saem a catar nos arquivos grupos equivalentes no Brasil. Basta achar um careca, branco e preferentemente parrudo, vestido com couro e correntes, e lá está a ameaça nazista.

Ocorreu já não lembro em que ano. Locais de reunião de nordestinos em São Paulo foram pichados com frases agressivas, tipo "nordestinos go home" e outras que tais. A polícia conseguiu identificar o líder dos pichadores: era um baixinho retaco, por sorte branco, halterofilista. E careca, para alegria dos editores. Estava configurado o neonazista tupiniquim. Nós também temos neonazis. O inimigo está entre nós. Durante alguns dias, foi feita a farra do neonazi. Que durou até sua volta... para o Ceará. O neonazi era nordestino. Para não atrapalhar o delicado trabalho feito durante décadas no cérebro do leitor, o personagem foi expulso das manchetes. E não mais se falou naquele paradoxo ambulante, que só servia para confundir as mentes.

Outro sinal de tráfego são as aspas. Têm múltiplas funções. Servem geralmente para marcar uma citação. Mas também para deixar clara a posição do editor. Os acontecimentos pós-queda do Muro geraram uma intensa batalha de aspas nas redações. Certa vez, na Folha de São Paulo, recebi um despacho que falava dos crimes do comunismo durante o regime dos Ceaucescu, na Romênia. Traduzi o texto, coloquei-o no bom tamanho e dei meu trabalho por feito. Dia seguinte, lá estava a notícia. Mas falava de "crimes" do comunismo. Com crimes entre aspas, para deixar bem claro que a redação não assumia a idéia de que comunistas pudessem cometer crimes.

Trabalhei mais tarde no Estadão. Um belo dia, recebo um telefonema de um colega da Folha:

Janer, aquela nota sobre a Finlândia, foste tu que a redigiste, não foi?

De fato, fora eu. Mas como é que ele sabia?

Pelas aspas. Puseste entre aspas "política de neutralidade". Só podiam ser tuas.

Me senti lisonjeado. Já era reconhecido até pelas aspas.

Outro recurso do redator, para bem definir sua postura, é a bendita palavrinha suposto. Se nas editorias de Nacional o adjetivo é uma prudente salvaguarda para evitar processos por parte de um suspeito ou indiciado em qualquer crime, no noticiário internacional é um recurso para preservar antigas crenças. E já li, juro que li, esta frase: supostos terroristas explodem carro-bomba no Peru.

Uma ressalva é sempre oportuna. Poderia ocorrer que o carro-bomba tivesse sido montado por uma equipe de carmelitas descalças. Perguntei ao redator: supostos terroristas, companheiro? Ele releu o texto e justificou: força de hábito. Claro que ninguém vai grafar "suposto nazista". Quando se trata de nazistas, não há aspas nem supostos.

Texto-legenda, em jornalismo, é aquele texto curto e ágil que acompanha uma foto ou ilustração. Segundo o manual de redação da Folha de São Paulo, seu título pode recorrer a trocadilho ou outras formas de humor.

Foi no século passado, lá por 93. A União Soviética, seguindo a insuspeita previsão de Marx, tomara os rumos anunciados no Manifesto: tudo que é sólido se desmancha no ar. Das agências, recebemos em fim de tarde uma charge de alguma revista internacional: em Moscou, uma velhota russa, com uma cesta vazia no braço, procurava abastecer-se no mercado. No balcão de pães, não havia pães, apenas bombas atômicas em formato de pães. Dei vazão a todo meu talento. Titulei com gosto:

O PÃO QUE MARX AMASSOU

Não é todo o dia que a musa desce num fechamento de jornal. Me pareceu ter ganho com verve meu pão naquele dia. No entanto, estávamos no deadline e o caderno não fora fechado. No computador ao lado, o editor suava a cântaros e gemia como em trabalhos de parto. Pousei em seus ombros como um papagaio e notei que tentava um novo título.

Mas o meu não está ótimo? — quis saber.

Me olhou indignado:

Não é hora de piada.

Os minutos corriam e o novo título não dava os ares da graça. Desesperado, o editor retomou o antigo e substituiu uma palavra:

O PÃO QUE STALIN AMASSOU

Assim não vale, protestei. Xingar o Stalin é chutar cachorro morto. Entre nós, só o Niemeyer e o Prestes ainda o cultuavam. Que mais não fosse, não tinha aquele efeito aliterativo, Marx amassou. O Velho, não! — insistia o editor. Para não atrasar o fechamento, optou pela média:

O PÃO QUE LÊNIN AMASSOU

Meu título, minhas lindas aliterações, foram pras cucuias. O jornal quase atrasou. Mas o Velho foi salvo.


 

Vinde a Mim as Criancinhas

29/12/2000

 

Um dos botecos que freqüento em fim de tarde, acho que já contei, está cercado de forças místicas. De um lado, um oratório da TFP, aquele mesmo que nos idos de 1969 recebeu uma bomba. Obra de comunistas, segundo os devotos filhos de Maria. Do outro lado, fenômeno recente, um templo evangélico, mais um desses que brotam como cogumelos após a chuva, nestes dias em que tanta gente busca muletas espirituais. Nem um nem outro jamais me incomodaram. Enquanto peco no boteco, os marianos rezam ajoelhados ao lado de minha mesa, rezam talvez pela redenção deste pecador. Não são proseletistas. Fazem suas orações em voz baixa, recitam seus salve-rainhas, ave-marias e pai-nossos discretamente, muita vezes sob a chuva e em meio a madrugadas mais ou menos gélidas.

Já os evangélicos, estes são mais barulhentos. Muito som, muita fúria e muito fanatismo. Como ficam a uma distância suportável do bar, não chegam a atrapalhar minhas horas de recolhimento.

Num destes dias, em que o famigerado espírito natalino paira sobre a cidade, mal acabo de pecar e estou voltando para casa, fui abordado por quatro ou cinco pivetinhas, na faixa dos dez anos, de bíblias em punho. Eivadas da palavra divina, estavam sedentas para trazer ovelhas ao rebanho.

— O senhor é católico? — perguntou-me a menor delas, pelo jeito a mais audaz.

— Não.

— É evangélico?

— Também não.

Com um ar incrédulo, de quem não queria acreditar no que iria ouvir, insistiu:

— O senhor é ateu?

— Sou.

Foi a vez de intervir uma mulatinha dentuça, que me exibiu suas canjicas e todo seu espanto, como se tivesse encontrado um dinossauro:

— Ateeeeuu? Mas Deus existe, moço. Falo com ele todos os dias.

A discussão é muito antiga e longe de mim pretender debater tema tão batido com uma criança. Ainda mais nesta época em que qualquer vedetinha da televisão fala com Deus a qualquer hora, sem sequer pedir audiência ao Supremo. Aceitei os alegados da mulatinha dentuça. Existe e matou um monte de gente, não é verdade? Em Sodoma, sabia?

Ela pensou um pouco:

— É! Mas eles estavam pecando. Deus avisou antes para pararem de pecar.

— Tudo bem, minha filha. Mas teu pai não peca de vez em quando? Os homens não pecam todos os dias? Isso é motivo para matá-los?

Ela ficou matutando.

— Vou perguntar para o pastor.

Sugeri que perguntasse também quem era o único homem justo de Sodoma.

— Isso eu sei. Era o Ló.

Muito bem. Ela conhecia bem o roteiro. E com quem dormiu Ló depois que fugiu de Sodoma?

Ela não sabia. Com as duas filhas, expliquei. Isso é exemplo?

— Vou perguntar ao pastor — defendeu-se a menina.

O pastor teria trabalho naquela noite.

A mais novinha me atacou com o Velho Testamento:

— O senhor conhece este livro?

— Claro que conheço, moça. Era aquele que falava de Adão e Eva, não era? Os dois viviam sós no paraíso, tiveram dois filhos...

— Caim e Abel — atalhou a apostolazinha.

— Exato. Depois o que aconteceu?

— Caim matou Abel.

— Isso mesmo. Depois Caim procriou, teve filhos, não é isso?

— É — disse a pivetinha.

— Muito bem. Com quem Caim teve filhos?

A menininha pensou um pouco, botou um dedo na boca, e teve de admitir:

— Com Eva, ué!

— E quem era Eva?

Ela puxou mais um pouco pela memória e respondeu, já um pouco assustada:

— Era a mãe dele, não é?

Era, e aí começa o problema. O mito bíblico explica o mundo a partir de um incesto. Não quis explicar à menina que nada tenho contra incesto, aliás tampouco nossa legislação, quem quiser levar a mãe para a cama que tenha bom proveito. Mas nesse momento já havia chegado reforço. Mais três ou quatro meninos, mais crescidos, nos cercavam e seguiam com interesse a discussão. Um deles, o mais taludo, aventou:

— Ah! Mas o Caim foi procurar mulher em Ur.

Tão pequeno e já falacioso. Ali estava uma vocação irreversível para o jornalismo mentiroso. Ur dos Caldeus, expliquei ao futuro safado, é uma cidade no sul da Babilônia, de onde teria vindo Abraão. Não existia nos tempos de Adão. Aliás, nem é preciso conhecer a bíblia para saber disto. Basta fazer palavras cruzadas.

Um outro, gorduchinho mas já sofismador, tentou salvar a turma:

— É, mas tem primo casando com prima.

— Sei disso. Nada melhor que namoro de prima em cozinha, diziam os antigos. Mas pai com filhas — e com as duas — me parece um pouco pesado.

— Vamos perguntar ao pastor — responderam num coral improvisado.

O pastor, já inquieto, estava chegando e recolheu a meninada, que atacava este pobre incréu como uma matilha de cães ensandecidos. Orre, bem feito! Quem manda os pais soltarem criancinhas imaturas na fé nas ruas desta São Paulo, infestada de ateus empedernidos? Liberto do cerco, continuei meu caminho, um vago sorriso me perpassando a alma. Havia confundido meia dúzia de crianças e dado trabalho ao pastor. Antes tarde do que nunca. Estava feita minha boa ação do ano.


 

© 2001-2006 Janer Cristaldo

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