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O Fim do Poder Civil

Oliveiros S. Ferreira


O Fim do Poder Civil
Oliveiros S. Ferreira

Fonte Digital
Digitalização autorizada pelo Autor
do livro em papel
Editora Convívio — S. Paulo — 1966

Nota:
O índice que, na versão em papel estava no final do volume, foi colocado no início.

© 2004 — Oliveiros S. Ferreira


ÍNDICE

Prefácio
Depois de S. Paulo
Dies irae
O ponto nevrálgico da Aliança Sagrada
O fim visível da Propriedade
Que fazer? — A Constituição
A Constituição e os Jovens
Notas


 

OLIVEIROS S. FERREIRA

[imagem]

O FIM DO
PODER CIVIL

 

eBooksBrasil.org
S.P — 2004


 

 

PREFÁCIO

 

 

Reúno, neste opúsculo, alguns artigos que publiquei em “O Estado de S. Paulo” sobre a crise brasileira. Até certo ponto, eles completam aqueles que publiquei sob o título de “As Forças Armadas e o desafio da Revolução”, editados em 1964, pouco depois de vitorioso o movimento partido das Gerais sob o comando do general Olympio Mourão Filho. Os artigos de 1963-64 eram inspirados pelo sonho de quem desejava fazer uma Revolução que fosse nacional, democrática e popular — a qual só poderia realizar-se quando as Forças Armadas rompessem a carapaça de seu “ethos burocrático”, mudassem sua doutrina política, se aliassem aos civis numa única e mesma organização política, e incorporassem as grandes massas esquecidas da Nação ao processo civilizatório moderno, derrotando o Privilégio e o “Sistema”. A esperança e o sonho revolucionários revelaram, pouco depois de março de 1964, em virtude do despreparo dos revolucionários nacionais, democratas e populares, a ilusão romântica, atormentada pela sucessão de fatos sem lógica aparente e pela edição de Atos que se inspiravam unicamente em Thomas Hobbes, nisso que sua filosofia inspiradora é a de que a força faz o direito. Todavia, apesar da frustração devida ao nosso orgulho, à nossa vaidade e à nossa ignorância — para citar um outro desiludido — o que há de romântico em todos nós ainda continua dizendo, no meu íntimo, que os direitos individuals, as liberdades fundamentais do homem e o Destino nacional só poderão ser salvos e construídos quando a revolução sonhada em 1964 se tornar realidade.

De 1964 para cá, positivou-se aquilo que se temia encarar como verdade, antes: o Estado tem o comando de todas as atividades no Brasil. Pouco importa alguns poucos, à Direita, à Esquerda ou ao Centro, tentarem catequisar o gentio para as suas teses — e diga-se de passagem que a Direita e o Centro são os que menos se preocupam com a catequese, talvez pelo fato doloroso de não terem o que dizer ao povo, a não ser: “defendamos a Propriedade, a Familia e a Religião”. Enquanto eles, com isso, pensam ganhar a guerra subversiva, a Esquerda repete à exaustão que a Propriedade explora o homem, que a Família é um contra-senso e que a Religião é algo que pode ser conciliado com o seu especial regime. E o Governo, por seu turno, demonstra que os proprietários são uns irresponsáveis, reduz a família ao desespero pelo fiscalismo e capitula diante da hierarquia eclesiástica que ousa enfrentá-lo.

Enquanto tudo isso acontece, o Estado prossegue no caminho que se traçou desde o início, que é o de impedir a Sociedade Civil de organizar-se. Essa organização da Sociedade Civil era o objetivo último da revolução sonhada em 1964: fazer do Estado seu servo e impedir que ele, dela afastado, a sufocasse em uma multidão de leis e decretos e, paulatinamente, retirasse dela a capacidade de resistir aos atos de prepotência contra os direitos individuals.

O Brasil, infelizmente, não estava e não está preparado para essa revolução da Sociedade Civil contra o Estado. A Esquerda pensa que basta fazer manifestos, congressos clandestinos, ou a guerrilha. A Direita e o Centro sequer em manifestos pensam — pois não têm coisa alguma a dizer, já que sempre viveram do Estado, dele foram expressão e agentes e dessa condição não se podem libertar. E por haver constatado isso, na lenta agonia de dois anos e meio em que a esperança se converteu em ilusão, que os artigos que adiante se lerão se revestem de um fundo pessimista. Talvez quando eles vierem à luz, a nova Constituição já tenha sido promulgada por um Congresso desmoralizado, sem representatividade, preocupado apenas em preservar seus subsídios e os favores fiscais e tarifários que a si mesmos se concederam seus membros. Será a Constituição do Estado contra a Sociedade; a que consagrará a força como expressão do Direito e armará o Executivo de poderes tais, que talvez o simples ato de pensar seja tratado como crime.

A Constituição que nos será dada não resolverá, no entanto, os problemas fundamentais do país — e não os resolverá pela simples e boa razão de que se a nós o sonho foi abundante e agora sobra ilusão, aos homens que estão no governo falta imaginação política — embora tenham sobre nós, cidadãos de segunda classe, a vantagem de pensar as coisas a maneira militar.

Se dei a este opúsculo o título de “O fim do Poder Civil”, é porque estou convencido de que ele, que vinha agonizando lentamente, de fato morreu e foi substituído pelo Poder Militar. Pouco importa se quem nos governe amanhã seja civil ou militar, como condição profissional; o fato é que será a mentalidade burocrática e militar que comandará o processo brasileiro daqui por diante. E essa mentalidade se resume nisso: há os que mandam, os que servem aos interesses de quem manda e os que obedecem. Quem desobedecer, ou não servir mais, será enquadrado e colocado à margem.

Não é o fascismo de velho estilo que temos pela frente. Sequer o nazismo — o nazismo, pelo menos teve imaginação política e soube criar, ao lado da monstruosidade dos fornos crematórios e dos campos de concentração, um ideal diabólico que mobilizou uma Nação inteira para o desastre. O que nos espera é o domínio do Poder Militar aliado à Tecnocracia (e a esta altura, me pergunto se não é a velha tradição fiscalista do Estado Português, ao invés da Tecnocracia econômica dos novos tempos). É uma aliança sem ideário político, a qual associa a essa ausência de ideal o desprezo por tudo aquilo que é forma de pensar e agir que não se enquadre no que se chama de “disciplina intelectual”.

Não é contra as Forças Armadas que se levanta o sonho revolucionário — continuo convencido, apesar da desilusão, de que as teses enunciadas em 1963-64 continuam fundamentalmente corretas: a Revolução Brasileira só se fará pela união do civil e do militar numa mesma organização política, e quando as Forças Armadas, ao invés de serem votadas a caçar subversivos, chamarem a si a tarefa de dar a cada um dos párias em que a subversão se alimenta, primeiro o Livro, depois o Arado e só no fim a Espada. O sonho protesta é contra o Estado autoritário e o “ethos burocrático”, a tendência a considerar todos os civis como cidadãos de segunda classe, bons para pagar impostos, dizer “sim” às determinações do Estado e calar no restante. E é porque o ato de pensar livre, assim como o amor, para Orwell, acaba por deitar por terra todas as estruturas que não permitam à Razão existir em seu reino próprio, mesmo as mais rígidas que a História conheceu — como o stalinismo, por exemplo —, é por isso que a ilusão romântica de hoje ainda poderá, um dia, tornar-se de novo sonho revolucionário. Talvez não por nosso intermédio, mas daqueles que vierem depois e tiverem aprendido a amarga e dura lição do que aqui se passou.

No momento em que a versão tupiniquim do “terror” atingia a Universidade de São Paulo, escrevi um artigo que se chamava “Elogio e crítica da subversão”. Nele, afirmava que a razão é subversiva por excelência, e que não reconhecer esse fato seria condenar ao isolamento todos os homens de pensamento e adubar a sementeira da subversão antinacional. E é porque a Razão é subversiva, que o sonho não morreu ainda.

Apesar de tudo — da desmoralização dos políticos, que do adeus passam ao apelo, afirmando alto e bom som que não querem saber de organizar o povo; da covardia dos que tiveram poder e não ousaram, e da desintegração moral e política da Sociedade —, ainda há uma esperança de fazer do Brasil a Pátria Grande com que sonhamos muitos em 1964. Esperança que dia a dia se torna mais tênue, mas que não morrerá tão cedo, porque enquanto a neve cobrir o grão, ele estará vivo e poderá germinar no instante que a Primavera chegar.

A Primavera somos nós — os jovens, os que ainda alimentam o sonho e têm, apesar de tudo, suficiente energia moral para correr o risco de vê-lo de novo transformado em ilusão. Mas é preciso que todos tenhamos aprendido a lição desses dois anos e não permaneçamos presos aos mitos estéreis que apenas impedem a comunicação entre os homens. Gonzáles Prada, que formou no seu ceticismo cortante ao menos uma geração de peruanos, a que deu Mariátegui e Haya de la Torre, tinha seu grito de guerra: “Los viejos a la tumba! Los jovenes a la obra”. Ele era contra os europeismos da época e soube encontrar no povo peruano, no índio e no mestiço, com que construir sua oposição à hegemonia européia. Retomemos esse grito e façamo-lo nosso. E permaneçamos dispostos a esperar nossa hora e nossa vez para fazer a Revolução que todos sonhamos em 1964 e não pôde ser feita pela estreiteza de visão de alguns, pelo oportunismo de outros, pela omissão de todos os realmente responsáveis. Uma revolução contra o “Sistema”, contra o Privilégio e contra aqueles que pretedem fazer do Brasil um mero instrumento no sinistro jogo da “guerra fria”.

2/9/66


 

 

DEPOIS DE S. PAULO

 

 

A 5 de junho de 1966, o marechal Castelo Branco encerrou o ciclo aberto no Brasil pela revolução de 1930. O último grande representante do populismo getulista deixou a cena política tão simplesmente como nela havia entrado, bastando para cancelar 28 anos de vida política do Estado de São Paulo apenas uma dezena de linhas publicadas no Diário Oficial da União. Com o sr. Ademar de Barros não desaparece apenas o que o getulismo tinha de falsamente popular, de demagogia e de corrupção: acaba também o seu contrário, que é o janismo, que só pôde surgir como movimento político enquanto soube opor a demagogia à demagogia, o moralismo aparente à corrupção declarada, o messianismo carismático e punitivo ao carisma bonachão (1).

Com o afastamento do sr. Ademar de Barros chega ao fim, também, aquilo que foi fundamental na caracterização da era getulista, a saber, a participação (dirigida embora pelo sindicalismo oficial) das massas urbanas no processo político. E ao mesmo tempo, com a suspensão dos direitos políticos do governador do maior Estado da Federação, com a indicação dos secretários da Segurança e da Fazenda, permitindo-lhe o controle da vida econômico-financeira e do aparelho repressivo de São Paulo, o governo federal pôs a pá de cal na Federação que estrebuchava desde 1946, e afirmou a supremacia incontestável da Técnica sobre a Política, do Estado sobre a Sociedade Civil.

Em uma palavra, o afastamento do sr. Adhemar de Barros da vida pública foi o enterro de terceira classe, sem flores nem acompanhamentos chorosos, da Política. Hoje, o senhor incontestável é a Técnica, a Burocracia, a Organização. Os que pretenderam fazer Política, esses se resignem à triste condição de marginais de um processo para o qual não estão capacitados, porque defasados da História.

O fato de o governo federal ter podido assumir o controle da vida econômico-financeira do maior Estado da Federação sem que tivesse havido o mais leve protesto, o menor esboço efetivo de resistência prova que as condições já estavam maduras para o que se deu. A desmoralização do ex-governador explica uma parte da apatia. Mas não toda a apatia. Se a uma nação não se perdoa, menos que a uma mulher, o momento de fraqueza em que se entrega ao primeiro aventureiro, tampouco se lhe perdoa o momento de fraqueza em que cede sem resistência aquilo que é fundamental nela, que é a Política, o confronto de posições contrárias, a disputa pela hegemonia entre segmentos sociais diferenciados. Se ela assim cede aquilo que lhe é privativo, é porque já estava predisposta a assumir o papel passivo que agora é seu. O sedutor, parodiando Marx, não foi Louis Bonaparte, apoiado na grande massa amorfa dos pequenos proprietários presos ao carro do capital financeiro pela hipoteca, e sustentado pelo “lumpem-proletariat” organizado na “Sociedade 12 de dezembro”, mas o grupo da Sorbonne fundado na expressão mais primitiva do poder, que é a força.

Hoje somos obrigados a reconhecer que todas as tentativas de compreender o processo iniciado a 31 de março foram falhas, porque se procurava vê-lo em termos políticos, da disputa de hegemonia entre grupos. E sobretudo porque muitos timbravam em estabelecer uma relação direta entre a condição revolucionária e a moral, como se entre a Política e a Ética pudesse ser estabelecida, na prática, qualquer relação. Nós mesmos cometemos esse engano, embora teoricamente soubéssemos que a política tem suas regras, boas e morais, algumas, duras e sujas, outras, mas necessárias todas.

Hoje, é preciso fazer o ato de contrição e reconhecer que numa época tecnificada, em que a economia reclama o estabelecimento de sua racionalidade específica sobre todos os atos da vida social, não há lugar para os que se dedicam a pensar aquele instante em que finalmente o Poder será esmagado e o Homem iniciará, livre, a marcha ascencional para a construção de sua História.

Pela repetição dos personagens, tentou-se dar a revolução de março de 1964 como a complementação da revolução de outubro de 1930; como a continuação do processo dos tenentes, só que vindo a furo através dos generals e dos marechais. A similitude era verdadeira, mas o erro foi não ver que os generais e marechais de 1964 já eram os tenentes de 22, na medida em que faziam a sua revolução num quadro sócio-cultural diverso do que aquele vigente quando se deu a gesta dos 18 do Forte. E na medida em que tiveram tempo de amadurecer para a realidade técnica da economia moderna. O erro, sobretudo, foi subestimar a associação do Exército com a Tecnocracia, acusando o primeiro de ter uma visão deformada das coisas, porque inspirada no “ethos” burocrático, e a segunda de esquecer-se de que a Revolução se faz com o mito das grandes esperanças. A distorção ótica levou-nos, todos, a acusar o governo egresso do movimento de março de ser um governo de homens pobres de idéias, sem qualquer visão da proposição do Destino nacional, incapazes de mobilizar a juventude e as massas para as grandes tarefas da Revolução. Esquecendo-nos de que março foi o triunfo da Técnica sobre o entusiasmo sedutor da agitação política.

Quando o sr. Carlos Lacerda e o sr. Magalhães Pinto foram marginalizados, acusou-se o general Golbery do Couto e Silva de ser “maquiávelico”, de ligar-se ao dispositivo deposto para preterir as lideranças políticas civis. Quando o brigadeiro Faria Lima, antes do fatal 3 de outubro de 1965, foi eleito prefeito de São Paulo, acusou-se o chefe do SNI de favorecer o janismo em detrimento das lideranças revolucionárias. Quando o sr. Juracy Magalhães veio a São Paulo e disse que o sr. Adhemar de Barros era “o esteio da Revolução”, a consciência moral de todos os formados no antigo estilo de ver as coisas, arrepiou-se como diante de um ser monstruoso. E não fomos, inspirados pela Política, capazes de ver as realidades mais profundas.

A primeira delas, é que o Exército só poderia aliar-se à Tecnocracia e nunca à Política, porque ambos são expressão de uma mesma mentalidade, de uma igual racionalidade. A Tecnocracia fornece ao Exército a possibilidade que lhe é própria. Com isso, as Forças Armadas têm assegurada a possibilidade de ver corrigidas as distorções econômicas responsáveis em grande parte pela demagogia, e construir uma indústria capaz de atender seus reclamos de renovação técnica sem onerar grandemente a balança de pagamento. E a Tecnocracia encontra no Exército, além do mesmo espírito voltado para a ordenação racional e burocrática das coisas, o instrumento apto a assegurar a tranqüilidade social capaz de permitir a reconstrução da economia sem o perigo de a demagogia atrapalhar a integração do Brasil, como grande potência, no mercado mundial. Uma mão lava a outra — à custa, evidentemente, da política, aliás, supérflua. Não se conduzem as massas à morte sem política, e não se produz aço e manteiga também sem Política?

A segunda coisa fundamental de que se esqueceu, é que a Sorbonne é um grupo coeso, com objetivos definidos, com uma visão do mundo toda sua, mas uma visão do mundo. Houve momentos em que se pensou que o general Golbery agia à revelia do presidente Castelo Branco — inclusive quase no desenlace da crise paulista, quando os jornais diziam que o chefe do SNI trabalhava para Faria Lima, e o presidente apoiava Sodré. Não se lembrou de que um chefe como Castelo Branco não admitiria jamais que um homem de seu Estado Maior fizesse algo que não se enquadrasse em sua estratégia (embora eu pessoalmente prefira considerar o presidente mais um general tático do que um estrategista). E por isso todos fomos tomados de surpresa, quando a “operação São Paulo” chegou ao fim. Ela foi montada desde o início para desmoralizar a Política no único Estado da Federação em que ela ainda vivia: a eleição do sr. Francisco Franco para a presidência da Assembléia e o acordo Jânio-Adhemar, que o senador Lino de Matos, entusiasmado com a vitória certa, confirmou na véspera da decisão.

Ademais, não soubemos compreender bem o que era essa entidade abstrata chamada Sorbonne. De tanto cantar ao mundo que nosso Exército era democrático, porque em grande parte filho da classe média, esquecemo-nos de relacionar as virtudes e os defeitos da classe média, que se refletiriam aumentados na Sorbonne, que representava exatamente o grupo intelectual das Forças Armadas. É difícil dizer qual é a virtude e qual é o defeito, mas dois são os sentimentos básicos que informaram seu comportamento ao longo dos anos que medeiam entre a ascensão e a queda do getulismo: uma estrita moralidade na condução dos negócios públicos, e o progresso realizado dentro da ordem. A Sorbonne vem do grupo de agosto de 1954 — isso foi freqüentemente esquecido; ela foi ao poder, a meias, com o sr. Jânio Quadros e dele foi apeado pela renúncia — isso também não foi lembrado.

Segue-se, daí, que a Sorbonne é essencialmente antipopulista na medida em que é antigetulista e na medida em que a classe média rejeita a ascensão demagógica, ou fora dos quadros normais, do proletariado ao poder político; e segue-se dai também que a Sorbonne não pode concordar com a presença do sr. Jânio Quadros na vida política porque ele é populista, por um lado, e a prova cabal de que o mundo civil não tm condições intrínsecas para governar, por outro, porquanto qualquer de seus representantes, mesmo o suposto melhor, está disposto a ceder à demagogia e à Política.

A terceira coisa de que nos esquecemos, é de que a Sorbone é militar — e de que sendo militar, pensa e age militarmente. Em outras palavras, que utiliza os homens como peças de uma operação de guerra, eticamente condenável, mas praticamente necessária. Na condução da operação, pouco importa se os homens têm bom ou mau passado (os de mau passado até são melhores, pois mais facilmente manobráveis), mas sim se estão no posto certo, na hora certa, para cumprir a missão que lhes é dada — não a que desejam realizar. Ela vê a condução dos negócios civis, assim como uma operação militar, a qual, por si, não tem moral. Ou melhor, tem a sua moralidade específica, a qual admite que um membro do Estado Maior mantenha entendimentos com o adversário, seduza-o, revele-lhe alguns segredos até — para golpeá-lo fulminantemente no momento preciso, quando já cumpriu seu papel e não pode mais servir aos objetivos do Estado Maior. Em política, isso pode chamar-se uma boa conduta estratégico-tática. E ninguém discute sua moralidade intrínseca.

Na guerra, essa conduta estratégico-tática é condicionada sempre por um objetivo. Qual é o objetivo da Sorbonne? A melhor resposta é que ele é o mesmo objetivo dos tecnocratas, embora possa ser inspirado por móveis diferentes: sanear a moeda, corrigir as distorções econômicas, estabelecer a racionalidade da economia — em suma, fazer o capitalismo no Brasil. O que significa construir um regime aberto para todas as fontes de suprimento de capital e “know how”, o qual é por definição antimonopolista (nem que seja necessário, para implantá-lo, esmagar alguns industriais nacionais que somente viviam da situação de monopólio); estabelecer um impiedoso sistema de taxação para obrigar a poupança, e fazer do Estado, ele também, uma máquina burocrática bem administrada.

A realização desse objetivo, dadas as condições em que se processou o desenvolvimento desigual do capitalismo no Brasil, só se poderia dar por uma revolução burocrática, nunca por uma revolução popular. Isso porque a Sociedade Civil, presa ao Estado pelo sindicalismo oficial, ainda não feita Sujeito de sua aventura humana em virtude do isolamento geográfico das “manchas humanas”, não poderia dar-se uma proposição de Destino. Apenas o Estado tinha e tem a possibilidade de propor essa visão. Apenas ele — sobretudo agora que se desvinculou totalmente da Sociedade Civil, pois repousa na força, exclusivamente nela, e não num simulacro de legitimação popular — pode intuir a racionalidade própria do sistema capitalista e colocar o Brasil a seu serviço.

Mas essa revolução, ainda que burocrática, para ser feita, exige que o poder não passe para mãos “políticas” antes de a casa ter sido posta em ordem. A Sorbonne tem plena consciência disso — e os tecnocratas também. Por isso, sem cuidar de saber quem será o futuro presidents, a Tecnocracia elabora lentamente seu Plano Decenal — como se nos próximos dez anos a Política não fosse reclamar seus direitos e a demagogia não pudesse colocar em dúvida as conquistas obtidas nesses dois anos de governo.

Enquanto os tecnocratas cuidavam do Plano, a Sorbonne cuidava da limpeza da área. Lacerda e Magalhães, que falavam tanto da necessidade de descer ao povo, foram entregues ao povo no circo de 3 de outubro e batidos nas urnas. Jânio Quadros, que se proclamava injustiçado, teve a oportunidade jamais sonhada de ver seu herdeiro presuntivo no governo de São Paulo — e se Paris valeu uma missa para Henrique IV, o governo de São Paulo e a administração do segundo orçamento da República valiam para o janismo um acordo tático-eleitoral com Adhemar de Barros, seu arqui-inimigo. Fizeram-no. Depois que o lobo tirou a máscara de cordeiro, o governador de São Paulo foi cassado. E partiu...

O sr. Adhemar de Barros não foi cassado por ser corrupto — céus!, a Sorbonne melhor do que ninguém sabia que ele era corrupto e o manteve no poder enquanto lhe serviu. Foi cassado porque desafiou as normas da Tecnocracia, onerando, com as nomeações, o Tesouro estadual, e comprometendo a política financeira global com os títulos da dívida pública. E foi cassado porque ofereceu o Estado de São Paulo como base operacional para a campanha das eleições diretas e se dispôs a ser o arauto da nova marcha que visava deitar por terra a Sorbonne.

Esse foi o seu destino e será o de todos aqueles que pretenderem contrariar a Tecnocracia e destruir a Sorbone. Pelo menos enquanto o presidente Castelo Branco puder usar a versão tupiniquim do “paredón” castrista e das masmorras da GPU: a morte política (e quase civil) mediante algumas singelas linhas publicadas no Diário Oficial da União, as quais anunciam que mais alguém perdeu por dez anos seus direitos políticos.

A violência do golpe desferido contra o sr. Adhemar de Barros tomou a quase todos de surpresa — não tanto pela cassação em si, mas pela brutalidade fria de que se revestiu o ato. Pela demonstração de força tão absoluta, que nem o Exército entrou de prontidão. Pela excelência dos serviços de informação. Por tudo.

A Sorbone tudo previu, tudo equacionou, tudo detalhou. Mas como dizia o poeta, há uma pedra no meio do caminho, fatal. Não é o general Costa e Silva, não são os jovens oficiais (afinal, o “terror”, quem lhes dá?), não somos nós, mortais preocupados com o futuro da Pátria Grande. É ela própria, a Sorbonne, puritana como a classe média (e os bolchevistas), preocupada com a legalidade de seus atos juridicamente perfeitos, com a possibilidade de vir a repetir Vargas, o grande inimigo.

A morte política só poderá ser decretada até março de 1957* — e depois? Voltará a Política, ainda mais demagógica, com um Congresso, mesmo todo ele da ARENA, com o direito de decretar a anistia política? Com o governo obrigado a prestar contas aos políticos, de quem dependerá para governar? Entregará à Sorbonne as posições que conquistou tão à moda brasileira?

Se deixar que a Ética pela primeira vez governe suas ações, entregará — para recomeçar tudo de novo em seguida. Mas se continuar a proceder militarmente, não. Ela se preocupa com o fato. Daí o presidente desejar reformular a Constituição. Ele sente que o Brasil é ingovernável com a Carta de 1946. Mas não soube compreender que não é procurando incorporar medidas inconstitucionais a uma Constituição, que se resolve o problema — porque a Constituição de 1946 é ainda a Constituição feita pela classe política para o triunfo da Política e da demagogia.

Ele deve hesitar, hoje, entre convocar a Constituinte (o que, sabe, seria o suicídio do Brasil), e reformar a Carta de 1946. É que não lhe ocorre que a política tem outras saídas fora da jurisdicidade mesquinha e balofa de um sistema que provou ser incapaz de defender seus mais lídimos representantes. Não se capacitou de que ele pode tudo no Brasil — inclusive convocar um Congresso autenticamente popular, ou outorgar uma nova Constituição ao povo.

Um dia, tal como fez em Goiás, em Alagoas e em São Paulo, acabará por compreender que a outorga da Carta é a única saída para que a técnica preserve seus direitos adquiridos, as Forças Armadas continuem velando pelo progresso dentro da Ordem, e a Política possa existir naquele pequeno canto que o mundo moderno ainda reserva para si. Se não souber compreendê-lo, terá sido inútil essa longa noite hobesiana em que a Inteligência mergulhou. Teremos, no máximo, um grande país, mas um pobre povo. E talvez nem um, nem o outro.

12/6/1966


 

 

DIES IRAE...

 

 

Com o “Adeus às Armas” do sr. Carlos Lacerda (1), a Política perdeu seu último grande corifeu — neste sentido de que ele era o único homem público com audiência e ressonância em amplos setores da opinião pública, que a aliança do Poder Militar com a Tecnocracia não conseguira ainda reduzir ao silêncio. Ele agora se cala — e na falta de melhores elementos, somos forçados a acreditar que foi a náusea que o levou a ensarilhar armas e recolher-se à vida privada depois de haver marcado com sua pena e sua palavra, seu pensamento e sua ação, 21 anos de vida política da Nação. Ele desaparece — quem sabe apenas se retira por um período indeterminado? — depois de Adhemar de Barros, seu adversário tradicional, mas igualmente servidor da Política. E com ele desaparece — sejamos seus amigos, inimigos ou meros adversários, somos forçados a reconhecer — a última possibilidade que restava à Sociedade Civil de organizar-se contra a sufocante hegemonia do Estado.

É esse aspecto que torna capital a retirada do sr. Carlos Lacerda da vida política. Com seus avanços e recuos, sua agressividade e sua ironia, ele era o que do passado restava de capacidade de mobilização de uma parcela da opinião pública na luta pela preservação da Sociedade Civil. Indo-se, essa capacidade se vai, por isso que o grupo militar no poder e a Tecnocracia tomarão todo o cuidado em não agredir de frente os últimos redutos do privativismo, reduzindo-se um a um, paulatinamente, aplicando aquela política que, na “guerra fria” e em relação à União Soviética, convencionou-se chamar de “política do salame”.

É curioso que o afastamento do sr. Carlos Lacerda coincida com a morte econômico-política do Café, finalmente batido pelo Poder do Estado, 60 anos após a afirmação de seu triunfo espetaculoso com a assinatura do “Convênio de Taubaté”. E o fato mais curioso reside em que o Café entregou-se ao Poder de Estado no instante em que assinou o convênio que aparentemente o salvava, e o sr. Carlos Lacerda perdeu a possibilidade de dirigir politicamente o processo no dia mesmo em que o sr. João Goulart, seu último arqui-adversário, embarcou para o sul e de lá para o Uruguai.

Que o Café não tivesse percebido que seu domínio não seria eterno, compreende-se, se se tem em conta o fato de a Indústria ser mínima, em 1906, e sua dependente e sócia menor durante muitos anos. Mas que o sr. Carlos Lacerda não tenha vislumbrado que não poderia disputar sozinho, sem uma organização, a direção política do processo ao grupo da Tecnocracia e da Sorbonne, é menos compreensível. Porque ele sabia que aqueles que sucediam o presidente que derrubara queriam o mesmo que ele, isto é, o Poder, e sabia que a lógica do processo acabaria por levá-los a afastar do caminho todos aqueles que se antepusessem a seu desígnio de ocupação total da área. E disso sabia pelo motivo muito simples de que os conhecia, pois conspirara com boa parte dos que subiram ao poder a 1.° de abril (especialmente com os que vinham de agosto de 1964), e sobretudo porque tanto ele quanto a Tecnocracia tinham e têm o mesmo desprezo jurado pela Ideologia — que nos paises subdesenvolvidos se confunde, assaz freqüentementemente, com a própria Política. Por isso, por ser igual e não diferente, ele era mais perigoso que os outros. E por isso o empenho em liquidá-lo foi maior, e levado a cabo com astúcia e contando com a aversão do sr. Carlos Lacerda pela Ideologia e por seu correlato obrigatório, que é a organização popular que lhe dá corpo e alma.

Foi esse aspecto, em última instância, que permitiu o afastamento do ex-governador da Guanabara: ante a enormidade dos poderes do Estado, ele apenas opôs o seu protesto isolado — pouco importa se compartilhado por dezenas ou centenas de milhares de brasileiros igualmente frustrados. Ele era sozinho, ele e apenas ele; com isso contou o grupo dirigente, e também com a incapacidade de resistência e mobilização dos diferentes grupos da Sociedade Civil.

Se aproximo o “Adeus às armas” da morte econômica e política do Café“ é porque os dois fatos me parecem importantes, na medida em que são significativos do caminho que começamos a trilhar no dia em que o Exército selou sua aliança com a Tecnocracia. Se o decreto de falecimento do sr. Carlos Lacerda pôde ser assinado, no dia 3 de outubro de 1965, jogando com a inorganização do grupo mais radical da Vila Militar — hipótese de trabalho que se revelou válida, afinal de contas — , não se pode conceber que, nesta altura do jogo político, a Sorbonne e a Tecnocracia enfrentem o Café sem contar com o apoio sólido e unânime do Poder Militar. O porque desse raciocínio é simples: o movimento de março de 1964 só foi possível porque a Agricultura (o Café desempenhando nisso um importante papel), mercê do aventurismo de Goulart e de seus áulicos, soube trazer para a mesma frente de ação comum a Indústria e as classes médias das cidades. Como os homens do Café dizem em seu manifesto, os homens da terra, são capazes, quando ameaçados, de improvisar condições de luta para enfrentar aqueles que “pretendam contrariar a ordem democrática e o sentimento cristão de nosso povo”. O Poder Militar, especialmente a Sorbonne, sabe disso — e se decidiu enfrentar os homens da terra, é porque tem certeza de que o Exército marchará coeso contra qualquer tentativa de “improvisar condições de luta”, e que estará disposto, se necessário, a avançar o sinal para obviar a “intensa crise social, motivando o desemprego de milhares de famílias e provocando a queda vertical na produção de gêneros de subsistência, com o comprometimento do abastecimento dos centros urbanos”.

Talvez os homens da terra não se tenham dado conta de que o único caminho que lhes resta, dispostos a “todos os sacrifícios em benefício de sua Nação”, é declarar guerra ao governo. Porque a tática de criar o desemprego, como se insinua claramente em seu manifesto-protesto, apenas reforçará a unidade do Poder Militar, que não pode, nesta altura dos acontecimentos, ser contrariado por quem, a seu ver, conduzirá com o seu protesto a alteração da situação da balança cambial, contribuindo para agravar a inflação, nem por aqueles que, em última instância, pretendem que a grandeza do País seja construída sobre 60 milhões de sacas de café.

O marechal Costa e Silva, cuja eleição talvez esteja dando ainda algum alento aos futuros “guerrilheiros do café”, embora seja de formação e talvez tenha propósitos diferentes do grupo da Sorbonne e da Tecnocracia, provém também do Exército, sustentou-se politicamente nele e dele dependerá durante muito tempo para governar. Por isso, dificilmente poderá mudar a atual política do café. O fato de haver buscado seu apoio inicial na “linha dura” não altera o quadro geral. Realmente, embora muitos dos integrantes da “linha dura” fossem contra a política econômica do governo pelo que ela tem, ou é suposta ter de antinacionalista, identificando-se, nessa oposição, taticamente, com largos setores da Agricultura, eles não são, a rigor, o que se poderia dizer cultores do liberalismo econômico. Pelo contrário, pode dizer-se que muitos dos que participaram da quase revolta de 6 e 7 de outubro de 1965 são mais nacionalistas (leia-se “nasseristas”), menos civilistas e menos liberais do que se poderia pensar por seus contatos e pela liderança política civil que ainda julgavam residir no sr. Carlos Lacerda. Por esse ou aquele motivo, eles têm, mais que a Sorbonne, aversão ao chamado Poder Econômico. E se forem ao governo com o marechal Costa e Silva não mudarão seu modo de pensar, especialmente se o combate contra a inflação ainda não tiver sido vencido.

Esses dois fatos — a retirada do sr. Carlos Lacerda da cena política e a derrota econômico-política do Café — devem associar-se à situação gaúcha para que se tenha a exata idéia dos próximos desenvolvimentos, ou ao menos da suas linhas gerais. No Rio Grande do Sul, estejamos ou não de acordo com o presidente, o marechal Castelo Branco não pôde recuar. Por uma questão de princípio, já que não admite ver contestada sua autoridade, e por uma questão estratégica, já que não pode permitir que a oposição eleja os revolucionários descontentes no Rio Grande do Sul, em S. Paulo e em Pernambuco. Nesse quadro ele deverá chegar, se a oposição persistir em sua atitude, até à intervenção no Rio Grande do Sul — isto é, deverá procurar vencer o Federalismo no seu reduto histórico e tradicional.

Salvo elementos supervenientes e até agora desconhecidos, o Poder Central tenderá a afirmar-se com maior vigor e sem oposições perturbadoras. Como acentuei a propósito da intervenção em Goiás, o Exército, pelo fato de ser a única organização nacional, tende a suprimir, desde que no Poder, a Federação. Ele responde “presente!” ao grito de guerra de Rosas: “los salvajes unitarios”. E fará sua selvagem, embora não bárbara unidade às expensas da Sociedade Civil, que não tem mais porta-vozes válidos capazes de aglutiná-la e defendê-la.

Os políticos encerram sua carreira, exceto talvez o Sr. Adauto Cardoso, que poderá desejar salvar a soberania do Congresso diante do rolo compressor das cassações e dos atos institucionais e complementares. Mas não terá a mesma ressonância dos corifeus já vencidos;

O Café só tem uma alternativa: declarar guerra ao Governo, com todos os riscos inerentes a essa atitude de desespero, o maior dos quais é a instalação do nasserismo no país, ou ceder, esperando que o desenvolvimento dos fatos econômicos possa salvá-lo;

A indústria está presa ao redesconto do Banco do Brasil;

A Igreja, presa à defesa da família, não tem um só Príncipe capaz de entender o drama e jogar a púrpura em desafio ao Leviatã que se vai erguendo e,

O Proletariado está preso ao Estado e por seus líderes, como aconteceu no sul, na recepção ao marechal Costa e Silva, pede que se mantenha o Imposto Sindical, que é o jugo distintivo da escravidão.

A Sociedade Civil, assim, está sem defesas, e o caminho está aberto ao triunfo da Técnica e do espírito burocrático característico dos militares.

Por isso tudo não se pode censurar ao sr. Carlos Lacerda o seu “Adeus às armas”. Na época da revolução couraçada, o Quixote realmente não tem o que fazer — porque sequer há moinhos. O existente são apenas as linhas frias, insensíveis e burocráticas do “Diário Oficial”, que vão cortando em finas fatias a resistência e a sensibilidade morais da Sociedade.

O drama maior, nisto tudo, não é esse; é que ninguém é capaz de propor uma política alternativa à Sorbonne e à Tecnocracia. Porque os tempos são realmente da Técnica, e na ausência da organização das classes só podem ser do Poder Militar.

No ocaso da esperança socialista, Mario Pedrosa dizia que aos que sonhavam com o reino da igualdade prometido pelo século XIX só restava um caminho: refugiar-se debaixo das pontes, ou nos conventos a fim de ali esperar o raiar da nova aurora. Há algo mais a fazer hoje?

10/7/1966


 

 

O PONTO NEVRÁLGICO DA ALIANÇA SAGRADA

 

 

No dia 5 de junho de 1821, refere Varnhagem em sua “História da Independência do Brasil”, o príncipe D. Pedro recebeu uma delegação de oficiais da tropa do Rio de Janeiro, acompanhados do padre José Narciso, os quais lhe vinham pedir a demissão do conde de Arcos. Alguns oficiais, declarando que não estavam habituados a falar, transferiram ao sacerdote a incumbência de expor suas pretensões. “Bem, prosseguiu então o príncipe, ouví-lo-ei da parte dos oficiais e da tropa. Mas devo-lhes advertir que a tropa não é a nação: pertence à nação; mas, como tropa, nem é admitida a votar nas eleições. Aqui temos a Câmara, que é uma autoridade, poderá com mais direito usar da palavra em nome da nação, e aqui estão os eleitores por mim convocados, que poderão falar em nome do povo”. Dito isso, ouviu as pretensões da tropa, demitiu o conde de Arcos e nomeou em seu lugar o desembargador Alvarez Diniz, casualmente apontado por um oficial.

 

A aliança entre a Sorbonne e a Tecnocracia repousa sobre um tripé e se inspira numa concepção do mundo. Convém examiná-los para que se tenha uma visão a mais completa do que se passou e para que se possa entrever, como possibilidade, aquilo que acontecerá. A concepção do mundo predominante na aliança é o da Sorbonne: o rigorismo da classe média, permeado pelo amoralismo do estrategista e pela repulsa que os não iniciados no processo econômico têm pelo consumo permitido pelo lucro.

A Sorbonne não é animada propriamente de ambição política, de vontade pessoal de poder, ou de um mero impulso a afirmar sua superioridade sobre os demais. Anima-a tudo isso e mais alguma coisa — e essa alguma coisa é o profundo desprezo votado aos pobres mortais que não participam do cenáculo, uma visão profundamente pessimista da natureza humana e a certeza de que apenas eles, os que tiveram a concepção suposta clara do processo, trabalharam para pô-la em prática e arrostaram os riscos a isso inerentes, e estão em condições de executar a política adequada à transformação do Brasil sem qualquer desvio.

É esse sentimento de que ou somos nós que realizamos nossa política, ou ela será desviada do que foi planejado, que caracteriza o revolucionário e o distingue do mero reformista, ou do político vulgar. Se Luis XIV podia dizer “O Estado sou eu”, o revolucionário pode com muito mais razão afirmar: “Minha política sou eu e meu estilo”. É por isso que não há, nos grandes revolucionários, o desprendimento que seria de esperar naqueles que pretendem salvar o mundo. Eles são totalmente possuídos por Satanás e crêem firmemente que apenas sua presença física, seu controle eterno das alavancas do poder pode assegurar a continuação de uma política destinada, no fundo, a instaurar o milênio e salvar a humanidade.

O grupo da Sorbonne está impregnado desse espírito mefistofélico — e é por isso que pode deglutir tranqüilamente aqueles de que se serve e que já não lhe prestam mais serviços. Não apenas os civis conheceram as dificuldades do trato com aqueles que se julgam chamados a salvar o Brasil do virus da Política, da demagogia e do populismo larvado. Também os militares que não pertencem ao grupo sabem o que é ser por ela visado: sejam de agosto, ou de novembro (e se forem do grupo que fez novembro de 1955 ainda pior), desde que não tenham a fibra capaz de suportar a impopularidade, a energia moral de conduzir a política como se fosse a guerra, e a consciência de que a rentabilidade é a lei econômica que deve ser obedecida sem consideração pela bandeira sob a qual se protege o capital — desde que não reúnam essas condições, são eliminados depois de haver prestado os serviços indispensáveis.

O tripé é constituído pela unidade do dispositivo militar (o poder da Sorbonne assenta na força), pela crença no acerto da política econômica da Tecnocracia (o poder se exerce para estabelecer uma racionalidade suposta da economia de mercado), e pela desorganização da Sociedade Civil (tendo sido burocrática a revolução, o poder não pode descansar em qualquer grupo social, porquanto essa preferência por um ou outro determinaria necessariamente o problema da hegemonia e o ressurgimento da Política).

No essencial, a política econômica atende à racionalidade reclamada pela economia de mercado. Força a poupança pelo Imposto de Renda, incentiva-a pelas facilidades fiscais concedidas aos investimentos em áreas prioritárias e aos reinvestimentos, e por outro lado permite uma acumulação mais rápida mediante uma política salarial em que à Justiça do Trabalho é permitido apenas conceder aumentos em níveis inferiores aos aumentos reais do custo de vida.

Há alguns obstáculos no caminho da Tecnocracia, os quais ela vem procurando vencer com lentidão, mas pertinácia. Um deles é a irracionalidade da máquina burocrática do Estado, que impede um esforço dirigido a atender melhor os interesses do fisco com menores gastos, e o público com igualmente menores despesas. Ainda nesse terreno, deve considerar-se a multidão de leis e decretos que impedem uma ação mais enérgica no setor e levarão o governo, para reduzir o número de funcionários e aperfeiçoar os serviços, a encontrar uma solução híbrida, difícil de ser aceita pelos tecnocratas puros e pelos funcionários, mas que acabará se impondo por ser a do bom senso possível.

O principal obstáculo, porém, tem sido o espírito da classe empresarial, do campo ou da cidade. Acostumada a dezenas de anos de regime de facilidades — em que a ameaça de uma concordata colocava o governo em pânico, vendo pelas ruas os desempregados a desfilarem escandindo slogans subversivos — a maioria de nossos homens de empresa não se habituou a trabalhar para o amanhã econômico, mas sim para o amanhã social e político. Daí terem eles oposto, entre banquetes e loas à revolução, uma surda resistência à aplicação da política econômica do governo egresso da revolução.

Desprovida de armas psicológicas capazes de atemorizar o adversário, a Tecnocracia cedeu no detalhe, mantendo-se firme no essencial — mas esse pormenor, por serem muitos os filhos pródigos que devem ser beneficiados, comprometeu o ritmo da execução do plano e houve momentos em que realmente o pôs em risco.

0 único setor em que o plano funcionou mais ou menos a contento, foi o da política salarial: salvo algumas decisões de Tribunals do Trabalho, que concederam aumentos relativamente superiores aos níveis permitidos, a classe operária foi sacrificada em suas expectativas, havendo casos, como os dos portuários, em que a Revolução cortou talvez rente demais os privilégios, estabelecendo uma realidade salarial inferior à vigente em março de 1964.

Há dois obstáculos difíceis de remover, no caminho da Tecnocracia:

1 — se no setor político o governo pode usar o seu “terror” contra as pessoas, no setor econômico-social não tem instrumentos hábeis ou não quer usar os que possui para impor a sua vontade aos proprietários, que não se adaptam às novas normas econômicas e financeiras estabelecidas. Usa-se nesse particular, o mecanismo inverso: concedem-se facilidades aos que se adaptam e se as retiram, ou negam-se totalmente, aos que não aceitam as determinações governamentais. Teoricamente, o mecanismo de incentivo é tão eficaz como a ameaça de expropriação — mas na prática, tendo-se sobretudo em conta a mentalidade dominante em boa parte das classes empresariais, o incentivo tem agido como homeopatia. Esse desarmamento da Tecnocracia diante do poder econômico não resulta da especial visão do mundo que ela tem — pelo contrário, a Tecnocracia deveria favorecer o armamento do governo com medidas jurídico-coercitivas mais eficazes do que aquelas de que dispõe, pois só assim poderá executar mais rapidamente seu plano. Por esse desarmamento é responsável o grupo militar com seu apego exterior ao princípio da propriedade privada.

2 — O grupo militar também é responsável pelo relativo isolamento dos homens de empresa, afastados das decisões governamentais não por serem parte integrante do “sistema”, mas por serem homens de empresas, isto é, pessoas que vivem dos lucros que auferem em sua ação econômica. O lucro foi, durante algum tempo, condenado eticamente pelo poder revolucionário — pouco importa saber, no caso, se a condenação se fez por um raciocínio moralista, ou ultra-revolucionário; se como reação à exploração do trabalho, se como reação ao consumo ostentatório de alguns. O fato é que essa condenação do lucro explica boa parte do isolamento de S. Paulo no cenário político federal depois da revolução. Os testemunhos da disposição de espírito do presidente Castelo Branco com relação aos industriais e comerciantes paulistas, se não abundantes, são no entanto significativos de uma mentalidade que se debate entre a necessidade de realizar a racionalização do regime econômico (que assenta precisamente no lucro) e a compulsão de condenar a atividade econômica que vise ao lucro.

De qualquer maneira, e isso me parece importante assinalar, seja o respeito à propriedade, seja a condenação ética do lucro não podem ser vistos como dados definitivos. A estratégia traçada prevê o estabelecimento da racionalidade da economia de mercado com base na livre empresa, na propriedade privada e no lucro controlado. Mas é necessário levar em conta que se esses princípios táticos vierem a falhar, pelas resistências opostas pelas classes empresariais à modernização da economia, ao saneamento da moeda e à construção de um grande país autônomo e independente, a tática poderá mudar. A propriedade e o lucro vale dizer, o respeito por ambospodem ser meramente instrumentais para o grupo tecnocrata e para a Sorbonne, os quais poderão chegar, se necessário, ao capitalismo do Estado. Quem manda homens à morte não pode considerar a propriedade um direito natural e inalienável. No máximo, bons discípulos de Hobbes, poderão considerar a posse algo que se inscreve no Estado de Natureza; não a propriedade, que resulta do direito positivo, portanto da vontade do Estado.

Em síntese, salvo no setor do café, onde a Tecnocracia e a Sorbonne encontram obstáculos realmente sérios para realizar seus planos econômicos e fazer do Brasil uma potência — não há grande potência que assente sobre dezenas de milhões de sacas de café — não há, a curto prazo, o que represente perigo, ou ameaça real para o êxito da política econômica. Quando em dois anos se reduz a inflação de 88% para 60% que seja, o progresso pode não ter sido muito grande em termos absolutos; mas em termos relativos foi enorme, e permite, inclusive sem graves riscos, que exista uma margem não prevista de erro nos planos.

3. O “ethos” burocrático é que mantém unido o dispositivo militar. Quantas vezes, nesses dois anos, o presidente não teve sua posição se não ameaçada, aos menos abalada — e quantas vezes pela falta de uma organização política das Forças Armadas, essa ameaça ou esse abalo se transformaram em outros tantos motivos de êxito pessoal para o presidente e reafirmação de sua condição de chefe? A crise principal talvez tenha sido a da aviação embarcada — porque deixou insatisfeita a FAB e afastou completamente a Marinha do dispositivo de sustentação. Mas a Marinha, que, por ter sido a Arma mais duramente atingida por Goulart nos seus manejos subversivos, deveria ter sido a mais capaz de reagir e propor uma saída autenticamente revolucionária para a crise militar, limitou-se a defender sua sobrevivência — em outros termos, perdeu a condução do processo por não ter sabido entendê-lo em sua plenitude.

Seguramente, para a Sorbonne, que vem de agosto de 1954, quando a Marinha teve papel saliente na crise, o Cisne Branco conta pouco — é a velha oposição que remonta a 1893, data fatídica para os homens de mar, pois ali perderam sua hegemonia nos negócios internos e nunca mais a recuperaram, deixando-se paulatinamente reduzir a praticamente uma única esquadra, quando a extensão das costas reclama aos menos outra (da perspectiva exclusivamente militar).

A supremacia do Exército decorre de sua maior densidade no conjunto das Armas, e em boa parte essa maior densidade é uma imposição do território que há de guardar. A isso, some-se um problema até agora pouco considerado: desde 1960, o centro de decisões não é mais o Rio de Janeiro, mas Brasília. Certo, as cabeças dos ministérios estão na Guanabara, o Rio é ainda a caixa de ressonância política e cultural do país — mas em última instância, os três poderes da República têm sede no Planalto, e no Planalto a Marinha tem pouca coisa a fazer.

A FAB, por sua vez, está mal equipada — e o Exército, assim, impõe avassaladoramente a sua hegemonia sobre o conjunto das Armas e disso tem consciência.

Isso posto, a unidade do Exército não se pode quebrar, pois essa quebra significa a possibilidade de uma das outras Armas pretender a hegemonia. E importa observar que, assim sendo a situação, o princípio da disciplina intelectual tende a prevalecer em todos os escalões do Exército, mantendo-o monolítico e coeso diante de todos os que lhe são exteriores.

Foi por isso que o general Costa e Silva desempenhou, durante esses dois anos, papel tão saliente na defesa do governo, especialmente na crise de 1965, quando da eleição e posse de Negrão de Lima. Para não romper a unidade do Exército, os que se opunham à política da Sorbonne foram buscar o ministro da guerra para depor o presidente. Eles não podiam agir de outra maneira, pois no instante em que um coronel, ou general de divisão assumisse o comando geral da sublevação, o Exército se dividiria politicamente e estaria condenada ao malogro a longa tarefa de reconstituição da unidade rompida em novembro de 1955, e consolidada pelo expurgo de 1964. Nas forças Armadas, em virtude da preeminência do “ethos” burocrático, a rebeldia coletiva só pode ser feita quando o superior hierárquico dá as ordens contrárias às instituições. Porque se assim não for, quebram-se a um tempo duas estruturas: o Estado e o Exército, e o caos se torna uma realidade possível. Não havendo liderança política nas Forças Armadas — e sendo ela impossível em boa parte — prevalece o princípio da chefia. E, indiscutivelmente, o presidente da República é o chefe.

Mas há um aspecto muito importante no comportamento das Forças Armadas: sua sensibilidade às flutuações da opinião pública. Elas não se mexem antes que o povo o reclame e as solicite. Esse é um dos motivos que também levaram à degola de Adhemar: se ele se lançasse na campanha das eleições diretas, poderia mobilizar parte da opinião pública e essa, por reação circular, poderia influenciar o Exército e fazê-lo hesitar no momento de decisão. Tudo indica que o gen. Justino, vivendo num meio civil refratário à revolução, era parte desse plano. Por isso também foi exonerado.

É essa sensibilidade à opinião pública — que, de resto, a Sorbonne não tem, retirando daí sua superioridade tático-estratégica sobre seus companheiros — que torna a unidade do dispositivo militar a resultante de um sistema de forças, cujo equilíbrio é instável. Por isso não pode haver fissura no dispositivo militar, e não pode pelos motivos presentes no diálogo de príncipe d. Pedro com os oficiais da tropa do Rio. É que se a Nação se representa na Câmara, a Câmara em compensação nada é; se povo se representa em seus eleitores, eles também. nada podem. Os únicos que podem são a Igreja e a tropa — porque são as duas únicas organizações de caráter nacional. E como a tropa pode militarmente sempre mais que a Igreja, ela é, queiramos ou não, a Nação — e é a ela que o Poder deve dar ouvidos.

Resulta, assim, que é exatamente a fortaleza da Sorbonne que faz a sua fraqueza. Seu desprezo majestático pela opinião pública; seu desdém pela organização popular — para não dizer seu receio da organização popular — colocam-na de pés atados nas mãos da tropa. Se por ventura houver uma alteração na relação das forças integrantes do dispositivo governamental (em outros termos, se os comandos forem fracos, ou se a chefia do marechal presidente for posta em causa), a Sorbonne não terá a quem apelar. E não terá ninguém a contrapor à tropa porque menospreza a política e sua expressão moderna, que é a organização popular.

19/6/1966
26/6/1966


 

 

O FIM VISÍVEL DA PROPRIEDADE

 

 

Quando tudo estiver consumado, será talvez curioso fazer a história do comportamento das classes empresariais em todo o processo que se inicia com a renúncia de Jânio Quadros e seguramente terminará com a expropriação de boa parte das indústrias. O governo, seguramente, dará outro nome, e revestirá de outras fórmulas jurídicas o ato pelo qual se apropriará do controle da indústria, depois de ter as comunicações, os transportes, regular o preço do aço e controlar a energia. No fundo, do ponto de vista das relações do proprietário com a coisa possuída, o fenômeno será o mesmo.

A renúncia foi o momento em que a consciência nacional entrou em crise — porque sucedera o impossível, isto é, a traição dos liderados pelo líder, e o abandono dos filhos pelo pai. Quase ninguém percebeu a extensão da crise que se abrira. Quando um tecelão do interior de São Paulo me dizia que a solução para o “impasse” criado a 25 de agosto estava no respeito à Constituição, impedindo-se, porém, a posse de Jango; quando um amigo registrava que no colégio interno em que o filho estava, a indisciplina assumira, como por geração espontânea, níveis jamais registrados ou supostos possíveis, ou quando um janista da primeira hora, empregado da CMTC, dispunha-se a engrossar as fileiras da “legalidade” para que Goulart tomasse posse e abrisse um inquérito para apurar as causas da renúncia — devolvendo depois o poder a Quadros; quando tudo isso acontecia simultaneamente às passeatas pela “legalidade” e a indecisão dos ministros militares, é porque a Nação tomava consciência, recusando-se embora a ver as coisas como eram, de que a crise estava aberta e de que se fazia mister muita imaginação e sacrifício para resolvê-la. Mas a imaginação faltou e a disposição de sacrifício esteve ausente.

Apanhados de improviso pela renúncia, os militares dividiram-se rapidamente em três grupos: 1.° dos legalistas, mais insensíveis à realidade da hora, temerosos de um envolvimento maior do Poder Militar pela política; 2.° os que desejavam extravasar os limites estreitos da legalidade e não sabiam como fazê-lo a não ser somando forças, de maneira desconexa, aos ministros militares, e 3.° os que consideravam prematura a tomada do poder, por não terem suficiente apoio político e de opinião pública, e que não desejavam arriscar suas cartas no segundo grupo por julgá-lo incapaz de assumir responsabilidades do poder contra a maioria da opinião pública e o primeiro grupo. Foi a conjugação das forças do primeiro e do terceiro grupos que conduziu os ministros militares ao doloroso “impasse” do 3 de setembro de 1961, quando se viram confrontados — conforme depoimento de um dos participantes do drama — pela maioria dos oficiais generais com comissão no I Exército, a qual votava, maciçamente, pelo Parlamentarismo com Jango.

Nesse momento de crise a Sociedade Civil dividiu-se em apenas dois partidos ostensivos: os que defendiam a legalidade e os que julgavam necessário aproveitar a oportunidade surgida, ocupar a área e proceder à sua limpeza. Os fatos supervenientes permitem concluir que o primeiro partido foi o triunfante — e ele foi, indiscutivelmente, o “partido da ordem”, representado pelos que entreviam na posse de Goulart a possibilidade de continuar o mesmo regime de irresponsabilidade em que o país vivia desde Kubitschek, a mesma distribuição orgíaca dos empréstimos oficiais, enfim, a manutenção do “sistema” sem qualquer alteração possível.

(Há um fato, se não importante, ao menos curioso a assinalar em todo esse episódio: semanas antes da renúncia, o sr. Castro Neves endossara as teses do Movimento Renovador Sindical, entre elas a extinção do Imposto Sindical, e a 18 de agosto, recebendo uma delegação do Conselho Coordenador dos Movimentos de Renovação Sindical, o presidente Quadros demorara-se no estudo de suas reivindicações, uma das quais era, exatamente, a extinção em dois anos do Imposto Sindical. O significativo não é que ele se tivesse comprometido a demolir a pedra angular do “sistema”, pois não se comprometeu. É, sim, que tivesse considerado o problema, muito embora as forças que lutavam naquela época contra o Imposto fossem numericamente pouco expressivas, embora de alta qualidade política).

O Parlamentarismo foi o efêmero triunfo da Sociedade Civil e o retumbante fracasso de sua condução política. Porque foi a época em que os privativismos mais se desmandaram, e em que ao invés de tentar a organização da Sociedade Civil, os homens que detinham alguma parcela de poder na República trataram de aumentá-lo em proveito de seus grupos, incapazes de seguir uma política coerente e oferecer uma alternativa válida à solução de compromisso encontrada nos conciliábulos do primeiro grupo militar com o jango-brizolismo e o liberalismo abstrato dos defensores de uma Constituição defunta.

Ninguém tomou realmente consciência do que se passava e da necessidade de oferecer à Nação uma saída autenticamente nacional. Houve alguns militares e um bom par de civis que tentaram o impossível — o “Movimento 25 de agosto”. Houve outros que começaram a conspirar amparados por um pequeno grupo de classes empresariais — mas fazendo da guerra subversiva uma concepção inteiramente ultrapassada, e procurando mobilizar setores da população sem a preocupação de organizá-los. O período do Parlamentarismo foi o mais triste da perspectiva da reconstrução nacional — e por isso a experiência terminou melancolicamente, o Congresso alterando a Constituição por uma lei ordinária, depois de haver concedido ao governo soma de poderes jamais vista até à época.

A volta ao presidencialismo, rompendo o compromisso tácito entre as Forças Armadas e Goulart (como bem assinalou à época o deputado Raul Pilla), lançou outra vez o Poder Militar na via conspiratória. Novamente, três grupos se defrontaram na área decisória do poder: 1. — os legalistas, dispostos a tudo aceitar de Goulart para manter a aparência da legalidade; 2. — os fiéis ministros militares de Quadros, que procuravam, especialmente o grupo mais radical, desencadear a qualquer preço um movimento armado certos de que o grosso do Exército não atiraria contra seus companheiros em defesa de Goulart e suas alianças, e 3. — um grupo mais numeroso, anti-Goulart, sem dúvida, mas desejoso de que fosse o governo o primeiro a dar seus passos no caminho da ilegalidade, para poder somar com os aderentes do primeiro e do segundo grupos.

Em boa medida a Sociedade Civil, ou melhor dizendo, as classes empresariais, jogaram no terceiro grupo, recusando-se a fazer qualquer coisa de mais concreto para apressar o fim de Goulart. Ao mesmo tempo, opuseram-se com unhas e dentes a todos os esforços de racionalização da administração financeira do País tentados pelo falecido ministro San Thiago Dantas, apesar de aparentemente apoiarem o Plano Trienal de contenção da inflação. É que, no fundo, a situação a todos convinha como uma luva: uma inflação que favorecia todos os grupos empresariais em termos exclusivamente financeiros e monetários; um governo de esquerda que nada fazia de sério no sentido de introduzir as tão anunciadas e temidas “reformas de base”, e um dispositivo sindical em sua maioria obediente à esquerda, mas pronto a marchar ao lado dos patrões para defender o sagrado “nacionalismo” — vale dizer, a ineficiência técnica e a ausência de concorrência.

O presidencialismo de Jango foi o triunfo acabado do “sistema” — e por não ter a estruturá-lo idéia alguma, salvo a sandice de alguns poucos que tomaram a Nuvem por Juno, — se deixou levar pela loucura e selou sua sentença de morte.

Todos os esforços para organizar a Sociedade Civil diante do desafio lançado pelo dispositivo militar-sindical de Goulart foram vãos. Os empresários comprometidos na conspiração defensiva preferiam sustentar um dispositivo sindical esclerosado — que formava em frente única com o dispositivo de Goulart contra a carestia, ou o Poder Econômico — a fazer um esforço sério para organizar o povo, dando-lhe, inclusive e antes de mais nada, a consciência de seus direitos. Eles desperdiçaram todas as oportunidades que a História lhes ofereceu — e preferiram esperar pelos céus (pela descida de São Jorge no seu tanque) a usar um pouco de inteligência para realizar um esforço destinado a alterar o curso dos acontecimentos. É que, no fundo, repito, Goulart servia a todos; à direita, ao centro e à esquerda, porque todos podiam ir buscar no Banco do Brasil aquilo de que necessitavam para tocar seus negócios, pagar o seu consumo ostentatório e remunerar altamente o aparelho desacostumado às delícias de uma vida de agitação garantida pela polícia.

Foi apenas no 13 de março que as classes empresariais viram que a assessoria de Goulart estava disposta a fazer o que prometera. Foi, então, o “Deus nos acuda!” e o “Aqui, d’El Rey!..” É que Goulart tocara fundo na propriedade, e além desse passo alucinado contra seus amigos da véspera, investira ironicamente contra a consciência verbal da Nação, fazendo pouco do Terço.

Violentada, assim, a consciência verbal da Nação no que tinha de mais expresso: a propriedade e a Religião, todos se engajaram na campanha contra o inimigo jurado da Família, da Religião e da Propriedade. As “marquesas” começaram a ter os pesadelos sugeridos pelas violências da guerra civil espanhola; os proprietários, inclusive os que haviam auxiliado durante muito tempo o aparelho da subversão e dado seu apoio à posse de Goulart em nome da “concórdia nacional”, começaram a pensar que, afinal, o “sursis” que haviam pensado comprar ao Partido Comunista podia ter expirado. E todos se tornaram conspiradores da noite para o dia, e pediram armas para defender-se, e organizaram comitês de salvação nacional.

E decidiram-se à grande aventura: tentar a ocupação do poder com o terceiro grupo em que se dividia o Poder Militar, certos de que, pelo contato mais estreito que com ele haviam mantido nos dois anos que mediaram entre a renúncia e o 13 de março, aquele era o seu partido. Houve, inclusive, os que jogaram no segundo grupo — mas que apressadamente correram a buscar o seu dinheiro no dia 2 de abril, porque o perigo do comunismo havia passado com a fuga de Goulart.

O resto pertence à História de nossos dias — a história da maior “journée des dupes” que já se conheceu em todos os tempos, pois o terceiro grupo militar, exatamente a Sorbonne, aliou-se à Tecnocracia, desprezou a Agricultura e decidiu impor a ferro e fogo a sua concepção militar de como deve organizar-se a empresa privada. E vai organizá-la apesar dos protestos gerais e de todos.

Há pequenos elementos que indicam que a Sorbonne tem no Poder Econômico o seu grande bode expiatório quando tudo estiver perdido — porque, afinal, será fácil dizer ao povo que os preços não baixam e que a inflação aumenta porque os industriais não querem desistir de ganhar tanto e de aumentar seus bens supérfluos. Não é essa filosofia política que está subjacente a todas as medidas baixadas para aliviar a crise de crédito: o crédito será facilitado aos industriais que venderem seus imóveis, e os imóveis dos acionistas de suas empresas? E o chamado “crédito dirigido” não significará, dado o estágio de desenvolvimento da tecnologia brasileira, a intervenção estatal em boa parte das empresas industriais — para liquidá-las lentamente, ou recuperar aquelas que podem ser recuperadas?

Neste melancóico fim de esperança nacional — que se concentrava toda nos pés de onze atletas —, o marechal presidente joga com a mesma desenvoltura com que Goulart jogou no famoso 13 de março. E pela primeira vez comete, talvez, um erro estratégico: ataca em muitas frentes a um tempo só. Enumeramo-las:

1. o Poder Militar — a “casta” do Exército deverá solicitar sua passagem para a reserva a fim de beneficiar-se das promoções conferidas pelas leis anteriores. E não só a “casta”: um grande número de sargentos e oficiais inferiores, e bom número de oficiais superiores também. São homens que vêem encerrada sua carreira antes do tempo que se haviam fixado para tal — e essa frustação é perigosa;

2. a Agricultura — o golpe desferido no Café e a má condução da política econômica em outros setores da produção agropecuária isolaram o governo da Terra, colocando contra ele os homens que, afinal de contas (embora em circunstâncias diferentes), conduziram à deposição de Goulart.

3. a Indústria — é onde o governo está melhor, pois pode jogar os industriais tecnicamente mais adiantados contra os marginais, apelando, inclusive, para uma camada jovem de técnicos que funcionam na Indústria e que se preocupam antes de mais nada com a Produtividade e não com a Política — ou a politicagem;

4. o Povo — a alta dos aluguéis, do custo de vida em geral e o isolamento do Governo são altamente nocivos. Verdade que as eleições executivas sendo indiretas, isso será de pouca importância em termos de poder nu. Todavia, o descontentamento pode alcançar os quartéis e o Exército a sentir-se, na falta de uma ampla campanha de esclarecimento de fins e propósitos, o garante de uma situação marcadamente impopular.

Apenas uma área o governo não atacou — a Igreja. E parece que o fez sabiamente, pois se jogasse o Clero ao lado de todas essas forças que se aglutinam contra ele, teria decretado a sua sentença de morte. Todavia, mais cedo ou mais tarde ele será obrigado a atualizar os Códigos — e então a luta se dará.

De qualquer forma, o fato de as classes empresariais terem perdido as oportunidades que a história lhes deu, da renúncia até março de 1964, de tentarem libertar-se do jugo sufocante do Estado, torna-as hoje um mero joguete na mão daqueles que devem vencer a inflação a qualquer custo — inclusive da propriedade. E entre o Poder e a Idéia, entre serem batidos e verem industriais sem as indústrias, a Sorbonne e a Tecnocracia só têm uma saída: é ficar no Poder, e a propriedade privada que se dane. Pois, a Sociedade Civil já não foi esmagada, e o que restava da Federação não sucumbiu com o ato 16? E o que é mais, sem que houvesse, nas 24 horas que se seguiram à medida de força, uma reação salutar, indicativa de que o organismo ainda esta vivo!

O grande trunfo que o marechal presidente tem, e que faltou a Goulart, é que de 64 para cá a Sociedade Civil morreu mais um pouco. Ele está jogando com um cadáver — com perdão da imagem de mau gosto —, e é por isso que, como o rigor mortis já se apresenta visivel, pode mudá-lo de lugar à sua vontade.

24/7/1966


 

 

QUE FAZER? — A CONSTITUIÇÃO

 

 

O grupo da Sorbonne perdeu a grande oportunidade de construir uma Nação, da mesma forma como a perderam, por imaturos e desorganizados, os revolucionários de 30. Nas duas oportunidades, a Nação estava em armas, pronta a qualquer sacrifício desde que lhe acenassem com a mensagem da esperança e com a Pátria Grande. A preocupação do pormenor, de construir situações políticas artificiais nos Estados para que os mais chegados ao poder pudessem ter prestígio, levou a marchas e contramarchas, que apenas destruíram a auréola de isenção das Forças Armadas, e fizeram o povo descrer de quaisquer soluções positivas delas partidas

Preocupadas em consolidar seu poder e talvez em dar à Tecnocracia o apoio necessário à construção das finanças, a Sorbonne confundiu a Política com a políticagem e, buscando suprimir a segunda, matou a primeira. Com isso, como já assinalei, foi forçada a apoiar-se em um tripé de estabilidade precária, pois basta que a política econômica não dê resultados, que a Sociedade Civil se organize, ou que o Poder Militar se cinda para que toda a armação construída sobre a mentalidade burocrática venha abaixo.

Quando se diz que o grupo que assumiu o poder não estava preparado para exercê-lo, diz-se uma meia verdade. Desde que em cada posto-chave da administração pública haja um bom funcionário, a máquina do Estado anda perfeitamente bem, e os elementos de confiança, que exercem cargos políticos, podem ser meio-jejunos na matéria. Não é que a Sorbonne estivesse despreparada para governar; o que ela estava e está é despreparada para a guerra subversiva, para o problema da hegemonia — e portanto para a magna questão da organização da Sociedade Civil. Isso se explica por sua formação: são liberais que têm um poder discricionário e tentam conduzir uma guerra que o liberalismo clássico não sabe fazer, porque despreza a organização de massas e confia no Parlamento e nas eleições legislativas.

Essa é a contradição básica que explica os caminhos tortuosos que o marechal presidente vem seguindo: ele quer fazer uma política liberal num momento em que isso não é mais possível; quer fazer compromissos quando a realidade está a exigir exatamente a ausência deles e a afirmação de uma Política apoiada numa organização. Por isso ele busca bater os inimigos um a um — e até agora conseguiu fazê-lo, pois eram também liberais, que acreditavam nas palavras e desprezavam a organização. Mas a estratégia de selecionar os inimigos, para ir derrotando-os um após o outro, é própria daqueles que querem conquistar o Poder: Trotsky, Mussolini, Hitler. Não dos que já estão no Poder e precisam consolidá-lo — porque essa consolidação apenas se faz com a mobilização das energias nacionais, a proposição de um grande norte, a descoberta de um grande adversário.

Premido pela contradição entre o fato — o poder sem controle que realmente exerce — e a idéia — o liberalismo básico a que se quer apegar — o marechal sente a necessidade de resolvê-la mediante uma Constituição. No que aliás está certo. Mas liberal que é, encomenda o projeto a ilustres cultores do direito abstrato, liberais por formação, e se empenha em enviá-lo a um Congresso sem legitimidade política e representatividade popular para que a aprove. Julgará, ele, por acaso, que uma Constituição feita por um Congresso que pode ter seus mandatos cassados a qualquer momento valha mais que uma Carta outorgada por quem tem poderes para tanto? Se assim pensa, erra — porque a Constituição votada por um Congresso que deixa um mero ato executivo alterar a Lei Fundamental vigente, vale politicamente menos que um gesto de coragem que outorga à Nação uma nova Carta Magna. Recuando no momento em que devia avançar, a Sorbonne deixa a Tecnocracia entregue aos leões da política rasteira de campanário, que não admitirão jamais que se ponha ordem nas finanças, se racionalize a máquina do Estado e se construa uma grande Nação.

Temendo o pior, o governo empenha-se em enviar, antes da Constituição, a Reforma Administrativa, pensando que sem alterar fundamentalmente as relações entre o Executivo e o Legislativo, e entre o Estado e a Sociedade, uma reforma administrativa seja capaz de permitir uma racionalidade fundamental da máquina burocrática do Estado. No que mais uma vez se engana, porque o Executivo continuará dependente do Legislativo, esse dos favores que conceder aos grupos de pressão, e a Técnica será mais uma vez esbulhada e tudo continuará como antes, com algumas diferenças mínimas, não essenciais.

No momento em que o triunfo pode ser seu, o presidente corre o risco de perder — porque julga que a Classe Política que o elegeu, e diante da qual recua intimidado sempre que se trata de extinguí-la, pode interpretar a Nação. Ele, que reúne os poderes constituintes da Nação, prefere que a demagogia, a corrupção eleitoral e o liberalismo jurídico abstrato construam esta Nação, que só foi una porque os Fundadores do Império sabiam que seu compromisso era com a Pátria e não com a Idéia.

Embora assentando num tripé frágil, a Sorbonne nada faz para consolidar o seu ponto de sustentação, que se não é, deveria ser a Sociedade Civil. Por isso, entra ministro, sai ministro, o “pelegato” continua a mandar no Ministério do Trabalho e o Imposto Sindical não é abolido. Ele é a pedra angular do “sistema” — e é também sua cidadela inexpugnável. E torna-se inexpugnável porque a Sorbonne julga que a organização da Sociedade Civil em termos autênticos — portanto políticos e não burocraticos — poderia permitir a infiltração do comunismo no organismo social. Com isso, ela violenta duplamente a realidade; em primeiro lugar, teoricamente, pois se a todos for lícito se organizar e se se imagina que essa possibilidade dará a supremacia aos comunistas, o que se tem de fazer é entregar o poder já e agora ao aparelho da subversão antinacional e recolher-se aos quartéis; em segundo lugar, praticamente, pois a experiência demonstrou que onde havia um sindicalismo não viciado pelo Imposto Sindical, como era o caso do sindicalismo rural no Nordeste antes de março de 1964, foram os sindicatos livremente organizados e com uma idéia política a orientá-los, que impediram o triunfo do partido.

Se a Sorbonne assim age, é porque o sindicalismo de Estado convém a quem tem da política a visão burocrática: os dirigentes dão as ordens e os “pelegos” obedecem, embora fingindo que estão contra. Mas essa obediência é passiva — e Goulart teve disso a prova mais triste e dolorosa que um homem pode ter tido. No momento em que pensou contar com os sindicatos, os burocratas fugiram, ou foram presos, e a massa foi trabalhar.

Exatamente nesse aspecto, a Sorbonne trabalha contra a Tecnocracia: mantendo a estrutura do sindicalismo de Estado e a Justiça do Trabalho, ela retira do processo econômico um de seus elementos constitutivos fundamentais, que é o conflito econômico patrão-empregado. Em outros termos, impede que as pressões reivindicatórias da classe operária obriguem os patrões a renovarem suas técnicas para manter a mesma taxa relativa de lucro. Com isso, permitindo que a renovação técnica fique entregue apenas à concorrência ao nível de uma classe empresarial em que ninguém tem interesse econômico em liquidar o adversário, mesmo que seja marginal, o país não pode dar o salto qualitativo que a Tecnocracia deseja e o Poder Militar sente necessário para poder equipar-se à altura das necessidades que intui fundamentais.

Sufocando a liberdade de associação da Sociedade Civil, a Sorbonne prepara, talvez sem o querer, um regime em que o capitalismo será burocrático, a Política não existirá e o Estado terá tudo a seu dispor — mas em que a Nação e a economia serão frágeis, porque assentadas não na luta, na competição e na destruição dos menos capazes, mas na morna mansidão com que todos acorrem ao Banco do Brasil ou ao chefe do Executivo. É bem possível que, neste ponto, a Sorbonne se identifique com o Poder Militar — porque o “ethos” burocrático informa o pensamento de todos, prontos a considerar os civis como cidadãos de segunda classe, aptos a dar palpites, sugerir idéias, mas nunca a tomar decisões.

Nesse quadro, só há um caminho — não dois. E ele parte da seguinte premissa; a Técnica tende a impor a sua visão Racional às ações sociais e econômicas, e o Poder Militar não entregará o controle do Estado aos civis. Não entregará porque não quer e porque não pode — pois mesmo que o quisesse, as contradições dessa Sociedade Civil desorganizada logo o chamariam de novo à cena.

A única solução é incorporar o Poder Militar ao Estado e levar a racionalidade da Técnica às suas últimas conseqüências, permitindo que o regime capitalista funcione com todos os elementos definidores: a concorrência, o conflito econômico livre entre o patrão e o empregado, e a certeza de que o Direito de amanhã será o mesmo de hoje e não um outro. Não há regime econômico moderno que possa progredir quando as leis mudam da manhã para a noite, e ninguém tem segurança de coisa alguma. A insegurança gera o não investimento. Esse produz a estagnação. Essa conduz à ditadura militar e à mediocridade generalizada.

Para que tal solução se dê, é mister uma nova Constituição. Mas não presa a compromissos jurídicos e doutrinários que provaram sua falência durante toda a República. É preciso uma Carta Magna que concilie a Unidade com a Diversidade, separe nitidamente o Estado do Governo e reconheça que, no momento, as Forças Armadas são a única organização nacional e que, como tal, devem ser integradas no Estado, num poder neutro. Uma Constituição que dê ao Congresso a sua função de controle e garantia das liberdades, retirando-lhe a iniciativa das leis, que não lhe deve pertencer, mas ao Governo e à Sociedade Civil organizada. Uma Constituição que retire o Supremo Tribunal da influência do Executivo (que hoje nele interfere pela nomeação dos ministros) e lhe garanta, de fato, a autonomia indispensável para preservar as liberdades e ajuizar da constitucionalidade das leis, dos atos do Governo e dos conflitos entre os Poderes. Uma Constituição que dê ao Povo o direito sagrado de eleger o Presidente da República, chefe do Estado, que nomeia o Governo, porque no Brasil as reformas se fazem por via executiva e não legislativa. Uma Constituição, em suma, que fortaleça o Estado contra os Privativismos, garanta os cidadãos contra a prepotência do Governo e dê à Sociedade Civil a possibilidade de organizar-se e fazer uma Nação.

Isto é o que hoje, a meu ver, se pode fazer: convencer o Poder Militar a outorgar uma Constituição nos moldes acima apontados, já que ele não quis convocar o Congresso da Revolução. O resto é Utopia, frustração ou mera provocação. É pouco, eu sei, oferecer uma Constituição pouco ortodoxa aos que reclamam a volta ao regime da irresponsabilidade coletiva, ou da baderna protegida pelo Governo. Mas alguém tem algo mais de positivo e concreto a oferecer à Nação?

17/7/1966


 

 

A CONSTITUIÇÃO E OS JOVENS

 

 

O que impressiona na crise brasileira é que a única grandeza presente é a da força: o presidente da República, na sua qualidade de chefe de Estado, comandante das Forças Armadas e chefe do governo revolucionário, continua detendo o poder constituinte da Nação e pode, amanhã, se convier a seu esquema tático, eternizar-se no poder, convocar eleições ou simplesmente restabelecer a monarquia. Dirão que é risível a hipótese: concordo, mas ele pode fazer tudo isso porque assim lhe foi facultado agir.

Quando a única idéia que mantém unido o aparelho de Estado e teoricamente reúne a seu redor a Nação é a força, não estranha que a Nação — a verdadeira e fundamental — esteja atônita e, sobretudo, sem esperança, aceitando passivamente aquilo que a força das armas lhe outorgar. Durante decênios, se não séculos, foi-lhe ensinado que melhor era um mau acordo que uma boa demanda; que mais valia tentar o “jeito” e ficar bem com a Autoridade, do que opor-se à Autoridade na reivindicação do Direito inscrito nas leis ou na consciência, para nessa oposição afirmar sua condição de ser, e sua crença no Direito reclamado, A Nação acostumou-se, ao longo dos anos, a não protestar, quando lhe retiravam a esperança — que é a luta; e a escarnecer da Lei, por ser mais cômodo. Desfibrou-se no mito do Brasil bonachão e bonzinho — e hoje está inerte, entregue às mãos de seus donos, que por sorte são igualmente bonzinhos, mas que amanhã poderão não ser.

Esta Nação teme o fascismo porque teme a violência, não porque ele implique na perda da Liberdade. Ela não aprendeu, salvo em alguns poucos decisivos instantes, a lutar pela Liberdade. Preferiu acostumar-se a esperar que lhe outorgassem algumas franquias formais, que defende por manifestos, mas não organizadamente, ao invés de sacrificar a comodidade do repouso cotidiano, do salário garantido por uma afirmação de fidelidade conseqüente a seus ideais. Assim foi sempre ao longo da História — salvo naqueles momentos que não se lêem mais nos livros escolares, porque a alguém, talvez à classe política e ao próprio Sistema, não interessa que os jovens saibam que houve tempo, neste Pais, em que a vanguarda abria caminho para a tropa semeando cabeças, que demarcavam a rota da perseguição aos rebeldes.

É por ter sido educada assim, no acalento do “deixa disso”, que a Nação assiste passiva a todas as manobras realizadas pelas cúpulas — não para encontrar o caminho que fará desta Nação uma grande potência, mas sim aquele que melhor permitirá à classe política e ao Sistema continuarem controlando o Estado, dominando o território e aviltando a Nação.

É por estar entorpecida pelas manobras dos “príncipes do Sistema”, que a Juventude, que é o futuro da Nação, se recusa a participar da reconstrução nacional — exatamente porque foi sobre ela que mais atuou o “deixa disso”, e porque ela foi a parte da Nação mais trabalhada por aqueles que achavam que a agitação protegida pelo governo era tudo o que se deveria fazer, e aquela que, no instante em que o governo passou a reprimir a agitação, entrou em crise. Esquecida de que a missão do governo é, simplesmente, essa: reprimir a agitação dos que lhe são contrários.

Escarmentada pela experiência dilacerante do movimento de abril, a Juventude já não mais confia — deixou, portanto, de ser jovem. Não confia sequer nela, muito menos nos que a Natureza fez mais velhos, mais prudentes, mais razoavelmente pertos do mito do Brasil bonachão. E por não confiar em ninguém, ou se isola, nauseada, ou pela própria náusea é levada à negação de si própria na alienação festiva, ou a engajar-se na ação pela ação, transformando-se nas milícias juvenis a mando daqueles que não têm coragem de agir abertamente na repressão do que julgam errado e anti-nacional. Mas seja os que se isolam, os nauseados ou os ativistas — todos são igualmente vítimas do “Sistema” e de seus “príncipes”. Os “príncipes” querem os jovens inertes, ou meramente ativistas — tropa de choque da esquerda ou da direita — nunca, porém, cidadãos responsáveis pelo país que será deles amanhã, quando os velhos tiverem passado.

E, no entanto, a Juventude tem pela frente o porvir — desde que se disponha a construí-lo passo a passo, e conquistá-lo palmo a palmo, coortes disciplinadas e dignas da Nação que é sua. Quando a encontro, pergunta sempre angustiada: que vamos fazer do Brasil? Que destino daremos ao Brasil, se estamos afastados dos centros do Poder?

Ao que respondo que o Destino não se forja no Poder, que no mais das vezes o compromete, quando não trai, mas fora dele. E que não há proposição de Destino que se sustente sem a coragem física de afirmá-la a cada instante e sempre.

O Destino aí está manifesto a todos nós, a grandeza territorial e a extensão da costa e das fronteiras, impondo-nos a consciência de que somos, por obra e graça dos que não acreditaram no “deixa disso”, a Nação destinada a ter a hegemonia da América Latina para, uma vez ela adquirida, impor ao Continente as soluções que são nossas e não de outros, que têm outro Destino, conflitante às vezes com o brasileiro.

Para que esse Destino se afirme; para que ele se faça luz e ilumine o caminho de 80 milhões, que serão 100 milhões em breve, é mister, contudo, que tenhamos uma Constituição que responda a ele: flexível o bastante para permitir que ajustes constantes a uma realidade cambiante não se façam à margem e à custa da Lei e dos direitos fundamentais; aberta o suficiente para que a classe política seja varrida pela coorte popular; rígida o necessário para que o Governo e o Estado não sejam mais prisioneiros do “Sistema” e possam dotar o país da armadura política, econômica e social apta a cumprir as tarefas impostas pelo Destino.

A nova Constituição não pode ser feita por esse Congresso, que aí está, comprometido com o passado e expressão acabada do “Sistema” e de suas mazelas, nem por um outro eleito nas mesmas condições e com o mesmo pessoal, que só pensa no povo quando o suborna para eleger-se, ou quando lhe promete leis para acalmar sua impaciência e afastá-lo do caminho de luta presente em seu Destino. Só o povo pode fazer essa Constituição. Só o povo reunido no Congresso da Revolução.

15/5/1966


 

Notas

 

(1) — O janismo, sem dúvida, é mais do que isso. Mas para seu líder foi apenas isso. Daí não se ter constituído no grande movimento político popular do Brasil, e daí a renúncia ter frustado todas as esperanças, inclusive as que o grupo militar depositava no mundo civil.

(*) — 1957, na fonte digitalizada. Claro, 1967!

(1) — Ver “Jornal da Tarde” de 4-7-66.


 

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