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DICIONÁRIO FILOSÓFICO

Voltaire

Ridendo Castigat Mores


 

Dicionário Filosófico (1764)
Voltaire (1694-1778)
Edição
Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook
eBooksBrasil.org
Fonte Digital
www.jahr.org
Copyright:
Domínio Público


 

ÍNDICE

Apresentação
Nélson Jahr Garcia
Biografia do autor
DICIONÁRIO FILOSÓFICO
Abraão
Alma
Amizade
Amor
Amor Próprio
Amor Socrático
Anjo
Antropófagos
Apis
Apocalipse
Ateu, Ateísmo
Batismo
Belo, Beleza
Bem (Supremo)
Bem (Tudo Está)
Cadeia dos Acontecimentos
Caráter
Catecismo Chinês
Catecismo do Japonês
Catecismo do Pároco
Certo, Certeza
Céu dos Antigos (O)
China (Da)
Circuncisão
Convulsões
Corpo
Cristianismo
Crítica
Destino
Deus
Escala dos Seres
Estados, Governos
Ezequiel (De)
Fábulas
Falsidade das Virtudes Humanas
Fanatismo
Fim, Causas Finais
Fraude
Fronteiras do Espírito Humano
Glória
Graça
Guerra
História dos Reis Judeus e Paralipômenos
Ídolo, Idólatra, Idolatria
Igualdade
Inferno
Inundação
Irracionais
Jefté
José
Leis (Das)
Leis Civis e Eclesiásticas
Liberdade (Da)
Loucura
Luxo
Matéria
Mau
Messias
Metamorfose, Metempsicose
Milagres
Moisés
Pátria
Pedro
Preconceitos
Religião
Ressurreição
Salomão
Sensação
Sonhos
Superstição
Tirania
Tolerância
Virtude
Notas


 

DICIONÁRIO FILOSÓFICO

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VOLTAIRE


 

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

 

Voltaire (1694-1778) foi um dos maiores pensadores de seu tempo. Seu estilo, inconfundível, está presente em todos os seus romances, peças teatrais, trabalhos sobre filosofia e ciências. O traço mais marcante de seus textos é a agressividade inteligente, manifesta através de críticas ácidas e de uma ironia grave, geralmente beirando o sarcasmo.

Voltaire, com humor, castigou reis, nobres, ministros, religiões, teorias científicas e filosóficas. Nesse aspecto “Dicionário filosófico” é, talvez, o trabalho mais significativo. Não perdoou autoridades, costumes, crenças ou teorias; é difícil lembrar alguma que não tenha sido alvo de sua verve.

Suas críticas procuram demonstrar as contradições embutidas nas concepções que ataca. Às vezes o faz de forma leve e sutil, como neste argumento, em que ridiculariza a certeza humana:

“Se perguntásseis a todos os homens antes de Copérnico:

— O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?

— Temos absoluta certeza – responder-vos-iam à uma voz.

Tinham certeza, e no entanto estavam errados.”

Em outros momentos, investe com mais severidade:

“Pretendiam alguns escritores europeus que nunca haviam estado na China que o governo de Pequim era ateu. Wolf elogiara Pequim. Logo, Wolf era ateu. Melhores silogismos nunca souberam forjar a inveja e o ódio.”

Não raro recorre à hostilização aberta:

“As inimitáveis tragédias de Racine foram todas criticadas, e pessimamente: porque as criticaram rivais. Certo, os artistas são juizes de arte competentes, porém quase sempre lhes falta integridade.”

Chega a apelar para a pilhéria:

“Assistia eu certa vez à representação de uma tragédia em companhia de um filósofo.

— Como é belo! – dizia ele.

— Que viu o sr. de belo?

— O autor atingiu seu fim.

No dia seguinte ele tomou um purgante que lhe fez efeito.

— O purgante atingiu seu fim – disse-lhe eu. Eis um belo purgante. Ele compreendeu não se poder dizer que um purgante seja belo, e que para chamar belo a alguma coisa é preciso que nos cause admiração e prazer. Conveio em que a tragédia lhe inspirara estas duas emoções, e que nisso estava o to kalon, o belo.”

Em outros casos o chiste chega a ser corrosivo:

“Ben al Betif, digno chefe dos dervís, disse-lhes um dia: “Meus irmãos, muito conveniente é que useis com toda freqüência esta fórmula sagrada do nosso Alcorão: Em nome de Deus mui misericordioso, pois Deus usa de misericórdia e vós aprendereis a praticá-la com repetir freqüentemente os termos que recomendam uma virtude sem a qual poucos homens restariam sobre a terra. Mas, meus irmãos, abstende-vos de imitar esses temerários que a todo transe se jactam de trabalhar pela glória de Deus. Se um jovem imbecil sustenta uma tese sobre as categorias, tese presidida por um ignorante encasacado, não deixa de escrever em grossos caracteres no cabeçalho de sua tese: Ek Allah abron doxa: ad majorem Dei gloriam. Um bom muçulmano fez pintar o seu salão gravando em sua porta essa tolice; um saca carrega água para maior glória de Deus. É um costume ímpio, piedosamente posto em uso. Que diríeis de um pequeno tchauch que ao limpar a privada do nosso ilustre sultão gritasse: “Para maior glória do nosso invencível monarca”? Há certamente maior distância do sultão a Deus que do sultão ao pequeno tchauch.”

Voltaire não simpatizava com menções a milagres e reprovava:

“Segundo a energia do termo, um milagre é uma coisa admirável. Nesse caso, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos ao redor de um milhão de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos milagres.

Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação dessas leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante a Lua cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho levando a cabeça de baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu um milagre.”

O tema da ressurreição tampouco o animava, disparava com precisão:

“Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são monumentos de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga toda uma nação, sem o que essas vis massas não teriam sido levantadas. Que finalidade tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia de algum príncipe, de algum governador, de um intendente qualquer, porque ao cabo de mil anos sua alma devia reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição dos corpos, por que lhes extraiam os miolos antes de embalsamá-los? Será que os egípcios deviam ressuscitar sem cérebro?”

Incomodava-o a idolatria, com presteza denunciava:

“Escreveram-se volumes imensos, debitaram-se sentimentos diversos sobre a origem desse culto rendido a Deus ou a vários deuses sob figuras sensíveis: esta multitude de livros e de opiniões não atesta senão ignorância. Não se sabe quem inventou as vestes e os calçados e quer-se saber quem primeiro inventou os ídolos?”

Contra as críticas, Voltaire devolvia outras,muitas vezes em defesa do criticado:

“Dizem alguns teólogos que o divino imperador Antonino não era virtuoso; que era um estóico tençoeiro que, não contente de governar os homens, ainda queria ser estimado por eles; que fazia reverterem a si próprio os benefícios que fazia ao gênero humano; que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples vaidade, e que apenas enganou os homens com a sua virtude; neste caso exclamarei: ‘Meu Deus, dai-nos a basto velhacos desta laia!’”

Outro exemplo sugestivo:

“Um mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte:

— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?

— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos.

E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas. Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.”

Esse era o genial Voltaire. A leitura de suas obras nos faz meditar melhor sobre nossos pensamentos e a forma como os comunicamos. Podemos não rir de suas frases, mas um sorriso discreto e salutar é inevitável.


 

BIOGRAFIA DO AUTOR

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FRANÇOIS-MARIE AROUET, filho de um notário do Châtelet, nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694. Depois de um curso brilhante num colégio de jesuítas, pretendendo dedicar-se à magistratura, pôs-se ao serviço de um procurador. Mais tarde, patrocinado pela sociedade do Templo e em particular por Chaulieu e pelo marquês de la Fare, publicou seus primeiros versos. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado na Bastilha, de onde saiu seis meses depois, com a Henriade quase terminada e com o esboço do Œdipe. Foi por essa ocasião que ele resolveu adotar o nome de Voltaire. Sua tragédia Œdipe foi representada em 1719 com grande êxito; nos anos seguintes, vieram: Artemise (1720), Marianne (1725) e o Indiscret (1725).

Em 1726, em conseqüência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente recolhido à Bastilha, de onde só pode sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Três anos mais tarde, regressou e publicou Brutus (1730), Eriphyle (1732), Zaïre (1732), La Mort de César (1733) e Adélaïde Duguesclin (1734). Datam da mesma época suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se em Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até 1749. Aí se entregou ao estudo das ciências e escreveu os Eléments de le Philosophie de Newton (1738), além de Alzire, L’Enfant Prodigue, Mahomet, Mérope, Discours sur l’Homme, etc.

Em 1749, após a morte de Madame du Châtelet, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde já estivera alguns anos antes como diplomata. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade, porém, não durou muito: as intrigas e os ciúmes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753.

Sem poder fixar-se em parte alguma, esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar, Lyon, Genebra, Nantua; em 1758, adquiriu o domínio de Ferney, na província de Gex e aí passou, então, a residir em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim viveu, cheio de glória e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, Histoire du Parlement de Paris, etc., sem contar numerosas peças teatrais.

Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu no dia 30 de março desse mesmo ano, aos 84 anos de idade.


 

DICIONÁRIO FILOSÓFICO

Voltaire

ABRAÃO

Abraão é um desses nomes célebres na Ásia Menor e na Arábia, como Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia, Orfeu na Trácia, Odin nas nações setentrionais e tantos outros mais conhecidos por sua celebridade do que por uma história bem comprovada. Não falo aqui senão da história profana, pois quanto à dos judeus, nossos mestres e nossos inimigos, em quem cremos e que detestamos, tendo sido a história desse povo visivelmente escrita pelo próprio Espírito Santo, temos por ela os sentimentos que devemos ter. Dirijo-me apenas aos árabes; que se gabam de descender de Abraão por Ismael; que acreditam ter sido esse patriarca o fundador de Meca, onde teria morrido. O fato é que a raça de Ismael foi infinitamente mais favorecida por Deus do que a raça de Jacó. Uma e outra, é verdade, produziram ladrões. Mas os ladrões árabes foram incomparavelmente superiores aos ladrões judaicos. Os descendentes de Jacó não conquistaram mais que uma faixa de terra insignificante, que perderam. Os descendentes de Ismael avassalaram parte da Ásia, parte da África e parte da Europa, edificaram um império mais vasto que o império dos romanos e enxotaram os judeus de suas cavernas – que estes chamavam terra da promissão.

Bem difícil seria, à luz da história moderna, ter sido Abraão pai de duas nações tão diferentes. Dizem que nasceu na Caldéia, filho de pobre oleiro que ganhava a vida fazendo pequenos ídolos de barro. É pouco verossímil que esse filho de oleiro se haja abalançado a ir fundar Meca a trezentas léguas de distância, de baixo do trópico, tendo de vingar desertos intransitáveis. Se foi um conquistador, certamente ter-se-á dirigido ao belo pais da Assíria. Se, como o despintam, não passou de um pobre diabo, então não terá fundado reinos senão na própria terra

Reza o Gênesis que tinha Abraão setenta e cinco anos ao emigrar do país de Harã, após a morte de seu pai Tareu o oleiro. O mesmo Gênesis, porém, diz que Tareu, tendo gerado Abraão aos setenta anos, viveu até a idade de duzentos e cinco anos, e que Abraão só saiu de Harã depois da morte do pai. Portanto é claro, segundo o próprio Gênesis, que Abraão contava cento e trinta e cinco anos quando deixou a Mesopotâmia. Saiu de um pais idólatra para outro país idólatra: Siquêm, na Palestina. Por que? Por que deixou as férteis margens do Eufrates por terras tão remotas, estéreis e pedregosas? A língua caldaica devia ser muito diferente da língua de Siquêm. Não se tratava de lugar de comércio. Siquêm dista da Caldéia mais de cem léguas. É preciso transpor desertos para lá chegar. Mas Deus queria que Abraão realizasse essa viagem. Queria mostrar-lhe a terra que séculos depois haviam de habitar seus pósteros. Custa ao espírito humano compreender os motivos de tal peregrinação.

Mal arriba ao montanhoso rincão de Siquêm, obriga-o a fome a abandoná-lo. Vai para o Egito em companhia de sua mulher, à procura de com que viver. Duzentas léguas medeiam de Siquêm e Menfis. Será natural ir buscar trigo tão longe? Num país de que nem se sabe a língua? Estranhas viagens empreendidas à idade de quase cento e quarenta anos.

Traz a Menfis sua mulher Sara. Sara era extremamente jovem em comparação com ele, pois não contava mais que sessenta e cinco anos. Como fosse muito bonita, Abraão resolveu tirar proveito de sua beleza. “Façamos de conta que você é minha irmã,” – disse-lhe – “a fim de que me acolham com benevolência”. “Façamos de conta que é minha filha” – devia dizer. O rei enamora-se da jovem Sara e presenteia o pretenso irmão com muitas ovelhas, bois, burros, mulas, camelos e servos. O que prova – que já então era o Egito um reino poderoso e civilizado – por conseguinte antigo – e que se recompensavam magnificamente os irmãos que vinham oferecer as irmãs aos reis de Menfis.

Tinha a jovem Sara noventa anos, segundo a Escritura, quando Deus lhe prometeu que Abraão, que então tinha cento e sessenta, lhe daria um filho.

Abraão, que gostava de vigiar, tomou o caminho do hórrido deserto de Cades, acompanhado da mulher grávida, sempre jovem e bonita. Como acontecera com o rei egípcio, enamorou-se também de Sara um rei do deserto – O pai dos crentes pregou a mesma mentira que no Egito: fez passar a esposa por irmã. O que mais uma vez lhe valeu ovelhas, bois e servos. Pode-se dizer que, graças a sua mulher, Abraão se tornou riquíssimo.

Os comentaristas escreveram um número prodigioso de volumes para justificar o procedimento de Abraão e conciliar a cronologia. Cumpre-me, pois, a eles remeter o leitor. São todos espíritos finos e sutis, excelentes metafísicos, senhores sem preconceito e profundamente avessos à pedanteria.


 

ALMA

Seria maravilhoso ver a própria alma. Conhece-te a ti mesmo (1) é excelente preceito, mas só a Deus é dado pô-lo em prática. Quem mais pode conhecer a própria essência?

Alma chamamos ao que anima. É tudo o que dela sabemos: a inteligência humana tem limites. Três quartos do gênero humano não vão alêm, nem se preocupam com o ser pensante. O outro quarto indaga. Ninguém obteve nem obterá resposta.

Pobre filósofo! Vês uma planta que vegeta, e dizes vegetação, ou alma vegetativa. Notas que os corpos têm e comunicam movimento, e dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens idéias combinadas, e dizes espírito.

Mas que entendes tu por estas palavras? Aquela flor vegeta. Existirá porém um ser material – vegetação? Aquele corpo impele outro. Porém encerra ele em si um ente distinto – força? Aquele cão traz-te uma perdiz. Existirá porém um ser chamado instinto? Não te ririas de um raciocinador (teria sido preceptor de Alexandre) que te dissesse Todos os animais vivem; logo, encerram uma forma substancial – a vida?

Se uma tulipa pudesse falar e dissesse: Minha vegetação e eu somos dois seres juntos formando um só, não te ririas da tulipa?

Vejamos primeiro o que sabes, e do que estás certo. Que andas com os pés. Que digeres com o estômago. Que sentes com todo o corpo. Que pensas com a cabeça.

Pois bem. Pode a tua razão só por só dar-te luzes suficientes para concluíres, sem um recurso sobrenatural, que tens uma alma?

Os primeiros filósofos, quer caldeus, quer egípcios, disseram: Forçoso é haver em nós algo que produza o pensamento; esse algo deve ser extremamente sutil: sopro, fogo, éter, substrato, um tênue simulacro, uma enteléquia, um número, uma harmonia. Finalmente, segundo o divino Platão, é um composto do mesmo e do outro. São átomos que pensam em nós, disse Epicuro depois de Demócrito. Mas, meu amigo, como pensa o átomo? Confessa que nem o imaginas.

Aceita-se seja a alma um ser imaterial. Mas vós não concebeis o que seja esse ente imaterial.

— Não, – respondem os sábios – porém conhecemos sua natureza: pensar.

— Como o sabeis?

— Porque ela pensa.

— Oh sábios! Muito receio que sejais tão ignorantes quanto Epicuro. A natureza de uma pedra é cair porque ela cai. Pergunto-vos: que a faz cair?

— Sabemos que uma pedra não tem alma.

— De acordo.

— Sabemos que uma negação, uma afirmação não são divisíveis, não são partes da matéria.

— Da mesma opinião. Mas a matéria, que aliás desconhecemos, tem qualidades não materiais, não divisíveis. Possui gravitação para um centro, que Deus lhe deu. Essa gravitação não é formada de partes, não é divisível. A força motriz dos corpos não é ente composto de partes. A vegetação dos corpos organizados, sua vida, seu instinto, não são seres à parte, seres divisíveis. Não podeis cortar em duas a vegetação de uma rosa, a vida de um cavalo, o instinto de um cão, da mesma forma como não podeis cindir em duas uma sensação, uma negação, uma afirmação. Portanto vosso grande argumento inferido da indivisibilidade do pensamento absolutamente nada prova.

Que chamais então vossa alma? Que idéia tendes dela? Por vós mesmos, sem revelação, não podeis admitir em vós senão um poder de vós desconhecido de sentir, de pensar.

Agora dizei-me sinceramente: é esse poder de sentir e pensar o mesmo que vos faz digerir e andar? Confessais que não. Porque debalde ordenaria vosso entendimento a vosso estômago doente: Digere! Ele não digeriria. Debalde vosso ser imaterial intimaria a vossos pés gotosos: Caminhem! Eles não caminhariam.

Com razão observaram os gregos não ter o pensamento quase nenhuma influência no funcionamento dos órgãos. Admitiam para os órgãos uma alma animal. Para o pensamento uma alma mais tênue, mais sutil: um nous.

Mas eis a alma do pensamento que em milhares de ocasiões governa a alma animal. Ordena a alma pensante às mães que apreendam: as mãos apreendem. Porém não pode ordenar ao coração que bata. Ao sangue que circule. Que se forme o quilo. Tudo isso se faz independentemente dela. Aí estão as vossas duas almas metidas em maus lençóis e feitas péssimas donas de casa.

Claro que a primeira alma não existe. Não passa do movimento dos órgãos. Em guarda, homem! Tua fraca razão não é capaz de provar a existência da outra também. Não podes concebê-la senão pela fé. Tu Nasces. Vives. Ages. Pensas. Velas. Dormes. Sem saber como. Deus conferiu-te a faculdade de pensar como tudo o mais. E se não viesse ensinar-te nas idades assinaladas pela sua providência que tens uma alma imaterial e imortal, dela não terias prova alguma.

Relanceemos os interessantes sistemas arquitetados pela tua filosofia em torno dessas almas.

Um diz que a alma humana é parte da substância do próprio Deus. Outro que é parte do todo infinito. Terceiro que foi criada ab eterno. Quarto que foi feita e não criada. Outros afirmam que Deus as fabrica à proporção necessária, e que chegam no instante da cópula. Alojam-se nos animálculos seminais, exclama este. Não, diz aquele, vão habitar as trompas de Fallopio. Todos vós estais errados, intervêm aqueloutro: a alma espera seis semanas até que esteja formado o feto; então se acomoda na glândula pineal; se, porém, encontra um germe maligno, volta, a espera de melhor ocasião. A última opinião é que sua morada é no corpo caloso. É o local que lhe atribui La Peyronie. Era preciso ser primeiro cirurgião do rei de França para dispor assim do alojamento da alma. Pena é que o corpo caloso do ar. La Peyronie não tenha tido a mesma fortuna que o dono.

Diz Santo Tomás (questão septuagésima quinta e subseqüentes) que a alma é uma forma subsistante per se. Que está em todas as coisas. Que sua essência difere de sua potência. Que há três almas vegetativas: nutritiva, aumentativa, generativa. Que a memória das coisas espirituais é espiritual. Que a memória das coisas corporais é corporal. Que a alma racional é uma forma imaterial quanto às operações e material quanto ao ser. Sto. Tomás escreveu duas mil páginas dessa força e dessa clareza. É o pai da escola.

Não é menor o número de sistemas forjados sobre a maneira de sentir da alma depois de desertar do corpo por meio de que sente. Como ouvirá sem ouvidos. Como olfatará sem nariz. Como tocará sem mãos. Que corpo retomará de futuro: o que tinha aos doze ou aos oitenta anos? Como o eu, a identidade da mesma pessoa subsistirá. Como a alma de um indivíduo tornado cretino à idade de quinze anos e que cretino tenha morrido aos setenta anos retomará o fio das idéias interrompido na puberdade. Por que milagre uma alma que haja perdido uma perna na Europa e um braço na América reencontrará essa perna e esse braço. (Que, tendo se transformado em legumes, terão virado sangue de algum outro animal).

Singular é não haver nas leis do povo de Deus palavra sequer a respeito da espiritualidade e imortalidade da alma. Nem no Decálogo, nem no Levítico nem no Deuteronômio.

Em passo algum – e sobre isto não paira a menor dúvida – Moisés promete aos judeus recompensas e castigos em outra vida. Nem lhes fala da imortalidade da alma. Não lhes acena com céu nem os ameaça com inferno. Tudo é temporal.

Antes de morrer diz-lhes no Deuteronômio: “Se depois de terdes filhos e netos vós prevaricardes, sereis exterminados no país e reduzidos a número ínfimo entre as nações.

“Eu sou um deus cioso que pune a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.

“Honrai pai e mãe para que vivais longo tempo.

“Nunca vos faltará o que comer.

“Se seguirdes deuses estrangeiros sereis destruídos...

“Se obedecerdes tereis chuva na primavera como no outono. Tereis frumento, óleo e vinho. Tereis feno para os vossos animais. Para que comais e vos farteis.

“Gravai estas palavras em vossos corações, em vossas mãos, aos vossos olhos. Escrevei-as em vossas portas. Para que vossos dias se multipliquem.

“Fazei o que vos ordeno sem tirar nem pôr.

“Se se erguer um profeta e vos predisser causas prodigiosas; se a predição for verdadeira e se cumprir; e se ele vos disser: Vamos! Sigamos deuses estrangeiros...- matai-o incontinenti. E que todo o povo vos acompanhe.

“Quando o Senhor vos entregar nações estrangeiras, degolai a todos. Não poupeis um só homem. Não tenhais piedade de ninguém.

“Não comais aves impuras como a águia, o grifo, o ixiao.

“Não comais animais que ruminem e que não tenham a unha fendida, como o camelo, a lebre, o porco espinho, etc.

“Observando todos os preceitos sereis abençoados na cidade como no campo. Abençoados serão os frutos do vosso ventre, da vossa terra, dos vossos animais...

“Se não observardes todos os mandamentos e todas as cerimônias, amaldiçoados sereis na cidade como no campo... Padecereis fome, pobreza. Morrereis de miséria, de frio, de penúria, de febre. Tereis ronha, rabugem, fístula. Tereis úlceras nos joelhos e na barriga das pernas.

“O estrangeiro vos emprestará a onzena, e vós não lhe emprestareis a onzena... Por não servirdes ao Senhor.

“E comereis o fruto do vosso ventre. A carne dos vossos – filhos, etc.”.

É manifesto nada haver em todas essas promessas e ameaças que não seja temporal. Nem uma palavra sobre imortalidade da alma. Nem uma palavra sobre vida futura.

Muitos comentadores ilustres foram de parecer que Moisés estava perfeitamente avisado destes dois grandes dogmas. Provam-no com palavras de Jacó, que julgando que seu filho fora devorado pelas feras, exclamou em sua dor: “Eu acompanharei meu filho à sepultura, in infernum, ao inferno”. Isto é: eu morrerei, já que meu filho morreu.

Provam-no ainda com trechos de Isaías e Ezequiel. Porém os hebreus a quem falava Moisés não podiam ter lido Ezequiel nem Isaías. Porque Ezequiel e Isaías só viveram muitos séculos depois.

Inútil discutir quanto aos sentimentos secretos de Moisés. O fato é que nas leis públicas ele nunca falou de vida futura. Todos os castigos, todos os prêmios, restringe-os ao presente. Se conhecia a vida vindoura, por que não expôs expressamente tão importante dogma? E se não a conheceu, qual o objeto de sua missão? É o que perguntam muitas personagens ilustres. E respondem que o Mestre de Moisés e de todos os homens se reservava o direito de explicar a bom tempo aos judeus uma doutrina que eles não estavam em condições de compreender quando no deserto.

Houvesse Moisés anunciado o dogma da imortalidade da alma, não o teria combatido uma grande escola de judeus. Não teria sido autorizada pelo estado a grande escola dos saduceus. Os saduceus não teriam ocupado os primeiros cargos. De seu seio não teriam saído grandes pontífices.

Parece que só depois da fundação de Alexandria os judeus se cindiriam em três seitas: fariseus, saduceus, essênios. Ensina o historiador fariseu José no livro 13 das Antigüidades que os fariseus acreditavam na metempsicose. Criam os saduceus que a alma se extinguia com o corpo. Para os essênios – é ainda José quem o afiança – a alma era imortal; segundo eles as almas, sob forma aérea, desciam do fastígio do firmamento violentamente atraídas pelos corpos. Após a morte as almas das pessoas boas iam morar além oceano, num país onde não fazia calor nem frio, não ventava nem chovia. Lugar de todo em todo oposto era o desterro das almas ruins. Tal a teologia dos judeus.

Aquele que devia ensinar todos os homens veio condenar essas três seitas. Sem ele, porém, jamais saberíamos coisa alguma da própria alma. Porque os filósofos nunca souberam nada certo e Moisés, único verdadeiro legislador do mundo antes do nosso, Moisés que falava com Deus face a face e não o via senão pelas costas, deixou os homens em profunda ignorância dessa magna questão. Há apenas mil e setecentos anos que estamos certos da existência e imortalidade da alma.

Cícero não tinha mais que dúvidas. Seus netos aprenderam a verdade com os primeiros galileus que arribaram a Roma.

Mas antes disso, e até depois disso em todo o resto da terra onde não penetraram os apóstolos, cada um devia dizer à própria alma: Que és tu? De onde vens? Que fazes? Para onde vais? Tu és não sei que, que pensa e que sente. Mas ainda que pensasses e sentisses cem bilhões de anos, nada saberias por tuas próprias luzes, sem o auxílio de Deus.

Homem! Deus outorgou-te o entendimento para bem procederes e não para penetrares a essência das coisas por ele criadas.


 

AMIZADE

Contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Sensíveis porque um monge, um solitário, pode não ser ruim e viver sem conhecer a amizade. Virtuosas porque os maus não adjungem mais que cúmplices. Os voluptuosos careiam companheiros de devassidão. Os interesseiros reúnem sócios. Os políticos congregam partidários. O comum dos homens ociosos mantêm relações. Os príncipes têm cortesãos. Só os virtuosos possuem amigos. Cétego era cúmplice de Catilina. Mecenas era cortesão de Otávio. Mas Cícero era amigo de Ático. Que estabelece esse convênio entre duas almas ternas e honestas? As obrigações são mais ou menos intensas consoante a sensibilidade de uma e de outra e o número de serviços prestados, etc.

O entusiasmo da amizade foi mais forte entre gregos e árabes que entre nós. São admiráveis as histórias que teceram esses povos em torno deste sentimento. Não temos iguais. Somos em tudo um pouco secos.

A amizade era objeto de religião e legislação entre os gregos. Os tebanos tinham o regimento dos amantes. Magnífico regimento! Houve quem o tomasse por um regimento de sodomitas. Engano: seria tomar o acessório pelo essencial. A amizade era prescrita na Grécia pela lei e pela religião. Infelizmente tolerava-se a pederastia. Aliás: toleravam-na os costumes. É preciso não imputar à lei abusos vergonhosos. Voltaremos ao assunto.


 

AMOR

Amor omnibus idem (2). Cumpre recorrermos à imagem. O amor é a estopa da natureza bordada pela imaginação. Quereis ter uma idéia do amor? Vede os pardais do vosso jardim. Vede vossos pombos. Contemplai o touro que levam à novilha. Admirai aquele soberbo cavalo que dois de vossos camaradas conduzem à égua que passiva o espera e arreda a cauda para recebê-lo. Observai como seus olhos chamejam. Ouvi seus relinchos. Admirai aqueles saltos, aquelas curvetas, aquelas orelhas em pé, aquela boca que Se abre com ligeiras convulsões, aquelas narinas aflantes bafejando inflamadamente, aquelas crinas que se empinam e esvoaçam, o movimento imperioso com que se lança sobre o objeto que lhe destinou a natureza.

Mas não os invejeis. Pensai nas vantagens da espécie humana. Que contrabalançam força, beleza, ligeireza, impetuosidade todos os predicados de que a natureza dotou os irracionais.

Há animais que não conhecem o gozo. Carecem desse prazer os peixes escamados. A fêmea lança sobre a vasa milhões de ovas e o macho que as encontra fecunda-as com o sêmen sem preocupar-se com a dona.

A maioria dos animais que se acasalam não experimenta prazer por mais que um único sentido. Satisfeito o apetite está tudo acabado. Nenhum animal senão vós conhece os afagos. Todo o vosso corpo é sensível. Vossos lábios sobre tudo experimentam uma volúpia inexaurível – prazer exclusivo da vossa espécie. Enfim podeis amar em qualquer tempo, enquanto os animais só o podem em épocas determinadas. Se refletirdes nestas preeminências direis com, o conde de Rochester: “O amor, em um país de ateus, faria adorar a Divindade”

Como recebeu o dom de aperfeiçoar tudo o que lhe concedeu a natureza, o homem aperfeiçoou o amor. A higiene, o cuidado com o próprio corpo, tornando a pele mais delicada, aumentam o prazer do tato. O zelo da própria saúde faz mais sensíveis os órgãos da volúpia.

Todos os outros sentimentos de presto se amalgamam com o amor como metais em fusão com o ouro.

Vêem reforçá-lo a amizade, a estima. São outros elos de união os dotes do corpo e do espírito.

Nam facit ipsa suis interdum famina factis,
morigerisque modis, et mundo corpore cultu,
ut facile insuescat secum vir degere vitam.

(Lucrécio, liv. 4).

Principalmente o amor próprio estreita esses liames. Palmeamo-nos a própria escolha, e as ilusões em chusma são ornamentos dessa obra de que a natureza lançou os alicerces.

Eis o que possuís de superior aos animais. Se, porém, fruís prazeres que eles desconhecem, também quantos sofrimentos padeceis de que eles nem têm idéia! O que há de horrível para vós é haver a natureza em três quartos da terra envenenado os prazeres do amor e as fontes da vida com um mal tremendo, a que só o homem está sujeito e que lhe infecciona os órgãos da geração.

Esta peste não é como tantas outras doenças filhas de nossos excessos. Não foi a dissolução que a introduziu no mundo. As Frinéias, as Laíses, as Floras, as Messalinas não foram vítimas dela. Nasceu em ilhas onde os homens viviam na inocência e de lá propagou pelo mundo antigo.

Se alguma vez se pôde acusar a natureza de desamar a própria obra, de contradizer o próprio plano, de tramar contra os próprios fins, foi então. Não tínhamos o melhor dos mundos possíveis? Se César, Antônio, Otávio não foram vítimas desse mal, por que o foi Francisco I? Não, direis, tudo foi disposto da melhor forma possível. Quero crer. Mas é difícil.


 

AMOR PRÓPRIO

Um mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte:

— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?

— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. – E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.

Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.

Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país.

— Que renúncia de si próprio! – dizia um dos espectadores.

— Renúncia de mim próprio? – retorquiu o faquir. – Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.

Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações – na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável.

Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos – E cumpre ocultá-lo.


 

AMOR SOCRÁTICO

Por que motivo um vício que se fosse geral extinguiria o gênero humano, atentado infame à natureza, é contudo tão natural ? Parece o último degrau da corrupção refletida – Entanto manieta de cotio adolescentes que nem sequer tiveram tempo de ser corrompidos. Entra corações tenros que não conhecem nem a ambição, nem a fraude, nem a sede de riqueza. É a juventude cega que, por instinto mal definido, se precipita na depravação apenas dobra a infância.

Bem cedo se manifesta a inclinação recíproca dos sexos. Mas, diga-se o que se disser das mulheres africanas e da Ásia meridional, essa inclinação é geralmente muito mais forte no homem que na mulher. É uma lei que a natureza ditou aos animais. É sempre o macho que ataca a fêmea.

Sentindo essa força que a natureza começa a insuflar-lhes e não encontrando o objeto natural do instinto, atiram-se os jovens machos da nossa espécie sobre o que melhor se lhe semelhe. Não raro, pela frescura da tez, pelo lustre das cores, pela doçura dos olhos, durante dois ou três anos um jovem parece-se a uma rapariga. Se o amamos, é porque a natureza se equivoca. Amamos nele o sexo a que evoca sua beleza. Até que, dissipando-se a semelhança, a natureza se corrige

Citraque juventam
oetatis breve ver et primos carpere flores(3)

Assaz sabido é ser esse equívoco da natureza muito mais comum nos climas suaves que nos gelos do norte. Porque nos climas mais doces o sangue é mais quente e mais freqüente a ocasião. Daí o que não se considera mais que uma fraqueza no jovem Alcibíades ser uma abominação num marinheiro holandês ou num vivandeiro moscovita.

Não posso admitir que, como se pretende, tenham os gregos autorizado semelhante licenciosidade. Cita-se o legislador Sólon por haver dito em dois maus versos:

Algum dia inda amarás
um glabro e belo rapaz.

Mas seria Sólon legislador quando escreveu essa ridícula parelha? Ainda era jovem. E quando o libertino se fez sábio, não iria incluir .tamanha infâmia nas leis da sua república. É como se se acusasse Teodoro de Besis de ter pregado o homossexualismo em sua igreja por haver, na juventude, dedicado versos ao jovem Cândido e dito:

Amplector hunc et illam.

Abusa-se do texto de Plutarco, que, em suas tagarelices no Diálogo do Amor, faz dizer a uma personagem que as mulheres não são dignas do amor verdadeiro. Outra personagem, porém, sustenta devidamente o partido das mulheres.

Certo é, tanto quanto o pode ser a ciência da antigüidade, que o amor socrático não era um amor infame. A palavra amor foi que enganou. O que se chamavam os amantes de um jovem era nem mais nem menos o que são hoje os infantes de companhia dos nossos príncipes, os jovens companheiros de educação de um menino distinto, participando dos mesmos estudos, dos mesmos exercícios militares – instituição guerreira e santa de que se abusou como das festas noturnas e das orgias.

A tropa dos amantes instituída por Laio era um corpo invencível de jovens guerreiros unidos pelo juramento de dar a vida uns pelos outros. Foi o que de mais belo possuiu a disciplina antiga.

Asseveram Sexto Empírico e outros que o homossexualismo tinha guarida nas leis da Pérsia. Que citem o texto da lei. Que mostrem o código dos persas. Mas ainda que o provem eu não acreditarei – Direi que é mentira. Porque não seria possível, não é da natureza humana elaborar uma lei que contradiz e ultraja a natureza. Lei que aniquilaria o gênero humano se fosse literalmente observada. Práticas vergonhosas toleradas pelas leis do país! Sexto Empírico, que duvidava de tudo, devia duvidar dessa jurisprudência. Se vivesse em nossos dias e visse dois ou três jesuítas abusarem de alguns escolares, teria direito de concluir ser tal depravação permitida pelas constituições de Inácio de Loiola?

Era tão comum o amor entre rapazes em Roma que ninguém pensava em puni-lo. Otávio Augusto, esse assassino devasso e poltrão que teve o desplante de exilar Ovídio, achou muito natural que Virgílio cantasse Aleixo e Horácio escrevesse odes a Ligurino. Não obstante, sempre subsistiu a lei Scantínia, preventiva da pederastia. Repô-la em vigor o imperador Filipe, que expulsou de Roma os meninos que se dedicavam ao ofício. Enfim não creio que em tempo algum nação civilizada haja lavrado leis contra os próprios costumes.


 

ANJO

Enviado em grego. Baldio será acrescentar que os persas tinham peris, os hebreu malakhs, os gregos seus daimones. Mas talvez nos aclare saber que uma das primeiras idéias do homem foi interpor seres intermediários entre a Divindade e nós. São os demônios, os gênios ideados pela antigüidade. O homem sempre criou os deuses à sua imagem. Viam-se os príncipes transmitir suas ordens por mensageiros: então a Divindade também tinha seus correios. Mercúrio, Isis, eram mensageiros, arautos.

Os hebreus – povo conduzido pela própria Divindade – a princípio não deram nomes aos anjos que por fim Deus condescendia em enviar-lhes. Tomaram de empréstimo os nomes que lhes davam os caldeus, quando a nação judaica esteve cativa em Babilônia. Miguel e Gabriel são referidos pela primeira vez por Daniel, escravo entre aqueles povos. O judeu Tobias, que vivia em Nínive, conheceu o anjo Rafael, que viajou com seu filho para ajudá-lo a reaver certa soma que lhe devia o judeu Gabael.

Não se faz nas leis dos judeus, isto é, o Levítico e o Deuteronômio, a menor menção à existência dos anjos. Muito menos ao seu culto. Tão pouco criam em anjos os saduceus.

Nas histórias judaicas, porém, os anjos são a basto falados. Eram corporais e tinham asas nas costas, como imaginaram os antigos que tivesse Mercúrio nos calcanhares – Às vezes escondiam-nas sob as vestes. Como não teriam corpo se bebiam e comiam? Se os habitantes de Sodoma quiseram cometer o pecado da pederastia com os anjos que foram à casa de Ló?

Segundo Ben Memon, admitia a antiga tradição judaica dez graus, dez ordens de anjos – Primeira: cheios acodesh – puros, santos. Segunda: ofamim – rápidos Terceira: oralim – fortes. Quarta: chasmalim – flamas. Quinta: seraphim – centelhas. Sexta: malakhim – mensageiros, deputados. Sétima: eloim – deuses ou juizes. Oitava: ben eloim – filhos dos deuses. Nona: cherubim – imagens. Décima: ychim – animados.

Não consta nos livros de Moisés a história da queda dos anjos. Seu primeiro testemunho dá-no-lo o profeta Isaías, que, apostrofando o rei, exclama: “Que é feito do exator das tribos? Os pinheiros e cedros regozijam-se com sua queda. Como caíste do céu, ó Helel, estrela da manhã?” (4). Traduziu-se Helel pela palavra latina Lúcifer. Depois, em sentido alegórico, deu-se o nome de Lúcifer ao príncipe dos anjos que atiçaram a guerra no céu. Finalmente o termo, que significa fósforo e aurora, tornou-se nome do diabo.

A religião cristã funda-se na queda dos anjos. Os que se revoltaram foram precipitados das esferas que habitavam ao inferno, no centro da terra, e transmudaram-se em diabos. Um diabo transfigurado em serpente tentou Eva e desgraçou o gênero humano. Jesus veio resgatar os homens e vencer o diabo, que ainda nos tenta. Essa tradição fundamental, contudo, só a refere o livro apócrifo de Enoque. E ainda assim muito outra da tradição aceita.

Não trepida Santo Agostinho (carta centésima nona) em reportar tanto aos anjos bons como aos anjos maus corpos livres e ágeis. Reduziu o papa Gregório II a nove coros, nove hierarquias ou ordens os dez coros de anjos admitidos pelos judeus. São eles: serafins, querubins, tronos, dominações, virtudes, potências, arcanjos e finalmente os anjos, que emprestam o nome às oito outras hierarquias.

Tinham os judeus no templo dois querubins, cada um com duas cabeças – uma de boi e outra de águia – e seis asas. Representamo-los hoje sob a forma de uma cabeça solta com duas asinhas abaixo das orelhas.

Pintamos os anjos e os arcanjos sob a figura de jovens com um par de asas nas costas. Quanto a tronos e dominações, ainda ninguém se lembrou de retratá-los.

Diz Sto. Tomás (questão centésima oitava, artigo 2o.) estarem os tronos tão próximos de Deus quanto os serafins, pois é sobre eles que se acha sentada a Divindade. Scot contou um bilhão de anjos. Tendo o antigo mito dos gênios bons e maus passado do Oriente à Grécia e Roma, consagramo-lo admitindo para cada pessoa um anjo bom e outro mau. Um ajuda-a e o outro molesta-a do nascimento, à morte. Ainda não se estabeleceu, contudo, se esses anjos bons e maus mudam continuamente de posto ou são rendidos por outros. Consulte-se sobre o ponto a Suma de Sto. Tomás

Outro ponto que tem dado pano a muita controvérsia é o lugar onde se conjuntariam, os anjos – no ar, no vácuo ou nos astros? Não aprouve a Deus pôr-nos a par dessas questões.


 

ANTROPÓFAGOS

Falamos do amor. É duro passar de pessoas que se beijam a pessoas que se comem. Não resta dúvida terem existido antropófagos. Encontramo-los na América, onde é possível que ainda os haja. Na antigüidade não foram os ciclopes os únicos a se alimentarem às vezes de carne humana. Conta Juvenal que entre os egípcios – esse povo tão sábio, tão famigerado por suas leis, esse povo tão piedoso que adorava crocodilos e cebolas – os tentiritas comeram certa vez um inimigo que lhes caiu nas mãos. Não o diz de outiva: estava no Egito, porto de Têntiro, quando se cometeu o crime quase aos seus olhos. E lembra, ao relatar o caso, os gascões e saguntinos, que outrora se alimentaram de carne dos próprios compatriotas.

Em 1725 trouxeram-se quatro selvagens do Mississipi a Fontainebleau – Tive a honra de falar-lhes. Havia entre eles uma dama do país, a quem perguntei se havia comido gente. Respondeu-me muito singelamente que sim. Fiquei um tanto escandalizado, e ela desculpou-se dizendo ser preferível comer o inimigo, depois de morto, a deixá-lo servir de pasto às feras; que demais o vencedor merecia a preferência. Nós outros, em batalha campal ou não, por fas ou por nefas matamos nossos vizinhos e. pela mais vil recompensa pomos em função o engenho da morte. Aqui é que está o horror. Aqui é que está o crime – Que importa que depois de morto se seja comido por um soldado, por um urubu ou por um cão?

Respeitamos mais os mortos que os vivos. Cumpria respeitar uns e outros. Bem fazem as nações que chamamos civilizadas em não meter no espeto os inimigos vencidos. Porque se fosse permitido comer os vizinhos, começariam a comer-se entre si os próprios compatriotas, o que seria grande desdouro para as virtudes sociais. Mas as nações que hoje são civilizadas não o foram sempre. Todas elas foram muito tempo selvagens. E com o sem número de revoluções de que tem sido palco o mundo, o gênero humano foi ora mais ora menos numeroso. Sucedeu com os homens o que hoje sucede com os elefantes, leões, tigres, cujas espécies minoraram consideravelmente. Quando uma região estava ainda escassamente povoada de seres humanos e as artes eram rudimentares, os homens se dedicavam à caça. O hábito de se alimentarem do que matavam facilmente levou-os a tratar os inimigos como tratavam os cervos e javalis. A superstição fez imolar vítimas humanas. A necessidade as fez comer.

Qual o crime maior: reunir-se religiosamente para cravar em honra da Divindade uma faca no coração de uma menina enfitada, ou comer um bandido morto em legítima defesa?

No entanto há muito mais exemplos de meninas e meninos sacrificados que de meninas e meninos comidos. Quase todas as nações conhecidas sacrificaram crianças. Os judeus imolavam-nas. É o que se chamava o anátema um verdadeiro sacrifício. Ordena-se no capítulo 27 do Levítico não se pouparem as almas viventes prometidas, porém em ponto algum se prescreve que sejam comidas. Isto era outro caso: tratava-se exclusivamente de uma ameaça. Como vimos, disse Moisés aos judeus que caso não observassem as cerimônias, não só teriam ronha, como as mães comeriam os próprios filhos. Positivamente no tempo de Ezequiel os judeus deviam comer carne humana, pois diz esse profeta no capítulo 39 que Deus os faria comer não apenas os cavalos dos seus inimigos, mas ainda os cavaleiros e os outros guerreiros. É positivo. De fato, por que não teriam os judeus sido antropófagos? Seria a última coisa a faltar ao povo de Deus para ser a mais abominável nação da terra.

Li nas anedotas da história da Inglaterra do tempo de Cromwell que uma sebeira de Dublin vendia excelentes candeias feitas com gordura de inglês. Certa vez queixou-se-lhe um de seus fregueses de que as candeias já não eram tão boas como antes. – Ah, – disse ela – é que este mês faltaram ingleses. – Pergunto eu: quem o mais culpado: quem passava os ingleses à faca ou a mulher que fazia velas com sua banha?


 

APIS

Era o boi Apis adorado em Menfis como deus, como símbolo ou como boi? É de crer que os fanáticos nele vissem um deus, os cultos mero símbolo e que o vulgo ignorante adorasse o boi. Terá Cambises feito bem, quando conquistou o Egito, em matar esse boi com as próprias mãos? Por que não? Com isso fez ver aos imbecis que se podia passar seu deus à faca sem que a natureza se armasse para vingar o sacrilégio.

Incensaram-se muito os egípcios. Não sei de povo mais desprezível. Encarrapatou-se-lhes sempre no caráter e no governo um vício radical que os fez um povo de eternos e vis escravos. Que tenham, em épocas imemoriais, conquistado a terra. Na clareira dos tempos históricos, porém, avassalaram-nos quantos povos quiseram dar-se ao trabalho – assírios, persas, gregos, romanos, árabes, mamelucos, turcos, enfim, toda gente, salvo os cruzados, que não lhes conheciam a fraqueza. Foi a milícia dos mamelucos que venceu os franceses. Não há talvez mais que duas coisas sofríveis nessa nação: primeiro, que adorando um boi nunca constrangeram quem adorasse um macaco a mudar de religião; segundo, terem inventado a chocadeira artificial.

Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são monumentos de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga toda uma nação, sem o que essas vis massas não teriam sido levantadas. Que finalidade tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia de algum príncipe, de algum governador, de um intendente qualquer, porque ao cabo de mil anos sua alma devia reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição dos corpos, por que lhes extraiam os miolos antes de embalsamá-los? Será que os egípcios deviam ressuscitar sem cérebro?


 

APOCALIPSE

Justino o Mártir, que escreveu pelo ano de 170(5) da nossa era, é quem primeiro fala no Apocalipse. Perfilha-o ao apóstolo João o Evangelista. Perguntando-lhe o judeu Trifão se não cria que Jerusalém devesse ser algum dia restaurada, respondeu Justino que sim, como o acreditavam todos os cristãos que pensavam com acerto. “Houve entre nós” – diz – “uma personagem de nome João, um dos doze apóstolos de Jesus, o qual predisse passarão os fiéis mil anos em Jerusalém”.

Foi opinião por muito tempo aceita pelos cristãos a de um reinado de mil anos. Esse período desfrutava de grande crédito entre os gentios. Passados mil anos retomavam os corpos as almas entre os egípcios. O mesmo espaço de tempo, et mille per annos, penavam as almas no purgatório de Virgílio. A nova Jerusalém de mil anos teria doze portas, em memória dos doze apóstolos. A forma seria quadrada. Comprimento, largura e altura seriam de doze mil estádios – quinhentas léguas – de maneira que as casas teriam também quinhentas léguas de alto. Haveria de ser bem desagradável morar no último andar. Mas enfim é o que diz o Apocalipse, capítulo 21.

Se foi Justino o primeiro em atribuir o Apocalipse a S. João, personalidades houve que lhe refugaram o testemunho, atendendo a que no mesmo diálogo com o judeu Trifão diz ele que, consoante o relato dos apóstolos, Jesus Cristo, descendo ao Jordão, ferveu-lhe e inflamou-lhe as águas. O que não consta em nenhum dos escritos dos apóstolos.

O mesmo S. Justino não hesita em citar os oráculos das sibilas. E pretende ter visto restos das celas em que, no tempo de Herodes, foram encerrados no farol de Alexandria os setenta e dois intérpretes. O testemunho de um homem que teve a má fortuna de ver tais celas parece indicar mas é que devia ser metido nelas.

Posteriormente Sto. Ireneu, que também acreditava no reinado de mil anos, diz ter sabido de um velho que o Apocalipse era de autoria de S. João(6). Mas já se reprochou a Sto. Ireneu o haver escrito não deverem existir senão quatro Evangelhos pela só razão de ter o mundo apenas quatro partes, quatro serem os ventos cardeais e não ter Ezequiel visto mais que quatro animais. Chama ele a isso demonstração. Em singularidade, a demonstração do ar. Ireneu não fica atrás da visão do sr. Justino.

Clemente de Alexandria, nas Electa, só se refere a um Apocalipse de S. Pedro, a que se reportava extraordinária monta. Tertuliano, partidário ferrenho do reinado de mil anos, não se contenta em afirmar que S. João predisse a ressurreição e o reinado milenário na cidade de Jerusalém: quer também que esta Jerusalém já se começava a formar no ar; que todos os cristãos da Palestina, e até os pagãos, a tinham visto durante quarenta dias sucessivos às últimas horas da noite. Infelizmente, porém, mal despontava o dia a cidade se esvaecia.

Em seu prefácio sobre o Evangelho de S. João e nas Homilias, cita Orígenes os oráculos do Apocalipse, mas igualmente cita os oráculos das sibilas. Já S. Dinis de Alexandria, que escreveu por meados do século III, diz em um de seus fragmentos conservados por Eusébio (7) que a quase totalidade dos eruditos rejeitava por uma boca o Apocalipse como livro destituído de razão. Que esse livro não o escreveu S. João, e sim um tal Cerinto, que se servira de um grande nome para dar mais peso a suas fantasias

O concílio de Laodicéia (360) não recenseou o Apocalipse entre os livros canônicos. Singular é haver Laodicéia repulsado um tesouro que lhe fora enviado expressamente, e que também o refutasse o bispo de Éfeso, cidade em que se descobrira, enterrado, esse livro de S. João.

Para todos S. João ainda padejava na sepultura, fazendo a terra levantar e baixar continuamente. Entanto esses mesmos senhores certos de que S. João não estava de todo morto, também estavam certos de que ele não escrevera o Apocalipse. Os advogados do reinado de mil anos, não obstante, mantiveram-se irremovíveis em sua opinião. Sulpício Severo (História Sagrada, livro 9) chama insensatos e ímpios aos que não acatavam o Apocalipse. Afinal, depois de muita dúvida, muita oposição de concílio a concílio prevaleceu o parecer de Sulpício Severo. Deslindado o mistério, decidiu a igreja ser o Apocalipse incontestavelmente de S. João. Não há, pois, apelar.

Atribuíram as comunhões religiosas cada qual a si as profecias desse livro. Nele viram os ingleses as revoluções da Grã Bretanha. Os luteranos, as convulsões da Alemanha. Os reformados da França, o reinado de Carlos IX e a regência de Catarina de Médicis. Todos tiveram igualmente razão.

Bossuet e Newton comentaram o Apocalipse. As declamações eloqüentes de um e as sublimes descobertas de outro foram-lhes, todavia, muito mais honrosas que seus comentários.


 

ATEU, ATEÍSMO

Antigamente, quem quer que tivesse um segredo numa arte corria o risco de passar por bruxo. Toda seita nova era acusada de degolar crianças em seus mistérios. Todo filósofo que se desgarrasse da jíria da escola era criminado de ateísmo pelos fanáticos e espertalhões. E condenado pelos cretinos.

Anaxágoras tem o atrevimento de pretender não ser o sol conduzido por Apolo montado numa quadriga: chamam-lhe ateu e o obrigam a expatriar-se.

Aristóteles é culpado de ateísmo por um sacerdote. Não podendo fazer punir o caluniador, retira-se para Calcis. Mas a morte de Sócrates é o que de mais odioso tem a história da Grécia

Quem primeiro induziu os atenienses a verem um ateu em Sócrates foi Aristófanes, que os comentadores admiram por ter sido grego, esquecendo-lhes que Sócrates também o era.

Esse poeta cômico, que não foi nem cômico nem poeta, não seria admitido entre nós a representar farsas na feira de Saint-Laurent. Parece-me muito mais vil e desprezível do que o despinta Plutarco. Eis o que diz o sábio Plutarco de tal farsista: “A linguagem de Aristófanes denuncia o miserável charlatão que é. São as graçolas mais canalhas e repugnantes. Não chega a agradar o povo e as pessoas de discernimento e pundonor não o toleram. Não há quem suporte sua arrogância, e sua malignidade é intolerável às pessoas de bem” (8).

Aí está – para dizê-lo de passo – o Tabarin que a sra. Dacier tem o ousio de admirar. Eis o homem que de longe confeccionou o veneno com que juizes infames assassinaram o homem mais virtuoso da Grécia.

Curtidores, sapateiros e costureirinhas de Atenas aplaudiram uma comédia em que se representava Sócrates suspenso num cesto proclamando que não existiam deuses e jactando-se de haver roubado uma capa enquanto ensinava filosofia. Um povo cujo mau governo permitia tão infames licenças bem merecia o fim que teve – ser vassalo dos romanos e hoje dos turcos.

Demos um salto à antigüidade. Detenhamo-nos na república romana. Os romanos, muito mais sábios que os gregos, nunca perseguiram filósofos por motivo de opiniões. A mesma isenção não exalça os povos bárbaros que medraram por sobre os destroços do império romano. Desde que o imperador Frederico II questiona com o papa, que o acusam de ateísmo e de ter escrito com seu chanceler de Vinéia o livro Dos Três Impostores.

Manifesta-se o nosso grande chanceler do Hospital contrário às perseguições: é quanto basta para levar a tacha de ateu. Homo doctus, sed verus atheos. Um jesuíta que se acha tão abaixo de Aristófanes quanto Aristófanes o está de Homero, um miserável cujo nome se tornou ridículo entre os próprios fanáticos, em uma palavra, o jesuíta Garasse, em toda gente vê ateístas. É assim que chama a todos aqueles contra quem investe. De ateísta acoima ele Teodoro de Besis. Foi ele quem induziu em erro a respeito de Vanini.

O desgraçado fim de Vanini não nos move a indignação nem a piedade como o de Sócrates porque Vanini não passava de um pedante estrangeiro sem mérito nenhum. Mas a verdade é que não era ateu, como se pensava. Muito pelo contrário

Tratava-se de um pobre padre napolitano, pregador e teólogo de seu mister, polemista apaixonado das qüididades e dos universais, et utrum chimera bombinans in vacuo possit comedere secundas intentiones. Não tinha, porém, a veia do ateísmo. Sua noção de Deus era da mais sã e acatada teologia. “Deus é o princípio e o fim, pai de um e de outro, prescindindo de um e de outro. Eterno sem estar no tempo. Onipresente sem se achar em parte alguma. Não tem passado nem futuro. Está em tudo e fora de tudo, tudo governando, tudo havendo criado – Imutável, infinito, imparticular. Seu poder é sua vontade, etc.”

Vangloriava-se Vanini de renovar este belo conceito de Platão abraçado por Averrois: que Deus criou uma cadeia graduada de seres cujo último anel se ata ao seu trono eterno. Idéia em verdade mais sublime que veraz, mas tão distante do ateísmo quanto o ser do não ser.

Viajou com o fito em dinheiro e polêmicas – infelizmente, porém, a senda da disputa conduz a polo contrário ao da riqueza. Granjeiam-se tantos inimigos irreconciliáveis quantos os sábios ou pedantes com quem se terça a palavra. Nem foi outra a origem da desdita de Vanini – Custaram-lhe seu calor e grosseria na discussão o ódio de não poucos teólogos, um dos quais – Francon ou Franconi, amigo de seus inimigos – o acusou de ateu e de pregar o ateísmo.

Teve esse Francon ou Franconi, esteado por algumas testemunhas, a barbárie de sustentar na acareação o que tivera o descaramento de falsear. Interrogado no banco dos réus acerca do que pensava de Deus, respondeu Vanini adorar com a igreja um Deus em três pessoas. Tomando uma palha do chão: “Basta isto” – disse “para provar que existe um criador”. Pronunciou então magnífico discurso sobre a vegetação e o movimento e sobre a necessidade de um Ser Supremo, sem o qual não existiria nem movimento nem vegetação.

O presidente Grammont, que então se achava em Tolosa, transcreve esse discurso na sua Histoire de France, hoje tão esquecida. Por inconceptível prejuízo pretende o mesmo Grammont que Vanini dissesse tudo isso mais por vaidade ou medo que por persuasão interior

A que arrimar o julgamento temerário e atroz do presidente Grammont? Patente é que a resposta de Vanini o absolvia da criminação de ateísmo. Que sucedeu, porém! Esse caipora abeberara-se também de medicina. Encontraram em sua casa um sapo que ele conservava vivo em um vaso com água: foi a conta para ser tachado de feiticeiro. Disseram que o sapo era o seu deus. Emprestaram sentido ímpio a diversos passos de seus livros – o que é facílimo e muito comum – tomando objeções por respostas, interpretando com malícia uma ou outra frase equívoca, envenenando expressões inocentes. Por fim a facção que o perseguia extorquiu dos juizes a sentença que o condenou à morte.

Para justificar tal crime, havia-se mister fazer pesarem sobre esse infeliz as calúnias mais medonhas. O menor e muito menor Mersenne levou a demência a ponto de imprimir que Vanini partira de Nápoles com doze apóstolos para converter o mundo ao ateísmo. Santa ingenuidade. Como poderia ter um pobre padre doze homens a seu dispor? Como poderia convencer doze napolitanos a viajarem dispendiosamente para propagar aos quatro ventos uma doutrina abominável e revoltante – com risco de vida? Seria um rei bastante poderoso para pagar doze pregadores de ateísmo? Ninguém, antes de Mersenne, aventurara semelhante absurdo. Depois dele, porém, toda gente se pôs a estribilhá-lo, com ele envenenando jornais e dicionários históricos – E o mundo, que gosta do extraordinário, aceitou à carga cerrada essa fábula.

O próprio Bayle, nas suas Pensées Diverses, fala de Vanini como de um ateu – Serve-se desse exemplo para estribar seu paradoxo de poder subsistir uma sociedade de ateus; afirma que Vanini era um homem de costumes rigorosamente regrados, e ter sido o mártir de sua opinião filosófica. Engana-se tanto num ponto como noutro. Depreende-se dos Dialogues de Vanini, escritos à imitação de Erasmo, ter ele tido uma amante de nome Isabelle. Era livre no escrever como no viver. Porém não ateu.

Um século após sua morte o sábio La Croze e aquele que adotou o nome de Philalèthe (9) empreenderam justificá-lo. Mas como ninguém se interessa pela memória de um infeliz napolitano, que para agravo de seus pecados era péssimo escritor, passaram quase despercebidas essas apologias.

O jesuíta Hardouin, mais culto que Garasse e não menos temerário, denuncia como ateus no livro Athei Detecti os Descartes, Arnauld, Pascal, Nicole e Malebranche. Que, porém, felizmente não tiveram a mesma sorte que Vanini.

Mas voltemos à questão de moral aventada por Bayle: se seria possível uma sociedade de ateus. Sublinhemos à primeira ser grande a contradição em torno do problema. Os que mais indignadamente se levantaram contra a opinião de Bayle, os que com maior carga de injúrias lhe desmentiram a possibilidade de uma sociedade de ateus, com o mesmo aferro sustentaram mais tarde ser o ateísmo a religião do governo da China.

Positivamente enganaram-se no que respeita ao governo chinês. Se houvessem lido os éditos desse vasto país teriam visto não serem outra coisa senão sermões, sermões repletos de referências ao Ser Supremo, guia, vingador e premiador.

Não se enganaram menos quanto à impossibilidade de uma sociedade atéia. E não sei como pôde o sr. Bayle esquecer um exemplo conclusivo que talvez valesse a vitória a sua causa.

Por que impossível uma sociedade atéia? Porque sem um freio os homens não poderiam viver em harmonia? Por nada poderem as leis contra os crimes secretos? Por ser preciso um Deus vingador que puna, neste ou em outro mundo, os malfeitores escapos à justiça humana!

Ilusão. Os judeus, muito embora não ensinassem as leis de Moisés nenhuma vida por vir, não ameaçassem castigos depois da morte, não ensinassem aos primeiros judeus a imortalidade da alma, os judeus, longe de ser ateus, longe de contar subtrair-se à vingança divina, foram os mais religiosos dos homens. Não somente criam na existência de um Deus eterno, como o acreditavam constantemente em sua presença. Temiam ser castigados na pessoa de si mesmos, da mulher, dos filhos, na posteridade, até a quarta geração. E esse freio era poderosíssimo.

Entre os gentios, porém, muitas seitas houve desempeçadas de quaisquer ferropéias. Os cépticos duvidavam de tudo – De tudo inopinavam os acadêmicos. Estavam persuadidos os epicuristas de que a divindade não metia a colher torta nos negócios dos homens, e em verdade não admitiam deuses de espécie alguma. Abrigavam a convicção de não ser a alma de natureza substancial, mas rasamente uma faculdade que nasce e morre com o corpo. Não tinham, por conseguinte, outras rédeas além da moral e da honra. Verdadeiros ateus eram os senadores e cavaleiros romanos. Para quem não os temem e deles nada esperam os deuses não existem – Era pois o senado romano um congresso de ateus contemporâneos de César e Cícero.

Na oração pró Cluêncio diz o grande orador ao senado reunido: “Que mal lhe pode trazer a morte? Nós impugnamos todas as fábulas ineptas dos infernos. Que então lhe tirou a morte? Nada mais que a sensação da dor”.

Querendo salvar a vida de seu amigo Catilina perante o mesmo Cícero, não lhe objeta César que condenar à morte não é punir, que a morte não é nada, senão apenas o fim dos sofrimentos, momento mais feliz do que fatal? E não reconheceram Cícero e todo o senado a justeza de tais razões? Não há negá-lo. Vencedores e legisladores do mundo conhecido formavam uma sociedade de homens destemerosos dos deuses – verdadeiros ateus, portanto.

Pondera Bayle a seguir se não é a idolatria mais perigosa que o ateísmo, se crime maior não será nutrir sobre a divindade conceitos indignos que dela descrer. E opina com Plutarco ser preferível não ter de Deus concepção nenhuma a te-la má – Em que pese a Plutarco, porém, inegável é ter sido infinitamente preferível para os gregos temer Ceres, Netuno, Júpiter, a não temer coisa alguma. Irrecusavelmente é necessária a santidade dos juramentos, e antes fiar-se em quem creia que um falso juramento será punido do que em quem pense poder jurar falso impunemente. Não há dúvida ser preferível, em uma cidade policiada, ter uma religião ainda que má a não ter nenhuma.

Parece-me que Bayle devia antes examinar qual o mais nocivo, se o fanatismo, se o ateísmo. O fanatismo é certamente mil vezes mais funesto, porquanto o ateísmo não inspira, como ele, paixão sanguinária. O ateísmo não se opõe ao crime: o fanatismo o atiça. Suponhamos com o autor do Commentarium Rerum Gallicarum fosse ateu o chanceler do Hospital. Não elaborou ele senão leis sábias, não aconselhou senão moderação e concórdia: os fanáticos cometeram as mortandades de São Bartolomeu. Havia-se Hobbes por ateu: entanto viveu tranqüila e inocentemente. Os fanáticos de seu tempo ensanguentaram a Inglaterra, Escócia e Irlanda. Spinoza, sobre ser ateu, ensinava o ateísmo: parece contudo não ter sido ele quem participou do assassínio jurídico de Barneveldt, quem fez em traçalhos os irmãos de Witt e os comeu à grelha.

O mais das vezes são os ateus sábios audazes e tresmalhados que raciocinam mal e que, não compreendendo a criação, a origem do mal e outras dificuldades, recorrem à hipótese da eternidade das coisas e da necessidade.

Aos ambiciosos, aos voluptuosos, falta-lhes tempo para raciocinar e abraçar maus sistemas. Têm mais que fazer que comparar Lucrécio com Sócrates –

É o que sucede conosco.

O mesmo não se dava com o senado romano, composto na quase totalidade de ateus que ateus eram teórica e praticamente. Isto é: que não acreditavam nem na Providência nem na vida futura. Era uma congregação de filósofos, de voluptuosos e ambiciosos, todos nocentissimos e que perderam a república.

Não me agradaria o depender de um príncipe ateu cujo interesse fosse mandar-me pilar num morteiro. Não quereria, se fosse soberano, ter de tratar com cortesãos ateus cujo interesse fosse envenenar-me: ser-me-ia necessário estar tomando ao acaso contravenenos todos os dias. É pois absolutamente imprescindível aos príncipes e aos povos o estar profundamente gravada nos espíritos a idéia de um Ser Supremo, criador, condutor, remunerador e vingador.

Há povos ateus, assevera Bayle em suas Pensées sur les Comètes. Os cafres, hotentotes, tupinambás e muitas outras pequenas nações não têm Deus. É possível. Mas isso não quer dizer que neguem Deus não o negam nem o afirmam, porque nunca ouviram falar em tal. Dizei-lhes que Deus existe, e cre-lo-ão facilmente. Dizei-lhes que tudo se faz pela natureza das coisas, e cre-lo-âo da mesma forma – Pretender que sejam ateus é o mesmo que pretender que sejam anticartesistas: não são nem contra nem a favor de Descartes. São verdadeiras crianças. Uma criança não é atéia nem teista: não é nada.

Que concluir de tudo isso? Que o ateísmo é um monstro perniciosíssimo para os que governam, e igualmente para os estadistas em disposição, ainda que cidadãos inocentes, pois podem um dia ou outro ser elevados à boléia do poder. Que, se não é tão funesto como o fanatismo, é quase sempre fatal à virtude. Ajuntemos principalmente que hoje em dia há menos ateus que nunca, depois que os filósofos reconheceram não haver nenhum ser vegetante sem germe, nenhum germe sem desígnio etc., e que o trigo não nasce da podridão.

Geômetras não filosóficos enjeitaram as causas finais, porém os verdadeiros filósofos as admitem. E, como disse um autor conhecido, o catequista anuncia Deus às crianças e Newton o demonstra aos sábios.


 

BATISMO

Palavra grega que quer dizer imersão.

Como sempre se guiam pelos sentidos, facilmente imaginaram os homens que quem lavasse o corpo também lavava a alma. Havia nos subterrâneos dos templos egípcios grandes cubas para os sacerdotes e iniciados. Desde tempos imemoriais que os hindus se purificaram nas águas do Ganges, e ainda hoje essa cerimônia está muito em voga. Da Índia passou à Judéia. Era costume entre os hebreus batizar todos os estrangeiros que abraçassem a lei judaica e não quisessem submeter-se à circuncisão. Sobre tudo batizavam-se as mulheres, que não faziam essa operação, salvo na Etiópia, onde a circuncisão era de lei. Tratava-se de uma regeneração. Criam os hebreus, como os egípcios, que o batismo dava alma nova. Consultem-se sobre o assunto Epifânio, Memonide e la Gemara.

João batizou-se no rio Jordão. Ali também ele batizou Jesus, que, conquanto nunca haja batizado ninguém, condescendeu todavia em consagrar essa cerimônia

Em si, todos os sinais são indiferentes. Confere Deus sua graça ao sinal que lhe aprouver escolher. Bem cedo tornou-se o batismo em primeiro rito e chancela da religião cristã. Contudo, embora fossem circuncidados, não se sabe ao certo se receberam o batismo os quinze primeiros bispos de Jerusalém

Muito se abusou desse sacramento nos primeiros séculos do cristianismo. Nada era mais comum que aguardar a agonia para receber o batismo. É assaz ilustrativo o exemplo do imperador Constantino. Eis como raciocinava: O batismo de tudo expurga; portanto posso matar minha mulher, meus filhos, todos os meus parentes; depois batizo-me e irei para o céu – O que efetivamente levou a prática. O exemplo era perigosíssimo. Paulatinamente foi se abolindo o vezo de esperar a morte para tomar o banho sagrado.

Sempre conservaram os gregos o batismo por imersão. Pelo fim do século VIII os latinos, havendo estendido sua religião às Gálias e à Germânia, receosos de que a imersão pudesse matar as crianças nos países frios, substituíram-na por simples aspersão, o que lhes custou numerosos anátemas de parte da igreja grega.

Perguntou-se a S. Cipriano se estavam realmente batizadas as pessoas que, em vez de tomarem o banho, eram apenas borrifadas. Respondeu ele (septuagésima sexta carta) que “achavam muitas igrejas não serem cristãs tais pessoas; quanto a ele, era de parecer que sim, bem que sua graça fosse infinitamente menor que a das imersas três vezes conforme o uso”.

Entre os cristãos, desde que um indivíduo recebia a imersão estava iniciado. Antes do batismo era simples catecúmeno. Para iniciar-se era de mister apresentar cauções, responsáveis, – a que se dava um nome correspondente a padrinho – a fim de que a igreja se certificasse da fidelidade dos novos cristãos e não fossem divulgados os mistérios. Essa a razão por que nos primeiros séculos fossem os gentios geralmente tão mal instruídos dos mistérios cristãos quanto o eram os cristãos dos mistérios de Isis e de Eleusina.

Assim se expressava Cirilo de Alexandria em seu escrito contra o imperador Juliano: “Falaria do batismo se não temesse que minhas palavras chegassem aos não iniciados”.

Data do século II o costume de batizar crianças. Era natural desejassem os cristãos que seus filhos, que sem esse sacramento seriam condenados às penas eternas, dele fossem apercebidos. Concluiu-se enfim ser necessário ministrá-lo ao fim dos oito primeiros dias de vida por ser essa entre os judeus a idade da circuncisão. Ainda conserva o costume a igreja grega, conquanto no século III o uso a tenha levado a subministrar o batismo à morte.

Quem morria na primeira semana de existência estava condenado, asseveravam os padres da igreja mais rigorosos. No século V, porém, ideou Pedro Crisólogo o limbo, espécie de inferno suavizado, e propriamente lindes do inferno, extramuros infernais, para onde iriam as criancinhas finadas sem batismo, e onde estariam os patriarcas antes da descensão de Jesus Cristo aos infernos. De sorte que desde então prevaleceu a opinião de que Cristo desceu ao limbo e não ao inferno.

Perguntou-se se, nos desertos da Arábia, poderia um cristão ser batizado com areia: respondeu-se que não. Se se poderia batizar com água impura: estabeleceu-se ser conveniente água munda, mas que em última instância servia água barrenta. É fácil ver que toda essa disciplina foi ditada pela prudência dos primeiros pastores.


 

BELO, BELEZA

Perguntai a um sapo que é a beleza, o supremo belo, o to kalon. Responder-vos-á ser a sapa com os dois olhos exagerados e redondos encaixados na cabeça minúscula, a boca larga e chata, o ventre amarelo, o dorso pardo. Interrogai um negro da Guiné O belo para ele é – uma pele negra e oleosa, olhos cravados, nariz esborrachado. Indagai ao diabo. Dir-vos-á que o belo é um par de cornos, quatro garras e cauda. Inquiri os filósofos. Responder-vos-ão com aranzéis. Falta-lhes algo de conforme ao arquétipo do belo em essência, o to kalon.

Assistia eu certa vez à representação de uma tragédia em companhia de um filósofo.

— Como é belo! – dizia ele.

— Que viu o sr. de belo?

— O autor atingiu seu fim.

No dia seguinte ele tomou um purgante que lhe fez efeito.

— O purgante atingiu seu fim – disse-lhe eu. – Eis um belo purgante.

Ele compreendeu não se poder dizer que um purgante seja belo, e que para chamar belo a alguma coisa é preciso que nos cause admiração e prazer. Conveio em que a tragédia lhe inspirara estas duas emoções, e que nisso estava o to kalon, o belo.

Realizamos uma viagem à Inglaterra. Lá se representava a mesma peça, impecavelmente traduzida. Fez bocejarem todos os espectadores.

— Oh! – exclamou o filósofo – o to kalon não é o mesmo para os ingleses e os franceses.

Após muita reflexão concluiu ser o belo extremamente relativo, como o que é decente no Japão é indecente em Roma, o que é moda em Paris não o é em Pequim.


 

BEM (SUPREMO)

Muito discutiu a antigüidade em torno do supremo bem. Que é o supremo bem? Seria o mesmo que perguntar que é o supremo azul, o supremo acepipe, o supremo andar, o ler supremo, etc.

Cada um põe a felicidade onde pode, e quanto pode ao seu gosto.

Quid dem? quid non dem? Renuis tu quod jubet alter...

Castor gaudet equis; ovo prognatus eodem pugnis...(10).

Sumo bem é o bem que vos deleita a ponto de polarizar-nos toda a sensibilidade, assim como mal supremo é aquele que vos torna completamente insensível. Eis os dois pólos da natureza humana. Esses dois momentos são curtos.

Não existem deleites extremos nem extremos tormentos capazes de durar a vida inteira. Supremo bem e supremo mal são quimeras.

Conhecemos a bela fábula de Crântor, que fez comparecer aos jogos olímpicos a Fortuna, a Volúpia, a Saúde e a Virtude.

Fortuna: – O sumo bem sou eu, pois comigo tudo se obtém.

Volúpia: – Meu é o pomo, porquanto não se aspira à riqueza senão para ter-me a mim.

Saúde: – Sem mim não há volúpia e a riqueza seria inútil.

Virtude: – Acima da riqueza, da volúpia e da saúde estou eu, que embora com ouro, prazeres e saúde pode haver infelicidade, se não há virtude.

Teve o pomo a Virtude.

A fábula é engenhosa, mas não solve o problema absurdo do supremo bem. Virtude não é bem, senão dever. Pertence a plano superior. Nada tem que ver com as sensações dolorosas ou agradáveis. Com cálculos e gota, sem arrimo, sem amigos, privado do necessário, perseguido, agrilhoado por um tirano voluptuoso aboletado no fausto, o homem virtuoso é infelicíssimo, e o perseguidor insolente que acaricia uma nova amante em seu leito de púrpura, felicíssimo. Podeis dizer ser preferível o sábio perseguido ao perseguidor impertinente. Podeis dizer amar a um e detestar ao outro. Mas esquece-vos que le sage dans les fers enrage. Se não concordar o sábio, engana-vos: é um charlatão.


 

BEM (TUDO ESTÁ)

Armou-se grande estardalhaço nas escolas e até entre as pessoas que raciocinam quando, parafraseando Platão, lançou Leibnitz seu edifício do melhor dos mundos possíveis, dizendo que tudo corria às mil maravilhas (11). Afirmou ele no norte da Alemanha que Deus não poderia fazer mais que um único mundo. Platão pelo menos concedera-lhe a liberdade de fazer cinco, pela razão de cinco serem os corpos sólidos regulares: tetraedro ou pirâmide trifacial de base igual às faces, cubo, hexaedro, dodecaedro, icosaedro. Mas como o nosso mundo não tem a forma de nenhum dos seus cinco sólidos, devia conceder a Deus uma sexta forma.

Deixemos em paz o divino Platão. Leibnitz, que certamente era melhor geômetra e mais profundo metafísico que ele. prestou ao gênero humano o serviço de lhe fazer ver que devemos estar contentíssimos e ter sido impossível a Deus fazer por nós mais do que fez. Que necessariamente Deus escolhera entre todos os partidos sem contradita o melhor.

— E o pecado original? – perguntavam-lhe.

— Foi o que podia ser – explicavam Leibnitz e seus amigos. Mas praceiramente escrevia ele entrar o pecado original necessariamente no melhor dos mundos.

Ora essa! Ser expulso de um lugar de delícias onde se viveria eternamente se não se tivesse comido uma maçã! Como! Chafurdado na miséria, pôr no mundo filhos miseráveis que tudo hão de sofrer, que tudo farão sofrer aos outros! Que! Padecer todas as doenças, sofrer todos os martírios, morrer na dor, e como refrigério ser assado na eternidade dos séculos! Seria esse o melhor quinhão que tinha Deus para nos dar? Nada tem de bom para nós. E em que poderia tê-lo para Deus?

Compreendia Leibnitz nada ter que responder. Escreveu também maçudos livros, mas calou o ponto.

Negar a existência do mal, pode negá-la rindo um Luculo refestelado na opulência, após lauto jantar libado em companhia dos amigos e da amante no salão de Apolo. Mas que ponha a cabeça à janela. Verá o que é o mundo.

Repugna-me citar. É empresa de ordinário espinhosa: negligencia-se o que precede e o que segue a citação, e se expõe a querelas. Cumpre-me, todavia, citar Lactâncio, padre da igreja, que em seu capítulo 13, Da Cólera de Deus, põe estas palavras na boca de Epicuro: “Ou Deus quer abolir o mal do mundo e não pode; ou pode e não quer; ou nem pode nem quer; ou enfim quer e pode. Se quer e não pode é impotente, o que contradiz a natureza divina; se pode e não quer, é mau, o que não é menos contrário à sua natureza; se não quer nem pode, é a um tempo mau e impotente; se quer e pode (a única conjuntura que convêm a Deus) qual então a origem do mal sobre a terra?”

O argumento é instante. Lactâncio respondeu muito mal, dizendo que Deus quer o mal porém nos deu a sabedoria, com que podemos alcançar o bem. A resposta é fraquíssima. Supõe que Deus não podia dar a sabedoria senão de par com o mal. Demais nós possuímos uma sabedoria agradável!

A origem do mal foi sempre um abismo de que ninguém conseguiu lobrigar o fundo. Daí tantos filósofos e legisladores antigos se socorrerem de dois princípios, um do bem e outro do mal. Tifão era o princípio do mal entre os egípcios, Arimã entre os persas. Adotaram essa teologia, como se sabe, os maniqueus. Como porém anteriormente nunca falaram nem em um nem em outro desses princípios, convêm não lhes dar ouvidos.

Entre os absurdos de que regurgita o mundo, não é dos menores este, que pode entrar no rol dos nossos males: imaginar dois seres todo poderosos duelando-se para ver quem dá mais de si ao mundo, e acordando um convênio como os dois médicos de Molière Passe-me o emético que lhe farei a sangria.

Rasteando os platonistas, pretendeu Basilídio no primeiro século da igreja que Deus acometera a tarefa de forjar o nosso mundo aos últimos de seus anjos, os quais não sendo lá muito peritos desalinhavaram as coisas como aí estão. Refuta tal fábula teológica esta objeção irretorquível: não é de Deus onipotente e onisciente confiar a construção de um mundo a arquitetos inaptos.

Sentindo a objeção, preveniu-a Simão asseverando que em virtude do péssimo desempenho da incumbência Deus condenou aos infernos o anjo que presidia à oficina celeste. Por mais esturricado que esteja, contudo, a condenação desse anjo não nos cala o sofrimento.

Não responde melhor à objeção a aventura de Pandora dos gregos. Inegavelmente a história da boceta que encerra todos os males e em cujo fundo jaz a esperança é uma bela alegoria. Mas essa tal Pandora, tê-la Vulcano tão somente para fazer pique a Prometeu, que havia feito um homem de barro.

Os hindus não foram mais engenhosos: tendo criado o homem, Deus lhe deu uma droga que lhe asseguraria permanente saúde; o homem carregou seu asno dessa droga, o asno ficou com sede, a serpente ensinou-lhe uma fonte: enquanto o asno bebia a serpente pilhou a droga.

Imaginaram os sírios que, tendo o homem e a mulher sido criados no quarto céu, quiseram comer de uma torta em vez de ambrósia, seu manjar natural. A ambrósia exalava-se pelos poros. Comendo a torta, porém, era preciso ir à secreta. O homem e a mulher pediram a um anjo lhes indicasse onde ficava tal repartição do Paraíso. – Estão vendo – disse-lhes o anjo – aquele planetinha insignificante, a uns sessenta milhões de léguas daqui? Pois é lá. – Para lá se foram, e lá os deixaram. Desde então o mundo é o que é.

É o caso de perguntar aos sírios por que Deus permitiu que o homem comesse da torta e que temos nós que ver com o pato.

Para nos forrarmos ao tédio, saltemos do quarto céu ao Sr. Bolingbroke. Este homem, incontestavelmente genial, deu ao célebre Pope seu plano de tudo está bem, que de fato lá vem palavra por palavra nas obras póstumas de Bolingbroke, e que anteriormente inserira Shaftesbury em seus Característicos. Leia-se o capítulo deste livro dedicado aos moralistas. Lá se encontrará:

“Há muito que responder a essas lamúrias sobre defeitos da natureza. Como saiu tão impotente e falha das mãos de um ser perfeito? Mas eu nego que a natureza seja imperfeita... Sua beleza resulta das contrariedades. De perpétuo combate nasce a concórdia universal... É preciso que cada ser seja imolado a outros: os vegetais aos animais, os animais à terra... Demais não será por amor de miserável verme que as leis do poder central e da gravitação, de que decorrem o peso e o movimento dos corpos celestes, serão perturbadas. Miserável verme que, por muito bem protegido que esteja por essas leis, longe não está o dia em que por elas mesmas será reduzido a pó de traque”.

Bolingbroke, Shaftesbury e Pope – lapidário dos primeiros – não solvem a questão melhor que os outros. Seu tudo está bem não diz senão que o todo é regido por leis imutáveis. Quem não sabe disso? Para ninguém é novidade saber, depois dos netos, que as moscas foram feitas para ser comidas pelas aranhas, as aranhas pelas andorinhas, as andorinhas pelas pegas, as pegas pelas águias, as águias para ser mortas pelos homens, os homens para matar-se uns aos outros, ser comidos pelos vermes e em seguida pelo diabo.

Eis aí ordem nítida e constante entre os animais de todas as espécies. Em tudo existe ordem. Quando se forma um cálculo em minha bexiga, verifica-se uma mecânica admirável. Pouco a pouco aparecem no sangue sucos calculosos, que se filtram nos rins, passam pelas uréteres, caem na bexiga e ali se depositam em virtude de excelente atração newtoniana; forma-se a concreção, que cresce, e eu sofro dores mil vezes piores que a morte, por mais maravilhosamente ordenado que esteja o mundo. Um cirurgião que aperfeiçoou a arte inventada por Tubalcain enterra-me um ferro agudo e trinchante no perineu, agarra o cálculo com suas tenazes: por um mecanismo necessário, a pedra se desfaz sob seus esforços. E pelo mesmo mecanismo necessário entrego a alma ao diabo em meio de tormentos medonhos. Tudo isso está bem. Tudo isso é conseqüência evidente dos inalteráveis princípios físicos. Reconheço-o. Mas, como vós, já o sabia

Se fôssemos insensíveis, nada haveria que dizer a esta física. Não se trata disso, porém Pergunto-vos se não existem males sensíveis, e de onde provêem. “Não existem males” – decreta Pope em sua quarta epístola acerca do tudo está bem. “Ou, se os há particulares, compõem o bem geral”.

Singular bem geral, constituído de cálculos, gota, de todos os crimes, de todos os sofrimentos, da morte e da condenação.

A queda do homem é o emplasto que aplicamos a todas essas doenças particulares do corpo e do espírito, que vós chamais saúde geral. Mas Shaftesbury e Bolingbroke escarnecem do pecado original. Pope não se digna mencioná-lo. É evidente que tal sistema solapa a religião cristã nos alicerces, e não explica coisa alguma.

No entanto foi há pouco aprovado por muitos teólogos, que de bom grado admitem os contrários. Assim sendo, a ninguém é preciso invejar o consolo de raciocinar como melhor puder sobre o dilúvio de males que nos assoberba. Justo é conceder aos doentes sem esperança que comam o que quiserem. Chegou-se até a pretender ser esse sistema consolador. “Deus” – leciona Pope – vê com os mesmos olhos morrer o herói e o pardal, precipitar-se na ruína um átomo ou mil planetas, formar-se um mundo ou uma bolha de sabão”.

Deliciosa consolação! Não sentis grande lenitivo com o decreto do sr. Shaftesbury, que diz, Deus não vai modificar suas leis eternas por um miserável verme como o homem? Convenha-se contudo ter esse verme direito de lamentar-se humildemente e lamentando-se diligenciar compreender por que tais leis eternas não foram feitas para bem de todos.

O sistema do tudo está bem apresenta o autor da natureza como um déspota poderoso e mau, pouco se incomodando que seus caprichos custem a vida a milhares de seres humanos, enquanto os restantes arrastam seus dias na penúria e na dor.

Longe de consolar, a teoria do melhor dos mundos possível é desesperadora. O problema do bem e do mal permanece um caos inextricável para todos aqueles que perquirem de boa fé. Para os polemistas, é um motivo de chiste: são forçados brincando com os próprios grilhões. Para o povo não pensante, é o caso de peixes transportados de um rio para um reservatório; não alimentam a menor idéia que estão ali para ser comidos na quaresma.

Nada sabemos do porquê do nosso destino. Cumpre subpor ao fim de quase todos os capítulos da metafísica as duas letras dos juizes romanos, quando não entendiam uma causa: N. L., non liquet, – não é claro.


 

CADEIA DOS ACONTECIMENTOS

Há muito que se crêem os acontecimentos encadeados uns aos outros por invencível fatalidade – o Destino – que é em Homero superior ao próprio Júpiter. Sem refolhos confessava o soberano dos deuses e dos homens não poder impedir que seu filho Sarpédon morresse no prazo preestabelecido. No momento em que devia nascer Sarpédon nascera, nem poderia deixar de ser assim. Não podia morrer em outro lugar senão diante de Tróia. Não podia ser enterrado senão em Lícia. Seu corpo, no prazo preestabelecido, produziria legumes que se transmudariam em substância de alguns licienses. Seus herdeiros haveriam de estabelecer nova ordem em seus estados. Essa nova ordem influiria nos reinos vizinhos. Do que resultariam novas disposições de guerra e paz com os vizinhos dos vizinhos de Licia. E assim sucessivamente o destino da terra dependeu da morte de Sarpédon, a qual dependeu de outro acontecimento, que por seu turno se ata por intermédio de outros à origem das coisas.

Tivesse um único desses fatos acontecido diferentemente, outro fora o mundo. Ora, impossível que o mundo atual existisse e não existisse ao mesmo tempo: portanto impossível fora a Júpiter salvar a vida do filho, por muito Júpiter que fosse.

Diz-se que este sistema da necessidade e fatalidade inventou-o Leibnitz em nossos dias, chamando-lhe razão suficiente. Entretanto é antiquíssimo. Não é de hoje que não há efeito sem causa e que muitas vezes a mais insignificante das causas produz os maiores efeitos.

Conta o sr. Bolingbroke que lhe proporcionaram ocasião de concertar o tratado particular da rainha Ana com Luís XIV as questiúnculas da sra. Marlborough e da sra. Masham. Esse tratado conduziu à paz de Utrecht. A paz de Utrecht firmou Filipe V no trono de Espanha. Filipe V conquistou Nápoles e Sicília à frente da casa da Áustria. Deve o príncipe que é atualmente rei de Nápoles seu trono à sra Masbam. Não o seria, talvez nem existisse, se a duquesa de Marlborough tivesse sido mais complacente para com a rainha de Inglaterra. Sua existência dependia em Nápoles de uma tolice a mais ou a menos na corte londrina. Examinai a situação de todos os povos do mundo: é o que é por força de uma série de acontecimentos aparentemente insulados, porém realmente baraçados em íntimo emaranhamento. São tudo rodagens, polés, cabos, molas dessa máquina colossal.

O mesmo sucede na ordem física. Um vento que sopre do fundo da África ou dos mares austrais acarreta parte da atmosfera africana que recai em chuva nos declívios dos Alpes. Essas chuvas fecundam nossas terras. Nosso vento do norte, por sua vez, leva nossos vapores daqui para o continente negro. Nós beneficiamos a Guiné e a Guiné nos beneficia. A cadeia se estende de cabo a cabo do mundo.

Parece-me contudo abusar-se demais desse princípio. Conclui-se não haver e mais ínfimo átomo que não tenha influído na disposição atual do mundo inteiro. Que não há o menor acidente, quer entre os homens, quer entre os animais, que não seja anel essencial da grande cadeia do destino.

Entendo eu: todo efeito tem evidentemente sua causa, remontante de causa em causa até o abismo da eternidade. Mas nem toda causa transmite seu efeito até o fim dos séculos. Todo acontecimento decorre um de outro, admito. O presente sai do passado. O futuro sairá do presente. Tudo tem pai. Mas nem tudo tem filhos. Precisamente como numa árvore genealógica: toda família remonta, como é sabido, a Adão, mas na família muitos indivíduos morrem sem deixar posteridade.

Existe uma árvore genealógica dos acontecimentos. Incontestavelmente os habitantes das Gálias e de Espanha descendem de Gomer e os russos de Magogue, seu irmão mais novo: encontra-se esta genealogia em tantos livros maçudos! Nesse pé, não há negar devermos a Magogue os sessenta mil russos em armas hoje às portas da Pomerânia e os sessenta mil franceses que combatem nas abas de Francfort. Mas que Magogue haja expectorado à direita ou à esquerda ao pé do Cáucaso, tenha dado duas ou três voltas em redor de um poço, haja dormido do lado esquerdo ou direito, não vejo como possa isso ter influído capitalmente na resolução tomada pela imperatriz da Rússia Elizabete de enviar um exército em socorro da imperatriz romana Maria Teresa. Que meu cão sonhe ou não quando dorme, não percebo que relação poderá ter tão importante fato com os negócios do grão mogol.

É necessário atentar em que nem tudo é cheio na natureza e que nem todo movimento se transmite consecutivamente até descrever a volta ao mundo. Lance-se n’água um corpo de mesma densidade. Facilmente se compreenderá que ao cabo de algum tempo assim o movimento do corpo como aquele que comunicou à água se extinguem. O movimento consome-se e repara-se. Por conseguinte o movimento que possa ter produzido Magogue escarrando num poço não pode ter influência no que hoje se passa. na Rússia e na Prússia. Nem todos os acontecimentos pretéritos são pais dos acontecimentos presentes. Todo acontecimento atual provém em linhas diretas do passado. Porém milhares de linhas colaterais há que em nada os interessam. Repitamos: tudo tem pai, mas nem tudo tem filhos. Retornaremos ao assunto ao falar do Destino.


 

CARÁTER

A palavra grega impressão, gravura. É o que em nós gravou a natureza. Podemos apagá-lo? Transcendental questão. Se tenho o nariz de esconso e olhos de gato, posso escondê-los sob uma máscara. Poderei encobrir melhor o caráter?

Apresenta-se perante Francisco I de França, a fim de queixar-se de uma preterição, um indivíduo de natural violento e impetuoso. O semblante do príncipe, a postura respeitosa dos cortesãos, o local mesmo impressionam-no fundamente. Maquinalmente baixa os olhos, a voz rude se abranda e faz o pedido humildemente. Crer-se-ia nascido tão manso quanto os cortesãos em meio dos quais parece quase desconsertado. Entretanto facilmente descobre Francisco I em seus olhos baixos, porém acesos de um fogo sombrio, nos músculos retesos do rosto, nos lábios contracerrados, que esse homem não é tão humilde como aparenta. Esse homem acompanha-o a Pávia, é aprisionado com ele e com ele levado para Madri. Já não lhe infunde a mesma impressão a majestade do rei. Familiariza-se com o objeto de seu respeito. Um dia, ao descalçar-lhe as botas, e fazendo-o desleixadamente, Francisco, azedado pelo infortúnio, ralha-lhe. Nosso homem manda o rei plantar batatas e atira as botas pela janela.

Nascera Sixto Quinto petulante, opiniático, soberbo, impetuoso, vingativo, arrogante. As provas do noviciado parecem ter-lhe adoçado o caráter. Mal começa a desfrutar de certo crédito em sua ordem, lança-se contra um guardião e alomba-o a punhadas. Inquisidor em Veneza, exerce o cargo com insolência. Cardeal, é possuído della rabbia papale. Embuça na obscuridade sua pessoa e seu caráter. Mascara-se de humilde e moribundo. Elegem-no papa: é quando dá à mola do natural toda a elasticidade longo tempo retesada pela política. É o mais arrogante e despótico dos soberanos.

Naturam expellas furca, tamen usque recurret.

Religião, moral, são freios retentores do caráter. Não podem, porém, matá-lo. Enclausurado, reduzido a dois dedos de sidra às refeições, pode o bêbedo deixar de embriagar-se, mas ansiará sempre pelo vinho.

A idade amolenta o caráter. Transforma-o em uma árvore que não dá senão um ou outro fruto abastardado, mas sempre da mesma natureza. Enodoa-se, cobre-se de musgo, caruncha. Jamais deixará de ser carvalho ou pereira, porém. Se fosse possível alterar o caráter, a gente mesmo o plasmaria a bel prazer, seria senhor da natureza. Podemos lá criar alguma coisa? Não recebemos tudo? Experimentai animar o indolente de contínua atividade, inspirar gosto à musica a quem careça de gosto e de ouvido. Não tereis melhor resultado do que se empreenderdes dar vista a cego de nascença. Nós aperfeiçoamos, esborcelamos, embuçamos o que nos estereogravou a natureza. Não há, porém, alterar-lhe a obra.

Direis a um criador: – O Sr. tem peixe demais nesse viveiro; assim eles não vingam. Seus campos estão sobrelotados de gado; o capim não dá, os animais emagrecerão. – Com isso deixa o nosso homem que as solhas lhe comam metade das carpas, e os lobos metade dos carneiros. Os restantes engordam. Gabar-se-á ele dessa economia? Este camponês és tu mesmo. Uma de tuas paixões devorou as outras, e tu julgas haver triunfado sobre ti próprio. Não parecemos quase todos nós com aquele velho general de noventa anos que, encontrando alguns jovens oficiais mexendo com umas moças, perguntou-lhes colérico: “Senhores, é esse o exemplo que lhes dou?”.


 

CATECISMO CHINÊS

(Ou diálogos de Cu Su, discípulo de Cong-fu-tseu, com o príncipe Cu, filho do rei de Lou, tributário do imperador çhinês Gnenvã, 417 anos antes da nossa era. Traduzido em latim pelo padre Fouquet ex-jesuíta. Encontra-se o manuscrito na biblioteca do Vaticano, número 42.759).

C.

Que devo entender quando me dizem que adore o céu (Chang ti)?
C. S.

Não se trata do céu material que vemos, que não é outra coisa senão ar, composição de todas as emanações da terra. Imenso disparate seria adorar vapores.
C.

Pois não me surpreenderia. Parece-me que os homens cometeram disparates ainda maiores.
C. S.

De fato. Mas vós estais destinado a governar. Cumpre-vos ser sábio.
C.

Há tantos povos que adoram o céu e os planetas!
C. S.

Os planetas não passam de mundos como o nosso. Temos tanto motivo para adorar a areia e o barro da Lua, por exemplo, como a Lua para se pôr de joelhos diante da areia e do barro da Terra.
C.

Que se quer dizer quando se fala: O céu e a terra, acenda ao céu, seja digno do céu?
C. S.

Diz-se tremenda asneira. Não existe céu: cada planeta é circundado como que de uma casca chamada atmosfera, e gira no espaço em torno de seu sol. Cada sol é centro de porção de planetas que o acompanham espaço em fora. Não existe alto nem baixo, subida nem descida. Compreendeis que se habitantes da Lua dissessem que se sobe para a Terra, que era preciso tornar-se digno da Terra, diriam um absurdo. Da mesma forma proferimos uma frase sem nexo quando dizemos ser necessário fazer-se digno do céu. É como se disséssemos: é preciso tornar-se digno do ar, digno da constelação do Dragão, digno do espaço.
C.

Creio compreender. Devemos adorar somente o Deus que criou o céu e a terra.
C. S.

Isso! Só Deus merece ser adorado. Mas quando dizemos que Deus fez o céu e a terra, piamente proferimos uma grande ingenuidade. Porque, se por céu entendemos o espaço portentoso em que Deus acendeu tantos sóis e fez girar tantos mundos, é mais ridículo dizer o céu o a terra do que dizer as montanhas e um grão de areia. Infinitamente menor que um grão de areia é o nosso globo perto desses quintilhões de mundos, em meio aos quais desaparecemos. Tudo o que podemos fazer é juntar nossa débil voz ao coro dos seres incontáveis que no abismo da amplidão rendem homenagem a Deus.
C.

Então enganaram-nos quando nos disseram que Fo desceu do quarto céu e se nos apresentou sob a forma de um elefante branco?
C. S.

Isso são histórias que os bonzos contam às crianças e aos velhos. Não devemos adorar senão o autor eterno de todos os seres.
C.

Mas como pôde um ser fazer os outros?
C. S.

Olhai aquela estrela – Acha-se a um trilhão e quinhentos bilhões de lis(12)do nosso minúsculo globo. Dela projetam-se raios que vêm formar em nossos olhos dois ângulos iguais pelo vértice. Os mesmos ângulos formam nos olhos de todos os animais. Não vedes nisso um desígnio evidente? Não vedes nisso uma lei admirável? Ora, quem faz uma obra senão um obreiro? Quem elabora leis senão um legislador? Existe pois um obreiro, um legislador eterno.
C.

Mas quem fez esse obreiro? Como é ele?
C. S.

Meu príncipe, passeando ontem pelos arredores do palácio mandado construir pelo rei vosso pai, ouvi dois grilos conversando, um dos quais dizia: – Que palácio formidável! – Sim, – disse o outro – com toda a minha presunção confesso que deve ser alguém mais poderoso que os grilos o autor de tal prodígio. Mas nem imagino quem seja. Vejo que há de existir, mas não sei quem é.
C.

Confesso serdes um grilo mais entendido que eu. O que me agrada em vós é não pretenderdes saber o que ignorais.
Segundo diálogo
C. S.

Então convindes haja um ser todo poderoso, existente por si próprio, supremo artesão de toda a natureza?
C.

Sim. Mas se existe por si mesmo nada pode demarcá-lo, está em toda parte. Acha-se então em toda a matéria, em todas as partes de mim mesmo?
C. S.

Por que não?
C.

Nesse caso eu próprio seria parte da divindade.
C. S.

Não me parece certa a conclusão. Este caco de vidro é de todos os lados penetrado pela luz. Entanto será ele luz? Não; é simplesmente areia. Tudo está em Deus, não resta dúvida: o que tudo anima em tudo deve estar. Deus não é como o imperador da China, que mora em um palácio e transmite suas ordens por calao. Desde que exista, necessário é que sua existência encha todo o espaço e todas as suas obras. E já que está em vós é uma advertência contínua para que nada façais que vos possa envergonhar em sua presença.
C.

Que fazer para ousar olhar-se a si mesmo sem repugnância e sem pejo diante do ser supremo?
C. S.

Ser justo.
C.

Que mais?
C. S.

Ser justo.
C.

Mas diz a seita de Lao Quium não existir justiça nem injustiça, vício nem virtude.
C. S.

Diz a seita de Lao Quium não existir saúde nem doença?
C.

Não, ela não diria tamanho absurdo.
C. S.

Absurdo tão grande e mais funesto é pensar não existir saúde nem moléstia da alma, virtude nem vício. Os que disseram ser tudo a mesma coisa são monstros. Será a mesma coisa criar o filho ou esmagá-lo em cima de uma pedra? Assistir à mãe ou cravar-lhe um punhal no coração?
C.

Fazeis-me estremecer. Eu execro a seita de Lao Quium. Mas são tantos os matizes do justo e do injusto! As vezes fica-se perplexo. Quem saberá precisamente o que é permitido e o que não o é? Quem será capaz de estabelecer seguramente as fronteiras que separam o bem do mal? Que norma me dais para discerni-los?
C. S.

As normas de Cong-fu-tseu, meu mestre: “Vive como ao morrer desejarias ter vivido. Trata o próximo como queres que ele te trate”.
C.

Confesso que tais máximas devem ser o código do gênero humano. Mas que me importará ao morrer ter bem vivido? Que ganharei com isso? Acaso, ao se quebrar, se sentirá feliz aquele relógio por haver bem soado as horas?
C. S.

Aquele relógio não sente, não pensa Não pode ter remorsos, ao passo que vós os tendes quando vos sentis culpado.
C.

E se, após cometer muitos crimes, vier a não mais os sentir?
C. S.

Nesse caso seria preciso reprimir-vos. E ficai certo que entre os homens que não gostam de ser oprimidos alguém haveria que vos tolheria as mãos.
C.

Quer dizer que Deus, que está neles, consentiria que fossem maus depois de tê-lo permitido a mim?
C. S.

Deus vos galardoou com a razão: que dela não abuseis nem vós nem eles. Não somente seríeis infeliz nesta vida, como ainda quem vos disse não o seríeis em outra?
C.

Quem vos disse existir outra vida?
C. S.

Na dúvida, procedei como se existisse.
C.

Se eu tivesse certeza de que não existe?
C. S.

Desafio-vos.
Terceiro diálogo
C.

Mas para poder ser punido ou recompensado quando deixar de existir, forçoso é que subsista em mim algo que sinta e que pense. Ora, se antes de nascer nada de mim havia que sentisse ou pensasse, como haverá depois que morrer? Que poderia ser essa parte inconceptível de mim mesmo? Subsistirá o zumbido daquela abelha à sua morte? Subsistirá a vegetação desta planta a seu desarraigamento? Vegetação não é uma palavra de que nos servimos para exprimir a maneira inexplicável como quis o Ser Supremo que a planta absorvesse os sucos da terra? Tal e qual, alma é uma palavra inventada para exprimir pobremente e obscuramente os princípios essenciais da vida humana. Todos os animais se movem. A esse poder de mover-se chamamos força ativa. Mas não existe um ser distinto – força ativa. Temos paixões, memória, razão. Porém razão, memória, paixões não são, é claro, coisas a parte. Não são seres em nós existentes. Não são indivíduos de existência própria: são termos genéricos por nós inventados para expressarmos nossas idéias. Alma – memória, razão, paixões – não passa pois de uma palavra. Quem anima a natureza de movimento? Deus. Quem faz vegetar as plantas? Deus. Quem dá vida aos animais? Deus. Quem gera o pensamento humano? Deus.

Se a alma humana fosse um anãozinho que habitasse o nosso corpo, governando-nos os movimentos e as idéias, não denotaria isso impotência e artifício indignos do eterno artesão do mundo? Não seria ele capaz de fazer átomos por si próprios dotados de movimento e pensamento? Ensinastes-me grego, fizestes-me ler Homero. Reputo Vulcano um ferreiro divino quando faz trípodas de ouro que se apresentam sozinhas perante o conselho dos deuses. Vil charlatão parecer-me-ia porém se houvesse escondido no corpo das trípodas um moleque que, sem que ninguém percebesse, as fizesse mover-se.

Criaram frios sonhadores a fantasia de atribuir o movimento dos astros a gênios que incessantemente os impelissem espaço em fora. Mas Deus não poderia ver-se reduzido a tão mísero recurso. Em uma palavra, para que duas molas quando basta uma? Não ousareis negar tenha Deus o poder de animar o ente pouco conhecido a que chamamos matéria. Por que então haveria de recorrer a outro agente?

Mais: que seria essa alma que tão liberalmente dais ao nosso corpo? De onde veio? Quando? Seria preciso plantar-se tempo sem tempo o Criador do universo a coca da união de homem e mulher, observando atentamente o instante em que saísse um germe do corpo do homem e entrasse no corpo da mulher para então enviar-lhe às pressas uma alma? E se o germe morresse, que seria da alma? Teria sido criada inutilmente, ou esperaria outra oportunidade.

Estranha ocupação para o senhor do mundo. Tanto mais que não se veria abarbado apenas com as cópulas da espécie humana: precisaria ter olhos para a reprodução de todos os animais, porque todos os animais têm memória, idéias, paixões. E se para criar sentimentos, memória, idéias, paixões fosse necessária uma alma, cumpriria a Deus afanar-se incessantemente a forjar almas para elefantes, pulgas, mochos, peixes, bonzos.

Que idéia teríeis do arquiteto de tantos milhões de mundos apeado a fazer cavilhas invisíveis da manhã à noite a fim de perpetuar sua obra?

Aí tendes ínfima parte das razões que me fazem duvidar da existência da alma.
C. S.

Raciocinais de boa fé. E vosso sincero parecer, errôneo embora, há de ser grato ao Ser Supremo. Podeis enganar-vos, mas não o procurais. Sois, pois, desculpável. Mas vede que não me propusestes senão dúvidas, e dúvidas tristes. Admiti verossimilhanças mais consoladoras. É duro ser aniquilado; esperai viver. Sabeis que um pensamento não é matéria, nada tem que ver com a matéria: por que há de ser tão difícil crerdes que Deus vos haja inoculado um princípio divino que – indissolúvel – escape é morte? Ousareis dizer impossível terdes uma alma? Não, certamente. E sendo possível, não será muito provável? Enjeitareis um sistema tão belo e tão necessário ao gênero humano? Por somenos impedimentos?
C.

Grato ser-me-ia abraçar tal sistema, de vez que me fosse provado. Não sou. senhor de ver o que não enxergo. Sempre me impressionou a idéia grandiosa de que Deus tudo criou, em tudo está, tudo penetra, a tudo inspira vida e movimento. E se, estando em toda a natureza, se acha em todas as partículas do meu ser, não vejo que necessidade tenho de uma alma. Para que um pequeno ente subalterno, quando sou animado do próprio Deus? De que me serviria essa alma? Nossas próprias idéias, não somos nós quem as elaboramos: acodem-nos não raro a despeito de nós mesmos; temo-las enquanto dormimos. Tudo em nós se opera sem a nossa intervenção. Por mais que a alma dissesse ao sangue e aos espíritos animais: Circulai, peço-vos, de tal ou tal maneira, eles circulariam eternamente e impassivelmente da forma que Deus lhes ditou. Prefiro ser máquina de um Deus que se me evidencia a sê-la de uma alma de cuja existência duvido.
C. S.

Pois bem! Se vos anima o próprio Deus, nunca profaneis com crimes a sua presença. E se vos deu uma alma, que essa alma jamais o ofenda. Num sistema como noutro tendes vontade. Sois livre, dispondes do poder de fazer o que quiserdes; usai desse poder para servir a Deus que vo-lo outorgou. Bom é que sejais filósofo: necessário que sejais justo. Sê-lo-eis ainda mais quando crerdes possuir uma alma imortal.

Dignai-vos responder-me: não é verdade ser Deus a suma justiça?
C.

Sem dúvida. E ainda que fosse possível deixar de sê-la (o que é uma blasfêmia) eu mesmo quereria proceder com eqüidade.
C. S.

Quando estiverdes no trono, não é verdade ser vosso dever recompensar as ações virtuosas e punir as culposas? Quereríeis que Deus não fizesse o que vós mesmo fareis? Sabeis que há e sempre haverá nesta vida virtudes infelizes e crimes impunes. Necessário é pois que bem e mal encontrem seu julgamento em outra existência. Foi esta idéia tão simples, tão natural, tão geral que gerou em tantas nações a crença da imortalidade da alma e da justiça divina, que a julgará quando se despir do despojo mortal. Haverá sistema mais razoável, mais conforme à Divindade e mais útil ao gênero humano?
C.

Por que então muitas nações não o abraçaram? Sabeis haver em nossa província coisa de duzentas famílias de antigos sinús(13) que habitaram outrora parte da Arábia Pétrea. Pois nem eles nem seus avitos jamais creram a alma imortal. Têm seus Cinco Livros, como nós temos nossos Cinco Quings(14). Li-lhes a tradução; suas leis, necessariamente semelhantes às de todos os outros povos, ordenam-lhes respeitar os pais, não furtar, não mentir, não cometer o adultério nem o homicídio. Não lhes falam, porém, de recompensas e castigos em outra vida.
C. S.

Se essa idéia ainda não se desenvolveu nesse pobre povo, desenvolver-se-á sem dúvida algum dia. Demais, que nos importa uma insignificante e miserável nação quando babilônios, egípcios, hindus, todos os povos civilizados admitiram esse dogma tão salutar? Se estivésseis doente, refugaríeis um remédio aprovado por todos os chineses só porque meia dúzia de bárbaros das montanhas não o tomariam? Deus concedeu-vos a razão, e diz-vos a razão que a alma deve ser imortal. É o próprio Deus que vo-lo diz, portanto.
C.

Mas como poderei ser recompensado ou punido quando já não for eu mesmo, quando nada existir do que constitui a minha pessoa? Tão somente por força da memória é que sou sempre eu mesmo. Ora, a memória, perdê-la-ei na derradeira doença. Haverá então um milagre depois de minha morte que ma restitua, para que eu retorne à existência?
C. S.

Nesse caso um príncipe que houvesse decapitado a família para reinar, tiranizado os súditos, eximir-se-ia de culpa dizendo a Deus: – Não fui eu, eu perdi a memória, vós vos equivocais, eu já não sou a mesma pessoa. – Julgais que Deus se daria por achado com semelhante sofisma?
C.

Pois bem. Seja, rendo-me. Se praticaria o bem por mim próprio, fá-lo-ei igualmente para comprazer ao Ser Supremo. Eu pensava bastar minha alma ser justa nesta vida para ser feliz em outra. Vejo que tal opinião é boa para os povos e para os príncipes, mas o culto de Deus me preocupa.
Quarto diálogo
C. S.

Que achais de esquisito em nosso Chu Quing, esse primeiro livro canônico tão respeitado por todos os imperadores chineses? Para servir de exemplo ao povo trabalhais um campo com as próprias mãos reais e dele ofertais as primícias a Chang-ti, a Tien, ao Ser Supremo. A ele sacrificais quatro vezes ao ano. Sois rei e pontífice. Prometeis a Deus todo o bem que estiver em vosso poder. Não há nisso algo que repugne?
C.

Sei que Deus não tem nenhuma necessidade de nossos sacrifícios e de nossas preces. Nós é que temos precisão de nos sacrificarmos e de orar. O culto de Deus não foi estabelecido por ele, mas por nós. Muito me apraz orar, e quero sobretudo que minhas orações não sejam ridículas. Porque se me ponho a gritar que “a montanha do Chang-ti é uma montanha gorda, é que não se deve olhar para as montanhas gordas,” (15) e faço fugir o Sol e apagar a Lua, seriam essas algarvias do agrado do Ser Supremo, úteis a meus súdito e a mim mesmo?

Não suporto principalmente a demência das seitas. De um lado vejo Lao Tseu concebido pela união do céu e da terra e cuja mãe o carregou no ventre durante oitenta anos. Não tenho mais fé em sua doutrina do aniquilamento e da renúncia universal que nos cabelos brancos com que nasceu ou na vaca preta que montou para ir pregar sua doutrina.

Não creio mais no deus Fo, ainda que tenha tido por pai um elefante branco e prometa a vida eterna.

Mais que tudo me desagrada serem tais fantasias continuamente pregadas pelos bonzos, que seduzem o povo para governá-lo. Fazem-se respeitáveis por mortificações que repugnam à natureza. Uns se privam toda a vida dos alimentos mais salutares, como se não se pudesse agradar a Deus senão com um mau regime. Outros põem argolas de ferro no pescoço, o que por vezes lhes dá um ar digníssimo. Enterram cravos nas coxas, como se fossem tábuas. E o povo segue-os em chusma. Se um rei decreta um édito que os desagrada, dizem-vos friamente que tal édito não se encontra no comentário do deus Fo, e que mais vale obedecer a Deus que aos homens. Como remediar tão extravagante e nociva doença popular? Sabeis ser a tolerância o princípio do governo da China como de todos os povos da Ásia. Não vos parece, porém, funesta semelhante indulgência, quando expõe um império a ser transtornado por opiniões fanáticas?
C. S.

Que o Chang-ti me livre de querer desenvolver em vós o espírito de tolerância, virtude tão respeitável, que é para a alma o que é para o corpo a liberdade de saciar a fome. Permite a lei natural a cada um crer o que quiser, como se alimentar do que bem entender. O médico não pode matar os clientes por não terem observado a dieta prescrita. Não assiste ao príncipe o direito de mandar prender os súdito que não pensarem como ele. Mas cumpre-lhe prevenir perturbações, e se for sábio, facílimo lhe será extirpar as superstições. Sabeis o que se passou com Daão, sexto rei da Caldéia, há cerca de quatro mil anos?
C.

Não. Dar-me-eis prazer contando-mo.
C. S.

Os sacerdotes caldeus adoravam as solhas do Eufrates. Diziam que uma solha memorável – Oanés – ensinara-lhes outrora a teologia, que essa solha era imortal, tinha três pés de comprido e um pequeno crescente na cauda. Por amor de Oanés era proibido comer solhas. Levantou-se grande barulho entre os teólogos a fim de saber se a solha Oanés era macho ou fêmea Os dois partidos se excomungaram reciprocamente e por não poucas vezes chegou-se a vias de fato. Eis o que fez o rei Daão para pôr termo à referta.

Ordenou a ambas as facções um rigoroso jejum de três dias, findo o qual chamou à sua presença os partidários da solha fêmea, que assistiram a seu jantar. Mandou trazer uma solha de três pês de comprimento, em cuja cauda fizera desenhar um crescente.

— É este o vosso deus? – perguntou aos doutores.

— Sim, majestade. Tem o crescente na cauda e seguramente há de ter ovas.

Ordenou o rei que se abrisse a solha, que se evidenciou macho.

—.Estais vendo não ser o vosso deus, pois não tem ovas, – concluiu o rei. E comeu-a com seus sátrapas, com grande regozijo dos teólogos das ovas, que viam frito o deus dos adversários.

Em seguida mandou virem os doutores do outro partido. Mostrou-lhes um deus de três pés de longo, com um crescente na cauda e que tinha ovas. Afirmaram os doutores ser o deus Oanés, e que era macho. Como da primeira vez, o rei mandou fritá-lo e viu-se que era fêmea. Então, evidenciando-se ambos os partidos igualmente tolos, e como não tivessem almoçado, disse-lhes o bom rei Daão que não tinha senão solhas para dar-lhes de jantar. E os doutores comeram-nas gulosamente, fossem fêmeas ou machos. Terminou a guerra civil, todos bendisseram o rei e de então em diante toda gente fez servir à mesa quantas solhas lhe aprouvesse.
C.

Muito simpatizo com o rei Daão. Prometo imitá-lo na primeira ocasião que se apresentar. Sem violências, hei de impedir o quanto possa que se adorem Fos e solhas.

Sei que existem em Pegú e Tonquim pequenos deuses e talapões que dizem fazer baixar a lua no minguante e predizer claramente o futuro, isto é, verdadeiramente o que não existe, porque o futuro não existe. No que de mim depender, vedarei aos talapões virem ao meu império inventar o futuro e arriar à lua.

Que humilhação haver seitas que vão de cidade em cidade a propagar seus mitos, como charlatães vendendo suas drogas! Que opróbrio para o espírito humano presumirem naçõezinhas insignificantes ser a verdade exclusividade sua, e que o vasto império da China chafurde no erro! Então não seria o Ser Supremo senão o deus da ilha Formosa ou de Bornéu? Abandonaria o resto do mundo ? Meu caro Cu Su, ele é o pai de todos os homens. A todos permite comer solhas. Ser virtuoso é a mais digna homenagem que se lhe possa render. Um coração puro é o mais sublime dos templos, como dizia o grande imperador Hiao.
Quinto diálogo
C. S.

De vez que amais a virtude, como a praticareis quando fordes rei?

Não sendo injusto nem para com meus vizinhos nem para com meu povo.
C. S.

Não basta não fazer o mal. Devereis praticar o bem. Dareis o que comer aos pobres empregando-os em trabalhos úteis, e não presenteando-os com a ociosidade. Embelezareis as estradas reais, abrireis canais, construireis edifícios públicos, estimulareis as artes, premiareis o mérito em que quer que se manifeste, perdoareis as faltas involuntárias.
C.

A isso chamo não ser injusto. Trata-se de deveres.
C. S.

Pensais como verdadeiro rei. Mas há o rei e o homem, a vida pública e a vida privada. Logo vos casareis. Quantas esposas contais ter?
C.

Tenho que uma dúzia será o suficiente. Mais poderia furtar-me ao trabalho. Não gosto desses reis que têm trezentas esposas e setecentas concubinas, e milhares de eunucos para servi-las. Essa mania de eunucos sobretudo parece-me um tremendo ultraje à natureza humana. Que se capem, quando muito, os galos. Com isso ficam melhores de comer. Nunca se viram, porém, eunucos na panela. Para que mutilá-los? Tem o dalai lama cinqüenta eunucos para cantarem em seu pagode. Gostaria de saber se é grato ao Chang-ti ouvir as vozes de taquara rachada desses cinqüenta desmembrados.

Acho também muito ridículos esses bonzos que não se casam. Gabam-se de ser mais sábios que os demais chineses. Pois bem! Que façam então filhos sábios. Boa moda essa honrar o Chang-ti privando-o de adoradores! Singular maneira de servir o gênero humano, dando-lhe o exemplo da própria extinção! Dizia o bom pequeno lama Stelca ed isant Errepi (16) que todo padre devia fazer o maior número de filhos possível. Ele próprio dava o exemplo e foi muito útil em seu tempo. Por mim casarei todos os lamas e bonzos e lamizas e bonzas que tiverem vocação para esta santa obra. Serão melhores cidadãos, e com isso creio prestar grande benefício ao reino de Lou.
C. S.

Oh que excelente príncipe teremos! Fazeis-me chorar de alegria. Mas certamente não tereis só mulheres e súdito. Porque afinal não se pode passar a vida a lavrar éditos e fabricar filhos. Sem dúvida tereis amigos?
C.

Já os tenho, e bons. Advertem-me de meus defeitos e eu tomo a liberdade de apontar-lhes os seus. Consola-me e eu os consolo. A amizade é o bálsamo da vida, bálsamo superior ao do químico Erueil (17) e até aos saquetes do grande Ranoud (18). Admira-me não se haver feito da amizade um preceito de religião. Desejaria inseri-lo em nosso ritual.
C. S.

Preservai-vos de semelhante arbitrariedade. A amizade já é sagrada por si mesma. Nunca a forceis. O coração precisa ser livre. Se fizésseis da amizade um preceito, um mistério, um rito, uma cerimônia, milhares de bonzos, pregando e escrevendo suas tolices, cobririam esse sentimento de ridículo. Não deveis expô-lo a semelhante profanação.

Mas como procedereis em relação aos vossos inimigos? Vinte vezes recomenda Cong-fu-tseu que os amemos. Não vos parece um pouco difícil?
C.

Amar os próprios inimigos? Se é tão comum!
C. S.

Como o entendeis?
C.

Como é de mister, creio; Fiz o aprendizado da guerra sob o príncipe de Décon (19) contra o príncipe de Vis Brunck. Quando um inimigo era ferido e caía em nossas mãos; tratávamo-lo como se fosse nosso irmão. Muitas vezes demos o próprio leito a inimigos feridos e prisioneiros, dormindo-lhes ao pé sobre peles de tigre estendidas no chão. Servíamo-los nós mesmos. Que mais quereríeis? Que os amássemos como se ama às amantes?
C. S.

Muito me edifica tudo o que dissestes, e desejaria que todas as nações vos compreendessem. Porque me afirmam haver povos assaz impertinentes para dizer que nós não conhecemos a verdadeira virtude, que nossas boas ações não passam de pecados esplêndidos, que necessitamos das lições de seus talapões para que nos ensinem bons princípios. Coitados! Mal aprenderam a ler e escrever e já querem ensinar aos próprios mestres!
Sexto diálogo
C. S.

Não vos repetirei todos os lugares comuns que há cinco ou seis mil anos se repisam entre nós acerca de todas as virtudes. Há virtudes que não o são senão para nós mesmos, como a prudência para guiar a alma, a temperança para governar o corpo – meros preceitos de política e higiene. Verdadeiras virtudes são as virtudes úteis à sociedade: fidelidade, magnanimidade, beneficência, tolerância, etc. Graças aos céus não há avó entre nós que não ensine aos netos todas essas virtudes. Elas constituem o cimento da nossa juventude, na cidade como na aldeia. Há contudo uma grande virtude que começa a ser esquecida, o que é deplorável.
C.

Qual é? Vamos, dizei-me, eu tomarei a peito realentá-la.
C. S.

A hospitalidade. Essa virtude tão social, esse sagrado liame entre os homens, que começa a relaxar-se desde que temos tavernas. Ao que dizem, veio-nos essa perniciosa instituição de certos selvagens do Ocidente. Parece que esses miseráveis não têm casas para acolher os viajores. Que prazer receber na grande cidade de Lou, na linda praça de Honchã, na casa de Qui, um generoso estrangeiro recém chegado de Samarcande, para quem me tornaria de então em diante um homem sagrado e a quem todas as leis – divinas e humanas – obrigariam a receber-me em sua casa quando eu viajasse pela Tartária e a ser meu amigo íntimo!

Os bárbaros de que vos falava só recebem os forasteiros quando pagos, e ainda assim em achavascados cochicholos. Vendem caro esse acolho miserável. Apesar de tudo ouço dizer que essa pobre gente se presume superior a nós e se vangloria de ter moral mais pura. Querem que seus pregadores falem melhor que Cong-fu-tseu. Enfim pretendem ensinar-nos justiça por venderem mau vinho nas estradas reais, suas mulheres saírem como loucas pelas ruas e dançarem enquanto as nossas cultivam bichos de seda.
C.

Acho plausível a hospitalidade e pratico-a com prazer. Mas receio o abuso. Existem, nas cercanias do grande Tibete, povos que vivem pessimamente alojados, amantes de andejar, que sem motivo algum seriam capazes de palmilhar o mundo de ponta a ponta. Entanto, se fordes ao grande Tibete desfrutar entre eles do direito da hospitalidade, não vos darão cama nem comida. Coisas tais podem fazer desgostar da polidez.
C. S.

O mal é pequeno e fácil de remediar, não se recebendo senão pessoas bem recomendadas. Não há virtude que não ofereça seus riscos. Por isso mesmo é belo abraçá-las.

Quão santo e sábio é o nosso Cong-fu-tseu! Não há virtude que não inspire. Em suas sentenças está a felicidade dos homens. Eis uma que me vem à memória – a qüinquagésima terceira:

Recompensai os benefícios com benefícios e jamais vos vingueis das injúrias.

Qual a máxima, qual a lei dos povos do Ocidente comparável a moral tão pura? Em quantos passos preceitua Cong-fu-tseu a humildade! Se os homens praticassem esta virtude jamais haveria querelas sobre a terra.
C.

Li tudo o que escreveram Cong-fu-tseu e os árabes dos séculos passados a respeito da humildade. Mas ninguém me parece tê-la definido com exatidão. Talvez seja pouca humildade atrever-me a increpá-los, mas tenho pelo menos a humildade de confessar não os haver compreendido. Dizei-me, que pensais dessa virtude?
C. S.

Obedecer-vos-ei humildemente. Reputo a humildade a modéstia da alma, porque a modéstia exterior não passa de civilidade. Ser humilde não é negar a si próprio uma superioridade que se possa ter adquirido sobre outrem. Um bom médico não pode deixar de reconhecer saber mais que seu cliente em delírio. Força é que um professor de astronomia admita ser mais ciente que seus discípulos. Não podendo negá-lo, não deve todavia presumir-se. Humildade não é abjeção: é corretivo do amor próprio, como a modéstia o é do orgulho.
C.

Pois bem! É no exercício de todas essas virtudes e no culto de um Deus simples e universal que quero viver, longe dos delírios dos sofistas e das ilusões dos falsos profetas. No trono, o amor ao próximo será minha virtude, o amor a Deus minha religião. Desprezarei o deus Fo e Lao Tseu e Vichnú, que tantas vezes se encarnou entre os hindus, e Samonocodom, que baixou do céu para fazer de escaravelho entre os siameses, e os camis, vindos da lua ao Japão.

Desgraçado do povo suficientemente cretino e bárbaro para pensar existir um Deus exclusivamente para o recanto do mundo em que habita! É uma blasfêmia. Se a luz do sol alumia todos os olhos, não iluminaria a luz de Deus mais que uma mísera nação num canto do globo! Que blasfêmia! Que dislate! A Divindade fala ao coração de todos os homens, e de extremo a extremo do mundo devem uní-los os laços da caridade.
C. S.

O sábio filho o rei de Lou! Falastes como que inspirado pelo próprio Chang-ti. Sereis um príncipe digno. Fui vosso mestre, agora sou vosso discípulo.


 

CATECISMO DO JAPONÊS (20)

Hindu

É verdade que antigamente os japoneses não sabiam cozinhar, que haviam entregue seu reino ao grande lama, que o grande lama decidia soberanamente do que devíeis comer e beber e de tempos em tempos vos enviava um pequeno lama a fim de cobrar tributos, pagando-vos com um sinal de proteção feito com os dois primeiros dedos e o polegar?
Japonês

Ai! Nada mais verdadeiro. Todos os cargos de canusi(21) – os grandes cozinheiros da nossa ilha – conferia-os o lama, e não certamente por amor de Deus. Além disso todas as famílias seculares pagavam uma onça de prata por ano a esse grande cozinheiro do Tibete. Em paga dava-nos minguados pratos de horrível paladar chamados sobejos. E quando lhe dava na veneta alguma nova fantasia, como declarar guerra aos povos do Tangate, escorchava-nos com subsídios suplementares. Muitas vezes nos queixamos, porém baldamente, quando não nos fazia pagar mais ainda. Por fim o amor, que tudo resolve maravilhosamente, libertou-nos dessa servidão. Um de nossos imperadores desaveio-se com o grande lama por causa. de uma mulher. Mas devo confessar que quem mais nos valeram nessa questão foram os nossos canusi, também chamados paiscospie. A eles devemos a libertação.

Eis o que se deu.

O grande lama tinha uma mania engraçada: julgava sempre ter razão. Uma vez ou outra, pelo menos, queriam os nossos canusi tê-la também. O grande lama achou absurda tamanha pretensão. Nossos canusi não arredaram pé e romperam definitivamente com ele.
Hindu

E de então em diante vivestes sem dúvida felizes e tranqüilos?
Japonês

Não inteiramente. Fomos perseguidos, dilacerados, devorados durante perto de dois séculos. Em vão pleiteavam nossos canusi ter razão. Somente há cem anos são razoáveis. Também, desde então podemos orgulhosamente considerar-nos uma das nações mais felizes da terra.
Hindu

Como podeis ser felizes se – a crer no que me disseram – vosso império se acha dilacerado por doze facções de cozinha? No mínimo tereis doze guerras civis por ano.
Japonês

Por que? Será que por termos doze chefes de cozinha, cada qual com uma receita diferente, deveremos matar-nos em vez de jantar? Pelo contrário, comeremos todos às mil maravilhas, cada um do cozinheiro que mais lhe agradar.
Hindu

De fato gostos não se devem discutir. A história, porém, é que ninguém se compenetra disso. Discutem, e da discussão às do cabo é um passo.
Japonês

Depois de muito discutirmos, vendo que com isso só tínhamos que perder, acabamos optando tolerar-nos mutuamente. Era, não há dúvida, o melhor partido que nos restava tomar.
Hindu

Poderíeis dizer-me quais são os chefes de cozinha que partilham a vossa nação na arte de beber e comer?
Japonês

Primeiramente há os breuseh, que em caso algum vos dariam morcela ou lardo. Preconizam as fontes puras da cozinha do tempo do onça. Prefeririam morrer a mordiscar um frango. Quanto ao mais, exímios calculadores, e fosse o caso de dividir uma onça de prata entre eles e os onze outros cozinheiros, açambarcariam logo a metade, deixando o resto para os que melhor soubessem contar.
Hindu

Presumo não costumais cear com gente tão esdrúxula?
Japonês

Claro. Em seguida vêm os pispatas, que em determinados dias da semana e em boa parte do ano prefeririam cem vezes comer rodelas de rodovalhos, trutas, linguados, salmões, esturjões, a saborear uma fritada de vitela que lhes ficaria por um nada.

Quanto a nós outros canusi, somos devotos apreciadores de carne de vaca e de certa pastelaria que em japonês se diz pudim. Toda gente convém em que os nossos cozinheiros sejam muito mais hábeis que os dos pispatas. Ninguém melhor que nós sabe preparar o garum dos romanos, as cebolas do antigo Egito, a pasta de gafanhoto dos primeiros árabes, a carne de cavalo dos tártaros. Sempre há o que aprender nos livros dos canusi, comumente chamados paiscospie.

Escuso-me de falar dos que comem a Teluro, assim como dos adeptos do regime de Vicalno, dos batistandos e que tais. Os quekars, porém, merecem atenção particular. São os únicos convivas que nunca vi se emborracharem nem praguejarem. Dificílimos de enganar, também nunca enganam ninguém. Parece que a lei que manda amar o próximo como a si mesmo foi feita especialmente para eles. Porque, verdade se diga, como pode um japonês dizer amar o próximo como a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala de chumbo na cabeça ou decapita-o com um cris de quatro dedos de largo? Quando ele próprio vive em constante risco de ser degolado ou engolir balas de chumbo? Com mais propriedade se dirá que ele odeia o próximo como a si mesmo. Os quekars nunca tiveram desses furores. Dizem eles serem os homens efêmeros vasos de argila e que não vale a pena se despedaçarem deliberadamente uns contra os outros.

Confesso que se não fosse canusi não me desagradaria ser quekar. Força é reconhecer que não há meio de brigar com cozinheiros tão pacíficos. Há outros, em número incontável, a que chamamos diestas. Dão os diestas de comer a toda gente indiferentemente e em sua casa sois livre de comer o que vos der na língua – recheado, lardeado, sem recheio, sem lardo, com ovos, com óleo; perdiz, salmão, vinho palhete, vinho tinto, tudo lhes é indiferente. Contanto que façais alguma oração a Deus antes ou após o jantar, ou simplesmente antes do almoço, e sejais honrado, de bom grado rirão convosco à custa do grande lama, de Vicalno, de Memnão e o mais que segue. Felizmente reconhecem que nossos canusi são doutíssimos em matéria culinária, e sobretudo nunca falam em cercear nossas rendas. Assim, vivemos na mais edênica harmonia.
Hindu

Mas a final deve haver uma cozinha predominante, a cozinha do rei.
Japonês

Confesso-o. Mas naturalmente depois de seus gordos banquetes o rei está derretendo de bom humor e não põe embargos à digestão de ninguém.
Hindu

E se algum cabeça dura encasquetar de comer no nariz do rei salsichas que lhe repugnem? Se se reunirem armados de grelhas quatro ou cinco mil desses indivíduos para cozer suas salsichas? Se insultarem as pessoas avessas e salsichas?
Japonês

Nesse caso será preciso puni-los como bêbedos que perturbam o repouso dos cidadãos. Previmos o perigo. Só os que comem à real são contemplados com as dignidades do estado. Todos os outros podem comer como lhes ditar a fantasia, porém são excluídos dos cargos. Soberanamente interditos e punidos sem remissão são os tumultos à mesa. Atalha-se cuidadosamente toda discussão, consoante o preceito do grande cozinheiro japonês Sufi Raho Cus Flac(22), que escreveu na língua sagrada:

Natis in usum laetitae scyphis
pugnare Thracum est...

O que quer dizer: O jantar foi feito para gáudio recatado e mundo, e não se devem atirar copos à cabeça.

Com essas máximas vivemos felizmente em nossa terra. A liberdade individual roborou-se sob os nossos tecosema. Cresce nossa riqueza. Possuímos duzentos juncos de linha, e constituímos o terror dos nossos vizinhos.
Hindu

Por que motivo então o bom versificador Recina(23), filho do poeta indiano do mesmo nome, tão delicado, tão exato, tão harmonioso, tão eloqüente, disse em uma obra didática rimada intitulada A Graça (não As Graças):

O Japão, onde brilharam tantas luzes,
hoje é um triste acervo de loucas visões –
?

Japonês

O próprio Recina de que me falais é um grande visionário. Ignorará esse mísero hindu que fomos nós quem lhe ensinamos o que é a luz? Que se na Índia conhecem a rota dos planetas, a nós o devem? Que fomos nós quem ensinamos aos homens as leis primordiais da natureza e o cálculo do infinito. Que, se é preciso descer a coisas mais triviais, conosco aprenderam os hindus a construir juncos segundo proporções matemáticas? Que nos devem até os borzeguins chamados meias do ofício com que cobrem as pernas? Seria possível que tendo inventado tantas coisas admiráveis ou úteis não fôssemos nós mais que loucos, e que um homem que escreveu em versos os desvairos de outrem fosse o único sábio? Deixe-nos com a nossa cozinha, e se quiser que faça versos sobre assuntos mais poéticos.
Hindu

Que quereis. Ele está intoxicado dos preconceitos de sua terra, de seu partido e dos seus próprios.
Japonês

Arre! Quanto preconceito!


 

CATECISMO DO PÁROCO

Aríston

Então, caro Teótimo, ides ser pároco no interior?
Teótimo

É verdade. Deram-me uma paroquiazinha, mas prefiro-a a uma grande. Minha inteligência e atividade são restritas. Não poderia, por certo, dirigir setenta mil almas, pois só tenho uma. Admirou-me sempre a confiança dos que põem ombros à empresa de manobrar o leme desses imensos distritos. A mim me falecem forças para me abalançar a tanto. Um rebanho muito grande me amedronta, conquanto possa prestar algum benefício a um pequeno. Estudei suficientemente jurisprudência para impedir, tanto quanto me for possível, que meus paroquianos se arruinem em demandas. Sei de medicina o bastante para prescrever-lhes remédios simples quando caírem doentes. Conheço de agricultura o quanto basta para dar-lhes lá uma vez ou outra um conselho útil. O senhor do lugar e sua esposa são pessoas honradas, que me ajudarão a praticar o bem. Espero ser feliz e felizes fazer os meus paroquianos.
Aríston

Não sentis não ter uma esposa Seria um grande consolo. Como seria agradável encontrardes no lar, após haver pregado, cantado, confessado, comungado, batizado, enterrado, uma mulherzinha doce e virtuosa, que cuidasse de vossa roupa e de vossa pessoa, que vos desagastasse na saúde e vos assistisse na doença, que vos brindasse com bonitos filhos cuja boa educação aproveitaria ao estado! Lamento-vos, a vós que servis aos homens, de vos ver privado de tão necessário lenitivo.
Teótimo

A igreja grega incita os clérigos ao casamento. O mesmo faz a igreja anglicana e os protestantes. Diversamente pensa a igreja latina, e forçoso é que me submeta. Talvez hoje, que o espírito filosófico realizou tão notáveis progressos, um concilio instituísse leis mais consoantes à humanidade que o concílio de Trento. Nesse em meio, porém, devo conformar-me às leis vigentes. É custoso, bem o sei, mas tanta gente melhor que eu a tanto se resignou que não devo murmurar.
Aríston

Sábio sois e sábia é a vossa eloquência. Como contais pregar aos camponeses?
Teótimo

Como pregaria a reis. Falar-lhes-ei a todo instante de moral e jamais de controvérsias. Defende-me Deus aprofundar a graça concomitante, a graça eficaz a que se resiste, a suficiente que não basta. Veda-me inquirir se tinham corpo os anjos que comeram com Abraão e Ló, ou se fingiram comer. Há mil coisas que meu auditório não entenderia, e eu tão pouco. Diligenciarei fazer gente de bem e igualmente sê-lo. Mas não farei teólogos, e se-lo-ei o menos possível.
Aríston

Oh que excelente cura! Hei de comprar uma casa de campo na vossa paróquia. Que pensais da confissão?
Teótimo

A confissão é um ótimo freio contra os crimes, que nos legou a mais remota antigüidade. Era costume, outrora, confessar-se na celebração de todos os mistérios. Imitamos e santificamos esta sábia usança. A confissão move os corações ulcerados de ódio a perdoar e os ladrões à devolução do furto. Tem suas inconveniências: há muitos confessores indiscretos, particularmente entre os monges, que não raro ensinam às moças mais indecências que todos os rapazes de uma aldeia. Nada de pormenores na confissão. Não se trata de interrogatório judicial, senão do reconhecimento das próprias faltas perante Deus, feito por um pecador nas mãos de outro pecador, que de seu turno também se acusará. Não se faz esse desabafo salutar para satisfazer a curiosidade de ninguém.
Aríston

E a excomunhão? Usá-la-eis?
Teótimo

Não. Há rituais em que se excomungam as bailarinas, os feiticeiros e os comediantes. Não precisarei proibir a entrada à igreja às bailarinas, pois nunca a freqüentam. Não excomungarei os feiticeiros, pois não os há. Quanto aos comediantes, como os pensiona o rei e autoriza-os o magistrado, abster-me-ei de os difamar. Até vos confesso, como a amigo, que muito aprecio a comédia. quando não vai de encontro aos costumes. Nutro verdadeira paixão a O Misantropo, Atália e outras peças que me parecem da escola da virtude e do decoro. O senhor da minha aldeia faz representar em seu castelo peças dessa natureza por jovens de talento. Tais espetáculos inspiram a virtude em consórcio com o prazer. Educam o gosto, ensinam a bem falar e bem pronunciar. Não vejo nisso senão uma recreação inocente e até muito útil. Conto, para ilustrar-me, assistir a esses espetáculos. Fa-lo-ei todavia em camarote fechado, para não escandalizar os simples.
Aríston

Quanto mais me revelais vossos sentimentos, mais desejo tornar-me vosso paroquiano. Uma coisa preocupa-me: como fareis para evitar que os campônios se embriaguem nos dias de festa? É essa a solenidade com que as celebram. Haveis de vê-los prostrados pelo álcool, cabeça pensa, mãos descaídas, estrouvinhados, reduzidos a estado mais vil que o dos brutos, reconduzidos titubeantes para casa pelas esposas desfeitas em pranto, incapazes de enfrentar o trabalho no dia seguinte, muitas vezes doentes e embrutecidos para o resto da existência. Ve-los-eis, enfunados pelo vinho, travar rixas sangrentas, atarracarem-se como feras, e não raro desfecharem em morte estas cenas que cobrem de opróbrio a espécie humana. Perde o estado mais súdito em festas do que em batalhas. Como atalhareis em vossa paróquia tão execrando abuso?
Teótimo

Meu partido está tomado. Consentirei, instarei até que cultivem seus campos nos dias de festa, após o serviço divino, que celebrarei ao alvorecer. O ócio do feriado é que os leva à taverna. Não há cabida, nos dias consagrados ao trabalho, para a devassidão e o assassínio. O trabalho moderado é propiciador de saúde do corpo e da alma. Demais, necessita-o o estado. Suponhamos pessimistamente cinco milhões de homens cujo trabalho diário renda dez mil réis por indivíduo. Ao cabo de um ano, cinco milhões de homens inúteis durante trinta dias serão trinta vezes cinco milhões de notas de dez mil réis perdidas pelo estado em mão de obra. Ora, claro é que Deus jamais preceituou semelhantes desperdícios e borracheiras.
Aríston

Assim conciliareis a religião e o trabalho. Um e outro foram prescritos por Deus. Servireis a Deus e ao próximo. Mas que partido tomareis em face das disputas eclesiásticas?
Teótimo

Nenhum. Como controverter a virtude, se a virtude provém de Deus? Discutir, só as opiniões dos homens.
Aríston

Oh excelente pároco! Sapientissimo pároco!


 

CERTO, CERTEZA

Que idade tem vosso amigo Cristóvão?

Vinte e oito anos. Vi sua certidão de casamento e de batismo, conheço-o desde criança. Tem vinte e oito anos, tenho certeza, estou certo.

Mal acabo de ouvir a resposta desse homem tão seguro do que diz e de vinte outros que o corroboram, venho a saber que, por motivos secretos e singular engenho, se antedatou a certidão de batismo de Cristóvão. Aqueles com quem falei nada sabem ainda. No entanto, sempre tiveram certeza do que não é.

Se perguntásseis a todos os homens antes de Copérnico:

— O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?

— Temos absoluta certeza – responder-vos-iam à uma

Tinham certeza, e no entanto estavam errados.

Sortilégios, adivinhações, obsessões foram durante longo tempo as coisas mais certas do mundo aos olhos de todos os povos. Quanta gente presa dessas ilusões não estava certa do que presumia ver! Hoje acha-se menos em voga essa certeza.

Vem visitar-me um jovem estudante de geometria. Principiante, ainda se acha às voltas com a definição dos triângulos.

— Não é certo – pergunto-lhe – que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos?

— Não só não tenho certeza – responde-me – como nem sequer compreendo claramente essa proposição.

Demonstro-lha. Certifica-se, e para o resto da vida.

Eis aí uma certeza muito diferente das anteriores. Aquelas não eram mais que probabilidades que, examinadas, revelaram-se erros. A certeza matemática, porém, é imutável e eterna.

Existo. Penso. Sinto. Será isso tão certo quanto uma verdade geométrica? Sim. Por que? Porque as verdades se provam pelo princípio de que nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Não Posso existir e simultaneamente não existir, sentir e não sentir. Um triângulo não pode ter cento e oitenta graus – a soma de dois ângulos retos – e ao mesmo tempo não os ter.

De mesmo valor são pois a certeza física de que existo, de que sinto e a certeza matemática, embora de gêneros diversos.

O mesmo não acontece com a certeza que se funda em aparências ou testemunhos unânimes dos homens.

— Ora essa! Então não estais certo de que Pequim existe? Não tendes em casa estofos de Pequim! Indivíduos dos mais diversos países e opiniões, que escreveram violentamente uns contra os outros pregando a verdade em Pequim, não vos asseveraram a existência dessa cidade?

— Acho muitíssimo provável ter existido tal cidade. Mas não apostaria a vida em como exista, se bem não hesite em apostá-la em como os três ângulos de um triângulo perfazem dois retos.

Estampou-se no Dictionnaire Encyclopédique uma coisa jovialíssima. Sustenta-se lá que, se mo dissesse toda Paris, eu deveria estar tão seguro, tão certo de que o marechal de Saxe ressuscitou, como o estou de que ele venceu a batalha de Fontenoy, quando toda Paris mo assevera. O raciocínio é admirável: Creio em Paris quando toda ela me diz coisa moralmente possível; portanto não devo cre-la quando me diz coisa moral e fisicamente impossível.

Parece que o autor queria rir, e que o outro autor que se extasia ao fim desse artigo escrito contra si próprio também o queria.


 

CÉU DOS ANTIGOS (O)

Se um bicho da seda desse o nome de céu ao frouxel que lhe envolve o casulo, não raciocinaria pior que os antigos chamando céu à atmosfera, que é, como muito bem diz o Sr. de Fontenelle em seus Mondes, o cotão do nosso casulo.

Os vapores que se exalam dos mares e do solo e formam as nuvens, os meteoros e os trovões, foram a princípio tomados pela morada dos deuses. Em Homero os deuses sempre descem em nuvens de ouro. Vem daí ainda hoje representarem-nos os pintores sentados em uma nuvem. Mas como era justo estivesse o senhor dos deuses mais a vontade que os outros, deram-lhe uma águia por veículo, por ser a ave que mais alto voa.

Vendo os senhores das cidades morarem em cidadelas eretas nas assomadas das montanhas, julgaram os antigos gregos que os deuses também. deviam ter uma cidadela, e colocaram-na na Tessália, no monte Olimpo, cujo vértice não raro se amortalha de nuvens De sorte que seu palácio se achava no mesmo nível do céu.

Estrelas e planetas, que parecem engastados na abóbada azul da atmosfera, foram transformados em outras tantas moradas de deuses. Sete dentre estes tiveram cada um seu planeta. Os outros alojaram-se onde melhor puderam. Em sala a que conduzia a via láctea reunia-se o conselho geral dos deuses: necessário era que tivessem seu congresso no ar, já que os homens tinham seus paços municipais na terra.

Quando os titãs, espécie de animais entre os deuses e os homens, declararam uma guerra justíssima aos deuses em vindicação de sua herança paterna – sendo como eram filhos do Céu e da Terra – não tiveram mais que empilhar duas ou três montanhas umas sobre outras para se tornarem senhores do céu e do castelo do Olimpo.

Neve foret terris securior arduus aether,
affectasse ferunt regnum coeleste gigantes,
altaque congestos struxisse ad sidera montes.

Essa física de crianças e de velhos era antiquíssima. Contudo é muito provável tivessem os caldeus idéias tão sãs quanto nós do que se chama o céu. Colocavam eles o Sol no centro do nosso mundo planetário, em distância da Terra aproximadamente a mesma reconhecida hoje. Em torno do Sol faziam girar a Terra e todos os planetas, ensina-nos Aristarco de Samos. É o verdadeiro sistema do universo, posteriormente reeditado por Copérnico. Os filósofos, porém, guardavam o segredo para si, a fim de serem mais respeitados pelos reis e pelo povo, ou antes, para não serem perseguidos.

É tão familiar aos homens a linguagem do erro que ainda chamamos céu aos vapores e ao espaço entre a Terra e a Lua. Dizemos subir ao céu, como dizemos que o Sol gira, conquanto saibamos que não é assim. Possivelmente, para habitantes da Lua, nós é que somos o céu. Cada planeta coloca o seu céu no planeta vizinho.

Se se perguntasse a Homero para que céu tinha ido a alma de Sarpédon, onde estava a de Hércules, pôr-se-ia o grande poeta em calças pardas. Certamente responderia com versos harmoniosos.

Como saber se a alma aérea de Hércules se acharia mais a vontade em Vênus ou Saturno que na Terra? Ou estaria no Sol? É de crer que não estivesse muito a vontade nessa fornalha. Finalmente, que entenderiam os antigos por o céu? Ignoravam o que fosse. Sempre disseram o céu e a terra. É como se dissessem o infinito e um átomo. Propriamente falando não existe céu. O que há é uma quantidade prodigiosa de globos girando no vazio do espaço, um dos quais é a Terra.

Criam os antigos que ir aos céus era subir. A verdade, porém, é que não se sobe de um astro a outro. Estão os corpos celestes tanto abaixo como acima do nosso horizonte. Assim, supondo que, tendo vindo a Pafos, Vênus regressasse a seu planeta quando este se houvesse posto, não subiria em relação ao nosso horizonte: pelo contrário, desceria, e nesse caso deveria dizer-se descer ao céu. Porém os antigos não alcançavam tais sutilezas. Tinham noções vagas, incertas, contraditórias sobre tudo que concernia à, física. Escreveram-se volumes de légua e meia a fim de saber o que pensavam acerca de um sem número de questões que tais. Bastariam duas palavras: não pensavam.

Sempre é bom excetuar alguns sábios Mas vieram mais tarde. Poucos manifestaram seus pensamentos, e foi o quanto bastou para que os charlatães os mandassem para o céu pelo caminho mais curto

Pretendeu um escritor, chamado, creio; Pluche, promover Moisés a grande físico. Já antes outro o conciliara com Descartes e dera à estampa o Cartesius Mosaizans. A dar-lhe ouvidos foi Moisés quem primeiro concebeu os turbilhões e a matéria sutil. É no entanto por de mais sabido que Deus, fazendo Moisés um grande legislador, um grande profeta, nem sequer lhe passou pela veneta fazê-lo professor de física. Moisés ensinou aos judeus qual era seu dever, mas não lhes disse palavra de filosofia. Calmet, que compilou às pazadas e sem nunca raciocinar, fala de sistema dos hebreus. Porém esse povo grosseiro nunca teve sistema algum. Nem sequer possuíam escola de geometria. O termo era grego para eles. Sua ciência era o ofício de corretor e a usura.

Deparam-se em seus livros algumas idéias obscuras, incoerentes, dignas em tudo por tudo de um povo bárbaro, sobre a estrutura do céu. Seu primeiro céu era o ar. O firmamento, sólido e de gelo, sustinha as águas superiores, que ao tempo do dilúvio vazaram desse reservatório por portas, esclusas e cataratas.

Acima do firmamento ou das águas superiores estava o terceiro céu ou empíreo, para onde foi arrebatado S. Paulo. Formava o firmamento uma espécie de meia abóbada continente da Terra. O Sol não girava em torno da Terra porque sequer concebiam que a terra fosse redonda. Chegando ao ocidente, voltava ao oriente por caminho desconhecido. E se não se via era em virtude de que, como disse o barão de Foeneste, desandava de noite.

Todas essas fantasias, adotaram-nas os hebreus dos outros povos. Considerava o céu a maioria das nações, tirante a escola dos caldeus, como um sólido. A Terra, fixa e imóvel, era mais longa um grande terço de oriente a ocidente que de meio dia a norte. Daí as expressões longitude e latitude, por nós perfilhadas. Claro que, desta forma, era impossível haver antípodas. Sto. Agostinho trata a idéia de antípodas de absurdo, e diz expressamente Lactâncio: “Haverá indivíduos tão estúpidos a ponto de crerem que possa haver homens de cabeça para baixo?”

Pergunta S. Crisóstomo em sua décima quarta homilia: “Onde estão os que pretendem que os céus sejam imóveis e de forma circular?”

Diz ainda Lactâncio no livro terceiro das Instituições: “Poderia demonstrar-vos com uma enfiada de argumentos que é impossível que o céu circunde a Terra”

Que diga quanto quiser o autor do Espetáculo da Natureza terem sido Lactâncio e S. Crisóstomo grandes filósofos. Responder-lhe-eis terem sido grandes santos e que para tanto não é indispensável ser bom astrônomo. Acreditá-los-eis no céu: mas força é confessardes que ignorais em que ponto precisamente.


 

CHINA (DA)

Vamos à China a procura de terra, como se nos faltasse. Tecidos, como se de tecidos carecêssemos. Certa erva para infundir n’água, como se nossos climas não produzissem símplices. Em paga timbramos em querer converter os chineses. Zelo plausibilíssimo. Mas nem por isso precisamos contestar sua antigüidade e lançar-lhes a tacha de idólatras. Que diríeis de um capuchinho que, depois de generosamente acolhido pelos Montmorency em um de seus castelos, quisesse persuadi-los de que são nobres feitos da noite para o dia, como os secretários do rei, e os acusasse de idólatras por encontrar no castelo duas ou três estátuas de condestáveis a quem os Montmorency votassem profundo respeito?

Proferiu certa vez o famoso Wolf, catedrático de matemáticas na universidade de Halle, um magnífico discurso em louvor da filosofia, chinesa. Elogiou a essa milenária. estirpe de homens – diferentes de nós pela barba, pelos olhos, pelo nariz, pelas orelhas e pelo raciocínio – o adorarem um Deus supremo e amarem a virtude Rendia essa justiça aos imperadores da China, aos colao, aos tribunais, às letras. A justiça que se rende aos bonzos é um pouco diferente.

Wolf atraía a Halle um milheiro de estudantes de todas as nações. Havia na mesma universidade um professor de teologia – atendia ao nome de Lange – que não atraía ninguém. Este homem, desesperado por gelar de frio sozinho no locutório, resolveu perder o professor de matemáticas. Macaqueando os de sua igualha, acusou-o de não crer em Deus.

Pretendiam alguns escritores europeus que nunca haviam estado na China que o governo de Pequim era ateu. Wolf elogiara Pequim. Logo, Wolf era ateu. Melhores silogismos nunca souberam forjar a inveja e o ódio. Corroborado por uma cabala e um protetor, achou o rei de Inglaterra conclusivo o argumento de Lange e propôs ao matemático um dilema formal: deixar Halle em vinte e quatro horas ou ser pendurado – Como tinha e quisesse conservar a cabeça no lugar, Wolf escolheu o primeiro alvitre. Sua retirada subtraiu ao rei duzentos ou trezentos mil escudos anuais, que era quanto fazia entrar no reino esse filósofo pela afluência de discípulos.

Serve este exemplo para mostrar aos soberanos que nem sempre é conveniente dar ouvidos à calúnia e sacrificar um grande homem à inveja de um imbecil.

Voltemos à China.

Como é que nos atrevemos, nós, cá do fim do Ocidente, a disputar encarniçadamente e com torrentes de injúrias por deslindar se houve ou não catorze príncipes na China antes do imperador Fo-hi, e se Fo-hi viveu a três mil ou dois mil e novecentos anos antes da era vulgar? Engraçadíssimo que dois irlandeses se pusessem a brigar em Dublin por saber quem foi, no século XII, o possessor das terras que hoje me pertencem. Não é evidente que deveriam deixá-lo a mim, que tenho os arquivos em mãos?

O mesmo, penso eu, é o caso dos primeiros imperadores da China: cumpre recorrer aos tribunais do país

Agatanhai-vos quanto vos aprouver por amor dos catorze primeiros príncipes que reinaram antes de Fo-hi. Não conseguirão provar vossos bate-bocas mais que já então era a China densamente povoada e vivia sob o império da lei. Agora pergunto-vos: não supõe prodigiosa antigüidade uma nação sedimentada, com leis e príncipes? Pensai em quanto tempo é necessário para que singular concurso de circunstâncias leve a descobrir o ferro nas minas, se empregue na agricultura e se inventem as artes.

Os que fazem filhos a penadas imaginaram um cálculo interessantíssimo. Por uma suputação do arco da velha, dá o jesuíta Pétau à terra, duzentos e oitenta e cinco anos após o dilúvio, população cem vezes maior do que não ousamos atribuir-lhe hoje. Menos cômicos não são os cálculos dos Cumberland e Whiston. Não tinham esses ingênuos senão que consultar os registros das nossas colônias na América para se desencantarem. Ficariam sabendo quão pouco se multiplica o gênero humano, e que não raro diminui em vez de aumentar.

Deixemos, pois, nós que somos de ontem, nós descendentes dos celtas, nós que mal acabamos de surribar as florestas de nosso selvagem habitáculo, deixemos os chineses e hindus desfrutarem em paz de seu maravilhoso clima e de sua antigüidade. Sobretudo demos de mão a essa história de xingar de idólatras o imperador da China e o subabe do Decã.

Não é preciso, todavia, ser fanático do mérito chinês É verdade ser a constituição desse império a melhor do mundo, a única fundada no poder paternal (o que não obsta que os mandarins não vivam a espancar os filhos), a única na qual é punido o governador de província que ao deixar o cargo não seja aclamado pelo povo. A única que instituiu prêmios à virtude, de passo que em todas as outras nações as leis se limitam a castigar o crime. A única que impôs suas leis aos próprios vencedores, enquanto nós ainda vivemos sujeitos aos costumes dos borgúndios, francos e godos que nos avassalaram. Deve-se reconhecer, todavia, ser o vulgacho governado por bonzos tão canalha quanto o nosso. Que, como nós, não perdem ocasião de escorchar o estrangeiro Que nas ciências nos caranguejam a reboque com dois séculos de atraso. Que como a nós gafa-os sem conto de preconceitos ridículos. Que acreditam, como por muito tempo cremos, em talismãs e na astrologia judiciária.

Confessemos ainda que ficaram queixicaídos ante o nosso termômetro, ante o costume de gelarmos licores com salitre e ante todas as experiências de Torricelli e Otto de Guericke, exatamente como o ficamos, quando presenciamos pela primeira vez a esses brincos da física. Que seus médicos não curam melhor que os nossos as doenças mortais e que, tal qual como aqui, na China as moléstias triviais são relegadas aos cuidados exclusivos da natureza. Nada disso impede, porém, que há quatro mil anos, quando sequer sabíamos ler, já estivessem os chins de posse de todas as coisas essencialmente úteis de que hoje fazemos alarde.


 

CIRCUNCISÃO

Ao narrar o que lhe disseram os bárbaros cujos países viajou, Heródoto, como a maioria dos nossos viajores, não nos diz mais que tolices. Não devemos dar-lhe crédito, igualmente, quando fala da aventura de Giges e Candolo, de Árion montado num delfim, do oráculo consultado para saber o que fazia Creso, o qual respondeu que ele estava cozendo uma tartaruga numa panela tampada, do cavalo de Dario que, tendo sido o primeiro em nitrir, proclamou seu dono rei, e de cem outras fábulas próprias para divertir crianças e ser compiladas por retóricos. Quando, porém, fala do que viu, dos costumes dos povos que estudou, das, antigüidades que submeteu a exame, aí sim dirige-se a gente grande.

“Quero crer” – diz no livro Euterpe – “que os habitantes da Cólchida sejam originários do Egito. Julgo-o mais por mim mesmo que de outiva, porque verifiquei ser mais viva a recordação dos antigos egípcios na Cólchida que no Egito a lembrança dos velhos costumes de Colchos.

“Pretendia esse povo praieiro do Ponto Euxino ser uma colônia fundada por Sesostris. Quanto a mim, já o conjeturava, não somente por serem adustos e terem os cabelos frisados, mas porque os povos da Cólchida, Egito e Etiópia são os únicos na terra que sempre praticaram a circuncisão. Quanto aos fenícios e aos habitantes da Palestina, confessam ter copiado tal prática aos egípcios. Da mesma forma os sírios, que hoje estanciam às abas do Termódon e da Parténia, e seus vizinhos mácrons reconhecem não haver muito tempo que se conformaram a esse costume egípcio. É esse até um dos principais atestados de sua ascendência. egipcíaca.

“Quanto à Etiópia e ao Egito, como a circuncisão é antiquíssima tanto num como noutro, não sei qual dos dois tenha importado essa cerimônia. O mais provável, contudo, é terem-na recebido os etíopes dos egípcios. Assim como, contrariamente, desterraram os fenícios o uso de circuncidar as crianças recém nascidas desde que se intensificou seu comércio com os gregos.”

É evidente, de acordo com esse passo de Heródoto, que muitos foram os povos que receberam a circuncisão do Egito. Nenhum, porém, jamais pretendeu tê-la importado dos judeus. A quem atribuir então a origem desta prática: a uma nação de que confessam havê-la perfilhado cinco ou seis outras, ou a uma nação muito menos poderosa, menos comerciante, menos guerreira, encafurnada num canto da Arábia Pétrea, que nunca comunicou a povo nenhum o mais insignificante de seus costumes?

Dizem os judeus ter sido outrora caritativamente acolhidos pelos egípcios. Não é muito verossímil haver o povo ínfimo imitado um uso do grande povo? Não é natural terem os judeus adotado um ou outro costume de seus senhores?

Conta Clemente de Alexandria que, viajando o Egito, Pitágoras foi obrigado a deixar circuncidar-se para ser admitido em seus mistérios. Quer dizer que era absolutamente imprescindível ser circunciso para ingressar no sacerdócio egípcio. Tal sacerdócio já existia quando José foi dar com os costados no país das pirâmides. Antiquíssimo era o governo, e as cerimônias se observavam com a mais escrupulosa exatidão.

Confessam os judeus ter permanecido duzentos e cinco anos no Egito. E dizem não haver praticado a circuncisão nesse espaço de tempo. Claro é por conseguinte que os egípcios não poderiam ter-lhes copiado essa prática enquanto os tiveram como hóspedes. Te-lo-iam feito posteriormente, depois de os judeus lhes haverem roubado todos os vasos que lhes tinham sido emprestados e se rasparem a sete pés para o deserto levando consigo o fruto do roubo, segundo seu próprio testemunho? Adotará um senhor o selo da religião de um escravo que o roubou e fincou pé no mundo? Não o admite a natureza humana.

Diz-se no livro de Josué que os judeus foram circuncidados nos desertos: “Eu vos livrei do que constituía o vosso opróbrio entre os egípcios”. Ora, qual podia ser esse opróbrio para uma nação encravada entre a Fenícia, Arábia e Egito, senão o que os tornava desprezíveis aos olhos destes três povos? Como livrá-los desse opróbrio? Livrando-os de um pouco de prepúcio. Não é o sentido natural do trecho a cima citado?

Diz o Gênesis que Abraão foi circunciso. Mas Abraão esteve no Egito, que era havia muito reino florescente, governado por poderoso rei. Nada impede que nesse reino tão antigo fosse a circuncisão praticada desde muito tempo antes que se formasse a nação judaica. Demais a circuncisão de Abraão foi um caso insulado. Só depois de Josué foi que se vulgou entre seus pósteros esse sacramento.

Ora, antes de Josué os israelitas aprenderam, como eles mesmos confessam, muitos costumes dos egípcios. Imitaram-nos em não poucos sacrifícios, cerimônias, como os jejuns às vésperas das festas de Isis, as abluções, o costume de rapar a cabeça dos padres, o incenso, o candelabro, o sacrifício da vaca ruça, a purificação com hissopo, a abstinência da carne de porco, a aversão aos utensílios de cozinha dos estrangeiros, tudo atestando que o diminuto povo hebreu, mau grado sua antipatia à grande nação egípcia, retivera infinidade de usos de seus ex-senhores. O bode Hazazel, que enviavam ao deserto carregado dos pecados do povo, era visível imitação de uma prática egípcia. Os próprios rabinos convêm em que a palavra Hazazel não é hebraica. Nada obsta portanto que os hebreu hajam imitado os egípcios na circuncisão, como o fizeram seus vizinhos árabes.

Nada de extraordinário há em que Deus, que santificou o batismo, tão antigo entre os asiáticos, santificasse também a circuncisão, não menos antiga entre os africanos. Já dissemos ser senhor de conferir suas graças aos sinais que se dignar eleger.

Demais de tudo, desde que, sob Josué, os judeus foram circuncisos, mantiveram essa prática até nossos dias. O mesmo fizeram os árabes. Os egípcios, porém, que a princípio circuncidavam os jovens de ambos os sexos, com o tempo deixaram de submeter as moças a tal operação, terminando por restringi-la aos sacerdotes, astrólogos e profetas. É o que nos ensinam Clemente de Alexandria e Orígenes. Efetivamente, nunca se ouviu dizer que os Tolemeus tivessem sido circuncidados.

Os autores latinos, que tratam os judeus com tão profundo desprezo que lhes chamam curtas Apella, por derisão, credat Judaeus Appella, curti Judaei, não dão epítetos tais aos egípcios. Hoje a circuncisão é de regra no Egito, mas por outra razão: porque o mafomismo adotou a antiga circuncisão da Arábia.

Foi essa circuncisão árabe que passou à Etiópia, onde ainda se circuncidam os jovens de ambos os sexos.

Não há negar ser à primeira vista bem estranha a cerimônia da circuncisão. Mas note-se que em todos os tempos os sacerdotes do Oriente se consagraram a suas divindades por marcas particulares. Entre os padres de Baco o sinal era uma folha de hera gravada a buril. Diz Luciano que os devotos da deusa Tais imprimiam sinais no pulso e pescoço. Os sacerdotes de Cibele faziam-se eunucos.

É muito provável que os egípcios, que veneravam o instrumento da geração e carregavam-lhe a imagem em suas procissões, tivessem a idéia de oferecer a Isis e Osiris, deuses que presidiam a todos os fenômenos de reprodução, uma partícula do membro por que quiseram essas divindades que o gênero humano se perpetuasse. São os antigos costumes orientais tão diferentes dos nossos que nada parecerá extraordinário a quem quer que tenha um pouco de leitura. Um parisiense fica admirado ao saber que os hotentotes cortam aos filhos um dos testículos. Os hotentotes ficariam admiradíssimos se soubessem que os parisienses conservam os dois.


 

CONVULSÕES

Dançou-se pelo ano de 1724 no cemitério de Saint-Médard. Deram-se no local um sem número de milagres, de que nos dá amostra uma canção da duquesa de Maine:

Um engraxate à real,
do pé esquerdo aleijado,
teve por graça especial
ser do direito privado

Como é sabido, as convulsões miraculosas continuaram até que foi posto um guarda no cemitério.

Em nome do rei veda-se entrar
doravante a Deus neste lugar.

Os jesuítas, como se sabe, já não podendo fazer de tais milagres desde que seu Xavier esgotara as graças da Companhia ressuscitando nove mortos contados a dedo, lembraram-se, para balançar o crédito dos jansenistas, de estampar uma imagem de Jesus Cristo vestido de jesuíta. Como ainda é sabido, escreveu um burlão do partido jansenista em baixo da estampa:

Que jesuítas manhosos!
De medo que vos amássemos,
estes monges engenhosos
vos vestiram à sua imagem.

Os jansenistas, a fim de melhor provar que jamais Cristo poderia tomar o hábito de jesuíta, puseram Paris de pernas para o ar e carrearam o mundo para sua banda. O conselheiro parlamentar Carré de Montgerou apresentou ao rei um relatório in-4 de todos esses milagres, atestados por milhares de testemunhas. Foi metido, como de direito, sob grades, onde se tratou de restabelecer-lhe o cérebro pelo regime. Mas a verdade sobrepaira a todas as perseguições: os milagres se perpetuaram durante trinta anos a fio, sem solução de continuidade. Chamava-se sóror Rosa, sóror Iluminada, sóror Prometida, sóror Confita: açoitavam-nas até o sangue, e no dia seguinte estavam como se nada houvesse acontecido. Vergastavam-lhe o estômago bem encouraçado, bem estofado, sem sequer sentirem. Punham-nas ao fogo, o rosto emplastado de pomadas, e nada de queimar. Enfim, como todas as artes se aperfeiçoam, terminou-se por fincar-lhes espadas nas carnes e por crucificá-las. Chegou-se até a crucificar um teólogo famoso(24), tudo para convencer o mundo do ridículo de certa bula, o que se poderia ter feito sem tanto custo. Nesse em meio jesuítas e jansenistas uniram-se contra o Espírito dos leis, e contra... e contra... e contra ...e contra... E temos o ousio, depois de tudo isso, de escarnicar dos lapões, dos samoiedas e dos negros!


 

CORPO

Assim como não sabemos o que seja espírito, ignoramos o que seja corpo. Percebemo-lhe apenas propriedades. Mas que é o ente em que residem tais propriedades? Tudo é corpo, dizia Demócrito e Epicuro. Não existem corpos, contravinham os discípulos de Zênon de Eléia.

Berkeley, bispo de Cloyne, foi o último que, por cem sofismas capciosos, pretendeu provar que os corpos não existem. Eles não têm, disse, nem cor, nem odor, nem calor. Tudo isso está em vossas sensações e não nos objetos. O Sr. Berkeley podia ter-se poupado ao trabalho de demonstrar semelhante verdade: conhecemo-la de sobejo. Mas daí passa à extensão, à solidez, que são essências do corpo, e julga provar não haver extensão num retalho de pano verde porque em verdade o pano não é verde. A sensação do verde acha-se tão somente em vós: por conseguinte a impressão de extensão não está também senão em vós. Após destruir a extensão, conclui que a solidez cai consequentemente por si mesma, e que portanto nada existe além das nossas idéias. De sorte que, segundo esse doutor, dez mil homens trucidados por dez mil balas de canhão não passam em suma de dez mil apreensões da nossa alma.

Só mesmo o sr. bispo de Cloyne seria capaz de cometer tamanho ridículo. Presume demonstrar que não existe extensão porque com lunetas um corpo lhe parece quatro vezes maior que a olho desarmado, e quatro vezes menor com auxílio de outro vidro. Daí concluir que, não podendo um corpo ter quatro, dezesseis e um só pé de extensão ao mesmo tempo, tal extensão não existe. Logo nada existe. Bastava-lhe medi-lo e dizer: não importa o tamanho que me pareça ter, este corpo tem tantos centímetros.

Muito fácil lhe seria ver que o caso da extensão e da solidez não é o mesmo dos sons, das cores, dos sabores e dos odores. Claro que estes são impressões subjetivas em nós excitadas pela configuração das partes. A extensão, porém, não é sensação. Se se consumir este lenho, deixarei de sentir calor. Não sendo ferido o ar, não ouvirei. Estiole-se esta rosa e já não lhe sentirei o perfume. Independentemente de mim, entretanto, este lenho, este ar, esta rosa têm extensão.

Nem merece refutação o paradoxo de Berkeley.

Cai a talho saber o que o levara a semelhante paradoxo. Há muito tempo tive com ele algumas palestras. Disse-me que a origem de sua opinião era o não se poder conceber o que seja o sujeito da extensão. Efetivamente ele triunfa em seu livro quando pergunta a Hilas o que é esse sujeito, esse substrato, essa substância. “É o corpo estendido” – responde Hilas. Então o bispo, sob o nome de Filonous, põe-se a escarnecê-lo. E o pobre Filonous, percebendo ter dito que a extensão é sujeito da extensão, e que cometeu uma rata, fica atalhado e confessa nada compreender, que não existe corpo nem tão pouco mundo material, que só existe o mundo intelectual.

Bastava Hilas dizer a Filonous: Nós nada sabemos sobre a essência desse sujeito, dessa substância estendida, sólida, divisível, móvel, figurada, etc. Não a conheço mais que o sujeito que pensa, que sente e que quer. Mas sua existência é tão inegável como a deste, pois tem propriedades essenciais de que não há despojá-lo.

Somos como a maior parte das damas de Paris, que se regalam em régios banquetes sem saber o que entra nos acepipes. Semelhantemente, desfrutamos dos.. corpos sem saber de que se compõem. De que é feito o corpo? De partes, que por sua vez se resolvem em outras partes. Que são as últimas partículas? Sempre corpos. Dividireis eternamente e jamais passareis disso.

Afinal um sutil filósofo, notando que um painel se compõe de ingredientes de natureza diversa, e uma casa de materiais dos quais nenhum é casa, imaginou (de maneira um pouco outra) serem os corpos constituídos de infinidade de seres infinitamente pequenos que não são corpos – as mônadas. Tal sistema não deixa de possuir certa exeqüibilidade, e se fosse revelado eu o creria até muito possível. Todos esses entes ínfimos seriam pontos matemáticos, espécies de almas que não esperariam mais que uma capa para se vestirem: seria uma metempsicose contínua. Uma mônada estaria ora numa baleia, ora numa árvore, ora no corpo de um pelotiqueiro. É um sistema e tanto. Tenho-o no mesmo conceito que a declinação dos átomos, as formas substanciais, a graça versátil e os vampiros de dom Calmet.


 

CRISTIANISMO

Pesquisas históricas. – Não poucos eruditos manifestaram sua surpresa em não se lhes deparar no historiador José o menor traço a respeito de Jesus Cristo. Porque todos são acordes hoje em que o breve trecho que lhe dedica o historiador fariseu em sua História foi interpolado. No entanto o pai de José devia ter sido testemunha de todos os milagres de Jesus. José era da casta sacerdotal, parente da rainha Mariana, esposa de Herodes. Esparrama-se nas mais ociosas minudências sobre os mais corriqueiros atos desse príncipe, e contudo não diz palavra sobre a vida ou morte de Jesus. Demais esse historiador, que não encapa nenhuma das crueldades de Herodes, cala o morticínio de todas as crianças por ele ordenado atento à nova de que nascera um rei judeu. Conta o calendário grego catorze mil crianças degoladas nessa ocasião. É o mais abominável dos crimes de todos os soberanos. Não tem símile na história da civilização. A acontecimento tão singular quanto execrável, entretanto, não faz a mais leve referência o melhor escritor que em todos os tempos possuíram os judeus, o único prezado por gregos e romanos. Tão pouco regista ele o aparecimento da nova estrela que teria acendido no céu após o nascimento do Redentor, fenômeno ruidoso que não devia escapar a um historiador esclarecido como José. Mantém silêncio ainda sobre as trevas que, à morte do Salvador, com o sol a pino cobriram toda a terra por espaço de três horas, e sobre a grande quantidade de túmulos que então se abriram e a multidão dos justos ressurretos.

Não cessam os eruditos de manifestar sua surpresa de ver que nenhum historiador romano regista semelhantes prodígios, consumados sob o reinado de Tibério, aos olhos de uma guarnição e de um governador romano, que devia ter enviado ao imperador e ao senado relatório circunstanciado do mais miraculoso evento que ouvidos humanos ouviram contar. A própria Roma devia ter-se imerso durante três horas em espessas trevas. Deviam assinalar tamanho prodígio os fastos de Roma e de todas as nações. Deus não quis fossem tais coisas divinas escritas por mãos profanas.

Outras dificuldades empacham os eruditos na história dos Evangelhos. Observam eles que em S. Mateus Jesus diz aos escribas e aos fariseus que sobre eles recairia todo o sangue inocente derramado na terra, desde Abel até Zacarias, filho de Baraque, por eles assassinado no templo. Ora, a história dos hebreus não menciona, afirmam os eruditos, nenhum Zacarias morto no templo, nem antes nem depois do advento do Messias. O único historiador a registar o fato é José, livro 4, capítulo 19, ao falar do sítio de Jerusalém. Daí suspeitaram eles ter o Evangelho segundo S. Mateus sido escrito depois da tomada de Jerusalém por Tito. Mas todas as dúvidas e objeções dessa espécie se dirimem desde que se considere a infinita diversão que forçosamente há de haver entre os livros divinamente inspirados e os livros dos homens. Aprouve a Deus envolver numa nuvem tão respeitável quanto obscura o seu nascimento, sua vida e sua morte. Em tudo diferem seus métodos dos nossos.

Outro ponto que tem quebrado a cabeça aos literatos é a diferença das duas genealogias de Cristo. S. Mateus dá por pai a José, Jacó, a Jacó, Matã, a Matã, Eleazar. S. Lucas, ao contrário, diz que José era filho de Heli, Heli de Matate, Matate de Leví, Leví de Jana, etc.

Engasga-os ainda a suposição de Jesus não ser filho de José, mas de Maria. Atalham-nos também certas dúvidas quanto aos milagres do nosso Redentor, atentos os escritos de Sto. Agostinho, Sto. Hilário e outros, que atribuíram ao relato de tais milagres sentido místico, alegórico. Exemplos: a figueira amaldiçoada e secada para não dar frutos, quando não era tempo de figo. Os demônios enviados no corpo de porcos, num país onde não havia porcos. A água transformada em vinho ao fim de um repasto, quando os comensais já se achavam excitados. Todas essas críticas dos doutos, porém, confunde-as a fé, que com isso não faz senão aviventar-se. Outro não é o escopo deste artigo senão rastear o fio histórico e dar uma idéia tanto quanto possível exata dos fatos sobre que ninguém discute.

Primeiramente, Jesus nasceu sob a lei mosaica, segundo esta lei foi circuncidado, dela cumpriu todos os preceitos e celebrou todas as festas. Só pregou moral. Não revelou o mistério da própria encarnação nem disse aos judeus haver nascido de uma virgem. Recebeu a bênção de João nas águas do rio Jordão, cerimônia a que muitos judeus se submetiam, conquanto ele próprio jamais tenha batizado ninguém. Não falou dos sete sacramentos – Humanamente não se colocou em nenhuma hierarquia eclesiástica. Ocultou a seus contemporâneos ser filho de Deus, eternamente gerado, consubstancial a Deus, e que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho. Não disse que sua pessoa se compunha de duas naturezas e de duas vontades. Quis que esses grandes mistérios fossem revelados aos homens no decorrer dos tempos por aqueles que haviam de ser esclarecidos pelas luzes do Espírito Santo. Vivo, em nada se arredou da lei de seus pais. Não mostrou aos homens mais que um justo grato a Deus, perseguido pelos invejosos e condenado à morte por magistrados prevenidos. Quis que sua Santa Igreja, por ele fundada, fizesse o resto.

Fala José no capítulo 12 de sua História de uma seita de judeus rigoristas, recentemente fundada por um tal Judas galileu – “Eles desprezam” – diz – “os males terrenos, triunfando dos tormentos pela constância. Preferem, pela glória, a morte à vida. Optaram sofrer ferro e fogo, deixar que lhes quebrassem os ossos a pronunciar a menor palavra contra seu legislador ou comer carnes vedadas”.

O retrato parece quadrar aos judaístas e não aos essênios. Palavras de José: “Judas foi autor de uma nova seita, de todo ponto diversa das três outras – de saduceus, fariseus e essênios”. A breve trecho: “São judeus de nacionalidade. Vivem unidos entre si, e consideram vício a volúpia”. Denota o sentido natural da frase ser dos judaístas que fala o autor.

Seja como for, conheceram-se esses judaístas antes que os discípulos de Cristo constituíssem partido considerável no mundo.

Os terapeutas eram uma sociedade diferente de essênios e judaístas. Tiravam aos ginossofistas da Índia e aos bramas. “Anima-os” – atesta Fílon – “um ímpeto de amor celeste que os transporta ao entusiasmo dos bacantes e coribantes e guinda-os ao estado de contemplação a que aspiram. Esta seita nasceu em Alexandria, então inçada de judeus, e alastrou ferazmente pelo Egito”.

Os discípulos de João Batista também proliferaram um pouco no Egito, mas principalmente na Síria e Arábia. Medraram outrossim na Ásia Menor. Dizem os Atos dos Apóstolos (capítulo 19) haver Paulo encontrado muitos deles em Éfeso, aos quais indagou:

“— Recebestes o Espírito Santo

— Nem sequer ouvimos falar que houvesse um Espírito Santo.

— Que batismo recebestes

— O batismo de João.”

Existiam, nos primeiros anos que se seguiram à morte de Cristo, sete sociedades ou seitas distintas entre os judeus: fariseus, saduceus, essênios, judaístas, terapeutas, discípulos de João e discípulos de Cristo, cujo diminuto rebanho Deus conduzia a sendas desconhecidas da sabedoria humana.

Foram os fiéis apelidados cristãos em Antióquia, por beira do ano 60 da era vulgar. No império romano, como adiante veremos, foram conhecidos por outros nomes De primeiro não se distinguiam senão pela denominação de irmãos, santos ou fiéis. Deus, que baixara à terra a fim de ser exemplo de humildade e pobreza, dera assim toscos alicerces à sua igreja e guiara-a no mesmo estado de humilhação em que lhe aprouvera nascer. Foram os primeiros cristãos homens obscuros, trabalhadores manuais. Diz o apóstolo Paulo que ganhava a vida construindo tendas. S. Pedro ressuscitou a costureira Dorcas, que fazia os hábitos dos irmãos. Os fiéis reuniam-se em Jope, em casa de um curtidor de nome Simão, reza o capítulo 9 dos Atos dos Apóstolos.

Secretamente os fiéis se infiltraram na Grécia, e de lá alguns conseguiram transladar-se a Roma de contrabando com os judeus, a quem os romanos permitiam o funcionamento de uma sinagoga. Não se lhes separaram logo. Observavam a circuncisão e, como alhures já se advertiu, os quinze primeiros bispos de Jerusalém foram todos circuncidados.

Ao tomar consigo Timóteo, que era filho de pai gentio, o apóstolo Paulo circuncidou-o com as próprias mãos no lugarejo de Listra. Tito, porém, outro discípulo seu, não se deixou circuncidar. Mantiveram-se os irmãos discípulos de Cristo em união com os judeus até que Paulo foi perseguido em Jerusalém por levar estrangeiros ao templo. Acusavam-no os judeus de querer substituir a lei mosaica por Jesus Cristo. Foi para expungir-se dessa acusação que o apóstolo Jaques propôs ao apóstolo Paulo fazer-se rapar a cabeça e purificar-se no templo com quatro judeus. que haviam feito voto de se barbearem. “Tomai-os convosco” – disse-lhe Jaques (capítulo 21, Atos dos Apóstolos). – “Purificai-vos com eles, e que todos saibam ser falso o que de vós se diz e que continuais a observar a lei de Moisés”.

Paulo foi criminado também de impiedade e heresia, e seu processo durou longo tempo. Evidencia-se porém das próprias acusações contra ele assacadas que ele viera a Jerusalém para observar os ritos judaicos.

São palavras textuais de Paulo a Festo (capítulo 25 dos Atos): “Não pequei nem contra a lei judaica nem contra o templo”.

Os apóstolos anunciavam Cristo como judeu, observador da lei judaica, enviado de Deus para fazê-la observar.

“A circuncisão é útil” – diz o apóstolo Paulo (capítulo 2, Epístolas aos Romanos) – “se observais a lei. Mas se a violais vossa circuncisão torna-se em prepúcio. Se o incircunciso observa a lei, é como se fosse circunciso. Verdadeiro judeu é o que o é interiormente”.

Ao falar de Jesus em suas Epístolas, não revela esse apóstolo o mistério inefável da consubstancialidade do Crucificado com Deus. “Por ele fomos salvos” – diz (capítulo 5, Epístolas aos Romanos) “da cólera de Deus – Pela graça concedida a um só homem – Jesus Cristo – derramou-se sobre nós o dom divino. Pelo pecado de um só homem, reinou a morte. Por um só homem – Jesus – os justos reinarão.” E no capítulo 8: “Nós, os herdeiros de Deus e os co-herdeiros de Cristo.” No capítulo 16: “A Deus, que é o sábio único, honra e glória por Jesus Cristo. -. – Vós estais em Jesus, e Jesus está em Deus” (1a. Aos Coríntios, cap. 3). E (ibd., cap. 15, v. 27): “A ele tudo está sujeito, que a ele Deus tudo sujeitou”.

Teve-se certa dificuldade em explicar este lanço da Epístola aos Filipinos: “Nada façais por glória vã. Crede mutuamente pela humildade que os outros vos são superiores. Abrigai os mesmos sentimentos que Jesus, que, achando-se em missão de Deus, nem por isso cogitou usurpá-lo a ele se igualando”. Penetra-o e esclarece-lhe o verdadeiro sentido uma carta que nos legaram as igrejas de Viena e Lião, escrita no ano 117, precioso monumento da antigüidade. Louva-se nela a modéstia de alguns fiéis: “Eles não quiseram” – reza – “aureolar-se do título de mártires (por algumas tribulações) a exemplo de Jesus, que, em representação divina, não cogitou usurpar a qualidade de par de Deus”. Assim também diz Orígenes em seu Comentário sobre João: “Mais irradiante foi a grandeza de Jesus humilhando-se do que se tivesse usurpado a paridade com Deus”. Efetivamente, seria visível contra senso a interpretação contrária. Que significaria: “Crede os outros superiores a vós. Imitai Jesus, que não cogitou ser usurpação igualar-se a Deus”? Seria contradizer-se grosseiramente, seria dar um exemplo de grandeza por um exemplo de modéstia. Seria pecar contra o senso comum.

Assim fundava a sabedoria dos apóstolos a igreja nascente. Sabedoria que a disputa sobrevinda entre os apóstolos Pedro, Jaques e João de um lado e Paulo de outro não conseguiu turbar. Essa disputa sobreveio em Antióquia. O apóstolo Pedro, também chamado Cefas, ou ainda Simão Barjone, comia com os gentios conversos e com eles não observava as cerimônias da lei nem a distinção das carnes. Comiam, ele, Barnabé e outros discípulos, indiferentemente carne de porco, carnes afogadas de animais que tinham o pé fendido e que não ruminavam. Havendo chegado, entretanto, numerosos judeus cristãos, com eles S. Pedro retornou à abstinência das carnes proibidas e às cerimônias da lei mosaica.

A medida era prudente. Ele não queria escandalizar os judeus cristãos seus companheiros. Porém Paulo levantou-se contra ele com um pouco de dureza. “Eu lhe resistia” – disse-lhe no rosto – “porque era condenável”. (Epístola aos Gálatas, cap. 2).

Essa querela parece tanto mais extraordinária da parte de S. Paulo quanto a princípio ele fora perseguidor, o que o devia tornar mais modesto, fizera sacrifícios no templo de Jerusalém, circuncidara seu discípulo Timóteo e cumprira os ritos judeus que agora censurava em Cefas. Pretende S. Jerônimo que essa disputa entre Paulo e Cefas era de encomenda. Diz em sua primeira Homilia, tomo 2, que eles fizeram como dois advogados que, para ter mais autoridade sobre os clientes, se escandecem e se aferrotoam no tribunal. E sugere que, pretendendo Pedro Cefas pregar aos judeus e Paulo aos gentios; simularam querelar, Paulo para carear os gentios, Pedro para conquistar os judeus. Sto. Agostinho, porém, não está pelos autos: “Amofina-me” – escreve na Epístola a Jerônimo – “que um tão grande homem se torne patrono do embuste, patronum mendacii”.

De mais a mais, se Pedro ia pregar aos judeus judaizantes e Paulo aos estrangeiros, é muito provável que Pedro não haja vindo a Roma. Nenhuma menção fazem dessa viagem os Atos dos Apóstolos.

Seja como for, foi por volta do ano 60 da nossa era que os cristãos começaram a desquitar-se da comunhão judaica, o que tantas encrencas e perseguições lhes custou de parte das sinagogas de Roma, Grécia, Egito e Ásia. Acusaram-nos seus irmãos judeus de irreligiosidade, ateísmo e excomungavam-nos três vezes nos dias de sabate. Mas Deus protegeu-os em meio ao alude das perseguições.

Pouco a pouco proliferaram igrejas, e antes do fim do primeiro século ultimou-se o divórcio entre judeus e cristãos. O governo romano ignorava essa separação. Nem o senado nem os imperadores tinham olhos para as brigas de um partido insignificante que até então Deus conduzira na obscuridade e só insensivelmente trazia à luz diurna.

Balancemos o estado em que a esse tempo se achava a religião do império romano. Em quase toda a terra gozavam de crédito os mistérios e as expiações. Imperadores, grandes e filósofos, é verdade, não tinham a menor fé em tais mistérios. Mas o povo, que em matéria de religião dita a lei aos grandes, impunha-lhes a necessidade de se conformarem aparentemente com seu culto. Cumpre, para encadeá-lo, arrastar as mesmas cadeias que ele. O próprio Cícero iniciou-se nos mistérios de Eleusina. A concepção monoteica era o principal dogma que se anunciava nessas festas misteriosas e magníficas. Não há negar serem as orações e os hinos que desses mistérios nos restam o que de mais piedoso e admirável possui o paganismo.

O serem os cristãos também monoteístas muito lhes facilitou a conversão dos gentios. Alguns filósofos da seita de Platão bandearam para o cristianismo. Aí está por que foram platônicos todos os padres da igreja dos três primeiros séculos.

O zelo inconsiderado de alguns não conseguiu opor empeços às verdades fundamentais. Reprovou-se a S. Justino, um dos primeiros padres, o haver dito em seu Comentário sobre Isaías que, em reinado de mil anos sobre a terra, os santos gozariam de todos os bens sensuais. Reputou-se-lhe crime o dizer na Apologia do Cristianismo que, tendo Deus criado a terra, deixou-a aos cuidados dos anjos, que, enamorando-se das mulheres, lhes fizeram filhos, que são os demônios.

Condenou-se a Lactâncio e outros padres o terem dado crédito aos oráculos das sibilas. Pretendia ele haver a sibila Eritréia composto estes quatro versos gregos, que traduzo à cortiça da letra: – Com cinco pães e dois peixes – ele alimentará cinco mil homens no deserto. – E, juntando os sobejos, – doze cestos encherá.

Acoimou-se outrossim aos primeiros cristãos a falsa alegação de certos versos acrósticos de uma antiga sibila, os quais começavam todos pelas letras iniciais do nome de Jesus Cristo dispostas na mesma ordem.

Esses escrúpulos anticientíficos de alguns cristãos não impediram a igreja de realizar os progressos que lhe reservava Deus. Primitivamente os cristãos celebravam seus mistérios em casas retiradas, em subterrâneos, de noite. Daí, atesta Minútio Félix, lhes veio o apelido de lucifugaces. Fílon chamava-os gesseanos. Nos quatro primeiros séculos foram mais comumente conhecidos por galileus e nazarenos. Sobre todas essas denominações, todavia, prevaleceu a de cristãos.

Nem a hierarquia nem as práticas foram estabelecidas de uma vez. Os tempos apostólicos foram diferentes dos que se lhes seguiram. Ensina-nos S. Paulo (1a. Aos Coríntios) que estando os irmãos retinidos – circuncisos ou não – só podiam falar dois ou três profetas, e se entrementes alguém tivesse uma revelação, o profeta que tomara a palavra era obrigado a calar-se.

Sobre esse uso da igreja primitiva ainda hoje se fundam muitas comunhões cristãs, em cujas reuniões não há hierarquia. Inicialmente qualquer pessoa tinha o direito de falar na igreja, tirante as mulheres. A santa missa de hoje, que se celebra de manhã, primitivamente celebrava-se à tarde e era a ceia. Esses costumes mudaram à proporção que a igreja se fortaleceu. Sociedade mais extensa exigia evidentemente maior número de regulamentos, e a prudência dos pastores soube conformar-se às diferenças de tempo e lugar.

Abonam S. Jerônimo e Eusébio que, constituídas as igrejas, paulatinamente foram se distinguindo cinco ordens eclesiásticas: os vigilantes. – episcopoi – de onde provêem os bispos; os antigos da sociedade – presbyteroi – padres; os serventes ou diáconos – diaconoi; pistoi – crentes, iniciados, isto é, os batizados, que participavam das ceias dos ágapes; finalmente os catecúmenos e energúmenos, candidatos ao batismo. O hábito era o mesmo para as cinco ordens. Todas deviam manter o celibato, testemunham o livro de Tertuliano dedicado a sua mulher e o exemplo dos apóstolos. Nos três primeiros séculos nenhuma representação, pintada ou esculpida, presidia a suas reuniões. Os cristãos escondiam cuidadosamente seus livros aos gentios, não os confiando senão aos iniciados. Nem aos catecúmenos era permitido recitar a oração dominical.

O que mais caracteristicamente distinguia os cristãos, e que veio até nossos dias, era o poder de espantar os diabos com o sinal da cruz. Conta Orígenes no Tratado contra Celso, número 133, que Antinous, divinizado pelo imperador Adriano, fazia milagres no Egito por força de encantamentos e prestígios. Acrescenta, entretanto, bastar a simples pronunciação do nome de Jesus para os diabos deixarem o corpo dos possessos.

Tertuliano vai mais longe e dos fundos da África proclama: “Se vossos deuses não confessarem ser diabos na presença de um vero cristão, de bom grado vos veria derramar o sangue desse cristão”. (Apologética, capítulo 23). Haverá coisa mais evidente?

Efetivamente, Jesus Cristo enviou seus apóstolos a fim de correr os demônios. Dom de expulsá-los tiveram também os judeus, porque, quando Jesus livrou possessos e espaventou os diabos no corpo de uma vara de porcos e operou outras curas que tais, disseram os fariseus: expulsa os demônios pelo poder de Belzebu. – Se é por Belzebu que eu os expulso – retrucou Jesus – por quem os expulsam vossos filhos!” É incontestável que os judeus se gabavam desse poder. Tinham exorcistas e exorcismos. Invocavam o nome do deus de Jacó e de Abraão. Introduziam ervas consagradas no nariz dos demoníacos. (José relata parte dessas cerimônias). Esse poder sobre os diabos, que os judeus perderam, transmitiu-se aos cristãos, que também parecem tê-lo perdido desde algum tempo.

Compreendia o poder de expulsar os demônios também o de desfazer as operações da magia. Porque a magia esteve em voga em todos os tempos e em todas as nações. Todos os padres da igreja a ela se referem. Observa S. Justino (Apologética, livro 3) ser muito comum invocar-se a alma dos mortos, tirando daí um argumento em favor da imortalidade da alma. Lactâncio (Instituições Divinas, livro 7) diz que “Se ousásseis negar a subsistência da alma ao corpo, o mago vos convenceria do contrário fazendo-a aparecer”. Ireneu, Clemente Alexandrino, Tertuliano, o bispo Cipriano, todos afirmam a mesma coisa – Verdade é que hoje tudo mudou e que já não existem magos nem endemoninhados. Mas certamente voltarão à cena quando for da vontade de Deus.

Quando as sociedades cristãs se tornaram mais ou menos numerosas e muitas se levantaram contra o culto do império romano, contra elas agiram rigorosamente os magistrados e sobretudo as perseguiu o povo. Não se perseguia aos judeus, que gozavam de privilégios particulares e se encaramujavam em suas sinagogas. Permitia-se-lhes o exercício de sua religião, como ainda o permite a Roma de hoje. Todos os cultos do império eram tolerados, embora não os adotasse o senado.

Tendo porém os cristãos se declarado inimigos de todos esses cultos, e sobretudo da religião do império, expuseram-se muitas vezes a cruéis provações.

Um dos primeiros e mais célebres mártires foi Inácio, bispo de Antióquia, condenado pelo próprio imperador Trajano, então na Ásia, e por ordens suas transportado a Roma a fim de ser exposto às feras. Isso num tempo em que ainda não era costume trucidar cristãos em Roma. Ignora-se de que tenha sido acusado junto desse imperador, afamado pela demência. Necessário era que Inácio tivesse inimigos figadais. De qualquer forma, conta a história de seu martírio haver-se encontrado em seu coração, gravado em letras de ouro, o nome de Jesus Cristo. Daí apelidarem-se os cristãos em alguns lugares teóforos, como a si próprio se chamava Inácio.

Conserva-se uma carta sua em que pede aos bispos e aos cristãos não se oporem a seu martírio, fosse porque já então eram os fiéis em número suficiente para impedi-lo, fosse porque os houvesse bastante acreditados para obter-lhe a graça. Notável é ter-se consentido que, ao ser trazido a Roma, os cristãos desta cidade fossem recebê-lo. O que prova que se punia nele a pessoa e não a seita.

Não foram continuadas as perseguições. Escreve Orígenes (Tratado contra Celso, livro 3): “Poucos foram os cristãos que morreram por sua religião. Só muito raramente se verificavam execuções dessa natureza”.

Tantos carinhos dispensou Deus a sua igreja que, a despeito de seus desafetos, fez que tivesse cinco concílios (congressos tolerados) no primeiro século, dezesseis no segundo e trinta no terceiro. Por vezes tais congressos foram proibidos, quando a falsa prudência dos magistrados temia que degenerassem em tumultos. Poucos são os processos verbais que nos restam de procônsules e pretores que condenaram cristãos à morte. Só à vista desses documentos poderíamos julgar das acusações contra eles assacadas e de seus suplícios.

Temos um fragmento de Dinís de Alexandria, no qual se relata o extrato da chancelaria de um procônsul do Egito sob o imperador Valeriano. Ei-lo:

Introduzidos na sala de audiência Dinís, Fausto, Máximo, Marcelo e Queremão, disse-lhes o prefeito Emiliano: “Tomastes conhecimento, pelas palestras que convosco tive e por tudo que a respeito tenho escrito, quão bondosos têm sido nossos príncipes em relação a vós. Repito-o: a vós mesmos entregaram vossa conservação e vossa saúde. Vosso destino está em vossas mãos. Uma única coisa vos pedem, coisa que a razão exige a toda pessoa razoável: que adoreis os deuses protetores de seu império e renegueis a esse culto contrário à natureza e ao bom senso”.

Respondeu Dinís: “Nem todos os homens têm os mesmos deuses. Cada um adora os que julga verdadeiramente serem-no.”

Replicou o prefeito Emiliano: “Vejo que sois ingratos e que abusais da bondade dos imperadores. Pois bem: não continuareis nesta cidade. Mandá-los-ei para Cefro, nos confins da Líbia, conforme ordem que recebí dos nossos imperadores. Não penseis reeditar lá vossas reuniões nem orar nesses lugares a que chamais cemitérios: tal vos é terminantemente vedado, e não o permitirei a ninguém”.

Nada mais possivelmente verdadeiro que esse processo verbal. Evidencia-se que houve tempo em que eram proibidas as reuniões dos cristãos, assim como entre nós se interdiz aos calvinistas congregarem-se em Languedoc. Chegamos até, uma vez ou outra, a fazer enforcar e rodar ministros e pregadores que promoveram congressos a despeito da lei. Na Inglaterra e Irlanda, igualmente, proíbem-se as reuniões de católicos romanos, e ocasiões houve em que os delinqüentes foram condenados à morte.

Mau grado essas interdições das leis romanas, Deus inspirou a muitos imperadores a indulgência para com os cristãos. O próprio Diocleciano, que os ignorantes têm como perseguidor, Diocleciano, cujo primeiro ano de reinado ainda se enevoa na idade dos mártires, foi durante muitos anos protetor declarado do cristianismo, a ponto de numerosos cristãos deterem dos principais cargos ao pé de sua pessoa. Chegou a tolerar que em Nicomedia, sua residência, se elevasse uma igreja defronte a seu palácio.

Infelizmente prevenido contra os cristãos, de quem temia viesse algum dia a se lamentar, o césar Galério fez Diocleciano destruir a catedral de Nicomédia. Um cristão mais piedoso que reportado fez em pedaços o édito do imperador, acendendo a famosa perseguição que condenou à morte mais de duzentas pessoas em toda a extensão do império romano, sem contar as que, contra as formas jurídicas, sacrificou a fúria do populacho, sempre fanático e sempre bárbaro.

Tão copioso é o rol dos mártires que seria conveniente cuidar de não baralhar a história dos verdadeiros confessores da nossa santa religião com o perigoso emaranhado de fábulas e falsos mártires.

O beneditino dom Ruinart, por exemplo, homem aliás de tanta instrução quanto respeitável e zeloso, devia ter escalrachado com mais discrição seus Atos Sinceros. Não é só escabichar um manuscrito em meio à papelada do abade de Saint-Benoît-sur-Loire ou de um convento de celestinos de Paris, conforme a um manuscrito dos fuldenses, e decretá-lo autêntico. É necessário que seja antigo, escrito por contemporâneos e, sobretudo, que estampe o selo da verdade.

Exemplo: o caso do jovem Romano, que a história situa no ano 303. Romano obtivera, em Antióquia, o perdão de Diocleciano. Sentencia o sr. Ruinart, no entanto, ter sido ele condenado ao fogo pelo juiz Asclepíades. Judeus presentes ao espetáculo haveriam mofado do jovem S. Romano, acoimando aos cristãos o abandoná-los seu Deus à tortura do fogo, ele que salvara ao forno Sidraque, Misaque e Abdenago. Presto se levantaria, no mais sereno do tempo, uma tempestade que apagaria o fogo. Então o juiz teria ordenado que se cortasse a língua ao jovem Romano. Encontrando-se ali o primeiro médico do imperador, oficiosamente desempenharia a função de algoz, cortando-lhe cerce a língua. De improviso o jovem, que era tartamudo, começaria a parolar muito a prazer. Assombrando-se o imperador de que se falasse tão bem sem língua, o médico, para reiterar a experiência, cortaria a língua ao primeiro passante que visse, o qual morreria instantaneamente.

Eusébio, de quem o beneditino Ruinart extraiu esse conto, devia respeitar um pouco mais os verdadeiros milagres operados no Velho e Novo Testamento (que ninguém terá o desplante de pôr em dúvida) e não enxertar-lhes histórias tão suspeitas, que podem escandalizar os simples.

Essa última perseguição não se estendeu a todo o império. Havia então na Inglaterra uns brotos de cristianismo, os quais se eclipsaram incontinenti para logo pôr a cabecinha de fora sob os reis saxões. Inçadas de cristãos estavam as Gálias meridionais e a Espanha. Muito os protegeu em todas essas províncias o césar Constâncio Cloro. Teve até uma concubina cristã: a mãe de Constantino, conhecida por Sta. Helena. Porque o fato é que nunca se provou que fossem casados, e efetivamente, ao esposar a filha de Maximiano Hércules, em 292, Constâncio recambiou-a. Helena, contudo, conservara sobre ele grande ascendência, inspirando-lhe profunda afeição a nossa santa religião.

Preparou a divina Providência, por vias que mais parecem humanas que divinas, o triunfo de sua igreja. Constâncio Cloro morreu no ano 306, em York, Inglaterra, quando os rebentos que tivera da filha de um césar mal se haviam emancipado dos cueiros, não podendo portanto candidatar-se ao trono. Fez-se Constantino eleger em York por cinco ou seis mil soldados, alemães, gauleses e ingleses na maior parte. Nada augurava que semelhante eleição, realizada sem consentimento de Roma, do senado e dos exércitos, pudesse prevalecer. Deus, não obstante, deu-lhe a vitória sobre Maxêncio, eleito em Roma, e por fim desembaraçou-o de todos os rivais. De tudo isso depreende-se que não o tornara indigno dos favores do céu o haver assassinado todos aqueles que dele se aproximaram, a própria mulher e o próprio filho.

Impossível duvidar do que a respeito relata Zósimo. Diz que, mordido de remorsos depois de tantos crimes, Constantino perguntou aos pontífices do império se ainda havia expiação possível para ele, ao que lhe responderam não conhecer. Verdade é que também não a houvera para Nero, que não ousara assistir aos sacros mistérios na Grécia. Estavam em voga, entretanto, os taurobólios, e seria difícil crer que um imperador que tudo podia não encontrasse um padre que lhe concedesse sacrifícios expiatórios. Menos crível ainda será que, absorvido pela guerra, sua ambição, seus projetos e rodeado de bajuladores, tivesse Constantino tempo para sentir remorsos. Acrescenta Zósimo que um padre egípcio vindo da Espanha, que tinha acesso a sua porta, prometeu-lhe a expiação de todos os seus crimes dentro da religião cristã. Desconfia-se tratar-se de Ózio, bispo de Córdova.

Seja como for, Constantino comungou com os cristãos, se bem nunca tivesse sido catecúmeno, e reservou o batismo para a hora da morte. Mandou construir a cidade de Constantinopla, que se tornou centro do império e da religião cristã. Então a igreja tomou uma forma augusta.

Note-se que desde o ano 314, antes de Constantino fixar residência em sua nova cidade, os que haviam perseguido os cristãos foram por estes punidos de suas crueldades. Os cristãos lançaram a mulher de Maximiano ao Oronte, degolaram todos os seus parentes e trucidaram no Egito e Palestina os magistrados que mais abertamente tinham se declarado contra o cristianismo. Identificadas a viúva e a filha de Diocleciano, que se haviam refugiado em Tessalônica, atiraram-nas ao mar. Seria de desejar dessem os cristãos menos ouvidos ao espírito de vingança. Mas quis Deus, que castiga segundo a sua justiça, que as mãos dos cristãos se tingissem do sangue de seus perseguidores apenas as tivessem desvencilhadas.

Convocou, reuniu Constantino em Nicéia, em frente a Constantinopla, o primeiro concílio ecumênico, presidido por Ózio. Lá se decidiu a magna questão que agitava a igreja, referente à divindade de Jesus Cristo.

Uns esposavam a opinião de Orígenes, que diz no sexto capítulo contra Celso: “Endereçamos as nossas preces a Deus por Jesus, que está entre as naturezas criadas e a natureza incriada, que nos transmite a graça de seu pai e, na qualidade de pontífice nosso, depõe a Deus as nossas orações”. Estribavam-se outrossim em diversos passos de S. Paulo, alguns dos quais transcrevemos páginas atrás. Sobretudo arrimavam-se a estas palavras de Cristo: “Meu pai é maior que eu”. Viam em Jesus o primogênito da criação, a mais pura emanação do Ser Supremo, mas não Deus precisamente.

Outros, ortodoxos, traziam à luz argumentos mais conformes à divindade eterna de Jesus, como este: “Meu pai e eu somos a mesma coisa” Palavras que seus adversários interpretavam como significando: “Meu pai e eu temos o mesmo desígnio, a mesma vontade. Não tenho outros desejos senão os de meu pai”. Capitaneavam os ortodoxos primeiro Alexandre, bispo de Alexandria, e depois Atanásio. No partido contrário alinhavam-se Eusébio, bispo de Nicomedia, o padre Ario e mais dezessete bispos e numerosos padres. Logo de saída azedou-se a disputa por haver Alexandre tratado de anticristos seus adversários.

Enfim, ao cabo de muita discussão assim se pronunciou o Espírito Santo no concílio pela boca de duzentos e noventa e nove bispos contra dezoito: “Jesus é o filho único de Deus, gerado do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da luz, vero Deus de vero Deus, consubstancial ao Pai. Cremos igualmente no Espírito Santo, etc.” Foi esta a fórmula do concílio. Vê-se pelo exemplo o quanto prevaleciam os bispos sobre os simples padres. Dois mil membros da segunda ordem perfilhavam o parecer de Ario, segundo relação de dois patriarcas de Alexandria que escreveram a crônica dessa cidade em árabe. Ano foi exilado por Constantino. Logo o foi também Atanásio, e Ario de novo chamado a Constantinopla. Porém tão fervorosamente pediu Macário a Deus que o fizesse morrer antes de entrar na catedral que foi atendido. Faleceu Ario a caminho da igreja, no ano 330. Em 337 finou-se Constantino. Entregou seu testamento a um padre ariano e morreu nos braços do chefe dos arianos, Eusébio, bispo de Nicomedia, só se batizando à hora da morte. Deixou a igreja triunfante, embora dividida.

Tremenda guerra estalou entre os partidários de Atanásio e os de Eusébio, e o chamado arianismo vigorou longo tempo em todas as províncias do império.

Juliano o filósofo, cognominado o Apóstata, tentou pôr cobro a tais divisões, porém em vão.

O segundo concílio geral reuniu-se em Constantinopla, em 381. Esclareceu-se então o que o concílio de Nicéia não julgara a propósito dizer sobre o Espírito Santo, e acrescentou-se à fórmula niceana que “O Espírito Santo é senhor vivificante procedente do Pai, e adorado e glorificado como o Pai e o Filho”.

Só no século IX estatuiu gradativamente a igreja latina proceder o Espírito Santo do Pai e do Filho.

Em 431 o terceiro concílio geral realizado em Éfeso resolveu que Maria foi de fato mãe de Deus, e que Jesus tinha duas naturezas e uma pessoa. Querendo Nestório, bispo de Constantinopla, que a Santa Virgem fosse chamada mãe de Cristo, declarou-o judas o concílio.

Confirmou a dualidade de naturezas de Cristo o concílio de Calcedônia.

Refiro-me a lume de palha aos séculos subsequentes por sobejamente conhecidos. Infelizmente todas essas disputas eram pomo de guerras, de forma que volta e meia a igreja se via obrigada a combater. Aprouve a Deus, a fim de provar a paciência dos fiéis, que no século IX gregos e latinos rompessem definitivamente. Aprouve-lhe ainda que se formassem no Ocidente vinte e nove cismas sangrentos para o púlpito de Roma.

Entretanto quase toda a igreja grega e toda a igreja da África foram avassaladas pelos árabes, em seguida pelos turcos, os quais erigiram a igreja de Mafoma por sobre as ruínas da de Cristo. A igreja romana subsistiu, porém, manchada de sangue por mais de seiscentos anos de discórdia entre o império do Oriente e o sacerdócio. Tornaram-na até mais poderosa essas dissensões. Bispos e abades na Alemanha transformaram-se em príncipes, e paulatinamente os papas investiram-se de domínio absoluto em Roma e numa região de cem léguas. Assim experimentou Deus sua igreja por humilhações, tumultos e esplendor.

Ao descambar do século XVI a igreja latina perdeu metade da Alemanha, a Dinamarca, Suécia, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Suíça e Holanda. Territorialmente essas perdas foram vantajosamente compensadas pelas conquistas espanholas na América. Não, porém, quanto ao número de súditos.

Para compensar o desmembramento da Ásia Menor, Síria, Grécia, Egito, África, Rússia e as outras nações de que falamos, parece que a Divina Providência lhe reservava o Japão, Siam, Índia e China. S. Francisco Xavier, que levou o Santo Evangelho às Índias Orientais e ao Japão, quando lá foram em busca de mercadorias os portugueses, fez inúmeros milagres, atestados todos pelos RR. PP. jesuítas. Dizem até que ressuscitou nove mortos. Na Flor dos Santos abate o R. P. Ribadeneira esse número para quatro, o que aliás já é bastante. Quis a Providência que em menos de cem anos milhares de católicos romanos enxameassem as ilhas do Japão. Porém o diabo semeou seu joio em meio da boa semente. Tramaram os cristãos uma conjuração acompanhada de uma guerra civil, em que foram totalmente exterminados (1638). Os japoneses fecharam as portas do país a todos os estrangeiros, salvo aos holandeses, em quem viam mercadores e não cristãos, mas que ainda assim foram obrigados a espezinhar a cruz para obter permissão de vender suas mercancias na prisão onde os trancafiaram logo que puseram pé em Nagasaqui.

Recentemente a China proscreveu a religião católica, apostólica e romana, bem que com menos crueldade. Em verdade os jesuítas não ressuscitaram mortos na corte de Pequim. Contentaram-se em ensinar astronomia, fundir canhões e ser mandarins. Suas intempestivas contendas com dominicanos e outros de tal forma escandalizaram o grande imperador Iong-tching que este príncipe, que era a justiça e a bondade em pessoa, teve a cegueira de proibir em seu estado o ensino da nossa santa religião, no seio da qual nem os próprios missionários viviam em paz. Expulsou-os paternalmente, fornecendo-lhes meios de subsistência e veículos até os confins de seu império.

Toda a Ásia, toda a África, metade da Europa, todas as colônias inglesas e holandesas da América, todas as tribos americanas não domadas, todas as terras austrais, que constituem um quinto do globo, permanecem presa do demônio, para provar esta santa sentença: “Muitos são os chamados, mas poucos os eleitos”. Se há na terra um bilhão e seiscentos milhões de homens, como pretendem os entendidos, cerca de sessenta milhões pertencerão à santa igreja romana católica universal: ou seja, mais da vigésima sexta parte da população do mundo conhecido.


 

CRÍTICA

Não pretendo falar dessa crítica de escoliastas, que se limita a substituir por outra pior uma frase de um escritor antigo que antes se entendia muito bem. Não me refiro às críticas de lei que, na medida das forças humanas, devassaram os mais recônditos escaninhos da história e da filosofia antigas. Viso às criticas que descambam para a sátira.

Um amador de letras lia certa vez Tasso comigo. Antolhou-se-lhe esta estância:

Chiama gli abitator dell’ombre eterne

il rauco suon della tartarea tromba.

Treman le spaziose atre caverne;

e l’aer cieco a quel rumor rimbomba:

nè sì stridendo mai dalle superne

regioni dei cielo il folgor piomba;

nè sì scossa giammai trema la terra,

quando i vapori in sen gravida serra. (25)

Leu em seguida ao acaso várias estâncias dessa força e harmonia.

— Ora! – exclamou – então é isso o que o seu Boileau chama farfalhice? Então é assim que pretende rebaixar um grande homem que viveu cem anos antes dele para melhor entronar outro grande homem que viveu dezesseis séculos antes, e que teria ele próprio rendido justiça a Tasso?

Console-se. Vejamos as óperas de Quinault.

Logo à abertura do livro deparou-se-nos com que nos abespinharmos com a crítica. Dando com os olhos na tradução do admirável poema Armida, lemos:

Sidonie

La haine est affreuse et barbare,

l’amour contraint les cours dont il s’empare

à souffrir des maux rigoureux.

Si votre sort est en votre puissance,

faltes choix de l’indifférence:

elie assure un repos heureux.

Armide

Non, non, il ne m’est pas possible

de passer de mon trouble en un état paisible;

mon coeur ne se peut plus calmer;

Renaud m’offense trop, il n’est que trop aimable;

c’est pour moi désormais un choix indispensable

de le haïr ou de l’aimer.

Lemos de fio a pavio a peça Armida, na qual o gênio de Tasso recebe novos encantos das mãos de Quinault.

— Veja só, – observo a meu amigo – no entanto é este Quinault que Boileau sempre se esforçou por fazer ver como o mais reles escrevinhador. Chegou a meter na cabeça de Luís XIV que esse escritor gracioso, comovente, patético, elegante, outro mérito não tinha além do que tomava de empréstimo ao músico Lulli.

— Compreende-se. Boileau não invejava o músico, porém invejava o poeta. Que pensar de um homem que, para rimar um verso em aut, denigre ora Boursault, ora Hénault, ora Quinault, conforme esteja bem ou mal com esses senhores?

“Mas, para que não se arrefece a sua repugnância da injustiça, ponha a cabeça à janela, veja aquela bela fachada do Louvre, por que se imortalizou Perrault. Este homem de invulgar habilidade era irmão de um acadêmico sapientíssimo, com quem Boileau tivera uma disputa eis o quanto bastou para levar a tacha de arquiteto ignorante.”

Depois de breve sisma, prossegue meu amigo com um Suspiro:

— Assim é a natureza humana – Em suas Mémoires, acha o duque de Sully de inquinar de maus ministros o cardeal de Ossat e o secretário de estado Villeroi Tudo fez Louvois para deslustrar o grande Colbert.

— Não se agatanhavam pessoalmente – reparo. – Trata-se de uma estupidez restrita quase exclusivamente à literatura, à cavilação e à teologia.

“Tivemos um homem de mérito: Lamotte, que compôs estâncias belíssimas:

Quelque fois au feu qui la charme

résiste une jeune beauté,

et contre elle-même elle s’arme

d’une pénible fermeté.

Hélas! cette contrainte extrême

la prive du vice qu’elle aime,

pour fuir la honte qu’elle hait.

La sévérité n’est que faste,

et l’honneur de passer pour chaste

la résout à l’être en effet.

En vain ce sévère stoïque,

sous mille défauts abattu,

se vante d’une âme héroïque

toute vouée à la vertu:

ce n’est point la vertu qu’il aime;

mais son coeur, ivre de lui-même,

voudrait usurper les autels,

et par sa sagesse frivole

il ne veut que parer l’idole

qu’il offre an culte des mortels.

Les champs de Pharsale et d’Arbelle

ont vu triompher deux vainqueurs,

l’un et l’autre digne modèle

que se proposent les grands coeurs.

Mais le succès a fait leur gloire;

et, si te sceau de la victoire

n’eût consacré ces demi-dieux,

Alexandre, aux yeux du vulgaire,

n’aurasit été qu’un téméraire,

et César qu’un seditieux.

“Este autor” – continuo – “foi um sábio que por mais de uma vez emprestou o encanto dos versos à filosofia. Escrevesse sempre estâncias desse quilate e teria sido o maior dos poetas líricos. Sem embargo, foi justamente quando produzia desses primores que dele disse um contemporâneo:

Um certo pato, caça de galinheiro.

“Em outro lugar:

De seus versos a enfadonha – beleza.

“Em outro:

...Só vejo um senão: falta a essas odes descavalgar o verso a Quinault para atingir a perfeição.

“E, nesse ciscar de imperfeições, em tudo encontra secura e quebra de harmonia.

“Quer ver as odes que anos depois escreveu esse mesmo censor que julgava Lamotte de cátedra e o difamava como inimigo? Leia:

Cette influence souveraine

n’est pour lui qu’une ilustre chaîne

qui l’attache au bonheur d’autrui;

tous les brillants qui l’embellisent,

tons les talents qui l’ennoblissent,

sont en lui, mais non pas à lui.

Il n’est rien que te temps n’absorbe, ne dévore,

et les faits qu’on ignore

sont bien peu différents des faits non avenus.

La bonté qui brille en elle

de ses charmes les plus doux

est une image de celle

qu’elle voit briller en vous.

Et, par vous seule enrichie,

sa politesse, affranchie

des moindres obscurités

est la lueur réfléchie

de vos sublimes clartés.

Ils ont vu par la bonne foi

de leurs peuples troublés d’effroi

la crainte heureusement déçue,

et déracinée à jamais

la haine si souvent reçue

en survivance de la paix.

Dévoile à ma vue empressée

ces déités d’adoption,

synonymes de la pensée,

symboles de l’abstraction.

N’est ce pas une fortune,

quand d’une charge commune

deux moities portent le faix,

que la moindre le réclame,

et que du bonheur de l’âme

le corps seul fasse les frais?

— Não era preciso – convém meu judicioso amante das letras – dar coisas tão detestáveis para modelo àqueles a quem tão azedamente criticava. Antes deixasse em paz seu adversário com seu mérito e ficasse ele com o que tivesse. Mas, que quer você? O genus irritabile vatum é doença da mesma bilis que o atormentava outrora. O público perdoa essas tacanhezas às pessoas de talento porque não quer senão se divertir. Ele vê, numa alegoria intitulada Plutão, juizes condenados a ser esfolados e a sentar-se nos infernos em um banco coberto com as próprias peles em vez de flores de lis. Pouco importa ao leitor que os juizes o mereçam ou não, que tenha ou não razão o autor que os cita perante Plutão. Lê esses versos unicamente por prazer. Se lhe agradam, não quer mais. Se lhe desagradam, põe de lado a alegoria e não daria um passo para fazer confirmar ou cassar a sentença.

“As inimitáveis tragédias de Racine foram todas criticadas, e pessimamente: porque as criticaram rivais. Certo, os artistas são juizes de arte competentes, porém quase sempre lhes falta integridade.

“Excelente crítico seria o artista senhor de bom cabedal de ciência e de bom gosto, isento de prejuízos e inveja. O que é difícil encontrar.”


 

DESTINO

De todos os livros que até nós chegaram, o mais antigo é Homero. É em Homero que se nos deparam os costumes da antigüidade profana, os heróis e deuses toscamente talhados à imagem do homem. Em Homero também encontramos os embriões da filosofia e sobretudo a idéia do destino, que é senhor dos deuses como são os deuses senhores dos homens.

Debalde quer Júpiter salvar Heitor. Consulta os destinos, pesando numa balança os destinos de Heitor e Aquiles: diz a sorte que o troiano será irrevogavelmente morto pelo grego, e nada pode opor-lhe o soberano dos deuses. Apolo, o gênio guardião de Heitor, é então obrigado a abandoná-lo (26). Não que Homero não seja pródigo de idéias opostas, consoante o privilégio da antigüidade. Mas enfim é o primeiro em que aparece a noção do destino. Devia estar, pois, muito em voga em seu tempo.

Os fariseus, na pequena nação judaica, só conceberam o destino muitos séculos depois, porquanto, embora tenham sido os primeiros judeus letrados, eram muito novos em relação aos gregos. Mesclaram em Alexandria parte dos dogmas dos estóicos às antigas idéias judaicas. Chega a pretender S. Jerônimo não ser sua seita muito anterior à nossa era.

Os filósofos sempre prescindiram de Homero e dos fariseus para se persuadirem de que tudo está sujeito a leis imutáveis, tudo está determinado, tudo é efeito necessário.

Ou o mundo subsiste pela própria natureza, pelas leis físicas, ou formou-o um Ser Supremo conforme supremas leis. Num caso como noutro as leis são imutáveis e tudo é necessário. Os corpos graves tendem para o centro da terra, não podendo tender a repousar no ar. Pereiras nunca poderiam dar ananases. O instinto de um espanhol não pode ser o instinto de um austríaco Tudo se acha ordenado, engranzado e limitado.

Não pode o homem ter mais que certo número de dentes, cabelos e idéias. Tempo vem em que inevitavelmente perde os dentes, os cabelos e as idéias

Contraditório seria que ontem não fosse ontem e hoje não fosse hoje. Tão contraditório como se o que há de ser pudesse deixar de sê-lo.

Se pudesses torcer o destino de uma mosca, nada te impediria de traçar o destino de todas as outras moscas, de todos os outros animais, de todos os homens, de toda a natureza. Enfim, serias mais poderoso que Deus.

Dizem os cretinos: O médico arrancou minha tia aos braços da morte, fê-la viver dez anos mais do que deveria viver. Outra modalidade de imbecis – os capazes, – sentenciam: O homem prudente forja o próprio destino.

Nullum numen abest, si sit prudentia, sed te
nos facimus, fortuna, deam, coeloque locamus.

Asseveram profundos políticos que se oito dias antes que se decapitasse Carlos I se tivessem assassinado Cromwell, Ludlow, Ireton e uma dúzia de outros parlamentares, esse rei ainda podia ter vivido e morrer no leito. Têm razão. E poderiam acrescentar que se o mar houvesse tragado toda a Inglaterra esse monarca não teria morrido em um patíbulo junto a Whitehall, ou sala, branca. Porém as coisas estavam dispostas de maneira que Carlos teria irrevogavelmente o pescoço cortado.

Não resta dúvida que o cardeal de Ossat era mais prudente que um louco das Petites-Maisons. Mas não é evidente que os órgãos do sábio de Ossat não eram os mesmos que os de um desmiolado, da mesma forma como os de uma raposa diferem dos de um grou ou uma calhandra.

O médico salvou tua tia. Mas não contradisse a natureza: obedeceu-lhe. Claro que tua tia não podia deixar de nascer senão na cidade em que nasceu, em ocasião certa ter certa moléstia, que o médico não podia estar alhures senão na cidade em que estava, que tua tia forçosamente o chamaria a ele, o qual necessariamente lhe prescreveria os remédios que a curaram.

Crê um camponês haver geado em seu campo por acaso. Mas um filósofo sabe que não existe acaso e que era impossível, na constituição deste mundo, que precisamente naquele dia não geasse precisamente naquele lugar.

Há pessoas que, aterrorizadas ante essa verdade, só concordam pela metade, como devedores que oferecem metade aos credores e pedem mora para a outra metade. Existem, dizem elas, acontecimentos necessários e acontecimentos não necessários. Engraçado um mundo metade em ordem metade em desordem. Que parte do que acontece precisava acontecer, outra não. Basta chegar-se-lhe um pouco mais o nariz para ver ser absurda semelhante teoria. Mas há muitos indivíduos que nasceram para raciocinar mal, outros para não raciocinar .e outros para perseguir os que raciocinam.

Perguntareis:

— E a liberdade?

Não vos entendo. Não sei o que seja essa liberdade de que falais. Há tanto tempo discutis acerca de sua natureza que seguramente não a conheceis. Se quiserdes, ou melhor, se puderdes examinar calmamente comigo o que se deve entender por essa palavra, saltai à letra L.


 

DEUS

Imperante Arcádio, Logômacos, teologal de Constantinopla, empreendeu uma viagem à Cítia, e deteve-se ao pé do Cáucaso, nos férteis plainos de Zefirim, nos términos da Cólchida. Estava o bom velho Dondindaque em sua ampla sala baixa, entre seu grande aprisco e a vasta granja. Estava ajoelhado em companhia da mulher, dos cinco filhos e cinco filhas, seus pais e seus criados, e cantavam os louvores a Deus após ligeiro repasto.

— Que fazes, idólatra? – perguntou-lhe Logômacos.

— Não sou idólatra – retorquiu Dondindaque.

— Claro que o és, pois és cita e não grego. Que cantavas em tua bárbara geringonça da Cítia I

— Todas as línguas soam da mesma forma aos ouvidos de Deus. Cantávamo-lhe os louvores.

— Eis uma coisa extraordinária! Uma família cita que ora a Deus sem ter sido instruída por nós!

Seguiu-se um diálogo entre o grego Logômacos e o cita Dondindaque, pois o teologal sabia um pouco de cita e o outro um pouco de grego. Encontrou-se esse diálogo num manuscrito conservado na biblioteca de Constantinopla
Logômacos

Vejamos se sabes teu catecismo. Por que oras a Deus?
Dondindaque

Justo é que adoremos o Ser Supremo que tudo nos deu.
Logômacos

Oh! Para um bárbaro não está mal. E que lhe pedes? Dondindaque

Agradeço-lhe os bens de que gozo e os males com que lhe apraz provar-me. Abstenho-me porém de pedir-lhe seja o que for. Melhor que nós sabe ele o que nos falta. Demais poderia dar-se que quando eu pedisse bom tempo meu vizinho pedisse chuva.
Logômacos

Ah! Logo vi que ia dizer alguma asneira. Passemos a plano mais elevado. Bárbaro, quem te disse que Deus existe?
Dondindaque

Toda a natureza.
Logômacos

Não basta. Que idéia tens do Ser Supremo?
Dondindaque

Que é o meu criador, meu soberano, que me recompensará quando praticar o bem e me castigará quando cometer o mal.
Logômacos

Que frioleiras! Vamos ao essencial – Deus é infinito secundum quid ou segundo a essência?
Dondindaque

Não vos entendo.
Logômacos

Sujeito tapado! Deus está algures ou ao mesmo tempo em tudo e fora de tudo?
Dondindaque

Não sei... Como quiserdes.
Logômacos

Ignorante! Pode Deus demover o acontecido? Pode fazer que um bastão não tenha duas pontes? Como verá o futuro: como futuro ou como presente? Como faz para tirar o ser do nada e para aniquilar o ser?
Dondindaque

Tais coisas nunca me passaram pela cabeça.
Logômacos

Que sujeito bronco! Bem, vejo que preciso baixar a trave. Dize-me, meu amigo, achas que a matéria possa ser eterna?
Dondindaque

Que me importa que seja eterna ou não? Eu, posso afirmar que não o sou. De qualquer forma, Deus é o meu senhor. Deu-me a noção de justiça, devo segui-la. Não quero ser filósofo, quero ser homem.
Logômacos

São o diabo, essas cabeças duras! Vamos aos poucos: Que é Deus?
Dondindaque

Meu soberano, meu juiz, meu pai.
Logômacos

Não é isso o que pergunto. Qual é sua natureza?
Dondindaque

Ser poderoso e bom.
Logômacos

Mas é corporal ou espiritual?
Dondindaque

Como quereis que o saiba?
Logômacos

Arre! Não sabes o que é um espírito?
Dondindaque

Nem imagino: de que me serviria isso? Tornar-me-ia acaso mais justo? Seria melhor marido, melhor pai, melhor amo, melhor cidadão?
Logômacos

É absolutamente necessário ensinar-te o que seja espírito. Escuta: é, é, é... Bem, fica para outra ocasião.
Dondindaque

Muito receio que me fôsseis dizer o que ele não é. Permiti-me fazer-vos a meu turno uma pergunta. Vi há muito um de vossos templos: por que motivo pintais Deus com uma longa barba?
Logômacos

É questão muito complexa, que requer instruções preliminares.
Dondindaque

Antes de receber vossas instruções, vou contar-vos o que me aconteceu certo dia. Eu acabava de fazer construir uma privada no fim de meu jardim, quando ouvi uma toupeira conversando com um besouro:

— Eis uma bela fábrica! – dizia a toupeira. – Deve ser uma toupeira bem poderosa o autor dessa obra.

— Gracejais – respondeu o besouro. – Bem sabeis que foi um besouro, um besouro genial o arquiteto desse edifício.

Desde então resolvi nunca discutir.


 

ESCALA DOS SERES

A primeira vez em que li Platão e observei essa gradação de seres desde o mais ínfimo átomo até o Ser Supremo, essa escala impressionou-me fundamente. Considerando-a porém atentamente, esvaeceu-se o grande fantasma, como outrora fugiam as aparições ao canto do galo.

De princípio compraz-se a imaginação em ver a transição imperceptível da matéria bruta à matéria organizada, das plantas aos zoófitos, dos zoófitos aos animais, dos animais ao homem, do homem aos gênios, dos gênios revestidos de corpo aéreo a substâncias imateriais, e enfim mil ordens diferentes dessas substâncias que, de belezas a perfeições, se escadeiam até Deus. Essa hierarquia é muito do gosto dos ingênuos, que vêem o papa e seus cardeais seguidos dos arcebispos e bispos, após quem vêm os curas, os vigários, os simples padres, os diáconos, os subdiáconos, os frades e finalmente, fechando a coluna, os capuchinhos.

Porém há um pouco mais de distância entre Deus e suas mais perfeitas criaturas que entre o santo padre e o decano do sacro colégio. O decano pode vir a ser papa, enquanto o mais perfeito dos gênios criados pelo Ser Supremo jamais poderá vir a ser Deus. Entre Deus e ele há o infinito.

Tão pouco entre os animais e vegetais se verifica essa pretensa escala ou gradação. Prova está em existirem plantas e animais extintos. Já não temos múrices. Era proibido entre os judeus comer o grifo e o ixião, espécies hoje desaparecidas, diga o que disser o Sr. Bochart. Onde então escala?

Ainda que não se houvessem extinto algumas espécies, patente é que isso pode acontecer. Os leões, os rinocerontes começam a rarear.

Muito provavelmente existiram raças humanas hoje desaparecidas. Quero crer contudo que todas hajam subsistido, da mesma forma como os brancos, negros, cafres, a quem a natureza deu um avental da própria pele, caindo do ventre ao meio das coxas; os samoiedas, cujas mulheres têm um mamilo de belo ébano, etc.

Não há visivelmente um vazio entre o macaco e o homem? Não é fácil imaginar um bípede implume que seria inteligente sem usar da palavra nem ter o nosso aspecto, que poderíamos domesticar, que correspondesse aos nossos macacos e nos servisse? E entre essa nova espécie e o homem não poderíamos conceber outras?

Acima do homem colocais no céu, vós, divino Platão, uma série de substâncias celestes. Cremos nós outros em algumas dessas substâncias porque no-lo ensina a fé. Mas vós, que razão tendes para crê-las? Até parece que não falastes ao gênio de Sócrates, e que o simplório Heres, expressamente ressurreto para vos pôr ao corrente dos segredos do outro mundo, nada vos tenha ensinado acerca de tais substâncias.

A pretensa escala não é menos descontínua no mundo sensível.

Que gradação – pergunto – há entre os vossos planetas? A Lua é quarenta vezes menor que o nosso globo. Vênus é quase do tamanho da Terra. Mercúrio descreve uma elipse muito diferente da circunferência percorrida por Vênus e é vinte e sete vezes menor que nós. O Sol é um milhão de vezes maior que o planeta em que vivemos, Marte cinco vezes menor. Marte completa seu giro em dois anos, Júpiter, seu vizinho, em doze, Saturno, o mais afastado de todos, conquanto menor que Júpiter, em trinta. Onde a tal gradação?

Depois, como quereis que em imensos espaços vazios haja uma cadeia que tudo ligue? Se alguma cadeia existe, é certamente a descoberta por Newton. É ela que faz todos os globos do mundo planetário gravitarem uns em torno dos outros no vácuo infinito.

Admirado Platão, vós não contastes mais que fábulas! Na ilha de Cassitérides, onde em vosso tempo os homens viviam completamente nus, nasceu um filósofo que ensinou aos homens verdades tão grandes quanto pueris eram vossos devaneios.


 

ESTADOS, GOVERNOS

Qual o melhor? – Até o presente não conheci quem não tenha governado algum estado. Não falo dos ministros que governam efetivamente, uns dois ou três anos, outros seis meses, outros seis semanas. Falo de todos esses senhores que, à hora das refeições ou em seus gabinetes, expõem seu sistema de governo, reformando os exércitos, a igreja, a magistratura e as finanças.

O abade de Bourzeis meteu-se a governar a França pelo ano de 1645, sob o nome do cardeal de Richelieu, e escreveu seu Testamento Político, no qual procurou arrolar a nobreza na cavalaria por três anos, fazer pagar a talha aos tribunais de contas e aos parlamentos e privar o rei do produto dos seus impostos sobre o consumo. Afirma ele que, para entrar em campanha com cinqüenta mil homens, por economia é preciso levar cem mil. Assevera que só a Provença tem mais belos portas de mar que a Espanha e Itália juntas

O abade de Bourzeis não tinha viajado. Aliás sua viagem acha-se repleta de anacronismos e erros. Faz o cardeal de Richelieu assinar como nunca assinou e falar como nunca falou. E gasta um capítulo inteiro para dizer que a razão deve ser a pauta do estado, e a se esforçar por provar essa descoberta. Essa obra das trevas, esse bastardo do abade de Bourzeis passou muito tempo por filho legítimo do cardeal de Richelieu. E todos os acadêmicos, em seus discursos de recepção, não deixavam de louvar desmedidamente essa obra prima de política.

O senhor Gatien de Courtilz, vendo o extraordinário sucesso do Testamento Político de Richelieu, fez imprimir em Haia o Testamento de Colbert, com uma pomposa carta do senhor Colbert ao rei. Está claro que se esse ministro tivesse feito semelhante testamento, seria preciso interdizê-lo; entretanto, esse livro foi citado por alguns autores.

Outro velhaco cujo nome se ignora partejou o Testamento de Louvois, pior ainda, se possível, que o de Colbert. E um abade de Chevremont também fez testar Carlos, duque de Lorena (27).

O senhor de Bois Guillebert, autor do Détail de la France, impresso em 1695, apresenta o projeto inexeqüível do dízimo real sob o nome do marechal de Vauban (28).

Um louco sem eira nem beira chamado La Jonchêre escreveu em 1720 um projeto de finança em 4 volumes. E alguns parvos citaram essa produção como obra de La Jonchêre, o tesoureiro geral, imaginando que um tesoureiro não pode escrever um mau livro de finanças.

Mas é preciso convir em que homens avisados, dignos sem dúvida de governar, têm escrito sobre a administração dos estados, seja na França, na Espanha ou na Inglaterra. Seus livros têm feito muito bem: não porque hajam corrigido os ministros então no governo, já que um ministro não se corrige de modo algum nem pode ser corrigido: é árvore já muito crescida; basta de instruções, basta de conselhos; escasseia-lhe tempo para os ouvir, arrasta-o a corrente dos negócios. Mas esses bons livros formam a juventude destinada aos cargos. Formam os príncipes, e a segunda geração é instruída.

Ultimamente tem sido examinado de perto o forte e o fraco dos governos. Dizei-me, vós que haveis viajado, vivestes e vistes, sob que espécie de governo desejaríeis ter nascido? Compreendo que um grande proprietário de terra, na França, não desgostaria de haver nascido na Alemanha: seria soberano em vez de vassalo. A um par de França muito agradariam os privilégios do pariato inglês: seria legislador.

O magistrado e o financeiro achar-se-iam melhor em França que alhures.

Mas que pátria escolheria um homem sábio, livre, um homem de fortuna medíocre e sem preconceitos?

Um membro do conselho de Pondichéry, senhor de sólida cultura, voltou à Europa por terra em companhia de um brâmane mais instruído do que o comum dos brâmanes.

— Que tal achais o governo do grão mogol? – perguntou o conselheiro.

— Abominável – respondeu o brâmane. – Como quereis que um estado seja bem governado pelos tártaros? Nossos rajas, nossos omrás, nossos nababos estão muito contentes; mas os cidadãos muito ao contrário, e milhões de cidadãos são alguma coisa.

O conselheiro e o brâmane percorreram, conversando, toda a alta Ásia.

— Cheguei a uma conclusão – disse o brâmane: – que não existe sequer uma república em toda esta vasta parte do mundo.

— Houve outrora a de Tiro, – retrucou o conselheiro – mas não durou muito. Houve ainda outra, perto da Arábia Pétrea, num recanto denominado Palestina, se é que se pode honrar com o nome de república uma horda de ladrões e de onzeneiros governados ora por juizes, ora por espécies de reis, ora por grandes pontífices, escravizados sete ou oito vezes e enfim expulsos do país que usurparam.

— Julgo, – disse o brâmane – que não deve haver sobre a terra senão pouquíssimas repúblicas. Raramente são os homens dignos de se governar por si mesmos. Tal felicidade não deve pertencer senão a povos pequenos, que se insulem em ilhas ou entre montanhas, como coelhos a se esconderem dos carnívoros. Mas sempre acabam sendo descobertos e devorados.

Quando os dois viajantes chegaram à Ásia Menor, perguntou o conselheiro ao brâmane:

— Acreditaríeis ter existido uma república formada num canto da Itália, que durou mais de quinhentos anos e possuiu esta Ásia Menor, Ásia, África, Grécia, Gálias, Espanha e toda a Itália?

— Então, cedo se transformou em monarquia? – perguntou o brâmane.

— Adivinhastes – respondeu o outro; – porém essa monarquia caiu e vivemos a fazer empoladas dissertações para encontrar a causa de sua decadência.

— Perdeis vosso tempo inutilmente, – disse o hindu: – esse império caiu porque existia. Tudo cai. Espero que assim aconteça também ao império da Mongólia.

— A propósito – disse o europeu. Julgais ser necessário mais honra num estado despótico e mais virtude numa república? – Tendo feito com que se lhe explicasse o que se entende por honra, respondeu o hindu ser de opinião que ela era mais necessária numa república, e a virtude a mais precisa num estado monárquico.

— Porque – explicou – um homem que pretenda ser eleito pelo povo não o será se não for honrado. Ao passo que na corte poderá obter facilmente um cargo, segundo a máxima de um grande príncipe, que disse que para o conseguir não deve o cortesão ter honra nem humor. Com respeito à virtude, é preciso te-la muita numa corte para ousar dizer a verdade. O homem virtuoso está bem mais à vontade na república, por não precisar bajular ninguém.

— Acreditais – interrogou o europeu – que as leis e religiões sejam feitas para os climas assim como os agasalhos forrados para Moscou e os tecidos de gaza para Delí?

— Sim, sem dúvida – disse o brâmane. Todas as leis que concernem o físico são calculadas pelo meridiano em que se habita; para um alemão basta uma mulher, um persa precisa de três ou quatro. Da mesma natureza são os ritos da religião. Como desejaríeis que eu, se fosse cristão, dissesse a missa em minha província, onde não há pão nem vinho? Quanto aos dogmas, o caso é outro: o clima nada faz. Vossa religião não nasceu na Ásia, de onde foi expulsa? Não subsiste no Mar Báltico, onde era desconhecida?

— Em que estado, sob que domínio preferiríeis viver? – perguntou o conselheiro.

— Em qualquer parte que não a minha terra, – respondeu o companheiro – e encontrei muitos siameses, tonquineses, persas e turcos que diziam outro tanto.

—.Mas, – ainda uma vez disse o europeu – que estado escolheríeis? – Respondeu o brâmane:

— Aquele onde apenas se obedecesse às leis.

— É uma velha resposta, – argüiu o conselheiro.

— E não é má – disse o brâmane.

— Onde fica esse país? – perguntou o conselheiro.

— É de mister procurá-lo – respondeu o brâmane.


 

EZEQUIEL (DE)

De alguns passos singulares desse profeta e de alguns hábitos antigos

Sabe-se hoje muito bem que não se devem julgar os costumes antigos pelos modernos. Quem desejasse reformar a corte de Alcinos, na Odisséia, tomando como modelo a do grão turco ou a de Luís XIV, não seria bem recebido pelos sábios. Quem reprovasse a Virgílio o haver representado o rei Evandro coberto com uma pele de urso e acompanhado de dois cães para receber os embaixadores, seria um mau crítico.

Os costumes dos judeus de antanho são ainda mais diferentes dos nossos que aqueles do rei Alcinos, de Nausica, de sua filha e do bonacheirão Evandro.

Ezequiel, escravo dos caldeus, teve uma visão perto do ribeirão de Cobar, que se perde no Eufrates.

Não nos devemos admirar de que ele tenha visto animais de quatro faces e quatro asas, com pés de bezerro, nem das rodas que caminhavam por si mesmas e continham o espírito da vida: esses símbolos até agradam à imaginação. Mas vários críticos se revoltaram contra a ordem que lhe deu o Senhor de comer durante trezentos e noventa dias, pão de cevada, de frumento e de milho, coberto de excremento.

— Irra! – exclamou o profeta. – Minh’alma até hoje não tinha sido poluída.

Respondeu-lhe o Senhor:

— Pois bem, eu te darei estrume de boi em lugar de excrementos humanos, e tu comerás teu pão com esse estrume.

Visto não ser absolutamente de uso comer tais confeitos com o pão, a maioria dos homens acha essas ordens indignas da majestade divina. Entretanto, deve-se lembrar que o estrume de vaca e os diamantes do grão mogol são perfeitamente iguais, não só ante os olhos de um ser divino mas também aos do verdadeiro filósofo. Com respeito às razões que Deus poderia ter para impor ao profeta um tal almoço, não nos cabe procurá-las.

Basta fazer ver que essas ordens, que nos parecem estranhas, não se afiguraram tais aos judeus.

É verdade que a sinagoga não permitia, no tempo de S. Jerônimo, a leitura de Ezequiel antes da idade de trinta anos. Mas isso porque no capítulo 18 ele diz que os filhos não arcarão com a iniqüidade dos pais e que já não se dirá: os pais comeram raízes verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados.

Nesse ponto ele se achava em contradição com Moisés, que no capítulo 28 dos Números afirma que os filhos sofrem a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.

Ezequiel, no capítulo 20, faz ainda dizer ao Senhor ter ele dado aos judeus preceitos que não são bons. Eis por que a sinagoga interdisse aos jovens uma leitura que poderia pôr em dúvida a irrefragabilidade das leis de Moisés.

Aos censores de nossos dias, ainda mais os surpreende o capítulo 26 de Ezequiel: eis como o profeta se arranja para fazer conhecer os crimes de Jerusalém. Ele apresenta o Senhor dizendo a uma moça:

“Quando nascestes, ainda não vos tinham cortado o cordão umbilical, ainda não éreis batizada, estáveis completamente nua, eu me apiedei de vós; depois crescestes, vosso seio se formou, vossas axilas cobriram-se de veios; eu passei, eu vos vi, eu compreendi que era o tempo dos amantes; eu cobri vossa ignomínia; estendi por sobre vós o meu manto; viestes a mim; eu vos lavei, perfumei, vesti bem e bem aqueci; dei-vos um chale de lã, braceletes, um colar; eu vos pus jóias no nariz, brincos nas orelhas e uma coroa na fronte, etc.

“Então, confiando em vossa beleza, fornicastes por vossa conta com todos os passantes... E trilhastes um mau caminho... e vos prostituístes até nas praças públicas e abristes as pernas a todos os passantes... e vos deitastes com os egípcios... e enfim pagastes amantes e lhes fizestes presentes a fim de que se deleitassem com outras moças. O provérbio é: Tal mãe, tal filha; e é isso que se diz de vós, etc.”

Ainda com maior indignação se insurgem contra o capítulo 28. Uma mãe tinha duas filhas que perderam muito cedo a virgindade; a maior chamava-se Oola e a menor Ooliba. “...Oola era louca pelos jovens senhores, magistrados, cavaleiros; deitou-se com egípcios desde a mais tenra mocidade... Ooliba, sua irmã, fornicou mais ainda com oficiais, magistrados e cavaleiros bem parecidos; descobriu sua vergonha e multiplicou suas fornicações. Procurou com arrebatamento os abraços daqueles cujo membro se parece com o de um asno e que expandem a sua semente como cavalos...”

Essas descrições que escandalizam tantos espíritos fracos não significam, entretanto, senão as iniqüidades de Jerusalém e de Samaria; as expressões que nos parecem livres não o eram então. A mesma franqueza aparece sem receio em mais de um ponto das Escrituras. Fala-se freqüentemente em abrir a vulva. Os termos de que elas se servem para explicar o contato de Booz com Rute, de Judas com sua nora, não são desonestos em hebreu, mas se-lo-iam em nossa língua.

Não se usa véu quando não se tem vergonha de sua nudez. Como é possível que se ruborizasse uma pessoa nos tempos passados ao ouvir falar dos órgãos genitais, quando era costume tocá-los àqueles a quem se fazia alguma promessa? Era um sinal de respeito, um símbolo de fidelidade, como outrora entre nós punham os senhores feudais suas mãos entre as dos seus senhores soberanos.

Traduzimos os testículos por coxa. Eliezer pousa a mão sobre a, coxa de Abraão; José pousa a mão sobre a coxa de Jacó. Esse costume era antiqüissimo no Egito. Os egípcios estavam tão longe de ligar à ignomínia coisas que nós não ousamos nem descobrir nem nomear, que conduziam em procissão uma grande figura do membro viril chamada phallum, para agradecer aos deuses a bondade demonstrada em fazer servir esse membro à propagação do gênero humano.

Todos esses fatos provam bem que nossos decoros não são os mesmos dos outros povos. Em que tempo houve entre os romanos maior polidez do que no século de Augusto? Entretanto, Horácio não tergiversou em dizer numa peça moral:

Nec vereor ne, dum futuo, vir rure recurrat(29).

Um homem que entre nós pronunciasse a palavra correspondente a futuo seria considerado um bêbado indecente; essa e várias outras palavras de que se servem Horácio e outros autores nos parecem ainda mais indecorosas do que as expressões de Ezequiel. Desfaçamo-nos de nossos preconceitos quando lermos autores antigos ou quando viajarmos por nações longínquas. A natureza é a mesma em toda parte e os costumes em toda parte diferentes.


 

FÁBULAS

Não são as mais antigas fábulas visivelmente alegóricas? A primeira que conhecemos dentro de nossa maneira de calcular o tempo não é aquela que vem no nono capítulo do livro dos Juizes? Tratava-se de escolher um rei entre as árvores; a oliveira não queria abandonar o cuidado do seu azeite, nem a figueira o de seus figos, nem a vinha o de seu vinho, nem as outras árvores o de seus frutos; o espinheiro, que nada tinha de bom, tornou-se rei, porque tinha espinhos e podia praticar o mal

A antiga fábula de Vênus, tal como a relata Hesíodo, não é uma alegoria de toda a natureza? As partes da geração caíram do éter às costas do mar; Vênus nasce dessa escuma preciosa; seu primeiro nome é o de amante da geração: existirá imagem mais sensível Vênus é a deusa da beleza; a beleza deixa de ser amada se caminhar sem as graças; a beleza faz nascer o amor; o amor tem qualidades que trespassam os corações; leva uma venda que esconde os defeitos do objeto amado.

A sabedoria é concebida no cérebro do senhor dos deuses sob o nome de Minerva; a alma do homem é um fogo divino que Minerva mostra a Prometeu, que se serve desse fogo divino para animar o homem.

É impossível deixar de reconhecer nessas fábulas uma pintura viva de toda a natureza. A maioria das outras fábulas são ou corrupções de histórias antigas ou caprichos da imaginação. Sucede com as antigas fábulas o mesmo que com os nossos contos modernos: há as morais que são encantadoras; outras são insípidas.


 

FALSIDADE DAS VIRTUDES HUMANAS

Quando o duque de La Rochefoucaud escreveu os seus pensamentos sobre o amor próprio, pondo a descoberto esse impulso do homem, um senhor Espírito, do Oratório, escreveu um livro capcioso intitulado: Da falsidade das virtudes humanas. Diz esse Espírito que a virtude não existe; mas, por graça termina cada capítulo reconsiderando a caridade cristã. Assim, segundo o senhor Espírito, nem Catão, nem Aristides, nem Marco Aurélio, nem Epicteto foram pessoas de bem; estas apenas podem ser encontradas entre os cristãos. Entre os cristãos, apenas os católicos são virtuosos ; entre os católicos seria ainda necessário excetuar os jesuítas, inimigos dos oratorianos; portanto a virtude não se acha senão entre os inimigos dos jesuítas.

Esse senhor Espírito começa por dizer que a prudência não é uma virtude, e a razão é o ser freqüentemente enganada. É como se se dissesse que César não foi um grande capitão por ter sido derrotado em Dirráquio.

Se o senhor Espírito fosse um filósofo, não teria examinado a prudência como uma virtude e sim como um talento, como uma qualidade útil, feliz: pois um celerado pode ser prudente e eu conheci gente dessa espécie. Que infâmia pretender que ninguém pode ter virtude senão nós e nossos amigos!(30).

Que é a virtude, meu amigo? É praticar o bem: pratiquemo-lo e será o suficiente. Então, nós te explicaremos o motivo. Como! Segundo teu modo de ver não existiria nenhuma diferença entre o presidente de Thou e Ravaillac, entre Cícero e esse Popílio ao qual ele salvou a vida e que lhe cortou a cabeça por dinheiro? E considerarás Epicteto e Porfírio libertinos por terem seguido os nossos dogmas? Tamanha insolência revolta. E não vou adiante para não perder as estribeiras.


 

FANATISMO

Fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático. João Diaz, retirado em Nuremberg, firmemente convicto de que o papa é o Anticristo do Apocalipse e que tem o signo da besta, não era mais que um entusiasta; Bartolomeu Diaz, que partiu de Roma para ir assassinar santamente o seu irmão e que efetivamente o matou pelo amor de Deus, foi um dos mais abomináveis fanáticos que em todos os tempos pôde produzir a superstição.

Polieuto, que vai ao templo num dia de solenidade derrubar a destruir as estátuas e os ornamentos, é um fanático menos horrível do que Diaz, mas não menos tolo. Os assassinos do duque Francisco de Guise, de Guilherme, príncipe de Orange, do rei Henrique III, do rei Henrique IV e de tantos outros foram energúmenos enfermos da mesma raiva de Diaz

O mais detestável exemplo de fanatismo é aquele dos burgueses de Paris que correram a assassinar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar, na noite de São Bartolomeu, seus concidadãos que não iam à missa.

Há fanáticos de sangue frio: são os juizes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles; e esses juizes são tanto mais culpados, tanto mais merecedores da execração do gênero humano, quanto, não estando tomados de um acesso de furor como os Clément, os Chatêl, os Ravaillac, os Gérard, os Damien, parece que poderiam ouvir a razão.

Quando uma vez o fanatismo gangrenou um cérebro a doença é quase incurável. Eu vi convulsionários que, falando dos milagres de S. Páris, sem querer se acaloravam cada vez mais; seus olhos encarniçavam-se, seus membros tremiam, o furor desfigurava seus rostos e teriam morto quem quer que os houvesse contrariado.

Não há outro remédio contra essa doença epidêmica senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido, adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal porque, desde que o mal fez alguns progressos, é preciso fugir e esperar que o ar seja purificado. As leis e a religião não bastam contra a peste das almas; a religião, longe de ser para elas um alimento salutar, transforma-se em veneno nos cérebros infeccionados. Esses miseráveis têm incessantemente presente no espírito o exemplo de Aode, que assassina o rei Eglão; de Judite, que corta a cabeça de Holoferne quando deitada com ele; de Samuel, que corta em pedaços o rei Agague. Eles não vêem que esses exemplos respeitáveis para a antigüidade são abomináveis na época atual; eles haurem seus furores da mesma religião que os condena.

As leis são ainda muito impotentes contra tais acessos de raiva; é como se lêsseis um aresto do Conselho a um frenético. Essa gente está persuadida de que o espírito santo que os penetra está acima das leis e que o seu entusiasmo é a única lei a que devem obedecer.

Que responder a um homem que vos diz que prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens e que, consequentemente, está certo de merecer o céu se vos degolar?

De ordinário, são os velhacos que conduzem os fanáticos e que lhes põem o punhal nas mãos: assemelham-se a esse Velho da Montanha que fazia – segundo se diz – imbecis gozarem as alegrias do paraíso e que lhes prometia uma eternidade desses prazeres que lhes havia feito provar com a condição de assassinarem todos aqueles que ele lhes apontasse. Só houve uma religião no mundo que não foi abalada pelo fanatismo, é a dos letrados da China. As seitas dos filósofos estavam não somente isentas dessa peste como constituíam o remédio para ela: pois o efeito da filosofia é tornar a alma tranqüila e o fanatismo é incompatível com a tranqüilidade. Se a nossa santa religião tem sido freqüentemente corrompida por esse furor infernal, é à loucura humana que se deve culpar.

Assim, das asas que teve,
Ícaro perverteu o uso;
teve-as para seu bem
e as empregou em seu dano
.
(Bertaud, bispo de Séez).


 

FIM, CAUSAS FINAIS

Parece que seria preciso estar fora de si para negar que os estômagos sejam feitos para digerir, os olhos para ver e os ouvidos para ouvir. De outro lado, é preciso ter um estranho amor às causas finais para afirmar que a pedra foi feita para construir casas e que os bichos da seda nasceram na China para que tenhamos cetim na Europa.

Mas, objeta-se, se Deus fez visivelmente uma coisa preconcebida, fez portanto todas as outras com um desígnio. É ridículo admitir a Providência num caso e negá-la em outros. Tudo o que está feito foi previsto, coordenado. Nenhuma coordenação há sem objeto, nenhum efeito sem causa; portanto tudo é igualmente o resultado, o produto de uma causa final; portanto é tão verdadeiro dizer que os narizes foram feitos para levar lunetas e os dedos para ser ornados de diamantes quanto é verdade que os ouvidos foram feitos para ouvir os sons e os olhos para receber a luz.

Creio ser muito fácil esclarecer essa dificuldade. Quando os efeitos são invariáveis em todo lugar e em todos os tempos, quando esses efeitos uniformes são independentes dos seres a que pertencem, então existe uma causa final visível.

Todos os animais têm olhos, e enxergam; todos têm uma boca com a qual comem; um estômago ou coisa semelhante, pelo qual digerem; todos, um orifício que expele os excrementos, todos um órgão gerador: e esses dons da natureza operam neles sem auxílio de meios artificiais. Eis ai causas finais claramente estabelecidas, e seria perverter nossa faculdade de pensar pretender negar uma verdade tão universal. Porém as pedras, em toda parte e em todos os tempos, não fazem construções. Nem todos os narizes levam lunetas. Nem todos os dedos têm anel; nem todas as pernas são cobertas por uma meia de seda. Um bicho de seda, portanto, não foi criado para cobrir as pernas assim como a vossa boca foi feita para comer e vosso posterior para ir à secreta. Existem, pois, efeitos produzidos por causas finais e grande número de outros que não o são.

Porém tanto uns como outros figuram igualmente no plano da providência geral: nada sem dúvida pode ser feito mau grado seu, nem mesmo sem ela. Tudo que pertence à natureza é uniforme, imutável, é obra imediata do Senhor; foi ele quem criou leis pelas quais a Lua entra em três quartos nas causas do fluxo e do refluxo do oceano e o Sol no quarto; foi ele que deu movimento de rotação ao Sol, mediante o qual esse astro envia, em cinco minutos e meio, raios de luz aos olhos dos homens, dos crocodilos e dos gatos.

Mas se depois de tantos séculos nós nos lembramos de inventar tesouras e espetos, de tosquiar com umas a lã dos carneiros e de os cozer com os outros para comê-los, que outra coisa se pode inferir senão. que Deus nos fez de modo que um dia nos tornássemos necessariamente industriosos e carniceiros?

Naturalmente os cordeiros não foram feitos de forma alguma para ser cozidos e comidos, porquanto grande número de nações se abstêm dessa coisa horrorosa; os homens não foram criados essencialmente para se chacinarem, pois os brâmanes e os quakers não matam ninguém; mas a massa de que somos feitos produz morticínios freqüentes, assim como produz calúnias, vaidades, persecuções e impertinências. Não que a formação do homem seja precisamente a causa final de nossos furores e de nossas tolices: porque uma causa final é invariável em todos os tempos e lugares; porém os horrores e os absurdos da espécie humana não figuram menos na ordem eterna das coisas. Quando batemos o trigo, o batedor é a causa final da separação do grão. Mas se esse batedor, batendo o grão, esmaga também milhares de insetos, não é por nossa vontade determinada, nem tão pouco por acaso: é que esses insetos se encontraram nessa ocasião sob o nosso cacete e aí deviam estar.

É em virtude da natureza das coisas que um homem é ambicioso, que esse homem arregimenta algumas vezes outros homens, que seja vencedor ou que seja batido; mas jamais se poderá dizer: o homem foi criado por Deus para ser morto na guerra.

Os instrumentos que a natureza nos deu não podem ser sempre causas finais em movimento, que tenham efeito infalível. Os olhos, dados para ver, não estão sempre abertos; cada sentido tem seus momentos de repouso. Existem até sentidos que nunca usamos. Por exemplo, uma pobre imbecil, encerrada num convento aos catorze anos, fecha para si a porta de onde deveria sair uma nova geração, para sempre; mas a causa final não deixa de subsistir, ela agirá logo que seja livre.


 

FRAUDE

Se é preciso usar de fraudes piedosas com o povo.

O faquir Bambabefe encontrou um dia um dos discípulos de Cong-fu-tseu, que chamamos Confúcio, e esse discípulo chamava-se Uang; e Bambabefe sustinha que o povo tem necessidade de ser enganado, e Uang pretendia que jamais se deve enganar quem quer que seja; e eis em resumo a sua disputa.
Bambabefe

É preciso imitar o Ente Supremo, que não nos mostra as coisas tais como são; ele nos faz ver o Sol sob um diâmetro de dois ou três pés, não obstante esse astro ser um milhão de vezes maior do que a Terra; ele nos faz ver a Lua e as estrelas deitadas sobre um mesmo fundo azul, enquanto na realidade estão a distâncias diferentes; quer que uma torre quadrada nos pareça redonda de longe; quer que o fogo nos pareça quente, apesar de não ser nem frio nem quente; enfim ele nos cerca de erros convenientes a nossa natureza.
Uang

Isso a que chamais erro não o é absolutamente. O Sol, tal como está colocado a milhões de milhões de léguas além do nosso globo, não é o que vemos. Realmente, nós não percebemos, nem podia deixar de sê-lo, senão o Sol que se grava em nossa retina, sob um ângulo determinado. Nossos olhos não nos foram dados para conhecermos as grandezas e as distâncias; são precisos outros recursos e operações para conhecê-las.

Bambabefe ficou muito admirado dessas proposições. Uang, que era muito paciente, explicou-lhe a teoria da ótica; e Bambabefe, que tinha um certo tino, rendeu-se à evidência das demonstrações do discípulo de Cong-fu-tseu; em seguida reencetou a disputa nestes termos:
Bambabefe

Se Deus não nos engana quanto aos nossos sentidos, como eu pensava, deveis convir ao menos em que os médicos enganam sempre as crianças para o seu próprio bem: dizem-lhes que lhes estão dando açúcar, e na realidade trata-se de ruibarbo. Portanto, meu caro faquir, posso muito bem enganar o povo, que é tão ignorante como as crianças.
Uang

Tenho dois filhos e jamais os enganei; disse-lhes quando estiveram doentes: “Eis um remédio muito amargo, é preciso ter coragem para tomá-lo; se fosse doce vos faria mal”. Nunca admiti que suas amas e seus preceptores lhes metessem medo contando-lhes histórias de feitiçarias; é assim que os criei, como cidadãos corajosos e sábios.
Bambabefe

O povo não nasceu tão feliz como vossa família.
Uang

Todos os homens se parecem; nasceram com as mesmas disposições. Os faquires é que corrompem a natureza dos homens
Bambabefe

Ensinamos-lhes muitos erros, reconheço-o; mas é para o seu próprio bem. Fazemo-lhes crer que se não comprarem nossos cravos bentos, se não expiarem seus pecados dando-nos dinheiro, tornar-se-ão, na outra vida, cavalos de posta, cães ou lagartos: isto os intimida, e então eles se tornam pessoas de bem.
Uang

Mas não percebeis que dessa forma perverteis essa pobre gente? Existem entre o povo, mais do que se pensa, pessoas que raciocinam, que zombam de vossos cravos, de vossos milagres, de vossas superstições, que vêem muito bem que não se irão transformar nem em lagartos nem em cavalos de posta. Que acontece? Elas têm bastante bom senso para ver que vós lhes pregais uma religião impertinente, e não o têm, entretanto, suficiente para se elevar numa religião pura e isenta de superstições como é a nossa. Suas paixões lhes fazem pensar que não existe religião, uma vez que a única que lhes ensinam é ridícula; tornai-vos pois culpado de todos os vícios aos quais elas se atiram.
Bambabefe

De forma alguma, porquanto nós apenas lhes ensinamos uma boa moral.
Uang

Seríeis lapidado pelo povo se lhe ensinásseis uma moral impura. Os homens são feitos de forma tal que querem cometer o mal mas não admitem que lho preguemos. Seria simplesmente necessário não imiscuir uma sábia moral com fábulas absurdas, pois enfraqueceis com vossas imposturas, de que poderíeis vos abster, essa moral que sois forçados a ensinar.
Bambabefe

Como! Julgais que se pode ensinar a verdade ao povo sem a sustentar pelas fábulas?
Uang

Creio-o firmemente. Nossos letrados são da mesma massa que nossos alfaiates, tintureiros e camponeses. Adoram um Deus criador, remunerador e vingador Eles não contaminam o seu culto com sistemas absurdos nem cerimônias extravagantes; e há muito menos crimes entre os letrados que entre o povo. Por que não nos dignarmos instruir nossos operários como instruímos nossos letrados?
Bambabefe

Cometeríeis uma grande tolice; é como se pretendêsseis que eles tivessem a mesma polidez, que fossem jurisconsultos: isso não é possível nem conveniente. É preciso que exista pão branco para os amos e pão negro para os domésticos.
Uang

Reconheço que nem todos os homens devam ter os mesmos conhecimentos; mas há coisas necessárias a todos. É necessário que cada um seja justo, e a maneira mais segura de inspirar a justiça a todos os homens é inspirar-lhes a religião sem superstição.
Bambabefe

É um belo projeto, mas impraticável. Julgais que seja suficiente aos homens acreditar num Deus que puna e recompense? Vós me dissestes acontecer freqüentemente que os mais avisados entre o povo se revoltam contra minhas fábulas; da mesma forma se revoltarão contra vossa verdade. Dirão: Quem me pode assegurar que um Deus pune a recompensa? Onde está a prova? Que missão tendes? Que milagre fizestes para que eu vos creia? Eles zombarão de vós muito mais do que de mim
Uang

Eis o vosso erro. Imaginais que hão de sacudir o jugo de uma idéia honesta, verossímil, útil a toda gente, uma idéia que está em perfeito acordo com a razão humana, por que se rejeitam as coisas indecorosas, absurdas, inúteis, nocivas, que fazem fremir o bom senso.

O povo está sempre muito disposto a crer nos magistrados: quando seus magistrados não lhe propõem senão uma crença razoável, aceita-a de boa vontade; essa idéia é muito natural para ser combatida. Não é necessário dizer precisamente como é que Deus punirá e recompensará; basta que se creia em sua justiça. Asseguro vos que vi cidades inteiras que não tinham outro dogma, e são também aquelas onde mais encontrei a virtude.
Bambabefe

Tomai tento; encontrareis nessas cidades filósofos que vos negarão tanto as penas como as recompenses.
Uang

Deveríeis dizer que tais filósofos negariam ainda com maior vigor vossas invenções; assim nada lucrais nesse ponto. Quando mesmo existissem filósofos que não estivessem em acordo com meus princípios, não deixariam de ser pessoas de bem; não deixariam de cultivar a virtude, que deverá ser abraçada por amor, e não por medo. Mas afirmo-vos que filósofo algum jamais estará plenamente certo de que a Providência não reserve castigos aos maus e recompensas aos bons; porque se eles me perguntarem quem me disse que Deus pune, eu lhes perguntarei quem lhes disse que Deus não pune. Enfim, asseguro-vos que os filósofos me auxiliarão, longe de me contradizerem. Quereis ser filósofo?
Bambabefe

Com todo gesto; não o digais porém aos faquires.


 

FRONTEIRAS DO ESPÍRITO HUMANO

Estão em toda parte, meu pobre doutor. Queres saber por que teus pés obedecem a tua vontade e teu fígado não? Desejas saber como se forma o pensamento em teu miserável entendimento e esta criança no útero desta mulher? Dou-te tempo para me responderes. Que é a matéria? Dez mil tratados escreveram teus colegas em torno do assunto. Encontraram algumas qualidades dessa substância: as crianças conhecem-nas tanto como tu. Mas afinal que é essa substância? E que vem a ser isso que batizaste de espírito, do vocábulo latino que quer dizer sopro, não lhe dando nome melhor por não teres a menor idéia do que seja?

Olha este grão de trigo que lanço à terra e dize-me como cresce para produzir uma haste apendoada de uma espiga. Explica-me como a mesma terra produz uma maçã no alto daquela arvore e naqueloutra uma castanha. Poderia desfiar-te um infólio de
perguntas a que não deverias responder senão por estas palavras: Nada sei.

No entanto tu colaste grau, arreias chapéu alto e envergas nasóculos, e te chamam mestre.

E aquele outro impertinente, por ter comprado um cargo, presume haver comprado o direito de julgar e condenar o que não entendei

A divisa de Montaigne era: Que sei eu? A tua é: Que não sei eu?


 

GLÓRIA

Ben al Betif, digno chefe dos dervís, disse-lhes um dia: “Meus irmãos, muito conveniente é que useis com toda freqüência esta fórmula sagrada do nosso Alcorão: Em nome de Deus mui misericordioso, pois Deus usa de misericórdia e vós aprendereis a praticá-la com repetir freqüentemente os termos que recomendam uma virtude sem a qual poucos homens restariam sobre a terra. Mas, meus irmãos, abstende-vos de imitar esses temerários que a todo transe se jactam de trabalhar pela glória de Deus. Se um jovem imbecil sustenta uma tese sobre as categorias, tese presidida por um ignorante encasacado, não deixa de escrever em grossos caracteres no cabeçalho de sua tese: Ek Allah abron doxa: ad majorem Dei gloriam. Um bom muçulmano fez pintar o seu salão gravando em sua porta essa tolice; um saca carrega água para maior glória de Deus. É um costume ímpio, piedosamente posto em uso. Que diríeis de um pequeno tchauch que ao limpar a privada do nosso ilustre sultão gritasse: “Para maior glória do nosso invencível monarca”? Há certamente maior distância do sultão a Deus que do sultão ao pequeno tchauch.

“Que tendes de comum, vermes miseráveis da terra chamados homens, com a glória do Ser Infinito? Pode ele amar a glória? Pode recebê-la de vós? Pode saboreá-la? Até quando, bípedes implumes, fareis Deus. à vossa imagem? Como!. Por serdes vãos, porque amais a glória, pretendeis que Deus a ame também Se existissem vários deuses, cada um deles, é possível, poderia desejar obter o sufrágio dos seus semelhantes. Seria essa a glória de Deus. Se se pudesse comparar a grandeza infinita com a extrema baixeza, esse Deus seria como o rei Alexandre ou Scander, que não desejava entrar em lide senão com reis. Mas vós, pobres diabos, que glória poderíeis dar a Deus? Cessai de profanar o seu nome sagrado. Um imperador chamado Otávio Augusto proibiu que o louvassem nas escolas de Roma por temer que seu nome fosse envilecido. Mas vós não podeis nem envilecer o ente supremo nem honrá-lo. Humilhai-vos, adorai e calai-vos”.

Assim falou Ben al Betif; e os dervis exclamaram: “Glória a Deus! Ben al Betif bem falou”.


 

GRAÇA

Consultores sagrados da Roma moderna, ilustres e infalíveis teólogos, ninguém mais do que eu respeita vossas divinas decisões; mas se Paulo Emílio, Cípião, Catão, Cícero, César, Tito, Trajano, Marco Aurélio tornassem a essa Roma a que dedicavam outrora certo crédito, havíeis de dizer-me que ficariam um tanto admirados de vossas decisões sobre as graças. Que diriam eles se ouvissem falar da graça de saúde segundo Sto. Tomás e da graça medicinal segundo Cajetan; da graça exterior e interior, da graça gratuita, da santificante, da atual, da habitual, da cooperante; da eficaz, que algumas vezes não surte efeito; da suficiente, que às vezes não basta; da versátil e da côngrua? Em boa fé, compreenderiam eles mais do que eu e vós?

Que necessidade teriam esses pobres homens de vossas instruções sublimes? Parece-me ouvi-los dizer:

Meus reverendos padres, sois uns gênios terríveis; pensávamos tolamente que o Ser Eterno não se guia jamais pelas leis particulares como os vís humanos, mas sim por suas leis gerais, eternas como eles. Nenhum de nós jamais imaginou que Deus se assemelhasse a um suserano insensato que concede um pecúlio a um escravo e recusa alimentação a outro; que ordena ao maneta amassar-lhe a farinha, a um mudo que lhe leia o jornal, a um perneta que lhe sirva de mensageiro.

Tudo é graça da parte de Deus. Fez, ao globo que habitamos, a graça de formá-lo; às árvores, a graça de fazê-las crescer; aos animais a de os nutrir. Mas, – dir-se-á – no caso de um lobo encontrar no seu caminho um cordeiro para seu almoço, enquanto outro lobo morre de fome, terá feito Deus a esse primeiro lobo uma graça particular? Ter-se-á ocupado, por uma graça obsequiosa, em fazer nascer um carvalho de preferência a outro carvalho ao qual faltou seiva? Se em toda a natureza todos os seres estão sujeitos às leis gerais, por que motivo uma única espécie constituiria exceção? Por que deveria o senhor absoluto de tudo ocupar-se mais em dirigir o interior de um único homem do que conduzir o resto da natureza inteira? Por que extravagância mudaria ele alguma coisa no coração de um curlandês ou biscainho, enquanto nada modifica das leis que impôs a todos os astros?

Que miséria o supor que ele faz, desfaz, refaz continuamente nossos sentimentos! E que audácia o nos julgarmos à parte de todos os seres! Ainda não é senão para aqueles que confessam serem todas essas mudanças imaginadas. Um savoiano, um bergamásio, terá na segunda feira a graça de mandar dizer uma missa por doze soldos; na terça irá à tasca, e a graça lhe faltará; na quarta terá uma graça cooperante que o conduzirá à confissão, mas não terá a graça eficaz da contrição perfeita; na quinta feira haverá uma graça suficiente que não lhe bastará, como já dissemos. Deus trabalhará continuamente no cérebro desse bergamásio, ora com energia, ora debilmente, e o resto da terra nada será para ele! Não se dignará imiscuir-se no interior dos hindus e dos chineses! Se ainda vos sobrar uma partícula de razão, meus reverendos padres, não achais esse sistema prodigiosamente ridículo?

Desgraçados, vede esse carvalho que alevanta a fronde às nuvens e esse caniço que rasteja a seus pés! Não direis que a graça eficaz foi dada ao carvalho e faltou ao caniço. Elevai os olhos ao céu, vede o eterno demiurgo criando milhões de mundos que gravitam todos entre si mercê de leis gerais e eternas. Vede a mesma luz refletir-se do Sol a Saturno e de Saturno a nós; e, nesse acordo de tantos astros arrastados por uma rápida corrente, nessa obediência geral de toda a natureza, ousai crer, se o puderdes, que Deus se ocupa em conceder uma graça versátil a sóror Teresa e uma graça concomitante a sóror Inês.

Átomo, a quem um tolo átomo disse que o Eterno tem leis particulares para alguns átomos de tua vizinhança; que ele concede sua graça àquele e nega-a a este; que aquele que não possuía graça ontem te-la-á amanhã, – não repitas essa tolice. Deus fez o universo e não criará ventos novos para remover alguns gravetos de palha num canto desse universo. Os teólogos são como os combatentes de Homero, que acreditavam que seus deuses ora se armavam contra eles, ora a seu favor. Se Homero não fosse considerado como poeta, se-lo-ia como blasfemador.

É Marco Aurélio quem fala e não eu: porque Deus, que vos inspira, me concede a graça de acreditar em tudo o que dizeis, tudo o que tendes dito, tudo o que disserdes.


 

GUERRA

A miséria, a peste e a guerra são os três ingredientes mais famosos deste mundo vil. Podem-se colocar na classe da miséria todas as más alimentações a que a penúria nos força a recorrer para abreviar nossa vida na esperança de a suster.

Compreendem-se na peste todas as doenças contagiosas, que são em número de, dois ou três mil. Esses dois presentes nos vêm da Providência, A guerra, porém, que reúne todos esses dons, nos vem da imaginação de trezentas ou quatrocentas pessoas disseminadas pela superfície do globo sob o nome de príncipes ou ministros; é provavelmente por essa razão que em várias dedicatórias se chamam imagens vivas da Divindade (31).

O mais determinado adulador convirá sem esforço em que a guerra acarreta sempre a peste e a miséria, por pouco que tenha visto os hospitais dos exércitos da Alemanha (32), ou que tenha passado em aldeias onde se fez algum grande movimento militar.

É sem dúvida uma bela arte a de desolar os campos, destruir as casas e fazer morrer, anualmente, quarenta mil homens sobre cem mil. A principio essa invenção foi cultivada por nações reunidas para o bem comum; por exemplo, a dieta dos gregos declarou à dieta da Frígia e dos povos vizinhos que ia partir num milheiro de barcos de pesca a fim de os exterminar, se o pudesse.

O povo romano reunido julgou ser de seu interesse ir combater antes da colheita contra o povo dos véios ou contra os volscos. E, alguns anos antes, todos os romanos, estando encolerizados contra todos os cartagineses, bateram-se longo tempo em mar e em terra. Não sucede o mesmo hoje em dia.

Um genealogista prova a um príncipe que este descende em linha reta de um conde cujos pais tinham feito um pacto de família, há trezentos ou quatrocentos anos, com uma casa de que nem sequer existe memória. Essa casa tinha vastas pretensões sobre uma província cujo último possessor morreu de apoplexia: o príncipe e seu conselho concluem sem dificuldade que essa província lhe pertence por direito divino. Essa província, que está situada a algumas centenas de léguas, perde seu tempo em protestar que não o conhece, que não tem nenhum desejo de vir a ser governada por ele; que, para dar leis à gente, é preciso ao menos ter o seu consentimento: tais discursos chegam aos ouvidos do príncipe, cujo direito é incontestável. Este encontra imediatamente um grande número de homens que nada têm que fazer nem que perder; veste-os com um grosso pano azul a cento e dez soldos cada um, borda seus chapéus com fio branco ordinário, fá-los manobrar um pouco e marcha para a glória.

Os outros príncipes que ouvem falar desse exército tomam parte nele, cada um segundo seu poder, e cobrem uma pequena planície do país de tantos matadores mercenário como Gengis Cã, Tamerlão, Bajazés jamais tiveram em seu séquito.

Povos bastante afastados ouvem dizer que vai haver guerra e que há cinco ou seis soldos diários a ganhar se quiserem participar da coisa: dividem-se dentro em pouco em dois bandos, como ceifeiros, e vão vender seus serviços a quem os queira empregar.

Então essas multidões se atiram umas contra outras, não só sem ter interesse algum no processo, mas sem mesmo saber do que se trata. São seis potências beligerantes ao mesmo tempo, ora três contra três, ora duas contra quatro, ora uma contra cinco, detestando-se todas igualmente entre si, unindo-se e atacando turno a turno; todas de acordo num único ponto, o de fazer todo o mal possível.

O maravilhoso dessa empresa infernal é que cada chefe dos matadores faz benzer suas bandeiras e invoca solenemente a Deus antes de ir exterminar o próximo.

Se um chefe não teve a felicidade de fazer degolar senão dois ou três mil homens, não agradece a Deus; mas assim alcance um ativo de uns dez mil exterminados pelo fogo e pelo ferro, e por cúmulo de graça alguma cidade seja totalmente destruída, então canta-se aos quatro ventos uma longa canção, composta numa língua desconhecida de todos os que combateram e repleta de barbarismos. A mesma canção serve tanto para os casamentos ou nascimentos como para as mortes: o que é imperdoável, sobretudo na nação mais famosa por suas novas canções.

Paga-se por toda parte um certo número de arengadores a fim de celebrar essas jornadas mortíferas; uns vestem-se com longos gibões pretos, encimados por uma capa curta; outros usam uma camisa por cima da roupa; outros levam um tirante matizado por cima da camisa. Todos falam muito; citam o que se fez outrora na Palestina, a propósito de um combate em Veterávia.

O resto do ano esses indivíduos declamam contra os vícios. Provam em três pontos e por antíteses que as damas que espalham ligeiramente um pouco de carmim nas bochechas serão objeto de eternas vinganças do Eterno; que Polieuto e Atália são obras demoníacas; que um homem que manda pôr sobre sua mesa duzentos escudos de peixe fresco num dia de quaresma beneficia sua saúde, e que um pobre homem que come dois soldos de carneiro irá para sempre a todos os diabos.

De cinco ou seis mil declamações dessa espécie, apenas existem três ou quatro, compostas por um gaulês chamado Massilão, que um homem honesto pode ler sem desgosto; mas em todos esses discursos não há um só orador que ouse insurgir-se contra esse flagelo e esse crime da guerra, que contém todos os flagelos e todos os crimes. Os desgraçados arengadores falam sem cessar contra o amor, que é a única consolação do gênero humano e a única maneira de o reparar; nada dizem dos esforços abomináveis que fazemos para destruí-lo.

Fizestes um péssimo sermão sobre a impureza, ó Bourdaloue! mas nenhum sobre essas mortes variadas em tantos lugares, sobre essas rapinas, sobre esses banditismos, sobre essa raiva universal que desola o mundo. Todos os vícios reunidos de todas as idades e de todos os lugares jamais igualarão os males produzidos por uma única campanha.

Miserável módico de almas, gritais durante cinco quartos de hora por causa de algumas picadas de espinho e nada dizeis sobre a enfermidade que nos estraçalha em mil pedaços! Filósofos moralistas, queimai todos os vossos livros, Enquanto o capricho de alguns homens fizer lealmente degolar milhares de nossos confrades, a parte do gênero humano consagrada ao heroísmo será o que de mais afrontoso existe em toda a natureza.

Que são, que me importam a humanidade, a beneficência, a modéstia, a temperança, a doçura, a sabedoria, a piedade, quando meia libra de chumbo atirada de seiscentos passos me inutiliza o corpo e morro aos vinte anos entre padecimentos inexprimíveis, no meio de cinco ou seis mil agonizantes, enquanto meus olhos que se abrem pela última vez vêem a cidade em que nasci destruída pelo fogo e pelas chamas, e os derradeiros sons que meu ouvido percebe são gritos de mulheres e de crianças que expiram sob as ruínas, tudo pelos pretensos interesses de um homem que não conhecemos?

E o que é pior, a guerra é um flagelo inevitável, Se observarmos bem, todos os homens adoraram o deus Marte. Sabaote, entre os judeus, significa o deus das armas; mas Minerva, em Homero, considera Marte um deus furioso, insensato e infernal.


 

HISTÓRIA DOS REIS JUDEUS E PARALIPÔMENOS

Todos os povos escreveram sua história, desde que o puderam fazer. Os judeus também escreveram a sua. Antes que tivessem reis viviam sob o regime teocrítico; eram julgados e governados pelo próprio Deus.

Quando os judeus desejaram um rei como os povos seus vizinhos, o profeta Samuel declarou-lhes da parte de Deus que eles rejeitavam o próprio Deus: assim findou a teocracia entre os judeus quando teve princípio a monarquia.

Poder-se-ia, pois, dizer sem blasfemar que a história dos reis judeus foi escrita como a dos outros povos, e que Deus não se deu ao trabalho de contar, ele mesmo, a história de um povo que já não governava.

É com extrema desconfiança que se aventa essa opinião. O que a poderia confirmar é que os Paralipômenos contradizem freqüentemente o Livro dos Reis na cronologia e nos fatos, assim como os nossos historiadores profanos se contradizem algumas vezes. Demais, se Deus sempre escreveu a história dos judeus, será preciso crer, portanto, que continua a escrevê-la, porque os judeus continuam a ser o seu povo querido. Eles dever-se-ão converter um dia e parece que então estarão também no direito de considerar a história de sua dispersão como sagrada, assim como têm direito de dizer que Deus escreveu a história dos seus reis.

Pode-se ainda fazer uma reflexão: é que, tendo sido Deus o seu úico rei durante longo tempo e em seguida seu historiador, deveremos ter para com todos os judeus o mais profundo respeito. Não há algibebe judeu que não esteja infinitamente acima de César e Alexandre. Como evitar prosternar-se diante de um adelo que vos prova que sua história foi escrita peia própria Divindade, enquanto as histórias gregas e romanas não nos foram transmitidas senão por profanos?

Se o estilo da História dos Reis e dos Paralipômenos é divino, as ações relatadas nessas histórias nada têm de divino. Davi assassina Urias; Isbosete e Mifibosete são assassinados; Absalão assassina Amão; Joabe assassina Absalão; Salomão assassina Adonias, seu irmão; Baasa assassina Nadabe; Zambri assassina Ela; Amri assassina Zambri; Acabe assassina Nabote; Jeú assassina Acabe e Jorâm; os habitantes de Jerusalém assassinam Amazias, filho de Joas; Selum, filho de Jabes, assassina Zacarias, filho de Jeroboão; Manaêm assassina Selum, filho de Jabes; Faceu, filho de Romélio, assassina Facéia, filho de Manaêm; Ozeu, filho de Ela, assassina Faceu, filho de Romélio. Silenciamos outros cardápios de assassínios. É preciso compreender que se o Espírito Santo escreveu essa história, não escolheu um assunto muito edificante.


 

ÍDOLO, IDÓLATRA, IDOLATRIA

Idolo vem do grego [grego], figura; [grego], representação de uma figura; [grego], servir, reverenciar, adorar, O termo adorar é latino, existindo várias acepções diferentes: significa levar a mão à boca falando com respeito, curvar-se, ajoelhar-se, saudar e, enfim, comumente, render um culto supremo.

É útil assinalar aqui que o Dictionnaire de Trévoux começa esse artigo por dizer que todos os pagãos eram idólatras e que os hindus ainda o são. Primeiramente, não se chamava pagão a ninguém antes de Teodósio o Jovem; esse nome foi dado então aos habitantes dos burgos da Itália, pagorum incolae, pagani, que conservavam sua antiga religião. Em segundo lugar, o Indostão é maometano e os maometanos são inimigos implacáveis das imagens e da idolatria. Terceiro, não se deve chamar idólatras a muitos povos da Índia que pertencem à antiga religião dos parsis, nem a certas castas que não adoram ídolos.
Exame

Se houve alguma vez um governo idólatra

Parece não ter existido jamais nenhum povo sobre a terra que tenha tomado esse nome de idólatra. Esse termo é uma injúria, uma palavra ultrajante, tal como a de gavachos (33), que os espanhóis davam outrora aos franceses, e o de maranes (34) que os franceses davam aos espanhóis. Se se tivesse perguntado ao senado de Roma, ao Areópago de Atenas, à corte dos reis da Pérsia: “Sois idólatras!” – mal entenderiam a pergunta. Ninguém teria respondido: “Adoramos imagens e ídolos”. Não se encontra o termo idólatra, idolatria nem em Homero, nem em Esíodo, nem em Heródoto, nem em qualquer outro autor da religião dos gentios. Jamais existiu édito, lei alguma que ordenasse a adoração de ídolos, que fossem usados como deuses, que se considerassem como deuses.

Quando os capitães romanos e cartagineses concluíam um tratado, invocavam todos os seus deuses. “É na sua presença” – diziam eles – “que juramos a paz”. Ora, as estátuas de todos esses deuses, cuja enumeração seria muito longa, não participavam da tenda dos generais. Consideravam os deuses como presentes às ações dos homens, como testemunhas, como juizes e com certeza não era o simulacro que constituía a divindade.

Com que olhos viam, pois, as estátuas das suas falsas divindades nos templos? Com os mesmos olhos, se se permitir esta expressão, com que vemos as imagens dos objetos de nossa veneração. O erro não era adorar pedaços de mármore ou de madeira, mas adorar uma falsa divindade, representada por essa madeira e por esse mármore. A diferença entre eles e nós não é que eles tivessem imagens e nós não. A diferença é que suas imagens representavam seres fantásticos de uma religião falsa e as nossas representam seres reais duma religião verdadeira. Os gregos tinham a estátua de Hércules e nós a de S. Cristóvão; tinham Esculápio e sua cabra e nós S. Roque e seu cão; tinham Júpiter armado com um feixe de raios e nós Sto. Antônio de Pádua e São Jaques de Compostela.

Quando o cônsul Plínio endereça suas preces aos deuses imortais, no exórdio do Panegírico de Trajano, não é às imagens que se dirige. Essas imagens não eram imortais.

Nem os últimos tempos do paganismo nem os mais remotos oferecem um único fato que possa fazer concluir que se adorassem ídolos. Homero fala apenas de deuses que habitavam o alto Olimpo. O palladium, ainda que caído do céu, era apenas um penhor sagrado da proteção de Palas; era a ela que se venerava no palladium.

Porém os romanos e os gregos ajoelhavam-se diante das estátuas, davam-lhes coroas, incenso, flores, conduziam-nas em triunfo nas praças públicas. Nós santificamos esses costumes, e não somos idólatras.

As mulheres, em tempos de seca, carregavam as estátuas dos deuses depois de haver jejuado. Caminhavam descalças, descabeladas, e em breve chovia a cântaros, como dizia Petrônio, et estatim urceatim pluebat(35). Não consagramos esse uso, ilegítimo entre os gentios e legítimo sem dúvida alguma entre nós? Em quantas cidades não se levam a pés nus os altares dos santos para obter as bênçãos do céu por seu intermédio? Se um turco, um letrado chinês presenciasse essas cerimônias, poderia, por ignorância, acusar-nos desde logo de pôr nossa confiança em imagens que assim transportamos em procissão; bastaria, porém, uma palavra para os desmentir.

Surpreendemo-nos do número prodigioso de declamações debitadas em todos os tempos contra a idolatria dos romanos e dos gregos; e mais ainda, nos surpreendemos ao saber que não foram idólatras.

Existiam templos mais privilegiados que outros. A grande Diana de Éfeso tinha mais reputação do que uma Diana de aldeia. Operavam-se mais milagres no templo de Esculápio em Epidauro que em outro qualquer dos seus templos. A estátua de Júpiter Olímpico atraía mais oferendas que a de Júpiter Paflagônio. Mas, desde que é preciso sempre opor aos costumes de uma religião verdadeira os de uma religião falsa, não tivemos nós, durante vários séculos, mais devoção a certos altares do que a outros? Não levamos mais ofertórios a Nossa Senhora de Loreto que a Nossa Senhora das Neves? É a nós que compete saber se esse pretexto serve para nos acusar de idolatria.

Não se imaginara senão uma só Diana, um só Apolo, um único Esculápio, e não tantos Apolos, Dianas e Esculápios, com seus respectivos templos e estátuas. Está pois provado, tanto quanto o pode ser um ponto histórico, que os antigos não criam em que uma estátua fosse uma divindade, que o culto não podia ser relacionado a essa estátua, a esse ídolo e que, consequentemente, os antigos nada tinham de idólatras.

Um populacho grosseiro, supersticioso, que não raciocinava, que não sabia duvidar nem negar nem crer, que acorria aos templos por ociosidade e porque aí os pequenos são iguais aos grandes, que levava sua oferenda por costume, que falava continuamente de milagres sem nunca haver examinado um deles, e que não estava acima das vítimas que causava; esse populacho, digo, bem podia, à vista da grande Diana e de Júpiter Tonante, ser ferido de um terror religioso e adorar, sem o saber, a própria estátua. É o que em nossos templos aconteceu algumas vezes a nossos grosseiros concidadãos. Entretanto, não cessamos de lhes dizer que é aos bem-aventurados, aos imortais, recebidos no céu, que eles devem solicitar, e não a figuras de madeira e de pedra, e que apenas devem adorar a Deus.

Os gregos e romanos aumentaram por apoteoses o número de seus deuses. Os gregos divinizavam os conquistadores, como Baco, Hércules e Perseu. Roma erigiu altares aos seus imperadores. Nossas apoteoses são de gênero diferente; temos santos em substituição a seus semideuses, seus deuses secundários; mas não os consideramos mercê de seus postos ou conquistas. Elevamos templos a homens simplesmente virtuosos que seriam, na maioria, completamente ignorados sobre a terra se não tivessem sido colocados no céu. As apoteoses dos antigos inspiravam-se na lisonja, as nossas no respeito à virtude, mas essas antigas apoteoses constituem ainda uma prova convincente de que os gregos e romanos nada tinham propriamente de idólatras. Está claro que não admitiam mais uma virtude divina na estátua de Augusto e Cláudio do que em suas medalhas.

Cícero, em suas obras filosóficas, não deixa sequer supor que nos possamos enganar quanto às estátuas dos deuses, confundindo-as com os próprios deuses. Seus interlocutores fulminavam a religião estabelecida; mas nenhum deles sonha em acusar os romanos de empregar o mármore e o bronze para as estátuas de suas divindades. Lucrécio não reprova essa tolice a ninguém, ele que tudo reprova aos supersticiosos. Portanto, ainda uma vez, essa opinião não existia, não se fazia dela idéia alguma; não existiam idólatras.

Horácio faz falar a uma estátua de Príapo, fazendo-lhe dizer: “Eu fui outrora um tronco de figueira; um carpinteiro, não sabendo se faria de mim um Deus ou um banco, determinou enfim tornar-me um deus, etc.” (36). Que concluir desse gracejo? Príapo era dessas pequenas divindades subalternas abandonadas ao gracejo; esse próprio gracejo é a prova mais evidente de que essa figura de Príapo, que se colocava nas hortas para espantar os pássaros, não era muito venerada.

Dacier, entregando-se ao espírito comentador, não deixou de observar que Baruch predissera essa aventura dizendo: “Eles serão apenas o que quiserem os artífices”; porém ele deveria observar também que se pode dizer outro tanto de todas as divindades.

Pode-se, de um bloco de mármore, fazer tão bem um fogão como uma figura de Alexandre ou de Júpiter, ou qualquer outra coisa mais respeitável. A matéria de que eram formados os querubins do Santo dos Santos teria podido servir igualmente às funções mais vis. Um trono, um altar, são menos venerados porque um operário poderia ter feito com seu material uma mesa de cozinha?

Dacier, em lugar de concluir que os romanos adoravam a estátua de Príapo e que Baruch o predissera, deveria pois concluir que os romanos se riam dela. Consultai todos os autores que falam das estátuas dos seus deuses e não encontrareis nenhum que fale em idolatria: eles dizem expressamente o contrário. Vedes em Marcial:

Qui finxit sacros auro vel marmore vultus non facit ille deos.... (37).

Em Ovídio:

Colitur pro Jove forma Jovis (38).

Em Estácio:

Nulla autem effigies, nulli commissa metallo forma Dei; mentes habitare et pectora gaudet (39).

Em Lucano:

Estne Dei sedes, nisi terra et pontus et aer? (40).

Far-se-ia um volume de todos os passos que afirmam que as imagens são somente imagens.

Apenas o caso em que as estátuas concediam oráculos pode fazer pensar que essas estátuas tinham alguma coisa de divino. Mas certamente a opinião reinante era a de que os deuses tinham escolhido determinados altares, determinadas imagens, para aí descerem algumas vezes, para aí dar audiências aos homens, para lhes responder. Não vemos em Homero e nos coros das tragédias gregas senão preces a Apolo, que dava seus oráculos nas montanhas, em tal templo, em tal cidade; não há, sem dúvida, em toda a antigüidade, o menor vestígio de preces dirigidas a uma estátua.

Os que professavam a magia, os que a julgavam uma ciência ou que fingiam crê-lo, pretendiam ter o segredo de fazer os deuses descerem às estátuas; não os grandes deuses, mas os deuses secundários, os gênios. É o que Mercúrio Trismegista chamava fazer deuses; é isso que Sto. Agostinho refuta em sua Cidade de Deus. Porém mesmo isso mostra evidentemente que as imagens nada tinham de divino, porquanto era preciso que um mago as animasse. Parece-me que era muito raro um mago ter habilidade suficiente para dar alma a uma estátua, para fazê-la falar.

Numa palavra: as imagens dos deuses não eram deuses. Júpiter e não sua imagem lançava o trovão; e não era a estátua de Netuno que agitava os mares nem a de Apolo que fazia a luz. Os gregos e os romanos eram gentios, politeístas e não idólatras.

Se os persas, os sabaenses, os egípcios, os tártaros, Os turcos foram idólatras e de que antigüidade é a origem das imagens chamadas “ídolos”. História do seu culto.

É um grande erro chamar idólatras aos povos que renderam culto ao Sol e às estrelas. Essas nações não tiveram por muito tempo nem imagens nem templos. Se se enganaram, foi em atribuir aos astros o que deviam ao criador dos astros. O dogma de Zoroastro ou Zerdusto, recolhido no Sadder, apresenta também um ente supremo, vingador e remunerador; e isto está bem longe de ser idolatria. O governo da China não teve jamais nenhum ídolo;, conservou sempre o culto simples do Senhor dos Céus, King-tien. Gengis Cã, entre os tártaros, não era idólatra nem possuía imagem alguma. Os muçulmanos, que inçaram a Grécia, Ásia Menor, Síria, Pérsia, Índia e África, chamam aos cristãos idólatras, infiéis, pois acreditam que eles rendem culto às imagens. Quebraram várias estátuas que encontraram em Constantinopla, em Santa Sofia, na igreja dos Santos Apóstolos e em muitas outras que converteram em mesquitas. A aparência os enganou como sempre engana os homens e lhes fez crer que templos dedicados aos santos que tinham sido homens outrora, imagens desses santos veneradas de joelhos, milagres operados nesses templos eram provas irretorquíveis da mais consumada idolatria. Contudo, não há nada disso. Os cristãos não adoram, na verdade, senão um Deus único e não veneram nos seus bem-aventurados senão a própria virtude de Deus que age em seus santos. Os iconoclastas e os protestantes lançaram a mesma tacha de idolatria à igreja e a mesma resposta lhes foi dada.

Como muito raramente tiveram os homens idéias precisas e menos ainda exprimiram suas idéias por termos precisos e inequívocos, apelidamos idólatras os gentios e sobretudo os politeístas. Escreveram-se volumes imensos, debitaram-se sentimentos diversos sobre a origem desse culto rendido a Deus ou a vários deuses sob figuras sensíveis: esta multitude de livros e de opiniões não atesta senão ignorância.

Não se sabe quem inventou as vestes e os calçados e quer-se saber quem primeiro inventou os ídolos? Que importa um trecho de Sanconiáton, que viveu antes da guerra de Tróia? Que nos ensina ele quando diz que o caos, o espírito, isto é, o sopro, enamorado de seus princípios, lançou-lhes os alicerces, que tornou o ar luminoso, que o vento Colpo e sua mulher Bau geraram Éon, que Éon gerou Genos, que Cronos, seu descendente, tinha dois olhos atrás como na frente, que se tornou Deus e que presenteou o Egito a seu filho Tot? Aí tendes um dos mais respeitáveis monumentos da antigüidade.

Orfeu, anterior a Sanconiáton, nada nos poderá dizer de novo em sua Teogonia, que Damácio nos transmitiu. Apresenta o princípio do mundo sob a figura de um dragão de duas cabeças, uma de touro, outra de leão, um rosto à metade, a que chama rosto-deus, e asas douradas nas costas.

Podeis, porém, dessas estranhas idéias, tirar duas grandes verdades: uma, que as imagens sensíveis e os hieróglifos são da mais alta antigüidade; outra, que todos os filósofos antigos reconheceram um primeiro princípio.

Quanto ao politeísmo, o bom senso vos dirá que, desde que existiram homens, isto é, frágeis animais capazes de razão e de loucura, sujeitos a todos os acidentes, à doença e à morte, esses homens sentiram sua fraqueza e sua dependência; reconheceram facilmente a existência de alguma coisa mais poderosa que eles; sentiram uma força na terra que fornece seus alimentos, uma no ar que os destrói com freqüência, uma no fogo que consome e na água que submerge. Que mais natural, em homens ignorantes, que o imaginar seres que presidissem a esses elementos? Que mais natural que venerar a força invisível que fazia luzir diante dos olhos o Sol e as estrelas? E, desde que se desejou formar uma idéia dessas forças superiores ao homem, que mais natural ainda que o figurá-las de uma maneira sensível? Poderia ser de outra forma? A religião judaica, que precedeu à nossa e que foi dada por Deus, estava repleta dessas imagens sob as quais se representa Deus. Ele se digna falar num espinheiro a linguagem humana; aparece sobre uma montanha; os espíritos celestes que envia vêem todos sob forma humana; enfim o santuário está repleto de querubins, que são corpos de homens com asas e cabeças de animais. É o que deu lugar ao erro de Plutarco, Tácito e tantos outros que reprovaram aos judeus o adorar uma cabeça de asno. Deus, apesar de sua proibição de se pintarem e esculpir figuras, dignou-se pois proporcionar-se à fraqueza humana, que solicitava que se lhe falasse aos sentidos por meio de imagens.

Isaías, no cap. 6, vê o Senhor sentado sobre um tronco e a cauda de seu vestido que enchia o templo. O Senhor estende sua mão e toca a boca de Jeremias, no capítulo 1 desse profeta. Ezequiel, no capítulo 3, vê um trono de safira, e Deus lhe aparece como um homem sentado em seu trono. Essas imagens não alteram em nada a pureza da religião, que jamais empregou quadros, estátuas, ídolos, para representar Deus aos olhos do povo.

Os letrados chineses, os parsis, os antigos egípcios não tiveram ídolos; mas em breve Isis e Osiris foram figurados; em breve Bel, em Babilônia, foi um grande colosso; Brama foi um estranho monstro na península da Índia. Os gregos principalmente multiplicaram os nomes dos deuses, as estátuas e os templos, mas sempre atribuindo a suprema potência a seu deus Zeus, chamado pelos latinos Júpiter, senhor dos deuses e dos homens. Os romanos imitaram os gregos. Esses povos colocaram sempre todos os deuses no céu, sem saber que é que entendiam pelo céu e pelo seu Olimpo; não havia o mínimo indício de que esses deuses habitassem nas nuvens, que apenas são água. Colocaram-se, primeiro, sete deuses em sete planetas; porém ao depois a morada de todos os deuses foi a amplidão celeste.

Os romanos tiveram seus doze grandes deuses, seis varões e seis fêmeas, a que chamaram Dii majorum gentium: Júpiter, Netuno, Apolo, Vulcano, Marte, Mercúrio; Juno, Vesta, Minerva, Ceres, Vênus, Diana. Plutão foi então esquecido; Vesta tomou seu lugar.

Em seguida vinham os deuses minorum gentium, os deuses indígetes, os heróicos, como Baco, Hércules, Esculápio; os deuses infernais, Plutão, Prosérpina; os do mar, como Tetis, Anfitrite, as Nereidas, Glauco; depois as Dríadas, as Náiadas; os deuses dos jardins, dos pastores. Havia-os para cada profissão, para cada ação da vida, para as crianças, para as jovens casadouras, para as casadas, para as amantes; houve o deus Pete. Divinizaram-se por fim os imperadores. Nem esses imperadores, nem o deus Pete, nem a deusa Pertunda, nem Príapo, nem Rumília, a deusa das tetas, nem Estercútio, o deus do guarda-roupa, foram na verdade considerados como senhores do céu e da terra. Os imperadores tiveram templos algumas vezes, os pequenos deuses domésticos não os tiveram; mas todos tiveram sua figura, seu ídolo.

Tratava-se de pequenos bonecos com os quais se ornavam os gabinetes; brinquedos para velhas e crianças, que não estavam autorizados por nenhum culto público. Deixava-se que cada particular tivesse as superstições que melhor lhe agradassem. Encontram-se ainda esses pequenos ídolos nas ruínas das cidades antigas.

Se ninguém sabe quando os ídolos começaram a ser fabricados, sabe-se em compensação que remontam à mais alta antigüidade. Tareu, pai de Abraão, construiu Ur, na Caldéia. Raquel roubou e carregou os ídolos de seu avô Labão. Não é possível ir mais longe.

Mas que noção precisa tinham as nações antigas a respeito desses simulacros? Que virtude, que potência lhes atribulam? Julgava-se que os deuses desciam do céu para se meterem nessas estátuas, ou que lhes comunicavam uma parte do espírito divino, ou que não lhes comunicavam coisa alguma? É este também um assunto sobre o qual se tem escrito inutilmente; é claro que cada homem julgava segundo a sua parcela de razão, ou de credulidade, ou de fanatismo. É evidente que os padres ligaram as divindades o mais que puderam às suas estátuas, a fim de conseguirem maior número de oferendas. Sabe-se que os filósofos reprovavam essas superstições, que os guerreiros as escarneciam, que os magistrados as toleravam e que o povo, sempre absurdo, não sabia que fazer com elas. É esta em poucas palavras a história de todas as nações a quem Deus não se fez conhecer.

Pode-se fazer a mesma idéia do culto que todo o Egito rendia a um boi e que várias cidades renderam a um cão, a um símio, a um gato, a cebolas. Há muita aparência de que de começo tenham servido como emblemas. Em seguida um certo boi Apis, um certo cão chamado Anubis, foram adorados; comia-se diariamente carne de boi e cebolas; é porém muito difícil saber que pensavam as velhas do Egito a respeito dos bois e das cebolas sagradas.

Os ídolos falavam com freqüência. Comemoravam-se em Roma, no dia da festa de Cibele, belas palavras que a estátua pronunciara ao ser transladada do palácio do rei Atálio.

Ipsa peti volui; ne sit mora, mitte volentem:
dignus Roma locus quo deus omnis eat
(41).

Eu quis que me levassem, levai-me depressa; Roma é digna de que todos os deuses se estabeleçam nela.

A estátua da Fortuna falara: os Cipiões, os Cíceros; os Césares, na: verdade, não acreditavam; mas a velha a quem Encolpo deu um escudo a fim de que comprasse gansos e deuses bem poderia acreditá-lo.

Os ídolos também concediam oráculos, e os sacerdotes metidos no oco das estátuas falavam em nome da Divindade.

Como, no meio de tantos deuses e de tantas teogonias diferentes e de cultos particulares, jamais houve guerras de religião entre os povos chamados idólatras? Essa paz foi um bem que nasceu de um mal, do erro mesmo: porque, reconhecendo cada nação vários deuses inferiores, achou bom que os seus vizinhos tivessem também os seus. Se excetuardes Cambises, a quem se reprova o haver matado o boi Apis, não encontramos na história profana nenhum conquistador que tenha maltratado os deuses de um povo conhecido. Os gentios não tinham nenhuma religião exclusiva, e os sacerdotes pensavam apenas em multiplicar as oferendas e os sacrifícios.

As primeiras oferendas foram frutos. Em breve foram necessários animais para a mesa dos sacerdotes; eles próprios os degolavam; tornaram-se carniceiros, e cruéis; enfim introduziram o costume horrível de sacrificar vitimas humanas e sobretudo crianças e mocinhas. Jamais os chineses nem os parsis nem os hindus foram culpados de tais abominações; mas em Hierópolis, no Egito, Segundo Porfírio, se imolaram homens.

Na Táurida sacrificavam-se os estrangeiros; felizmente os sacerdotes da Táurida não deviam ter muitas práticas. Os primeiros gregos, os cipriotas, os fenícios, os tirenses, os cartagineses tiveram essa superstição abominável. Os próprios romanos incorreram nesse crime de religião, e informa Plutarco que eles imolaram dois gregos e dois gauleses para expiar os deslizes de três vestais. Procópio, contemporâneo do rei dos francos Teodoberto, diz que estes imolaram homens quando entraram na Itália com esse príncipe. Os gauleses, os germanos, praticavam comumente esses sacrifícios afrontosos. Não se pode ler a história sem conceber grande horror ao gênero humano.

É verdade que, entre os judeus, Jefté sacrificou sua filha e Saul esteve prestes a imolar seu filho; e é verdade que aqueles que estivessem votados ao Senhor por anátema não poderiam ser resgatados como se resgatavam os animais, sendo mister que perecessem. Samuel, sacerdote de Deus, cortou em pedaços com o auxílio de um santo cutelo o rei Agague, prisioneiro de guerra a quem Saul perdoara, e Saul foi reprovado por ter observado o direito das gentes com esse rei. Mas Deus, senhor dos homens, pode tirar-lhes a vida quando quiser, como quiser e para o que quiser; e não compete aos homens colocar-se no posto de senhor da vida e da morte e usurpar os direitos do Ente Supremo.

A fim de consolar o gênero humano do quadro horrível desses piedosos sacrilégios, é importante saber que, em quase todas as nações chamadas idólatras, existia a teologia sagrada e o erro popular, o culto secreto e as cerimônias públicas, a religião dos sábios e a do vulgo. Não se ensinava senão um Deus aos iniciados nos mistérios; basta um relance de olhos sobre o hino atribuído ao velho Orfeu, que se cantava nos mistérios de Ceres Eleusina, tão célebre na Europa e na Ásia: “Contempla a natureza divina, ilumina teu espírito, governa teu coração, trilha o caminho da justiça; que o Deus do céu e da terra esteja sempre presente aos teus olhos: ele é único, existe por si mesmo; todos os seres devem-lhe a sua existência; ele os sustenta a todos; ele jamais foi visto pelos mortais e vê todas as coisas.”

Que se leia ainda este passo do filósofo Máximo de Madauro, em sua Carta a Santo Agostinho: “Qual o homem suficientemente grosseiro e estúpido para duvidar haver um Deus supremo, eterno, infinito, que nada engendrou de semelhante a si próprio e que é o pai comum de todas as coisas?”.

Há milhares de provas de que os sábios abominavam não só a idolatria mas também o politeísmo.

Epicteto, esse modelo de resignação e paciência, esse homem tão grande de uma condição tão baixa, não fala senão de um único Deus. Eis uma de suas máximas: “Deus me criou, Deus está ao redor de mim; levo-o comigo por toda parte. Poderia eu maculá-lo com pensamentos obscenos, com ações injustas, com desejos infames? Meu dever é agradecer a Deus por tudo, louvá-lo por tudo e não cessar de o bendizer senão quando cessar de viver”. Todas as idéias de Epicteto giram sobre esse princípio.

Marco Aurélio, tão grande, quiçá, sobre o trono do império romano, como Epicteto na escravidão, fala com freqüência, realmente, dos deuses, seja para se conformar à linguagem corrente, seja para exprimir seres intermediários entre o Ser Supremo e os homens; mas em quantos pontos não faz ele transparecer que apenas reconhece um Deus eterno, infinito! “Nossa alma” – diz – “é apenas uma emanação da Divindade. Meus filhos, meu corpo, meus espíritos, vêm-me de Deus.”

Os estóicos, os platônicos, admitiam uma natureza divina e universal; os epicuristas negavam-na. Os pontífices não citavam senão um único Deus nos seus mistérios. Onde, pois, os idólatras?

Aliás, é um dos grandes erros do Dictionnaire de Moréri o dizer que no tempo de Teodósio o Jovem já não existiam idólatras senão nos remotos países da Ásia e da África. Havia na Itália muitos povos gentios ainda, mesmo no sétimo século. O norte da Alemanha, desde o Weser, não era cristão ao tempo de Carlos Magno. A Polônia e todo o setentrião ficaram longo tempo depois dele no que chamamos idolatria. A metade da África, todos os remos de além Ganges, o Japão, o populacho da China, cem hordas de tártaros conservaram seu antigo culto. Apenas há na Europa alguns lapões, alguns samoiedas, alguns tártaros que perseveraram na religião de seus avitos.

Terminemos por fazer notar que, nos tempos que chamamos entre nós idade média, chamávamos ao país dos mafomistas Pagânia; tratávamos de idólatras, adoradores de imagens, um povo que as abomina. Confessemos ainda uma vez que os turcos são mais escusáveis de nos julgar idólatras quando vêem nossos altares carregados de imagens e de estátuas.


 

IGUALDADE

Que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra.

Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado a sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o globo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e capros monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.

No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para que servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço?

Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância.

Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem precisões. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem – O verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência. Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro porém é servir um ao outro.

Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer seus braços à rica para ter pão. A outra vai atacá-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos.

Impossível, neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos. Essas duas classes se subdividem em mil outras, essas outras em sem conto de cambiantes diferentes.

Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras desfecham com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no estado. Digo no estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugará a que, embora mais rica, tiver menos coragem.

Todo homem nasce com forte inclinação para o domínio, a riqueza, os prazeres e sobretudo para a indolência. Todo homem portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer ou pelo menos só fazer coisas muito agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem.

Tal como é, impossível o gênero humano subsistir, a menos que haja infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.

Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageraram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que a ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: Este pais é tão mau e tão mal governado que vedamos a todo indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundi em todos os vossos súditos o desejo de permanecer em vosso estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir.

Nos íntimos refolhos do coração todo homem tem direito de crer-se de todo ponto igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar a seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: “Sou tão homem como meu amo; nasci como ele chorando; como eu ele morrerá nas mesmas angústias e com as mesmas cerimônias. Temos ambos as mesmas funções animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e eu virar cardeal e meu senhor cozinheiro, tomá-lo-ei a meu serviço”. Tudo isso é razoável e justo. Mas, enquanto o grão turco não se assenhorear de Roma, o cozinheiro precisa cumprir suas obrigações, ou toda a humanidade se perverteria.

Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar em suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte.


 

INFERNO

Desde que os homens começaram a viver em sociedade devem ter percebido que não poucos criminosos escapavam á severidade das leis. Puniam-se os crimes públicos: restava estabelecer um freio para os crimes secretos. Só a religião poderia ser esse freio. Persas, caldeus, egípcios, gregos, imaginaram castigos depois da morte. De todos os povos antigos que conhecemos foram os judeus os únicos que não admitiam senão castigos temporais. Ridículo é crer ou fingir crer, baseando-se em passos obscuríssimos, que as antigas leis judaicas aceitavam a existência do inferno, no Levítico como no Decálogo, quando o autor de tais leis não diz uma única palavra que possa ter a menor relação com os castigos da vida futura. Ter-se-ia direito de dizer ao redator do Pentateuco: “Sois um homem inconseqüente, sem probidade e falto de senso, inteiramente indigno do nome de legislador que vos arrogais. Como conheceis um dogma tão altamente refreador, tão necessário ao povo como é o do inferno, e não o anunciastes expressamente? Enquanto o admitem todas as nações que vos cercam, contentai-vos em deixar adivinhar este dogma por comentaristas que virão quatro mil anos depois de vós e que torcerão vossas palavras para encontrar o que não dissestes? Se, conhecendo esse dogma, dele não fizestes a base da vossa religião, ou sois um ignorante que não sabia ser essa crença universal no Egito, Caldéia e Pérsia, ou sois um homem pessimamente avisado”.

Quando muito podiam ou autores das leis judaicas responder: “De fato somos muito ignorantes. De fato aprendemos a escrever demasiadamente tarde. De fato nosso povo era uma horda selvagem e bárbara que, confessamos, errou perto de meio século por ínvios desertos. De fato usurpamos um diminuto país pelas mais odiosas rapinas e as mais nefandas crueldades que regista a história. Não tínhamos o menor comércio com as nações policiadas: como queríeis que inventássemos – nós, os mais terrestres dos homens – um sistema totalmente espiritual?.

“Não nos servíamos da palavra correspondente a alma senão para exprimir a vida. Não conhecemos nosso Deus e seus ministros, seus anjos, senão como entes corporais: a distinção de alma e corpo, a idéia de uma vida após a morte só podem ser fruto de longa meditação e filosofia muito fina. Perguntai aos hotentotes e aos negros, que habitam um país cem vezes maior que o nosso, se conhecem a vida futura. Cremos haver feito muito persuadindo nosso povo de que Deus punia os malfeitores até a quarta geração fosse pela lepra; fosse por mortes súbitas, fosse pela perda do pouco que possuíssem”.

Replicar-se-ia a essa apologia: “Vós inventastes um sistema cujo ridículo entra pelos olhos: o malfeitor bem aboletado na vida e com a família a prosperar devia naturalmente rir-se de vós”.

Responderia o apologista da lei judaica: “Enganai-vos: para um criminoso que raciocinasse bem haveria cem que nem raciocinariam. Aquele que, cometido um crime, não se sentisse punido na própria pessoa nem na do filho, temeria pelo neto. Demais, se não tivesse hoje alguma úlcera asquerosa, a que freqüentemente estamos sujeitos, tê-la-ia ao cabo de alguns anos. Em toda família sobrevêm desgraças e fácil nos era fazê-las crer enviadas pela mão divina, vingadora das faltas secretas”.

Seria fácil retrucar a essa resposta, dizendo: “Vossa escusa é inconsistente, pois diariamente pessoas honestas perdem a saúde e os bens. E se não há família a que não aconteçam infortúnios, e se tais infortúnios são castigos de Deus, então todas as vossas famílias eram famílias de estafadores”.

O padre judeu ainda poderia retorquir. Diria existirem males próprios da natureza humana e males expressamente enviados por Deus. Mas far-se-ia ver a esse raciocinador o quanto é ridículo pensar ser a febre e o granizo ora punição divina, ora efeito natural.

Enfim, fariseus e essênios, entre os judeus, admitiram a crença de um inferno a sua moda. Esse dogma já passara de gregos a romanos, e foi perfilhado pelos cristãos.

Muitos santos da igreja não acreditaram nas penas eternas. Parecia-lhes absurdo torrar eternamente um pobre diabo só por haver roubado uma cabra. Em vão clama Virgílio no sexto canto da Eneida:

... Sedet aeternunque sedebit
infelix Theseus
(42).

Em vão pretende achar-se Teseu para todo o sempre sentado numa cadeira, sendo tal postura o seu suplício. Criam outros ser Teseu um herói que não se acha no inferno, mas nos Campos Elíseos.

Não há muito um piedoso e honrado huguenote(43) pregou e escreveu que um dia os precitos teriam sua mercê, que cumpria haver proporção entre pecado e suplício e que a falta de um momento não podia merecer um castigo infinito. Os padres seus confrades depuseram esse juiz indulgente. Disse-lhe um deles: “Meu caro, não creio no inferno mais que você. Mas é bom que o creiam a sua criada, o seu alfaiate e também o seu procurador”.


 

INUNDAÇÃO

Terá existido um tempo em que o globo foi inteiramente inundado? Isso é fisicamente impossível.

Pode ser que, sucessivamente, o mar tenha coberto todas as terras, umas após outras; e isto não pode ter acontecido senão gradativa e lentamente, numa prodigiosa série de séculos. O mar, em quinhentos anos, retirou-se de Águas Mortas, de Frejus, de Ravena, que eram grandes portos, e deixou cerca de duas léguas de terreno em seco. Mediante essa progressão é evidente que lhe teriam sido necessários dois milhões e duzentos e cinqüenta mil anos para dar volta ao nosso planeta. Fato bem notável é que esse período se aproxima muito do que seria preciso ao eixo da terra para se levantar e coincidir com o equador: movimento muito verossímil que há cinqüenta anos começou a ventilar-se, e que requer para a sua efetuação um espaço de mais de dois milhões e trezentos mil anos.

Os leitos, as camadas de conchas descobertas por todas as costas a sessenta, a oitenta, a cem léguas mesmo do mar, constituem prova incontestável de que ele depositou pouco a pouco seus produtos marinhos sobre terrenos que eram outrora as margens do oceano; porém que a água tenha coberto inteiramente todo o globo de uma vez, é na física uma quimera absurda demonstrada como impossível pelas leis da gravidade, pelas leis dos fluidos, pela insuficiência da quantidade de água. Não que se pretenda atacar de forma alguma a grande verdade do dilúvio universal, relatada no Pentateuco: ao contrário, é um milagre, portanto é preciso crê-lo; é um milagre, portanto não pôde ter sido executado por leis físicas.

Tudo é milagre na história do dilúvio: milagre que quarenta dias de chuva tenham inundado as quatro partes do mundo e que a água tenha se elevado quinze côvados a cima de todas as mais altas montanhas; milagre que tenham existido cataratas, portas, aberturas no céu; milagre que todos os animais se tenham dirigido para a Arca, vindos de todas as partes do mundo; milagre que Noé tenha encontrado com que alimentá-los durante seis meses; milagre que todos os animais tenham cabido na Arca, com todas suas provisões; milagre que a maioria não tenha morrido; milagre que tenham encontrado com que se nutrir ao sair da Arca; milagre, ainda, mas de outra espécie, que um tal Le Pelletier (44) tenha julgado explicar como todos os animais puderam caber e nutrir-se naturalmente na Arca de Noé.

Ora, sendo a história do dilúvio a coisa mais miraculosa de que jamais se falou, insensato seria o explicá-la: trata-se de mistérios que se acreditam pela fé; e a fé consiste em crer no que a razão absolutamente não crê, o que constitui, ainda, outro milagre.

Assim a história do dilúvio universal é como a da torre de Babel, da burra de Balaão, da queda de Jericó ao som das trombetas, das águas transformadas em sangue, da passagem do Mar Vermelho e de todos os prodígios que Deus se dignou fazer em favor dos eleitos de seu povo; trata-se de profundezas que o espírito humano não pode sondar.


 

IRRACIONAIS

Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os irracionais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! (45)

Então aquela ave que faz seu ninho em semicírculo quando o encaixa numa parede, em quarto de círculo quando o engasta num ângulo e em círculo quando o pendura numa árvore, procede aquela ave sempre da mesma maneira? Esse cão de caça que disciplinaste não sabe mais agora do que antes de tuas lições? O canário a que ensinas uma ária, repete-a ele no mesmo instante? Não levas um tempo considerável em ensiná-lo? Não vês como ele erra e se corrige?

Será porque falo que julgas que tenho sentimento, memória, idéias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conhecimento.

Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias.

Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrar-te suas veias mesaraicas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimento de que te gabas. Responde-me, maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os elatérios do sentimento sem objetivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição.

Perguntam os mestres da escola o que é então a alma dos irracionais. Não entendo a pergunta. A árvore tem a faculdade de receber em suas fibras a seiva que circula, de desenvolver os botões das folhas e dos frutos: perguntar-me-eis o que é a alma da árvore? Ela recebeu estes dons. O animal foi contemplado com os dons do sentimento, da memória, de certo número de idéias. Quem criou esses dons? Quem lhes outorgou essas faculdades? Aquele que faz crescer a erva dos campos e gravitar a Terra em torno do Sol.

As almas dos brutos são formas substanciosas, disse Aristóteles e depois de Aristóteles a escola árabe, depois da escola árabe a escola angélica, depois da escola angélica a Sorbonne e depois da Sorbonne ninguém.

As almas dos brutos são materiais, proclamam outros filósofos, nem mais nem menos felizes que os primeiros. Em vão perguntou-se-lhes o que é alma material: precisam convir em que é a matéria que sente. Mas quem deu sensibilidade à matéria? Alma material... Quer dizer que é a matéria que dá sensibilidade à matéria. E não saem desse círculo.

Ouvi outra sorte de irracionais racionando sobre os irracionais: A alma dos brutos é um ser espiritual que morre com o corpo. Que prova tendes disso? Que idéia concebeis desse ser espiritual que em verdade tem sentimento, memória e sua medida de idéias e associações, mas que jamais poderá saber o que sabe uma criança de dez anos? Os maiores irracionais são os que aventaram não ser essa alma nem corpo nem espírito. Aí está um curioso sistema. Não podemos entender por espírito senão algo desconhecido e incorporal: a isto pois reduz-se o sistema desses senhores a alma dos seres brutos é uma substância nem corporal nem incorporal.

A que atribuir tantos e tão contraditórios erros? Ao vezo que sempre tiveram os homens de querer saber o que seja uma coisa antes de saber se existe. Dizemos a lingüeta, o batoque do fole, a alma do fole. Que é essa alma? Um nome que dei à válvula que, quando toco o fole, baixa e sobe para dar entrada e saída ao ar.

O fole não tem alma de espécie alguma. É simplesmente uma máquina. Quem toca, porém, o fole dos animais? Já o disse: aquele que move os astros. Tinha razão o filósofo que disse: Deus est anima brutorum. Mas devia ter ido mais longe.


 

JEFTÉ
Ou dos sacrifícios de sangue humano

Evidencia-se do texto do livro dos Juizes que Jefté prometeu sacrificar a primeira pessoa que saísse de sua casa para vir felicitá-lo pela sua vitória sobre os amonitas. Sua filha única se lhe apresentou; então ele lhe rasgou a roupa, imolando-a após ter-lhe permitido ir prantear nas montanhas a desdita de morrer virgem. Durante muito tempo as filhas judias celebraram essa aventura, chorando a filha de Jefté por quatro dias(46).

Em que tempo essa história foi escrita, que seja uma imitação da história grega de Agamenon e Idomenéia ou tenha sido imitada, que lhe seja anterior ou posterior, não é isso o que examino; atenho-me ao texto: Jefté votou sua filha em holocausto e cumpriu o seu voto.

Ordenava expressamente a lei judaica que se imolassem os homens votados ao Senhor. “Nenhum homem votado obterá resgate mas receberá morte sem remissão”. A Vulgata traduz: Non redimetur, sed morte morietur (47).

Foi em virtude dessa lei que Samuel cortou em pedaços o rei Agague, a quem Saul perdoara; e justamente por haver poupado Agague Saul foi admoestado pelo Senhor e perdeu o seu reino.

Eis, pois, sacrifícios de sangue humano claramente estabelecidos; não há ponto histórico melhor averiguado. Não se pode julgar de uma nação a não ser por seus arquivos e pelo que ela refere de si própria.


 

JOSÉ

A história de José, considerada apenas como objeto de curiosidade e literatura, é um dos monumentos mais preciosos da antigüidade que até nós chegaram. Parece ser o modelo de todos os escritores orientais; é mais tocante do que a Odisséia de Homero, pois um herói que perdoa é mais comovedor do que aquele que se vinga.

Consideramos os árabes como os primeiros autores dessas ficções engenhosas que foram traduzidas para todas as línguas; não vejo, porém, neles, aventura alguma comparável à de José. Porque ela é maravilhosa em sua quase totalidade e o fim pode fazer verter lágrimas de enternecimento. É um jovem de dezesseis anos invejado por seus irmãos; é vendido por eles a uma caravana de mercadores israelitas, conduzido ao Egito e comprado por um eunuco do rei. Esse eunuco tinha uma mulher, o que não é de admirar: o Quizlar Aga, eunuco perfeito, a quem arrancaram todo o aparelho genital, tem um serralho em Constantinopla; deixaram-lhe os olhos e as mãos e a natureza não perdeu seus direitos no seu coração. Os outros eunucos, aos quais apenas cortaram os testículos, empregam ainda, muitas vezes, o órgão principal; e Putifar, a quem José foi vendido, bem poderia pertencer ao número desses eunucos.

A mulher de Putifar apaixona-se pelo jovem José que, fiel ao seu sino e benfeitor, rejeita as carícias dessa mulher. Ela irrita-se e acusa José de pretender seduzi-la. É a história de Hipólito e Fedro, de Belerofonte e Estenobéia, de Hebro e Damasipe, de Tanis e Peribéia, de Mirtila e Hipodâmio, de Peléia e Demeneto.

Difícil é conhecer a origem de todas essas histórias, mas nos antigos autores árabes há um passo concernente à aventura de José e da mulher de Putifar que é bastante engenhoso. O autor supõe que Putifar, duvidoso entre sua mulher e José, não olhou para a túnica de José, que sua mulher rasgara, como uma prova do atentado do jovem.

Havia um menino no berço, no aposento da mulher; José disse que ela lhe rasgara e tirara a túnica na presença da criança. Putifar consultou o menino, cujo espírito era bem desenvolvido para sua idade; a criança falou a Putifar: “Verificai se a túnica está rasgada na frente ou atrás: se o estiver na frente é prova de que José quis tomar vossa mulher a força; se, pelo contrário, estiver rasgada por detrás, é prova de que vossa mulher correu em sua perseguição”. Putifar, graças ao gênio desse menino, reconheceu a inocência do seu escravo. É assim que essa aventura foi relatada no Alcorão pelo antigo autor árabe. Ele se esquece de nos dizer a quem pertencia a criança que julgou com tanto espírito; se existisse um filho da Putifar, José não teria sido o primeiro homem desejado por essa mulher.

Seja como for, José, segundo o Gênesis, é posto na prisão e ali se encontra em companhia do copeiro e do padeiro do rei do Egito. Esses dois prisioneiros sonham à noite: José explica os seus sonhos; prediz-lhes que no lapso de três dias o copeiro será agraciado e o padeiro enforcado, o que não deixou de suceder.

Dois anos após o rei do Egito sonha também; seu copeiro revela-lhe a existência de um jovem judeu, na prisão, que é o primeiro homem do mundo em compreender os sonhos; o rei faz vir à sua presença o jovem, que lhe prediz sete anos de abundância e sete de esterilidade.

Interrompamos um pouco o fio da história para verificar de que prodigiosa antigüidade é a interpretação dos sonhos. Jacó viu em sonho a escada misteriosa no alto da qual estava Deus em pessoa; aprendeu em sonho o método de multiplicar os rebanhos, método que jamais deu resultado senão para ele próprio. O próprio José soubera por um sonho que um dia haveria de dominar seus irmãos. Abimeleque, muito antes, fora advertido em sonho de que Sara era mulher de Abraão.

Voltemos a José. Logo que explicou o sonho do faraó, foi nomeado primeiro ministro. É de se duvidar que exista hoje um rei, mesmo na Ásia, capaz de conceder tão elevado cargo pela simples explicação de um sonho. O faraó deu por esposa a José uma filha de Putifar. Sabe-se que esse Putifar era sumo sacerdote de Heliópolis: não foi pois o eunuco, seu primeiro senhor; ou se o fosse, teria naturalmente outro título que não o de sumo sacerdote, e sua mulher teria sido mãe mais de uma vez.

Entretanto a miséria chegou, como o havia predito José, e este, a fim de merecer as boas graças do seu rei, obrigou todo o povo a vender suas terras ao faraó; e toda a nação se tornou escrava para conseguir trigo: reside nesse fato, aparentemente, a origem do poder despótico. É preciso notar que jamais um rei fez melhor negócio; mas também o povo não tinha motivos para bem dizer o primeiro ministro.

Enfim, o pai e os irmãos de José tiveram também necessidade de pão, pois a miséria assolava naquele tempo a terra inteira. Não vale a pena relatar aqui a forma por que José recebeu seus irmãos, como os perdoou e enriqueceu. Encontramos nessa história tudo que constitui um interessante poema épico. Exposição, articulação, reconhecimento, peripécia e maravilhoso. Nada mais característico do gênio oriental.

O que o bom Jacó, pai de José, respondeu ao faraó, deve bem comover os que sabem ler. “Qual é vossa idade?” – perguntou-lhe o rei. – “Tenho cento e trinta anos”, – respondeu o velho, – “e ainda não encontrei um dia feliz nesse curto peregrinar”.


 

LEIS (DAS)

Nos tempos de Vespasiano e Tito, em que os romanos se dedicavam a abrir o ventre dos judeus, um israelita riquíssimo, que não tinha o mínimo desejo de sofrer idêntica operação, fugiu com todo o ouro que ganhara em seu ofício de usurário, conduzindo para Eziongaber toda a sua família, que consistia em sua velha mulher, um filho e uma filha. Levava também consigo dois eunucos, um dos quais lhe servia de cozinheiro, outro de lavrador e vinhateiro. Um bom essênio que conhecia o Pentateuco de cor servia-lhe de capelão. Embarcaram-se no porto de Eziongaber, atravessaram o mar a que chamamos Vermelho e que de vermelho nada tem, e entraram no golfo Pérsico, a fim de procurar a terra de Ofir, sem saber onde ficava. Podeis crer como verdade absoluta ter sobrevindo uma terrível tempestade que atirou a família hebraica às costas das Índias; o navio naufragou numa das ilhas Maldivas, chamada hoje em dia Padrabranca, que era então deserta.

O velho ricaço e a velha se afogaram; o filho, a filha, os dois eunucos e o capelão salvaram-se; tiraram da melhor forma algumas provisões do navio, construíram umas pequenas cabanas na ilha e aí puseram-se a viver comodamente. Sabei que a ilha de Padrabranca está situada a cinco graus da linha, e que aí se encontram os maiores cocos e os melhores ananases do mundo. Era pois muito agradável viver ali enquanto noutros lugares se degolavam os restos da nação querida; mas o essênio lamentava-se considerando que talvez não houvesse mais judeus sobre a terra e que a semente de Abraão iria terminar.

“A vós somente compete ressuscitá-la – disse o jovem judeu: desposai minha irmã. – Bem o desejaria, – disse o capelão, – porém a lei se opõe. Eu sou essênio fiz voto de jamais me casar; a lei manda que cada um cumpra o seu voto: acabe-se a raça judaica se assim se quer, mas certamente eu jamais casarei com vossa irmã, por bonita que for.

— Meus dois eunucos não lhe podem fazer filhos, – retornou o judeu; – fa-los-ei portanto eu, com vosso beneplácito e vossa bênção.

— Antes queria eu ser mil vezes degolado pelos soldados romanos, – respondeu o capelão, – do que me acumpliciar num incesto; se ela fosse vossa irmã paterna, ainda era possível, a lei o permite; mas não, ela é vossa irmã materna; isso é abominável.

— Compreendo – disse o jovem – que seria um crime em Jerusalém, onde outras filhas judias estariam à minha disposição; mas na ilha de Padrabranca, onde apenas vejo cocos, ananases e ovos, creio ser coisa bem permissível”.

O judeu casou, pois, com sua irmã, e teve uma filha, apesar dos protestos do essênio: foi o único fruto de um casamento que um julgava legítimo e outro abominável. Ao cabo de catorze anos a mãe morreu; disse o pai ao capelão: “Desfizestes-vos finalmente de vossos preconceitos? Quereis desposar minha filha? – Deus me preserve disso! – retrucou o essênio. – Pois bem! então eu casarei com ela, disse o pai; seja o que for; mas não quero que a semente de Abraão seja reduzida a nada”. O essênio, espantado com tão horrível propósito, não quis saber de continuar a viver com um homem que desrespeitava a lei e fugiu. O recém casado perdeu seu tempo em gritar-lhe: “Ficai comigo, meu amigo; eu observei a lei natural, eu sirvo à pátria, não abandoneis os vossos amigos”. O outro deixou-o gritar, metida que tinha, sempre, a lei na cabeça, e fugiu a nado para a ilha próxima.

Era a grande ilha de Atola, muito povoada e civilizada; apenas chegou fizeram-no escravo. Aprendeu a balbuciar a língua de Atola; queixou-se amargamente pelo modo inhospitaleiro por que fora recebido: disseram-lhe que era a lei, e que desde que a ilha estivera a ponto de ser atacada de surpresa pelos habitantes da de Ada, estabelecera-se sabiamente que todos os estrangeiros que ali fossem ter seriam submetidos como escravos. “Isso não pode ser uma lei”, – disse o essênio, – “pois não está escrito no Pentateuco. Responderam-lhe que em compensação estava escrito no digesto do país, e ele permaneceu escravo: tinha, aliás, um ótimo senhor que o tratava muito bem e ao qual se prendeu pelos mais fortes laços de amizade.

Alguns assassinos vieram um dia para matar o dono e roubar-lhe seus tesouros; perguntaram aos escravos se estava em casa e se tinha muito dinheiro. “Juramo-vos – responderam os escravos – que ele não tem dinheiro algum e que não está em casa”. Disse porém o essênio: “A lei não me permite mentir; juro-vos que está em casa e que tem muito dinheiro”. Assim o dono foi roubado e morto. Os escravos acusaram o essênio perante os juizes de haver traído seu patrão; o essênio alegou que não quisera mentir, nem mentiria por nada no mundo; e foi enforcado.

Essa historieta e muitas outras parecidas foram-me contadas na última viagem que fiz às Índias. Quando cheguei, fui a Versalhes para alguns negócios; vi passar uma bela mulher seguida de grande número de outras também belíssimas. “Quem é essa mulher?” perguntei ao meu advogado no parlamento, que viera comigo: pois tinha um processo no parlamento de Paris, em virtude dos hábitos que adquiri nas Índias, e desejava ter constantemente meu advogado comigo. “É a filha do rei, – disse ele: – é encantadora e caridosa; é uma grande pena que, em caso algum, jamais possa ser rainha de França.

— Como, – disse-lhe eu – se tivéssemos a desgraça de perder todos os seus parentes e príncipes de sangue (o que Deus não permita!) ela não poderia herdar o reino de seu pai? – Não, – disse o advogado – a lei sálica se opõe formalmente a isso – E quem fez essa lei? – perguntei ao advogado. – Nada sei a esse respeito, – disse ele; – mas costuma-se dizer que um antiquíssimo povo chamado sálicos, que não sabiam ler nem escrever, tiveram um tempo uma lei escrita a qual dizia que em terra sálica nenhuma filha podia herdar; e essa lei foi adotada em terras não sálicas. – Pois eu – respondi – casso-a por minha conta; afirmastes-me que essa princesa é encantadora e caridosa; portanto ela teria um direito incontestável à coroa se a infelicidade a tornasse única remanescente do sangue real: minha mãe herdou de seu pai e eu quero que a princesa herde do seu”.

No dia seguinte o meu processo foi julgado numa das câmaras do parlamento: perdi por unanimidade; explicou-me o meu advogado que eu teria ganho também por unanimidade numa outra câmara. “Eis uma coisa bem cômica – disse-lhe eu; – de modo que, cada câmara, cada lei. – Sim, – disse ele – há vinte e cinco comentários sobre a lei municipal de Paris; isto é, provou-se vinte e cinco vezes que a lei municipal de Paris está errada; e se houvesse vinte e cinco câmaras de juizes haveria também vinte e cinco jurisprudências diferentes. Temos, – continuou ele – a quinze léguas de Paris uma província chamada Normandia, onde seríeis julgado de forma muito diferente daqui”.

Isto deu-me vontade de ver a Normandia. Para lá me dirigi com um de meus irmãos. Encontramos no primeiro hotel um jovem que se lamentava, desesperado; perguntando-lhe em qual a causa de sua desgraça, respondeu-me que era ter um irmão mais velho.

— Em que consiste pois a grande desgraça de ter um irmão mais velho? – perguntei-lhe; – meu irmão é mais velho do que eu e no entanto vivemos muito bem juntos.

— Ah! senhor, – disse-me ele, – a lei aqui tudo concede aos primogênitos sem nada deixar aos caçulas.

— Tendes razão – disse-lhe eu – de estar zangado; em nossa cidade repartimos igualmente, e nem sempre os irmãos se estimam melhor por isso.”

Essas pequenas aventuras proporcionaram-me belas e profundas reflexões sobre as leis, e verifiquei serem elas como nossos trajes: em Constantinopla fui obrigado a usar um dólman, em Paris um gibão.

Se todas as leis humanas são apenas convenções, disse eu, o que vale é fazer-se um bom contrato. Os burgueses de Deli e Agra dizem ter feito um péssimo contrato com Tamerlão; os burgueses de Londres felicitam-se pelo ótimo ajuste que fizeram com o rei Guilherme de Orange.

Um cidadão de Londres dizia-me certo dia: “É a necessidade que faz as leis, e a força as faz observar”. Perguntei-lhe se a força não fazia também leis em algumas ocasiões, e se Guilherme, o Bastardo e o Conquistador, não lhes havia dado ordens sem estabelecer contrato algum. “Sim”, – disse ele – “nesse tempo éramos uns bois; Guilherme nos colocou uma canga e nos fez caminhar a golpes de aguilhão; depois nos transformamos em homens, porém os cornos nos ficaram e com eles maltratamos todos os que pretendem que trabalhemos para eles e não para nós mesmos”.

Tomado de todas estas reflexões comprazia-me em pensar que existe uma lei natural, independente de todas as convenções humanas: o fruto de meu trabalho deveria ser meu; devia honrar meu pai e minha mãe; não tenho direito algum sobre a vida do meu próximo e meu próximo não o tem sobre a minha, etc. Mas, quando pensei que, de Codorlaomor até Mentzel (48), coronel dos hussardos, cada um mata lealmente e saqueia o próximo com uma ordem de autorização no bolso do colete, fiquei bem aflito.

Contaram-me que entre os ladrões havia leis, e que as havia também na guerra. Perguntei quais eram essas leis da guerra. “A lei”, me dizem, “de enforcar um bravo oficial que tenha resistido numa péssima posição, sem canhão, a um exército real; a lei de enforcar um prisioneiro porque o adversário enforcou um dos vossos; a lei de pôr a fogo e sangue as aldeias que não tiverem enviado sua contribuição no dia designado, segundo as ordens do gracioso soberano das vizinhanças”. – “Muito bem, disse eu, eis o Espírito das leis”.

Depois de bem informado, descobri que existem sábias leis mediante as quais um pastor é condenado a nove anos de cárcere por ter dado um pouco de sal estrangeiro a seus carneiros. Meu vizinho foi arruinado por um processo: mandou cortar dois troncos que lhe pertenciam, em seu bosque; foi punido portanto por não ter podido observar uma formalidade que não pôde conhecer; sua mulher morreu na miséria e seu filho arrasta a vida mais infeliz. Confesso que essas leis são justíssimas, não obstante a sua execução ser um bocado dura; dão-me porém calafrios as leis que autorizam cem mil homens a degolar lealmente cem mil vizinhos. Pareceu-me que a maioria dos homens receberam da natureza um senso comum suficiente para fazer leis, mas nem todo mundo tem justiça suficiente para fazer boas leis.

Reuni os agricultores simples e tranqüilos de um lado a outro da terra; todos eles convirão em que deve ser permitido vender aos vizinhos o excedente do seu trigo e que a lei contrária é inumana e absurda; que as moedas representativas dos gêneros deverão ser tão puras como os frutos da terra; que um pai de família deverá ser dono de sua casa; que a religião deve reunir os homens a fim de os unir e não para fazer deles fanáticos e perseguidores; que os que trabalham não devem ser privados dos frutos de seu trabalho com o fim de alimentar a superstição e a ociosidade: eles farão numa hora trinta leis desta espécie, todas úteis ao gênero humano.

Chegue porém Tamerlão e subjugue a Índia; então não vereis senão leis arbitrárias. Uma asfixiará uma província para enriquecer um rendeiro de Tamerlão; outra transformará num crime de lesa majestade o ter falado mal da mulher do primeiro camarista de um raja; terceira apoderar-se-á da metade da colheita do agricultor, contestando-lhe o resto; enfim existirão leis mediante as quais um bedel tártaro virá arrancar vossos filhos do berço, fará do mais robusto um soldado e do mais fraco um eunuco, deixando o pai e a mãe sem consolo.

Ora, que vale melhor ser: o cão de Tamerlão ou seu súdito? É claro que a regalia do seu cão é muito superior.


 

LEIS CIVIS E ECLESIÁSTICAS

Foram encontradas nos papéis dos jurisconsultos estas notas, que talvez mereçam um pouco de exame.

Que jamais lei eclesiástica alguma seja válida senão mediante sanção expressa do governo. Foi desse modo que Atenas e Roma nunca tiveram querelas religiosas. Tais litígios são patrimônio das nações bárbaras ou transformadas em bárbaras.

Que apenas o magistrado possa permitir ou proibir o trabalho nos dias de festa, pois não cabe aos padres proibir aos indivíduos o cultivo de seus campos.

Que tudo o que concerne aos casamentos dependa exclusivamente do magistrado, e que os padres se atenham à augusta função de os abençoar.

Que o padre interessado seja puramente um objeto da lei civil, porquanto apenas ela preside, ao comércio.

Que todos os eclesiásticos sejam submetidos em todos os casos ao governo, porquanto são súdito do estado.

Que em tempo algum se cometa o ato ridículo e indecoroso de pagar a um padre estrangeiro a primeira anualidade da renda de uma terra que cidadãos deram a um padre concidadão.

Que padre algum jamais possa subtrair a um cidadão a mínima prerrogativa, sob pretexto de que tal cidadão seja um pecador, pois o padre pecador deve rezar pelos pecadores e não julgá-los.

Que os magistrados, os lavradores e os padres paguem igualmente os impostos do estado, pois todos pertencem igualmente ao estado.

Que não haja senão um peso, uma medida, um costume.

Que os suplícios dos criminosos sejam úteis, um homem enforcado não serve para nada, e um homem condenado aos trabalhos públicos ainda serve à pátria, constituindo uma lição viva.

Que toda lei seja clara, uniforme, precisa: interpretá-la é quase sempre corrompê-la.

Que nada, a não ser o vício, seja infame.

Que os impostos sejam sempre proporcionais.

Que a lei jamais esteja em contradição com o uso: porque se o uso é bom, a lei nada vale.


 

LIBERDADE (DA)

A

Eis uma bateria de canhões que atira junto aos nossos ouvidos; tendes a liberdade de ouvi-la e de a não ouvir?
B

É claro que não posso evitar ouvi-la.
A

Desejaríeis que esse canhão decepasse vossa cabeça e as de vossa mulher e vossa filha que estivessem convosco?
B

Que espécie de proposição me fazeis? Eu jamais poderia, em meu são juízo, desejar semelhante coisa. Isso me é impossível.
A

Muito bem; ouvis necessariamente esse canhão e, também necessariamente, não quereis morrer, vós e vossa família, de um tiro de canhão; não tendes nem o poder de não ouvi-lo nem o poder de querer permanecer aqui.
B

Isso é evidente.
A

Em conseqüência, destes uma trintena de passos a fim de vos colocardes ao abrigo do canhão: tivestes o poder de caminhar comigo estes poucos passos?
B

Nada mais verdadeiro.
A

E se fôsseis paralítico? Não teríeis podido evitar ficar exposto a essa bateria; não teríeis o poder de estar onde agora estais: teríeis então necessariamente ouvido e recebido um tiro de canhão e necessariamente estaríeis morto?
B

Nada mais claro.
A

Em que consiste, pois, vossa liberdade, senão está no poder exercido pelo vosso indivíduo de fazer o que a vossa vontade exigia com absoluta necessidade?
B

Embaraçais-me; então a liberdade é apenas o poder de fazer o que bem entendo?
A

Refleti um pouco. Vede se a liberdade pode ser outra coisa.
B

Neste caso o meu cão de caça é tão livre como eu; ele tem necessariamente a vontade de correr quando vê uma lebre e o poder de correr se não estiver doente das pernas. Eu nada tenho, pois, mais do que meu cão: reduzis-me ao estado das bestas.
A

Eis uma série de pobres sofismas dos pobres sofistas que vos instruíram. Eis que estais despeitado por não serdes livre como vosso cão. Ora, não vos pareceis com ele em mil coisas? A fome, a sede, o velar, o dormir, os cinco sentidos, não são em vós como nele? Pretenderíeis cheirar com outro qualquer órgão além do nariz? Por que quereis uma liberdade diferente da que ele tem?
B

Porém eu tenho uma alma que raciocina muito bem, e o meu cão não pensa coisa alguma. Ele apenas tem idéias simples, enquanto eu tenho mil idéias metafísicas.
A

Pois muito bem! Sois mil vezes mais livre do que ele, isto é, tendes mil vezes mais poder de pensar do que ele; porém vossa liberdade é perfeitamente igual à dele.
B

Como? Eu não tenho a liberdade de querer o que desejo?
A

Que entendeis com isso?
B

O que toda gente entende. Não se diz diariamente: “As vontades são livres”?
A

Um provérbio não é uma razão; explicai-vos melhor.
B

Penso que sou livre de querer como melhor me agradar.
A

Com vossa licença, isso não tem o mínimo sentido; não percebeis que é ridículo dizer: “Eu quero querer”? Necessariamente, vós desejais em conseqüência das idéias que se vos apresentam. Quereis casar, sim ou não?
B

Mas e se eu vos disser que não quero nem uma nem outra coisa?
A

Responderíeis como aquele que disse: “Uns pensam que o cardeal Mazarino está morto; outros, que está vivo; eu não creio nem numa coisa nem noutra”.
B

Pois bem, quero casar-me.
A

Isto é responder! Por que quereis casar?
B

Porque estou apaixonado por uma bela rapariga, bem educada, muito rica, que canta muito bem, filha de pais honestos e que me ama, assim como sua família.
A

Eis uma razão. Vedes, pois, que não podeis querer sem razão. Declaro-vos que tendes a liberdade de vos casar: isto é, que tendes o poder de assinar o contrato.
B

Como! Eu não posso querer sem motivo? Que sucede então a este outro provérbio: Sit pro ratione voluntas: minha vontade é minha razão, eu quero porque quero?
A

Isso é absurdo, meu caro amigo, pois haveria em vós um efeito sem causa.
B

Que? Quando jogo par ou ímpar tenho então um motivo para escolher par em vez de ímpar?
A

Sim, sem nenhuma dúvida.
B

E qual é essa razão, por obséquio?
A

É que a idéia de par se apresentou ao vosso espírito mais do que a idéia oposta. Seria muito cômico que nalguns casos desejásseis por existir uma razão para o vosso desejo e que noutros desejásseis sem motivo. Quando vos quereis casar, sentis a razão dominante, evidentemente; não a sentis quando jogais par ou ímpar, e contudo é mister que exista uma.
B

Mas, uma vez ainda: sou ou não sou livre?
A

Vossa vontade não é livre mas vossas ações o são. Tendes a liberdade de fazer quando tendes o poder de fazer.
B

Mas, todos os livros que li sobre a liberdade de indiferença...
A

São tolices: não existe liberdade de indiferença; é um termo destituído de senso, inventado por pessoas que o não possuem.


 

LOUCURA

Não se trata de reeditar o livro de Erasmo, que na atualidade não seria mais do que um lugar comum bastante insípido.

Chamamos loucura a essa doença dos órgãos do cérebro que impede um homem de pensar e de agir como os outros. Não podendo gerir seus bens, é interdito; não podendo ter idéias de acordo com a sociedade, é excluído; se for nocivo, é enclausurado; se for furioso, trancafiam-no.

É importante observar que esse homem, entretanto, não carece de idéias; ele as tem como todos os outros enquanto acordado e, freqüentemente, enquanto dorme. Poder-se-á perguntar como sua alma espiritual, imortal, alojada em seu cérebro, recebendo todas as idéias por meio dos sentidos coordenados e divididos, não possa concluir um julgamento são. Ela vê os objetos como os viam a alma de Aristóteles e de Platão, de Locke e de Newton; ouve os mesmos sons, tem o mesmo sentido do tacto: por que motivo, pois, recebendo percepções que os mais sábios experimentam, compõe um conjunto inevitavelmente extravagante?

Se essa substância simples e eterna possui para as suas ações os mesmos instrumentos das almas dos cérebros mais sábios, deve raciocinar como eles. Que o impediria? Claro que se um maluco vê vermelho e os sábios azul; se quando os sábios ouvem uma música o louco ouve o zurrar de um asno; se quando eles estão no sermão o louco julga estar na comédia; se quando eles ouvem sim, ele entende não, então sua alma deve pensar ao contrário das outras. Mas o louco tem as mesmas percepções que eles; não há nenhuma razão aparente pela qual sua alma, tendo recebido mediante os sentidos todos os seus utensílios, não os possa usar. Ela é pura, dizemos; não está sujeita por si própria a nenhuma enfermidade; ei-la provida de todos os recursos necessários; passe o que se passar em seu corpo, nada poderá mudar a sua essência; contudo, ei-la encerrada num manicômio.

Essa reflexão pode fazer supor que a faculdade de pensar, doada por Deus ao homem, esteja sujeita a desarranjos como os outros sentidos. Um louco é um doente cujo cérebro sofre, como o gotoso é um doente que sofre dos pés e das mãos; ele pensa com o cérebro, assim como anda com os pés, sem nada conhecer nem do seu poder incompreensível de andar, nem do seu não menos incompreensível poder de pensar. Sofre-se a gota no cérebro como nos pés. Enfim, após mil reflexões, é preciso convir em que somente a fé, talvez, possa convencer-nos de que uma substância simples e imaterial seja passível de doença.

Os doutos ou os doutores dirão ao louco: “Meu amigo, não obstante teres perdido o senso comum, tua alma é tão espiritual, tão pura, tão imortal como a nossa; porém nossa alma está bem alojada e a tua o está mal; as janelas da casa estão fechadas para ela; falta-lhe ar, ela sufoca”. O maluco, em seus bons momentos, lhes responderia: Meus amigos, pensais à vossa moda, o que é discutível. Minhas janelas estão tão abertas como as vossas, porquanto eu vejo os mesmos objetos e ouço as mesmas palavras: é pois necessário que, ou minha alma empregue mal os seus sentidos, ou seja ela própria um sentido viciado, uma qualidade depravada. Numa palavra, ou minha alma é louca por sua própria conta ou eu não tenho alma”.

Um dos doutores poderá responder: “Meu irmão, Deus criou, é possível, almas loucas, assim como criou almas sábias.” O louco replicará: “Se eu fosse acreditar no que me dizeis, seria ainda mais louco do que já sou. Por obséquio, vós que sabeis tanto, dizei-me, por que sou louco?”

Se os doutores tiverem ainda um pouco de bom senso lhe responderão: “Ignoro-o absolutamente.” Eles não compreenderão por que um cérebro tem idéias incoerentes; não compreenderão melhor por que outro cérebro tem idéias regulares e coerentes. Julgar-se-ão sábios, e serão tão loucos como ele.


 

LUXO

Há dois mil anos que se declama contra o luxo, em verso e em prosa, porém amando-o sempre.

Que não se disse dos primeiros romanos? Quando esses salteadores devastaram e pilharam as colheitas dos seus vizinhos, quando, para aumentar sua pobre aldeia, destruíram as pobres aldeias dos volscos e dos sanitas, eram homens desinteressados e virtuosos: ainda não tinham podido roubar ouro, nem prata, nem pedrarias, porque não havia nos burgos o que saquear. Nem seus bosques nem seus hortos tinham perdizes ou faisões e louva-se a sua temperança.

Quando, pouco a pouco, eles pilharam tudo, roubaram tudo, desde os confins do Adriático ao Eufrates, quando tiveram bastante espírito para gozar o fruto de suas rapinas durante setecentos ou oitocentos anos; quando cultivaram todas as artes, apreciaram os prazeres e até os fizeram gozar aos vencidos, então cessaram, diz-se, de ser sábios e honestos.

Todas essas declamações servem para provar que um ladrão jamais deverá comer o jantar que tomou de um terceiro nem vestir o traje que roubou, nem enfeitar-se com o anel, produto de seu saque. É preciso, dizes, atirar tudo isso ao rio a fim de viver como gente honrada; digam antes que não se deveria roubar. Condenai os salteadores quando saqueiam, não os trateis porém como insensatos quando desfrutam de boa fé o produto de seus roubos. Quando um elevado número de marinheiros ingleses se enriqueceu na tomada de Pondichéry e de Havana, não teriam eles o direito de gozar em Londres como paga do trabalho que tiveram nos confins da Ásia e da América?

Desejariam os declamadores ver enterradas zelosamente as riquezas adquiridas na guerra, pela agricultura, pelo comércio e pela indústria? Eles citam os lacedemônios. Por que não citam também a república de São Marinho? Que benefícios fez Esparta à Grécia? Teve ela alguma vez homens como Demóstenes, Sófocles, Apeles, Fídias? O luxo de Atenas criou grandes homens em todo gênero; Esparta teve alguns capitães e ainda em número menor do que as outras cidades. Vão é que uma república tão pequena como a dos lacedemônios conserve a sua pobreza. Chega-se à morte tanto na miséria como gozando daquilo que nos pode tornar a vida agradável. O selvagem do Canadá subsiste e atinge a velhice como o cidadão inglês que tem cinqüenta mil guinéus de renda. Mas quem irá comparar, jamais, o país dos iroqueses à Inglaterra?

Que a república de Ragusa e o cantão de Zug façam leis suntuárias: eles têm razão, é preciso que o pobre não gaste além de suas posses; mas li nalgum lugar(49):

“Sabei que se o luxo enriquece um grande estado põe a perder um pequeno”.

Se por luxo entenderdes o excesso, sabemos muito bem que em tudo o excesso é pernicioso: na abstinência como no epicurismo, na economia como na liberalidade. Não sei como pode acontecer que, nas minhas aldeias, onde a terra é ingrata, os impostos pesados, a proibição de exportar o trigo que foi semeado, intolerável, não existe contudo um colono que não tenha uma boa roupa de banho e não seja bem calçado e bem nutrido. Se esse colono trabalha com a sua bela roupa, com linho branco, os cabelos frisados, polvinhados, eis certamente um grande luxo e uma impertinência; mas o fato de um burguês de Paris ou Londres comparecer ao espetáculo vestido como esse camponês seria interpretado como a sordidez mais grosseira e ridícula.

Est modus in rebus, sunt certi denique fines,
quos ultra citraque nequit consistere rectum

Quando se inventaram as tesouras, que não pertencem sem dúvida à mais remota antigüidade, o que não se disse contra os primeiros que cortaram as unhas e apararam uma parte dos cabelos que lhes caiam sobre o nariz? Foram tratados como pequenos burgueses e pródigos os que compravam mui caro o instrumento da vaidade a fim de falsificar a obra do Criador. Que enorme pecado encurtar os cornos que Deus fez nascer nas extremidades de nossos dedos Era um ultraje à Divindade. Ainda foi pior quando se inventaram as camisas e as chinelas. Sabe-se com que furor os velhos conselheiros, que jamais as tinham usado, gritaram contra os jovens magistrados que se deram a esse honesto luxo.


 

MATÉRIA

Os sábios a quem se pergunta o que é a alma, respondem que nada sabem a esse respeito. Se se lhes pergunta o que é a matéria, dão a mesma resposta. É verdade que alguns professores e principalmente alguns escolares conhecem perfeitamente tudo isso: e quando repetem que a matéria é extensa e divisível, julgam haver dito tudo; mas quando são solicitados a responder o que significa essa coisa extensa, ficam embaraçados. “Isso é composto de partes, dizem”. E essas partes de que são compostas? São os elementos dessas partes divisíveis? Então eles emudecem ou falam muito, o que é igualmente suspeito. Esse ente quase desconhecido a que chamamos matéria é eterno? Todos os antigos assim o julgaram. Terá ele, de per si, a força ativa? Vários filósofos o imaginaram. Os que o negam, têm o direito de negá-lo? Não concebeis que a matéria possa ser alguma coisa por si própria. Mas como podeis afirmar que ela não tenha por si mesma as propriedades que lhe são necessárias? Ignorais qual é a sua natureza e lhe recusais formas que estão nessa mesma natureza: porque, afinal, desde que ela é, faz-se absolutamente necessário que tenha uma forma, que seja figurada; e, desde que é necessariamente figurada, será impossível a existência de outras formas ligadas à sua configuração? A matéria existe, não a conheceis senão mediante vossas sensações. Ah! de que servem todas as susceptibilidades do espírito desde que raciocinamos? A geometria nos ensinou grande número de verdades, a metafísica bem poucas. Pesamos a matéria, medimo-la, decompomo-la; e, além dessas operações rudimentares, se quisermos dar um passo sentimos em nós a impotência e adiante de nós um abismo.

Perdoai, por mercê, ao universo inteiro, que se enganou ao julgar que a matéria existisse por si própria. Poderia proceder de forma diversa? Como imaginar que o que é sem sucessão não o foi sempre? Se não fosse necessária a existência da matéria, por que existe ela? E se era preciso que ela fosse, por que não teria sido sempre? Nenhum axioma foi tão universalmente aceito como este: Nada se faz de nada. Com efeito, o contrário é incompreensível. O caos precedeu em todos os povos a disposição que uma mão divina fez no mundo inteiro. A eternidade da matéria jamais ofendeu em povo algum o culto da Divindade. A própria religião jamais procurou impedir que um Deus eterno fosse reconhecido como o senhor de uma matéria eterna. Somos muito felizes, hoje, ao ser informados pela fé que Deus tirou a matéria do nada. Porém, nação alguma foi instruída a respeito desse dogma; os próprios judeus ignoraram-no. O primeiro versículo do Gênesis diz que os deuses Eloim (não Eloi) fizeram o céu e a terra; não dizem que o céu e a terra foram criados do nada.

Fílon, do único tempo em que os judeus tiveram alguma erudição, diz em seu capítulo da criação: “Deus, sendo bom por sua natureza, não insuflou a inveja na substância, na matéria, que por si mesma nada tinha de bom, que não tem de sua natureza senão a inércia, a confusão, a desordem. Dignou-se torná-la boa, de má que era”.

A idéia do caos desemaranhado por um deus encontra-se em todas as teogonias antigas. Hesíodo repetiu o pensamento do Oriente quando disse em sua Teogonia: “O caos foi o primeiro a existir” – Ovídio foi o intérprete de todo o império romano quando disse:

Sic ubi dispositam, quiscuis fuit ille deorum,
congeriem secuit...
(50).

A matéria é, pois, nas mãos de Deus, como a argila nas do oleiro, se se nos permite o uso dessas débeis imagens para exprimir o poder divino.

A matéria, sendo eterna, devia ter propriedades eternas, como a configuração, a força de inércia, o movimento e a divisibilidade. Mas essa divisibilidade não é senão a resulta do movimento: pois sem movimento nada se divide, nem se separa ou coordena. O caos teria sido um movimento confuso, e a coordenação do universo um movimento regular imprimido a todos os corpos pelo senhor do mundo. Mas como poderia a matéria ter movimento próprio? Da mesma forma que tem, consoante todos os antigos, estensão e impenetrabilidade.

Mas não podemos concebê-la sem extensão, e podemos concebê-la sem movimento. A isto se responde: “É impossível que a matéria não seja permeável; ora, sendo permeável, é preciso que alguma coisa passe continuamente por seus poros; para que passagens, se nelas nada passasse?”

De réplica em réplica, não acabaríamos mais; o sistema da matéria eterna apresenta grandes dificuldades, como todos os sistemas. O da matéria formada do nada não é menos incompreensível. Deve-se admiti-lo sem pretender dar-lhe razão; nem tudo explica a filosofia. Quantas coisas incompreensíveis somos forçados a admitir, mesmo na geometria? Podemos conceber que duas linhas andem paralelamente sem nunca se encontrarem?

Responder-nos-ão naturalmente os geômetras: “As propriedades das assintotas vos foram demonstradas; não podeis deixar de admiti-las; mas a criação, não: por que a admitia? Que dificuldade achais em crer, como todos os antigos, na matéria eterna?” Por outro lado dir-vos-á o teólogo: “Se acreditardes que a matéria é eterna, reconhecereis portanto dois princípios, Deus e a matéria; caís agora no erro de Zoroastro e Manés”.

Nada responderemos aos geômetras, porque aquela gente nada conhece além de suas linhas, suas superfícies e seus sólidos. Mas podemos dizer aos teólogos: “Em que sou maniqueu? Eis aqui pedras que um arquiteto não fabricou; ele ergueu uma construção imensa; não admito dois arquitetos; as pedras brutas obedeceram ao poder e ao gênio”.

Felizmente, seja qual for o sistema que abracemos, nenhum prejudica a moral: porque, que importa que a matéria tenha sido feita ou ordenada? Deus é igualmente nosso senhor absoluto. Devemos ser igualmente virtuosos em um caos desemaranhado ou em um caos criado do nada; quase nenhuma dessas questões metafísicas influi na conduta da vida: tais disputas são como as alegres periquitices que temos à mesa: depois de comer cada um esquece o que disse e vai para onde o chamam seu interesse e seu gosto.


 

MAU

Vivem a gritar-nos que a natureza humana é essencialmente perversa, que o homem nasceu mau e filho do diabo. Nada menos ponderado: porque, meu amigo, tu que me dizes que toda gente nasceu perversa, tu me advertes pois de que nasceste tal, que é preciso que eu desconfie de ti como de uma raposa ou de um crocodilo. – Oh! nada disso! – dizes, – eu me regenerei, não sou nem herege nem infiel, podeis fiar-vos em mim. – Mas o resto do gênero humano, que é ou herege ou o que chamas infiel, não será pois um conjunto de monstros? E todas as vezes que falares a um luterano ou a um turco deverás estar certo de que te roubarão ou assassinarão: pois são filhos do diabo; nasceram ruins; um nada tem de regenerado e o outro é degenerado. Seria muito mais razoável, muito mais belo, dizer aos homens: Nascestes bons; vede quão afrontoso seria corromper a pureza do vosso ser. Seria de mister proceder com o gênero humano como procedemos com os homens em particular. Se um cônego leva uma vida escandalosa, nós lhe dizemos: “É possível que desonreis a dignidade de cônego?” Faz-se lembrar a um magistrado que ele tem a honra de ser conselheiro do rei e que deve dar o exemplo. Diz-se a um soldado a fim de encorajá-lo: “Recorda que pertences ao regimento de Champagne” Dever-se-ia dizer a todo indivíduo: “Lembra-te de tua dignidade de homem”.

E, com efeito, não obstante a possuirmos, temos sempre necessidade dela: pois que quer dizer esta frase freqüentemente empregada em todos os povos, concentrai-vos em vós mesmo? Se houvésseis nascido filho do diabo, se vossa origem fosse criminosa, se vosso sangue fosse composto de um licor infernal, esta expressão concentrai-vos em vós mesmo significaria: consultai, segui vossa natureza diabólica, sede impostor, assassino, é a lei de vosso pai.

O homem não é ruim de nascimento; torna-se depois, assim como adoece. Alguns médicos se lhe apresentam e dizem: “Nascestes já doente.” Pile está perfeitamente certo de que esses médicos, por mais que façam, não o curarão se sua doença é inerente a sua natureza; esses próprios argumentadores são bem doentes.

Reuni todas as crianças do universo, e não vereis nelas senão inocência, doçura e timidez; se houvessem nascido más, malfeitoras, cruéis, mostrariam algum sinal, tal como as serpentezinhas procuram morder e os tigrinhos arranhar.

Mas a natureza não concedeu ao homem mais armas ofensivas do que aos coelhos e aos pássaros, não lhes pode dar um instinto que os conduza à destruição.

Portanto o homem não é mau de nascimento. Por que então existe tão grande número de infetados por essa peste da ruindade? É que aqueles que os dirigem, sendo colhidos pela doença, comunicam-na ao resto dos homens, como uma mulher atacada do mal que Cristóvão Colombo trouxe da América espalha esse veneno de extremo a outro da Europa. O primeiro ambicioso corrompeu a terra.

Ides dizer-me que esse primeiro monstro desenvolveu o germe do orgulho, da rapina, da fraude, da crueldade, que existe em todos os homens. Sei muito bem que em geral a maioria de nossos irmãos pode adquirir esses defeitos; estará porém toda gente contaminada pela febre pútrida, pelos cálculos renais, apenas por que todos estão expostos?

Existem nações inteiras completamente boas: os filadélfios, os banianos nunca mataram pessoa alguma; os chineses, os povos de Tonquim, de Lao, de Siam, do próprio Japão, durante várias centenas de anos não conheceram a guerra. Apenas de dez em dez anos é possível ver um desses crimes que comovem a natureza humana nas cidades de Roma, Veneza, Paris, Londres, Amsterdã, cidades onde, de feito, a cupidez, mãe de todos os crimes, é extensa.

Se os homens fossem essencialmente maus, se nascessem completamente submetidos a um ser tão malfeitor como infeliz, que para se vingar de seus suplícios lhes inspirasse todos os seus furores, ver-se-iam todas as manhãs maridos assassinados por suas mulheres e pais por seus filhos, como podemos contemplar no alvorecer do dia frangos estrangulados por uma doninha que lhes sugou o sangue.

Se houver um bilhão de homens sobre a terra será muito; isto dá aproximadamente quinhentos milhões de mulheres que costuram, que cozinham, que alimentam seus filhos, que tomam conta da casa ou cabana própria, e que falam um certo mal de suas vizinhas. Não vejo que grande mal essas pobres inocentes fazem sobre a terra. Sobre esse número de habitantes do globo há duzentos milhões de crianças no mínimo, que com toda certeza não saqueiam nem matam, e cerca de outro tanto de velhos e doentes que o não podem fazer. Restarão quando muito cem milhões de jovens robustos e capazes de praticar o crime. Desses cem milhões noventa estão continuamente ocupados em forçar a terra, mercê de um trabalho prodigioso, a fim de que esta lhes dê alimentos e roupas; esses não têm igualmente tempo para fazer o mal.

Nos dez milhões restantes estão compreendidos os ociosos que prezam a boa companhia das mesas, que desejam viver doce e tranqüilamente, os homens de talento ocupados com suas profissões, os magistrados, os padres, visivelmente interessados em levar uma vida pura, ao menos na aparência. Como verdadeiros maus, portanto, apenas restarão alguns políticos, amadores ou profissionais, e alguns milhares de vagabundos que lhes alugam os seus serviços. Ora, impossível seria atuar um milhão de bestas ferozes ao mesmo tempo; e nesse número estão incluídos os assaltantes das estradas reais. Tendes, pois, quando muito, sobre a terra, nos tempos mais borrascosos, um homem sobre mil a quem se pode chamar mau.

Há pois infinitamente menos mal sobre a terra do que se diz e pensa. E é ainda muito, sem dúvida: assistimos a desgraças e crimes horríveis; porém o prazer de se lamentar e exagerar é tão grande que à mínima arranhadela seríeis capaz de bradar que a terra regurgita de sangue. Fostes enganado, todos os homens são perjuros. Um espírito melancólico que sofreu uma injustiça vê o universo coberto de danados, como um jovem voluptuoso ceando com sua dama, ao sair da Ópera, não acredita na existência de infelizes.


 

MESSIAS

Messiah ou Meshiah em hebreu; Christos ou Eleimmenos em grego; Unctus em latim; Ungido.

Vemos no Velho Testamento que o nome de Messias foi dado a príncipes idólatras ou infiéis. Está dito(51) que Deus enviou um profeta para ungir Jeú, rei de Israel. Anunciou ele a unção sagrada a Hazael, rei de Damasco e Síria, pois esses dois príncipes eram os Messias do Altíssimo para punir a casa de Acabe.

No 45o. de Isaías o nome de Messias é expressamente dado a Ciro. “Assim disse o Eterno a Ciro, seu ungido, seu Messias, de quem tomei a mão direita, a fim de que eu submeta as nações diante dele, etc.”.

Ezequiel, no capítulo 28 de suas revelações, dá o nome de Messias ao rei de Tiro, a quem também chamava Querubim. “Filho do homem, – disse o Eterno ao profeta, – pronuncia em altas vozes uma queixa ao rei de Tiro, e diz-lhe:

“Assim disse o Senhor, o Eterno. Eras o sinete da semelhança de Deus, repleto de sabedoria e perfeito em beleza; foste o jardim do Éden do Senhor, (ou, segundo outras versões) eras todas as delícias do Senhor. Tuas vestes eram de sardônica, de topázio, de jaspe, de crisólita, de ônix, de berilo, de safira, de escarbúnculo, de esmeralda e ouro. O que sabiam fazer teus tambores e tuas flautas esteve contigo; eles foram aprontados no dia de tua criação; foste um Querubim, um Messias”.

Esse nome de Messiah, Christ, era dado aos reis, aos profetas e aos grandes sacerdotes dos hebreus. Lemos no 1o. dos Reis, XII, 5: “O Senhor e seu Messias são testemunhas”, isto é: “O Senhor e o rei que estabeleceu”. E alhures: “Não toqueis em meus ungidos nem façais mal algum a meus profetas”. Davi, animado do espírito de Deus, deu em várias ocasiões a Saul, seu sogro renegado, que o perseguia, o nome e a qualidade de ungido, de Messias do Senhor. “Deus me guarde” – diz freqüentemente – “de levantar a mão sobre o ungido do Senhor, sobre o Messias de Deus!”

Se o nome de Messias, ungido do Senhor, foi dado a reis idólatras, a renegados, foi também mui freqüentemente empregado em nossos antigos oráculos para designar o verdadeiro ungido do Senhor, esse Messias por excelência, o Cristo, filho de Deus, enfim o próprio Deus.

Se compararmos todos os diversos oráculos que se aplicam de ordinário ao Messias, não pode haver ao que parece dificuldade alguma capaz de favorecer os judeus, no sentido de justificar, se o pudessem, sua obstinação. Vários grandes teólogos concordam que, no estado de opressão sob o qual gemia o povo judeu, e depois de todas as promessas que o Eterno lhe fez com tanta freqüência, podia suspirar pela vinda de um Messias vencedor e libertador, e que assim se torna de certa forma escusável o não haver a princípio reconhecido esse libertador na pessoa de Jesus.

Pertencia ao plano da sabedoria eterna que as idéias espirituais do verdadeiro Messias permanecessem desconhecidas pelas multidões cegas; foram-no ao ponto de os doutores judeus tomarem o cuidado de não negar senão os trechos que alegamos deverem ser entendidos como referentes ao Messias. Dizem vários que o Messias já veio na pessoa de Ezequias; é também o pensamento do famoso Hilel. Outros, em grande número, pretendem que a crença da vinda de um Messias não é absolutamente um artigo fundamental de fé, e que esse dogma, não assomando nem no Decálogo nem no Levítico, não passa de uma esperança consoladora.

Vários rabinos dizem não duvidar que, segundo os antigos oráculos, o Messias não tenha vindo nos tempos determinados; mas que ele não envelhece, que ficará sobre esta terra e esperará, para se manifestar, que Israel tenha celebrado como é de mister o sabate.

O famoso rabino Salomão Jarquí ou Rasquí, que viveu no princípio do duodécimo século, diz em suas Talmúdicas que os antigos hebreus acreditaram que o Messias nascera no dia da última destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos; é, como se costuma dizer, chamar o médico depois da morte.

O rabino Quinquí, que também viveu no duodécimo século, anunciou que o Messias, cuja vinda julgava muito próxima, expulsaria da Judéia os cristãos que a possuíam até aquele momento; é verdade que os cristãos perderam a Terra Santa; mas foi Saladino quem os venceu; por pouco que esse conquistador tenha protegido os judeus declarando-se a seu favor, parece que em seu entusiasmo eles o transformaram em seu Messias.

Os autores sacros, e o próprio Nosso Senhor Jesus, comparam freqüentemente o reino do Messias e a eterna beatitude a dias de esponsais, a festins; porém os talmudistas abusaram estranhamente dessas parábolas; segundo eles, o Messias dará a seu povo, reunido na terra de Canaã, uma refeição cujo vinho será o mesmo feito por Adão no Paraíso terrestre, e que se conserva em vastas adegas, guardadas pelos anjos no centro da terra.

Servir-se-á de início o famoso peixe chamado o grande Leviatã, que engole de um só trago um peixe maior do que ele, o qual não deixa de ter trezentas léguas de comprimento; toda a maça das águas está apoiada sobre Leviatã. Deus, a princípio, criou um macho e uma fêmea; mas temendo que eles revolvessem a terra e enchessem o universo de seus semelhantes, Deus matou a fêmea, salgando-a para o festim do Messias.

Os rabinos acrescentam que se matará para esse festim o touro de Beemote, que é tão grande que come diariamente o feno de mil montanhas; a fêmea desse touro foi morta no princípio do mundo, para que uma espécie tão prodigiosa não se multiplicasse, o que apenas poderia ser prejudicial às outras criaturas; asseguram porém que o Eterno não a salgou, pois a vaca salgada não é tão boa como o Leviatã. Os judeus acrescentaram ainda tanta fé a todas essas fantasias rabínicas que é freqüente jurarem sobre a parte do boi de Beemote que lhes cabe.

Depois de idéias tão grosseiras sobre a vinda do Messias e sobre o seu reino, será para admirar que os judeus, tanto antigos como modernos, e vários mesmo dos primeiros cristãos, desgraçadamente imbuídos de todas essas loucuras, não tenham podido elevar-se à idéia da natureza divina do ungido do Senhor, nem atribuíram as qualidades de Deus ao Messias? Vede como os judeus se exprimem lá das alturas em sua obra intitulada Juaei Lusitani Quaestiones ad Christianos. “Reconhecer” – dizem – “um homem-Deus é forjar um monstro, um centauro, o composto estranho de duas naturezas que não se poderiam aliar”. Acrescentam que os profetas não ensinam absolutamente que o Messias deve ser homem-Deus, que fazem distinções expressas entre Deus e Davi, que consideram o primeiro, senhor, o segundo, servidor, etc.

Sabe-se muito bem que os judeus, escravos da letra, jamais penetraram como nós o sentido das Escrituras.

Quando o Salvador apareceu, os preconceitos judeus se ergueram contra ele. O próprio Jesus Cristo, para não revoltar seus espíritos cegos, parece extremamente reservado sobre o artigo de sua divindade: “Ele queria” – diz São Crisóstomo – “acostumar insensivelmente seus auditores a crer num mistério grandemente elevado acima da razão”. Se toma a autoridade de um Deus perdoando os pecados, isto revolta todos os que o testemunham; seus milagres mais evidentes não podem convencer de sua divindade aqueles mesmos em favor dos quais opera. Quando perante o tribunal do soberano sacrificador ele admite com modéstia ser filho de Deus, o sumo sacerdote rasga-lhe a roupa, rompendo em blasfêmias. Antes do enviado do Espírito Santo os apóstolos nem sequer suspeitavam a divindade de seu mestre; ele os interroga sobre o que pensa o povo a seu respeito: respondem-lhe que uns o tomam por Elias, outros por Jeremias ou qualquer outro profeta. São Pedro precisa de uma revelação particular para conhecer que Jesus é o Cristo, o filho de Deus vivente.

Os judeus, revoltados contra a divindade de Jesus Cristo, recorreram a toda sorte de meios para destruir esse grande mistério; deturpam o sentido dos seus próprios oráculos, ou não os aplicam ao Messias; pretendem que o nome de Deus, Elói, não é particular à divindade, sendo até concedido pelos autores sagrados aos juizes, aos magistrados, em geral aos elevados em autoridade; citam, com efeito, grande número de passos das Santas Escrituras que justificam esta observação, mas que não concedem a mínima atenção aos termos expressos dos antigos oráculos que falam do Messias.

Enfim, pretendem que se o Salvador, e depois dele os evangelistas, os apóstolos e os primeiros cristãos chamam Jesus o filho de Deus, esse termo augusto não significava nos tempos evangélicos senão o oposto dos filhos de Belial, isto é, homem de bem, servidor de Deus, em oposição a um malvado, um homem que não teme a Deus.

Se os judeus contestaram a Jesus Cristo a qualidade de Messias e sua divindade, nada esqueceram para torná-lo desprezível, para atirar sobre o seu nascimento, sua vida e sua morte, todo o ridículo e todo o opróbrio imaginado pela sua obstinação criminosa.

De todas as obras produzidas pela cegueira dos judeus, nada há de mais odioso e extravagante do que o antigo livro intitulado: Sepher Toldos Jeschut, extraído da poeira dos arquivos pelo sr. Wagenseil, no segundo tomo de sua obra intitulada: Tela ignea, etc.

É nesse Sepher Toldos Jeschut que se lê uma história monstruosa da vida do nosso Salvador, forjada com toda paixão e má fé possíveis. Assim, por exemplo, ousaram escrever que um tal Panter ou Pandera, habitante de Betlêm, se apaixonara por uma mulher casada com Jocanã. Teve desse comércio impuro um filho que foi chamado Jesuá ou Jesú. O pai desse menino foi obrigado a fugir, retirando-se para Babilônia. Quanto ao jovem Jesú, foi enviado à escola; mas, – acrescenta o autor – teve a insolência de levantar a cabeça e de se descobrir diante dos sacrificadores, em lugar de se apresentar à sua frente com a cabeça baixa e o rosto coberto, como era costume: ousadia que foi vivamente punida; o que deu lugar ao exame de seu nascimento, que se revelou impuro e em breve o expôs à ignomínia.

Esse detestável livro Sepher Toldos Jeschut era conhecido desde o segundo século; é citado por Celso com confiança e Orígenes refuta-o no nono capítulo.

Existe outro livro também intitulado Toldos Jeschut, publicado no ano de 1705 pelo Sr. Huldrich, que segue mais de perto o Evangelho da infância mas que comete, a todo momento, os anacronismos e faltas mais grosseiros. Faz nascer e morrer Jesus Cristo no reinado de Herodes, o Grande; pretende terem sido dirigidas a esse príncipe as queixas sobre o adultério de Panter e de Maria, mãe de Jesus.

O autor, que toma o nome de Jonatã, que se diz contemporâneo de Jesus Cristo e morador em Jerusalém, adianta que Herodes consultou os senadores de uma cidade da terra de Cesárea sobre o caso de Jesus Cristo. Não seguiremos um autor tão absurdo em todas as suas contradições.

No entanto é a favor de todas essas calúnias que os judeus se entretêm em seu ódio implacável contra os cristãos e contra o Evangelho; nada esqueceram eles para alterar a cronologia do Velho Testamento e para espalhar dúvidas e dificuldades sobre o tempo da vinda do nosso Salvador.

Ahmed-ben-Cassum-al-Andacusi, mouro de Granada que viveu nos fins do século XVI, cita o antigo manuscrito árabe que foi encontrado junto a seis lâminas de chumbo, gravado em caracteres árabes, numa gruta perto de Granada. D. Pedro y Quinones, arcebispo de Granada, prestou ele próprio testemunho. Essas lâminas de chumbo que chamamos de Granada foram depois transladadas para Roma, onde, após um exame de vários anos, foram finalmente condenadas como apócrifas, sob o pontificado de Alexandre VII; não continham senão histórias fabulosas concernentes à vida de Maná e seu filho.

O nome de Messias, acompanhado do epíteto falso, ainda se dá a esses impostores que, em épocas diversas, procuraram mistificar a nação judaica. Houve desses falsos Messias antes mesmo da vinda do verdadeiro ungido de Deus. O sábio Gamaliel fala (52) de um certo Teodas cuja história se lê nas Antigüidades Judaicas de José; livro 20, capítulo 2. Jactava-se de haver passado o Jordão a pé seco; conseguiu grande número de adeptos que o seguiam; mas os romanos, caindo sobre sua tropa, dizimaram-na, cortaram a cabeça do desgraçado chefe e a expuseram em Jerusalém.

Gamaliel fala também de Judas, o Galileu, que é sem dúvida o mesmo mencionado por José, no capítulo 12 do segundo livro da Guerra das Judeus. Diz que esse falso profeta reunira quase trinta mil adeptos; porém a hipérbole é o característico do historiador judeu.

Desde os tempos dos apóstolos viu-se Simão, cognominado o Mágico (53), seduzir os habitantes de Samaria a ponto de o considerarem como a virtude de Deus.

No século seguinte, no ano 178 e 179 da era cristã, sob o império de Adriano, apareceu o falso Messias Barco Queba, à testa de um exército. O imperador enviou contra ele Júlio Severo, que depois de vários encontros encerrou os revoltosos na cidade de Biter; manteve um assedio obstinado e foi violentíssimo em suas represálias; Barco Queba foi preso e condenado à morte. Adriano julgou não poder prevenir as revoltas contínuas dos judeus, senão proibindo-os por édito de irem a Jerusalém; estabeleceu, mesmo, postos de vigilância nas portas dessa cidade, para proibir a entrada ao resto do povo de Israel.

Lemos em Sócrates, historiador eclesiástico(54), que no ano 434 apareceu na ilha de Cândia um falso Messias chamado Moisés. Dizia-se o antigo libertador dos hebreus, ressuscitado para os libertar de novo.

Um século depois, em 530, houve na Palestina um falso Messias chamado Julião; anunciou-se como um grande conquistador que, à frente de sua nação, destruiria pelas armas todo o povo cristão; seduzidos por suas promessas, os judeus, armados, massacraram muitos cristãos. O imperador Justiniano enviou tropas contra ele. Travou-se batalha contra o falso Cristo: foi preso e condenado ao suplício extremo.

No princípio do século VIII Sereno, judeu espanhol, apresentou-se como Messias, pregou, teve discípulos e morreu como eles na miséria.

Vários falsos Messias surgiram no século XII. Apareceu um na França, sob o reinado de Luís, o Jovem; foi enforcado, ele e seus correligionários, sem que jamais se conhecessem os nomes nem do mestre nem dos discípulos.

O século XIII foi fertilíssimo de falsos Messias; contam-se sete ou oito, aparecidos na Arábia, na Pérsia, na Espanha e na Morávia. Um deles, que se fazia chamar David el Re, passou por ter sido um grande mártir, seduziu os judeus, vendo-se à testa de um partido considerável; mas esse Messias foi assassinado.

Jacques Zieglerne, da Morávia, que viveu em meados do século XVI, anunciou a próxima manifestação do Messias, nascido, segundo afirmava, havia catorze anos. Ele o tinha visto, dizia, em Estrasburgo, e guardava com cuidado uma espada e um cetro para lhos entregar quando ele estivesse em idade de ensinar.

No ano de 1624 outro Zieglerne confirmou a predição do primeiro.

Em 1666 Sabatê Seví, nascido em Alepo, se apresentou como o Messias predito pelos Zieglerne. Principiou por pregar nas estradas reais e no meio dos campos; os turcos riram-se dele, apesar da grande admiração dos seus discípulos. Parece que não agradou à maioria da nação hebraica, pois os chefes da sinagoga de Smirna lavraram contra ele uma sentença de morte; mas livrou-se da pena, sofrendo somente o medo e o exílio

Contratou três casamentos que não chegou a realizar, segundo se diz. Associou-se a um certo Natã Leví: este fez o papel do profeta Elias, que devia preceder o Messias. Dirigiram-se a Jerusalém e Natã anunciou Sabatê Seví como o libertador das nações. A população judaica declarou-se a seu favor; mas os que tinham alguma coisa a perder o anatematizaram.

Seví, para fugir à borrasca, retirou-se para Constantinopla, e de lá para Smirna. Natã Leví enviou-lhe quatro embaixadores que o reconheceram e saudaram publicamente na qualidade de Messias; essa embaixada teve certa influência no povo e mesmo em alguns doutores, que declararam Sabat Seví Messias e rei dos hebreus. Mas a sinagoga de Smirna condenou seu rei a ser empalado.

Sabatê pôs-se sob a proteção do cadi de Smirna, e teve em breve ao seu favor todo o povo judeu. Fez erguer dois tronos, um para ele e outro para sua esposa favorita; tomou o nome de rei dos reis e deu a José Seví, seu irmão, o de rei de Judá. Prometeu aos judeus assegurar a conquista do império otomano. Chegou mesmo à insolência de fazer riscar da liturgia judaica o nome do imperador, substituindo-o pelo seu. Foi remetido à prisão dos Dardanelos. Os judeus tornaram público que: só se poupara a sua vida por que os turcos sabiam muito bem que ele era imortal. O governador dos Dardanelos enriqueceu-se à custa dos presentes que os hebreus lhe prodigalizaram para visitar o seu rei, o seu Messias, prisioneiro que, entre grades, conservava toda a sua dignidade, deixando que lhe beijassem os pés.

Entretanto o sultão, que tinha a sua corte em Andrinopla, resolveu acabar com essa comédia; mandou chamar Seví e disse-lhe que se ele fosse Messias deveria ser invulnerável; Seví concordou. O grão senhor mandou que o colocassem como alvo das flechas de seus pagens; o Messias compreendeu logo nada ter de invulnerável e pretextou que Deus apenas o enviara para render testemunho à santa religião muçulmana. Fustigado pelos ministros da lei, tornou-se mafomista e morreu desprezado igualmente por judeus e muçulmanos: o que desacreditou de tal forma a profissão de falso Messias que Seví foi o último deles. (55).


 

METAMORFOSE, METEMPSICOSE

Não é muito natural que todas as metamorfoses de que a terra está repleta tenham feito imaginar, no Oriente, onde tudo foi imaginado, que nossas almas passam de um corpo a outro? Um ponto quase imperceptível torna-se um verme, esse verme se transforma em borboleta; uma bolota se transforma num tronco, um ovo num pássaro; a água torna-se nuvem e trovão; a madeira troca-se em fogo e cinza; tudo enfim, na natureza, parece metamorfose. Não tardamos em atribuir às almas, que olhamos como tênues figuras, o que vemos sensivelmente nos corpos mais grosseiros. A idéia da metempsicose é talvez o mais antigo dogma do universo conhecido, e reina ainda em grande parte da Índia e da China.

É ainda bastante natural que todas as metamorfoses de que somos testemunhas hajam produzido essas antigas fábulas que Ovídio recolheu em sua obra admirável. Os próprios judeus tiveram também suas metamorfoses. Se Níobe foi transformada em mármore, Edite, mulher de Ló, foi transmutada numa estátua de sal. Se Eurídice ficou nos infernos por ter olhado para trás, é também pela mesma indiscrição que essa mulher de Ló foi privada da natureza humana. O burgo habitado por Baucis e Filêmon, na Frigia, transformou-se em um lago; a mesma coisa sucedeu a Sodoma. As filhas de Anjo transformavam a água em óleo; temos nas Escrituras uma metamorfose mais ou menos parecida, porém mais verdadeira e mais sagrada. Cadmo foi transformado em serpente; a virgem de Aarão tornou-se serpente também.

Os deuses também mudam-se muitas vezes em homens; os judeus jamais viram anjos senão sob a forma humana: os anjos comeram na casa de Abraão. Paulo, em sua Epístola aos Coríntios, diz que o anjo de Satã lhe deu bofetadas: Angelos Satana me colaphisei.


 

MILAGRES

Segundo a energia do termo, um milagre é uma coisa admirável. Nesse caso, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos ao redor de um milhão de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos milagres.

Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação dessas leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante a Lua cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho levando a cabeça de baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu um milagre.

Vários físicos afirmam que, nesse sentido, não existe milagre algum, e eis aqui seus argumentos.

Um milagre é a violação das leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas. Mediante essa única exposição, um milagre é uma contradição nos termos. Uma lei não pode ser mutável a violada. Mas uma lei, diz-se-lhes, sendo estabelecida por Deus mesmo, não poderá ser suspensa pelo seu autor? Têm a ousadia de responder que não e que é impossível que o Ser infinitamente sábio tenha estabelecido leis para as violar. Um homem, dizem eles, não desmonta sua máquina senão para fazê-la melhor; ora, é claro que, sendo Deus, ele fez essa imensa máquina o melhor que pode: se viu que haveria alguma imperfeição, resultante da natureza da matéria, ele a preveniu desde o começo; assim jamais há de mudar nada.

Demais, Deus nada pode fazer sem razão; ora, que razão poderia levá-lo a desfigurar por algum tempo a sua própria obra? É em favor dos homens, diz-se-lhes. Será, pois, ao menos em favor de todos os homens respondem eles: pois é impossível conceber que a natureza divina trabalhe para alguns homens em particular e não para todo o gênero humano; mesmo o gênero humano é pouca coisa: é muito menos do que um pequeno formigueiro em comparação com todos os entes que preenchem a imensidão. Ora, não é a mais absurda das loucuras imaginar que o Ser Infinito invertesse em favor de três ou quatro centenas de formigas nesse pequeno pedaço de lodo, o movimento eterno dessas molas imensas que fazem mover o inteiro universo?

Mas suponhamos que Deus desejou distinguir um pequeno número de homens com favores particulares: seria preciso que mudasse tudo o que estabeleceu para todos os tempos e todos os lugares. Ele não tem, por certo, necessidade alguma dessa mudança, dessa inconstância, para favorecer suas criaturas: seus favores estão encerrados em suas próprias leis. Ele tudo preveniu, tudo ordenou para elas; todas obedecem irrevogavelmente à forca que imprimiu para todo o sempre na natureza.

Por que faria Deus um milagre? Para realizar um plano qualquer concernente a alguns seres vivos! Portanto: não pude, com os meus decretos divinos, com minhas leis eternas, preencher um certo plano; vou mudar minhas idéias eternas, minhas leis imutáveis, e tratar de executar o que não consegui fazer por elas. Tal fato seria um sinal de sua fraqueza, e não de sua potência. Seria, parece, nele, a mais inconceptível contradição. Portanto, ousar supor que Deus realiza milagres é realmente insultá-lo (se é que os homens podem insultar Deus); é dizer-lhe: “Sois um ente frágil e inconseqüente”. Portanto, é absurdo crer em milagres, é desonrar de certo modo a Divindade.

Insiste-se com esses filósofos, dizendo-lhes: “É inútil exaltardes a imutabilidade do Ente Supremo, a eternidade de suas leis, a regularidade de seus mundos infinitos; nosso pequeno pedaço de lodo está repleno de milagres; as histórias estão tão repletas de prodígios que estes se tornam acontecimentos naturais. As filhas do sumo sacerdote Agno trocavam tudo o que bem entendiam em trigo, em vinho ou óleo; Atálida, filha de Mercúrio, ressuscitou várias vezes; Esculápio ressuscitou Hipólito; Hércules arrancou Alceste dos braços da Morte; Éros voltou ao mundo após ter passado quinze dias nos infernos; Rômulo e Remo nasceram de um deus e uma vestal. O Paládio tombou dos céus na cidade de Tróia; a cabeça de Orfeu concedia oráculos depois de sua morte; as muralhas de Tebas se construíram por si próprias ao som das flautas dos gregos; as curas realizadas no templo de Esculápio eram numerosas, e temos ainda monumentos repletos de nomes de testemunhas oculares dos milagres de Esculápio.

“Citai-me um único povo no qual não se tenham operado prodígios incríveis, principalmente nos tempos em que mal se sabia ler e escrever”.

Os filósofos não respondem a essas objeções senão rindo e dando de ombros; mas os filósofos cristãos dizem: “Cremos perfeitamente nos milagres operados em nossa santa religião; cremo-los mediante nossa fé, e não pela nossa razão, que nos guardamos bem de ouvir: porque, quando fala a fé, sabemos que a razão não deve dizer palavra. Temos uma crença firme e integral nos milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos, mas permiti-nos duvidar um pouco de vários outros; permiti, por exemplo, que suspendamos nosso julgamento sobre o que concerne a um homem simples ao qual se deu o nome de grande. Ele afirma que um pequeno monge estava tão acostumado a realizar milagres que o prior lhe proibira exercer seu talento. O pequeno monge obedeceu; mas tendo visto um pobre telhador cair do alto de um telhado, ficou indeciso entre salvar-lhe a vida e manter a santa obediência. Ordenou apenas que o telhador permanecesse suspenso a meio caminho do solo, até nova ordem, e correu de pressa a contar ao seu prior o estado das coisas. O prior absolveu-o do pecado que cometera iniciando um milagre sem licença e permitiu que o terminasse, contanto que nunca mais o repetisse. Concede-se aos filósofos desconfiar um pouco dessa história”.

Mas como ousaríeis negar, diz-se-lhes, que S. Gervásio e S. Protásio tenham aparecido em sonho a Santo Ambrósio, que lhe tenham ensinado o lugar onde estavam escondidas as suas relíquias, que Sto. Ambrósio as tenha desenterrado e que elas curaram um cego? Sto. Agostinho estava nessa época em Milão; é ele quem nos conta o milagre: Immenso populo teste, diz em sua Cidade de Deus, livro 22. Eis um milagre dos melhor averiguados. Os filósofos dizem que não acreditam em nada disso; que Gervásio e Protásio não apareceram a pessoa alguma; que pouco importa ao gênero humano saber onde estão os restos de suas carcassas; que não concedem maior crédito a esse cego que ao de Vespasiano; que é um milagre inutilíssimo; que Deus nada faz de inútil; e se mantêm firmes em seus princípios. Meu respeito a S. Gervásio e S. Protásio não me permite ser do pensar desses filósofos: apenas registo sua incredulidade. Fazem grande caso da passagem de Luciano que se encontra na Morte de Peregrino. “Quando um trapaceiro chega a se transformar em cristão, é porque tem certeza de ficar rico”. Mas como Luciano é um autor profano, não deve ter nenhuma autoridade entre nós.

Esses filósofos não podem se resolver a crer nos milagres operados no segundo século. Perdem tempo as testemunhas oculares em escrever que o bispo de Smirna, S. Policarpo, tendo sido condenado a ser queimado, e sendo atirado às chamas, ouviram uma voz do céu gritar: “Coragem, Policarpo! Sê forte, mostra que és homem!”; que então as chamas da fogueira se separaram de seu corpo, formando um pavilhão de fogo ao redor de sua cabeça, e que do meio da fogueira saiu uma pombinha; enfim, foi necessário decepar a cabeça de Policarpo. “Que vale um milagre desses?” – dizem os incrédulos: – “por que motivo as chamas perderam sua natureza e por que o machado do carrasco não perdeu a sua? Como se explica que tão elevado número de mártires tenham saído sãos e salvos do óleo fervente, e não puderam resistir ao gume do facão? Responde-se que é a vontade de Deus. Mas os filósofos desejariam ter visto todas essas coisas com os seus próprios olhos antes de acreditar.

Os que fortificam seus raciocínios pela ciência vos responderão que os padres da igreja perceberam várias vezes por si próprios já não se realizarem, os milagres de seus tempos. S. Crisóstomo diz expressamente: “Os dons extraordinários do espírito eram dados mesmo aos indignos, porque então a igreja necessitava de milagres; hoje, porém, eles não são concedidos nem mesmo aos dignos, pois a igreja já não os necessita”. Em seguida ele concorda em que não há mais pessoas capazes de ressuscitar mortos, nem mesmo que curem os doentes.

O próprio Sto. Agostinho, apesar do milagre de Gervásio e de Protásio, diz em sua Cidade de Deus: “Por que não se repetem hoje os milagres de outrora?” E ele mesmo explica as razões: “Cur, inquiunt, nunc illa miracula quae praedicatis facta esse none fiunt? Possem quidem, dicere necessaria prius fuisse quam crederet mundus, ad hoc ut crederet mundus”

Objeta-se aos filósofos que Sto. Agostinho, não, obstante tal confissão, fala no entanto de um velho remendão Hipônio que, tendo perdido sua casaca, foi pregar na capela dos vinte mártires; que ao regressar encontrou um peixe em cujo corpo. estava um anel da ouro, e que o cozinheiro que fritou o peixe disse ao remendão:, “Eis o que os vinte mártires vos dão”

A isso respondem os filósofos que nada existe nessa história que contradiga as leis da natureza, que a física não chega a ser abalada pelo fato de um peixe encerrar um anel de ouro e que um cozinheiro tenha dado esse anel a um remendão; que não há nisso nenhum milagre.

Se se lembrar a esses filósofos que segundo S. Jerônimo, em sua Vida do Eremita Paulo, esse eremita teve várias conversações com os sátiros e faunos, que um corvo lhe levava todos os dias, durante trinta anos, a metade de um pão para o seu jantar e um pão inteiro no dia em que Sto. Antônio foi visitá-lo, eles poderão responder ainda que esse grande fato não se choca com a física, que sátiros a faunos podem ter existido e que, em todo caso, se essa história é uma puerilidade, nada tem de comum com os verdadeiros milagres do Salvador e seus apóstolos. Vários bons cristãos combateram a história de S. Simão Estilita, escrita por Teodoreto. Muitos milagres que passam por autênticos na igreja grega foram postos em dúvida por muitos latinos, da mesma forma que vários milagres latinos foram desacreditados pela igreja grega; vieram em seguida os protestantes, que maltrataram os milagres tanto de uma como de outra igreja.

Um sábio jesuíta (56) que pregou durante muito tempo nas Índias lamenta-se de que nem ele nem seus confrades jamais puderam fazer um milagre. Xavier lamenta-se em muitas de suas cartas de não possuir o dom linguístico; diz que entre os japoneses ele é como uma estátua muda. Entretanto, os jesuítas escreveram que ele ressuscitou oito mortos; é muito; mas é também preciso considerar que ele os ressuscitou há cem mil léguas daqui. Ao depois houve gente que pretendeu ser a abolição dos jesuítas na França um milagre muito maior do que os de Xavier e Inácio.

Seja como for, todos os cristãos convêm em que os milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos são de uma verdade incontestável, mas que se pode duvidar de todo ponto de alguns milagres feitos nos últimos tempos e que não têm uma autenticidade positiva.

Desejar-se-ia, por exemplo, para que um milagre fosse bem constatado, que se realizasse na presença da Academia das Ciências de Paris, ou da Sociedade Real de Londres, e da Faculdade de Medicina, assistido por um destacamento do regimento de guardas a fim de conter a multidão, que poderia, com uma indiscrição, impedir a prática do milagre.

Perguntou-se um dia a um filósofo o que diria se visse o Sol deter sua marcha, isto é, se o movimento da Terra ao redor desse astro cessasse, se todos os mortos ressuscitassem e se todas as montanhas se precipitassem ao mar, tudo para provar alguma importante verdade, como por exemplo a graça versátil. “Que diria?” – respondeu o filósofo: – “Tornar-me-ia um maniqueu, diria que existe um princípio que desfaz o que o outro fez”.


 

MOISÉS

Vários sábios julgaram que o Pentateuco não pode ter sido escrito por Moisés. Dizem que da própria Escritura se evidencia que o primeiro exemplar conhecido foi encontrado no tempo do rei Josias, e que esse único exemplar foi apresentado ao rei pelo secretário Safã. Ora, entre Moisés e essa aventura do secretário Safã existem mil cento e sessenta e sete anos pelo cômputo hebraico. Porquanto Deus apareceu a Moisés no espinheiro ardente no ano do mundo dois mil duzentos e treze, e o secretário Safã publicou o Livro da Lei no ano do mundo três mil trezentos e oitenta. Esse livro encontrado sob o reinado de Josias foi desconhecido até o retorno da sujeição a Babilônia; e diz que foi Esdras, inspirado de Deus, que deu à luz todas as Santas Escrituras.

Ora, seja Esdras ou outro quem escreveu esse livro, isso é absolutamente indiferente desde que o livro foi inspirado. Não está dito no Pentateuco que Moisés tenha sido seu autor; é pois permitido atribuí-lo a outro homem qualquer, a quem o espírito divino o terá ditado.

Alguns contraditores acrescentam que nenhum profeta citou os livros do Pentateuco, que não é referido nem nos Salmos nem nos livros atribuídos a Salomão, nem em Jeremias nem em Isaías nem, enfim, em livro canônico algum. Os termos que respondem aos de Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio, não são encontrados em nenhum escrito, quer seja do Novo ou do Velho Testamento

Outros mais ousados formularam as seguintes questões:

1a. – Em que língua Moisés teria escrito, estando num deserto selvagem? Não poderia ter sido senão em egípcio: porque, por esse próprio livro, vê-se que Moisés e todo o seu povo nasceram no Egito. É provável que não falassem outra língua. Os egípcios não se serviam ainda do papiro, os hieróglifos eram gravados sobre mármore ou madeira. Diz-se até que as tábuas dos mandamentos foram gravadas sobre pedra. Portanto teria sido necessário gravar cinco volumes sobre pedras polidas, o que requereria esforços e tempo prodigiosos.

2a. – É possível que num deserto onde o povo judeu não tinha nem sapateiros nem alfaiates, e onde o Deus dos universos foi obrigado a realizar um milagre contínuo para conservar as velhas roupas e sapatos dos judeus, se tenham encontrado homens suficientemente hábeis para gravar os cinco livros do Pentateuco sobre mármore ou madeira? Responder-se-á que, entretanto, foram encontrados operários capazes de fazer um bezerro de ouro, e que em seguida reduziram o ouro em pá; que construíram um tabernáculo; que o adornaram com trinta e quatro colunas de bronze com capitéis de prata; que urdiram e recamaram véus de linho, de jacinto, de púrpura e escarlate; porém esses próprios fatos fortificam a opinião dos contraditores. Respondem não ser possível que, num deserto onde tudo faltava, se houvessem feito obras tão requintadas; que teria sido preciso começar por fazer sapatos e túnicas; que os que carecem do necessário não se podem entregar ao luxo, e que é evidente contradição afirmar a existência de fundidores, gravadores, escultores, tintureiros, recamadores, quando não se tinham nem roupas, nem sandálias, nem pão.

3a. – Se Moisés houvesse escrito o primeiro capítulo do Gênesis, ter-se-ia proibido a todos os jovens a leitura desse primeiro capítulo? Ter-se-ia respeitado tão pouco o legislador? Se fosse Moisés quem disse que Deus pune a iniqüidade dos pais até a quarta geração, teria Ezequiel dito o contrário?

4a – Se Moisés houvesse escrito o Levítico, poderia ter-se contradito no Deuteronômio? O Levítico proíbe casar com as cunhadas, o Deuteronômio o ordena.

5a. – Teria Moisés falado em seu livro a respeito de cidades que ainda não existiam no seu tempo? Teria dito que as cidades que para ele estavam ao oriente do Jordão, ficavam ao ocidente?

6a. – Teria ele registado quarenta e oito cidades levíticas num país onde jamais houve dez cidades, e num deserto por onde errou sempre sem ter uma casa?

7a.- Teria prescrito regras para os reis de Deus quando não só não existiam reis entre esse povo como, pelo contrário, estava ele em estado de completa ruína, sendo provável que nunca os possuísse? Como! Teria Moisés ditado preceitos para a conduta de reis que não vieram senão quinhentos anos depois dele, sem nada deixar dito aos juizes e pontífices que o sucederam? Esta reflexão não induz a crer que o Pentateuco foi composto nos tempos dos reis e que as cerimônias instituídas por Moisés apenas foram uma tradição?

8a. – Como pode ter ele dito aos judeus: “Eu vos fiz sair em número de 600 mil combatentes da terra do Egito, sob a proteção de vosso Deus?” Não lhe teriam os judeus respondido: “É preciso que tenhais sido bem tímido para não nos atirar contra o faraó do Egito; ele não nos poderia opor um exército de duzentos mil homens. Jamais o Egito teve tal número de soldados em pé de guerra; nós os teríamos vencido facilmente, seríamos os donos do seu país. Como o Deus que vos fala assassinou para nos agradar todos os primogênitos do Egito, e, se houver nesse país trezentas mil famílias, isto faz trezentos mil homens mortos numa noite, a fim de nos vingar; e vós não imitastes o vosso Deus! E vós não nos destes esse país fértil que ninguém poderia defender! Vós nos fizestes sair do Egito de mãos a abanar, para fazer que morrêssemos nos desertos, entre os precipícios e as montanhas! Teríeis podido, ao menos, conduzir-nos diretamente a essa terra de Canaã sobre a qual não temos direito algum, mas que nos prometestes e na qual ainda não pudemos entrar.

“Era natural que da terra de Gessen marchássemos para Tiro e Sidon, ao longo do Mediterrâneo; mas vós nos fizestes passar quase todo o istmo de Suez; vós nos fizestes penetrar no Egito, quase passar Menfis, e nós nos encontramos em Beel Sefon, nas margens do Mar Vermelho, voltando as costas à terra de Canaã, tendo caminhado 80 léguas nesse Egito que desejávamos evitar, e enfim prestes a perecer entre o mar e o exército do faraó!

“Se houvésseis desejado livrar-nos dos nossos inimigos não teríeis tomado outra rota e outras medidas? Deus nos salvou com um milagre: o mar foi aberto para que passássemos; mas, após um tal favor, seria preciso deixar-nos morrer à fome e à fadiga nos horríveis desertos de Etam, de Gades Barne, de Mara, de Elim, de Orebe e de Sinai? Todos os nossos pais pereceram nessas solidões atrozes, e vós vindes dizer, depois de quarenta anos, que Deus teve um cuidado particular com nossos pais!”?

Eis o que esses judeus murmuradores, esses filhos injustos dos judeus vagabundos mortos nos desertos poderiam ter dito a Moisés se ele lhes houvesse lido o Êxodo e o Gênesis. E o que não deveriam eles dizer e fazer a respeito do bezerro de ouro! “Como! Ousais dizer-nos que vosso irmão fez um bezerro de ouro para nossos pais quando estáveis com Deus na montanha, vós que ora nos dizeis ter falado com Deus face a face e ora que apenas o vistes pelas costas! Mas, enfim, vós estivestes com esse Deus e vosso irmão funde num só dia um bezerro de ouro e no-lo dá para que o adoremos; e, em lugar de punir o vosso indigno irmão, fazeis dele nosso pontífice e ordenais a vossos levitas degolar vinte mil homens do vosso povo! Te-lo-iam sofrido nossos pais? Dizeis-nos que, não contente com essa carnificina incrível, fizestes ainda massacrar vinte e quatro mil dos vossos pobres acompanhantes porque um deles se deitara com uma madianita, quando vós mesmo desposastes uma madianita; e acrescentais que sois o mais doce de todos os homens! Ainda algumas ações dessa doçura e ninguém restaria para contar a história.

“Não, se fôsseis capaz de uma tal crueldade, se a tivésseis podido exercer, seríeis o mais bárbaro de todos os homens, e todos os suplícios seriam insuficientes para expiar um tão estranho crime.”

São essas, pouco mais ou menos, as objeções feitas pelos sábios àqueles que julgam Moisés autor do Pentateuco. Mas responde-se-lhes que os caminhos de Deus não são os dos homens; quer Deus experimentou, conduziu e abandonou o seu povo por uma sabedoria que nos é desconhecida; que os próprios judeus durante dois mil anos julgaram haver sido Moisés o autor desses livros; que a igreja, que sucedeu à sinagoga e que é infalível como ela, decidiu esse ponto de controvérsia, e que os sábios devem calar-se quando a igreja fala.


 

PÁTRIA

Pátria é um conjunto de várias famílias; e, como se sustenta comumente a própria família por amor próprio, quando não se tem um interesse contrário pelo mesmo amor próprio se sustenta sua cidade ou sua aldeia que se chama sua pátria.

Quanto mais essa pátria se torna grande menos é amada, porque o amor repartido se debilita e é impossível amar enternecidamente uma família muito numerosa, que apenas se conhece. Aquele que se queima na ambição de ser edil, tribuno, pretor, cônsul, ditador, grita que ama a sua pátria, e não ama senão a si próprio. Cada qual deseja estar seguro de poder deitar-se, de ter sua cama própria, sem que outro homem se arrogue o poder de o mandar deitar-se alhures; cada um deseja estar seguro de sua fortuna e de sua vida. Todos formam assim os mesmos desejos, e então o interesse particular se transforma em interesse geral: não se vota senão por si próprio quando se vota pela república.

É impossível existir sobre a terra um estado que não seja governado a princípio como república: é a marcha natural da natureza humana. Algumas famílias se reúnem, de início, contra os ursos e contra os lobos; a que tem sementes de trigo fornece-as, em troca, àquela que apenas tem lenha.

Quando descobrimos a América encontramos todas as tribos divididas em repúblicas; apenas existiam dois remos em toda essa parte do mundo. De milhares de nações somente duas encontramos subjugadas.

Foi assim, também, no Velho Mundo; tudo era república na Europa antes dos régulos de Etrúria e Roma. Encontramos ainda hoje repúblicas na África, – Trípoli, Tunis, Argélia, na nossa parte setentrional, são repúblicas de bandidos. Os hotentotes do meio dia vivem ainda como se diz que viveram nos primeiros anos do mundo, livres, iguais entre eles, sem senhores, sem submissões, sem dinheiro e quase sem necessidades.

A carne de seus carneiros nutre-os, sua pele os veste, choças de madeira e de pedra são seus refúgios; são os mais grosseiros de todos os homens, mas não o sentem, vivem e morrem mais docemente do que nós.

Restam na nossa Europa oito repúblicas sem monarcas: Veneza, Holanda, Suíça, Genebra, Lucas, Ragusa, Gênova e São Marinho(57). Pode-se considerar a Polônia, a Suécia, a Inglaterra como repúblicas sob um rei; mas a Polônia é a única que usa o seu nome.

Pois bem, o que será melhor – que vossa pátria seja um estado monárquico ou um estado republicano? Há quatro mil anos se discute essa questão. Perguntai a solução aos ricos, eles preferem a aristocracia; interrogai o povo, ele quer a democracia: apenas os reis preferem a realeza. Como, portanto, é possível que quase toda a terra seja governada por monarcas? Perguntai-o aos ratos que propuseram pendurar uma campainha no pescoço do gato (58). Mas, na verdade, a verdadeira razão é, como se disse, que os homens são mui raramente dignos de se governar por si próprios.

É deplorável que quase sempre para ser bom patriota deva-se ser inimigo do resto dos homens. O velho Catão, esse ótimo cidadão, dizia sempre no senado: “Tal é minha opinião, e que se arruine Cartago”. Ser bom patriota é desejar que sua cidade se enriqueça pelo comércio e seja poderosa pelas armas. É claro que um país não pode ganhar sem que outro perca e que não pode vencer sem fazer desgraçados.

Tal é, pois, a condição humana, que desejar a grandeza do seu país é desejar mal aos seus vizinhos. Aquele que pretendesse que a sua pátria não fosse jamais nem menor nem maior, nem mais rica nem mais pobre, seria o cidadão do universo.


 

PEDRO

Em italiano Piero ou Pietro; em espanhol Pedro; em latim Petrus; em grego Petros; em hebraico Cepha. Por que os sucessores de Pedro tiveram tantos poderes no Ocidente e nenhum no Oriente? É o mesmo que perguntar por que os bispos de Wurtzburg e de Salzburg se atribuíram direitos regalianos nos tempos da anarquia, de passo que os bispos gregos sempre foram súditos. O tempo, a ocasião, a ambição de uns e a fraqueza de outros tudo fizeram e farão neste mundo.

A essa anarquia ajuntou-se a opinião e a opinião é a rainha dos homens. Não que na realidade tenham uma opinião bem determinada, mas palavras fazem-lhe as vezes.

Conta-se no Evangelho que Jesus disse a Pedro: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus.” Os partidários do bispo de Roma sustentaram, pelo século XI, que quem dá o mais dá o menos; que os céus rodeiam a terra e que Pedro, tendo as chaves do continente, tinha também as chaves do conteúdo. Se se entender por céus todas as estrelas e todos os planetas, é evidente que, segundo Tomásio, as chaves dadas a Simão Barjone, cognominado Pedro, eram um passaporte. Se se entender por céus as nuvens, a atmosfera, o éter, o espaço em que rolam os planetas, não existem serralheiros, segundo Meúrsio, capazes de fazer uma chave para essas portas.

As chaves na Palestina eram uma cavilha de madeira que se ligava a uma correia. Jesus disse a Barjone: – “O que ligares na terra será ligado nos céus” – Os teólogos do papa concluíram que os papas tinham recebido o direito de ligar e desligar os povos do juramento de fidelidade feito aos seus reis e de dispor ao seu bel prazer de todos os reinos. É concluir magnificamente. As comunas, nos estados gerais da França, em 1302 dizem em seu requerimento ao rei que “Bonifácio VIII era um b... que pensava que Deus prendia e ligava ao céu o que Bonifácio ligava na terra”. Um famoso luterano da Alemanha (segundo penso, Melanchton) custava um pouco a digerir que Jesus houvesse dito a Simão Barjone, Cefa ou Cefas: “Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei o meu templo, minha igreja”. Não podia conceber que Deus tivesse empregado semelhante jogo de palavras, uma agudeza tão extraordinária, e que a potência do papa fosse baseada num trocadilho.

Pedro passou por ter sido bispo de Roma; sabe-se porém que nesse tempo e muito depois não houve bispo algum particular. A sociedade cristã só tomou forma em fins do segundo século.

Pode ser que Pedro tenha feito a viagem a Roma; pode ser, também, que tenha sido posto na cruz, com a cabeça para baixo, não obstante não ser esse o costume; não há, porém, prova alguma de tudo isso. Temos uma carta firmada por ele, na qual diz estar em Babilônia: alguns canonistas judiciosos pretenderam que por Babilônia se deveria entender Roma. Assim, supondo-se que ele a tenha datado de Roma, poder-se-ia concluir que a carta foi escrita em Babilônia. Durante muito tempo tiraram-se conclusões iguais e é assim que o mundo foi governado.

Em Roma pagou-se regiamente a um santo homem por uma simônia; perguntaram-lhe se acreditava em que Simão Pedro estivera no país; respondeu: “Não vejo que Pedro aí tenha estado, mas Simão, tenho a certeza” (59).

Quanto à pessoa de Pedro, é preciso levar em consideração que Paulo não é o único que se escandalizou pela sua conduta; foi contestado face a face, ele e seus sucessores. Esse Paulo reprovava-lhe acremente o comer carnes. proibidas, isto é, porco, presunto, lebre, enguia, ixião e Pedro defendeu-se dizendo que vira o céu abrir-se na sexta hora proximamente, e uma grande toalha que descia dos quatro cantos do céu, a qual estava repleta de enguias, de quadrúpedes e pássaros, e que a voz de um anjo gritara: “Matai e comei”. É, segundo as aparências, essa mesma voz que gritou a tantos pontífices: “Matai tudo e comei a substância do povo”, diz Wollaston.

Casaubon não podia aprovar a maneira por que Pedro tratou o bom Ananias e Safira, sua mulher. Com que direito, diz Casaubon, um judeu escravo dos romanos pende ordenar ou admitir que todos os que acreditassem em Jesus deveriam vender suas herdades e trazer o resultado de sua venda a seus pés? Se algum anabatista, em Londres ordenasse a mesma coisa a seus irmãos, não seria preso como sedutor sedicioso, como ladrão que não se deixaria de enviar a Tyburn? Não é horrível fazer Ananias morrer porque, tendo vendido seus fundos e dado o dinheiro a Pedro, reteve para si e sua mulher alguns escudos a fim de não morrer de fome? Apenas Ananias foi morto, sua mulher chegou. Pedro, em vez de adverti-la caridosamente de que acabava de matar seu marido de apoplexia por haver guardado alguns óbulos e de lha recomendar que tomasse cuidado consigo própria,. deixa-a cair numa armadilha. Pergunta-lhe se seu marido deu todo seu dinheiro aos santos. A boa mulher responde que sim e recebe morte instantânea. Isso é duro.

Conríngio pergunta por que Pedro, que matou assim esses que lhe deram todos os seus bens, não mandou antes matar todos os doutores que fizeram Jesus Cristo morrer e que o fustigaram a ele próprio mais de uma vez? Ó Pedro! fazeis morrer dois cristãos que vos deram sua esmola e deixais viver aqueles que crucificaram vosso Deus!

Por muito que pareça que Conríngio não estava em país de inquisição ao fazer esses quesitos ousados, Erasmo, a propósito de Pedro, acentuou uma coisa bem singular: que o chefe da religião cristã começou seu apostolado por renegar Jesus Cristo, e que o primeiro pontífice dos judeus começara seu ministério por construir um bezerro de ouro e adorá-lo.

Seja como for, Pedro nos é descrito como um pobre que catequizava pobres. Ele se parece com esses fundadores de ordens que viviam na indigência e cujos sucessores se tornaram grandes senhores.

O papa, sucessor de Pedro, ora ganhou, ora perdeu; mas ainda lhe restam cinqüenta milhões de homens mais ou menos sobre a terra, submissos em muitos pontos às suas leis, além de seus súdito imediatos.

Ter um senhor a trezentas ou quatrocentas léguas da própria casa; esperar para pensar que esse homem tenha parecido pensar; não ousar julgar em último recurso um processo entre alguns de seus concidadãos atendendo às comissários nomeados por esse estrangeiro; não ousar tomar posse dos campos e das vinhas que se obtiveram do próprio rei sem pagar uma soma considerável a esse senhor estrangeiro; violar as leis de seu país que proíbem desposar uma sobrinha, e casar com ela legitimamente pagando a esse senhor estrangeiro uma soma ainda mais considerável; não ousar cultivar seu campo no dia em que esse estrangeiro quer que se celebre a memória de um desconhecido que ele instalou no céu por sua própria conta; é isso mais ou menos o que significa admitir um papa; são essas as liberdades da igreja galicana.

Há alguns outros povos que levam ainda mais longe sua submissão. Vimos em nossos dias um soberano (60) solicitar ao papa a permissão de fazer julgar pelo seu real tribunal alguns monges acusados de parricídio, não obter tal permissão e não ousar cumprir o julgamento.

Sabe-se perfeitamente que outrora os direitos dos papas iam mais longe; estavam colocados muito acima dos deuses da antigüidade; pois esses deuses passavam por dispor dos impérios, e os papas dispunham deles de fato.

Disse Esturbino que se pode perdoar àqueles que duvidam da divindade e da infalibilidade do papa quando se reflete:

Que quarenta cismas profanaram o púlpito de S. Pedro e vinte e sete o ensangüentaram;

Que Estevão VII, filho de um padre, desenterrou o corpo de Formoso, seu predecessor, e fez cortar a cabeça do cadáver;

Que Sérgio III, réu convicto de assassinato, teve um filho de Marózia, o qual herdou do papado;

Que João X, amante de Teodora, foi estrangulado em seu leito;

Que João XI, filho de Sérgio III, foi célebre pela sua devassidão;

Que João XII foi assassinado em casa da amante;

Que Benedito IX, comprou e revendeu o pontificado;

Que Gregório VII foi o autor de quinhentos anos de guerras civis sustentadas por seus sucessores;

Que enfim, entre tantos papas ambiciosos, sanguinários e devassos, houve um, Alexandre VI, cujo nome é pronunciado com o mesmo horror que os de Nero e Calígula.

É uma prova, diz-se, da divindade de seus caracteres, o terem subsistido a tantos crimes; mas se os califas tivessem tido uma conduta ainda mais afrontosa, teriam então sido ainda mais divinos. É assim que arrazoa Dérmio; porém os jesuítas lhe responderam.


 

PRECONCEITOS

O preconceito é uma opinião sem julgamento. Assim em toda a terra inspiram-se às crianças todas as opiniões que se desejam antes que elas as possam julgar.

Existem preconceitos universais, necessários, e que representam a própria virtude. Por toda parte ensina-se às crianças reconhecer um Deus remunerador e vingador; a respeitar, a amar seu pai e sua mãe; a considerar o roubo como um crime, a mentira interessada como um vício, antes que elas possam adivinhar o que vem a ser um vício e uma virtude.

Há pois ótimos preconceitos: são os que o julgamento ratifica quando se raciocina.

Sentimento não é mero preconceito, é alguma coisa muito mais forte. Uma mãe não ama a seu filho porque se lhe disse que o deve amar; ela o quer extremosamente mesmo contra sua vontade. Não é absolutamente por preconceito que correis em socorro de uma criança desconhecida prestes a cair num precipício ou a ser devorada por uma fera.

É porém por preconceito que respeitareis um homem revestido de certos hábitos, andando gravemente, falando da mesma forma. Vossos pais vos disseram que devíeis inclinar-vos diante desse homem: vós o respeitais antes de saber se merece vossos respeitos; cresceis em idade e conhecimentos – percebeis que esse homem é um charlatão empedernido de orgulho, de interesse e artifício; desprezais o que reverenciáveis, e o preconceito cede lugar ao julgamento. Acreditastes por preconceito nas fábulas com que embalaram vossa infância; disseram-vos que os titãs moveram guerra aos deuses e que Vênus foi amante de Adónis; aos doze anos tomastes tais fábulas por verdades, agora, aos vinte anos, como alegorias engenhosas.

Examinemos em poucas palavras as diferentes espécies de preconceitos, a fim de pôr nossos negócios em ordem. Seremos, talvez, como aqueles que, no tempo do sistema de Law, perceberam que tinham calculado riquezas imaginárias.

Preconceitos dos sentidos

Não é curioso que nossos olhos nos enganem sempre, mesmo quando temos a melhor vista do mundo, e que ao contrário nossos ouvidos não nos enganem nunca? Se vosso ouvido bem conformado ouvir: – “Sois bela, eu vos amo,” estais bem certa de que não vos disseram – “Odeio-vos, sois feia”. Mas vedes um espelho liso: está demonstrado que vos enganais, é uma superfície muito desigual. Vedes o Sol com mais ou menos dois pés de diâmetro: está demonstrado que ele é um milhão de vezes maior do que a Terra.

Parece que Deus tenha posto a verdade em vossos ouvidos e o erro em vossos olhos; estudai porém a ótica, vereis que Deus não vos enganou de forma alguma, e que é impossível que os objetos vos pareçam diferentes do que os podeis ver no estado presente das coisas.

Preconceitos físicos

O Sol se ergue, a Lua também, a Terra está imóvel: – eis aí preconceitos físicos naturais. Mas que as lagostas sejam boas para o sangue, pois estando cozidas são vermelhas como ele; que as enguias curem a paralisia, pois se agitam; que a Lua influa nas nossas doenças, pois um dia observou-se que um doente teve um aumento de febre durante o curso da Lua: essas idéias, e milhares de outras, são erros de velhos charlatães, que julgaram sem raciocinar e que, enganando-se, enganaram os outros.

Preconceitos históricos

A maioria das histórias foram cridas sem exame, e essa crença é um preconceito. Fábio Pictor relata que, muitos séculos antes dele, uma vestal da cidade de Alba, indo buscar água com o seu cântaro, foi violada e deu à luz a Rômulo e Remo, que eles foram nutridos por uma loba, etc. O povo romano acreditou nessa fábula; não perdeu tempo em examinar se naqueles tempos existiam vestais no Lácio, se era possível que a filha de um rei saísse de seu convento com seu cântaro, se era provável que uma loba amamentasse dois meninos em vez de os comer como fazem todos os lobos. Estabelece-se então o preconceito.

Um monge escreveu que Clovis, estando num grande perigo na batalha de Tolbiac, fez voto de se tornar cristão se conseguisse escapar; é porém natural que uma pessoa se dirija a um deus estrangeiro em tal ocasião? Não é precisamente num momento desses que a religião na qual se nasceu age mais fortemente? Qual é o cristão que, numa batalha contra os turcos, não se dirigirá antes à Santa Virgem que a Mafoma? Acrescenta-se que um pássaro levou a santa ampola em seu bico a fim de ungir Clovis e que um anjo trouxe a auriflâmula para o conduzir. O preconceito crê em todas as historietas desse gênero. Os que conhecem a natureza humana sabem que o usurpador Clovis e o usurpador Rolão ou Rol se tornaram cristãos para governar mais seguramente a cristãos, como os usurpadores turcos se tornaram muçulmanos para governar mais seguramente os muçulmanos.

Preconceitos religiosos

Se vossa sina vos contou que Ceres preside ao trigo ou que Vichnú e Xaca se transformaram em homens várias vezes, ou que Samonocodom veio destruir uma floresta, ou que Odin vos espera em sua sala lá na Jutlândia, ou que Mafoma ou outro qualquer fez uma viagem ao céu; enfim se vosso preceptor vem em seguida refundar em vosso cérebro o que vossa ama aí gravou, tendes com que vos divertir para o resto da vida. Vosso julgamento quer elevar-se contra tais preconceitos; vossos vizinhos, e sobretudo vossas vizinhas, berram contra a impiedade, e vos assustam; vosso dervís, temendo ver diminuídas as suas rendas, denuncia-vos ao cadi, e esse cadi vos manda empalar se o puder, porquanto o seu desejo é mandar sobre idiotas, e crê que os idiotas obedecem melhor do que os outros. E esse estado de coisas durará até que vossos vizinhos e o dervís e o cadi comecem a compreender que a cretinice não serve para coisa alguma e que a perseguição é abominável.


 

RELIGIÃO

Primeira questão

O bispo de Glocester, Warburton, autor de uma das mais sábias obras que já se escreveram, assim se exprime, página 8, tomo 1o.:

“Uma religião, uma sociedade que não está fundada sobre a crença numa outra vida deve ser sustida por uma providência extraordinária. O judaísmo não está fundado sobre a crença numa outra vida; portanto o judaísmo foi sustido por uma providência extraordinária”.

Vários teólogos se ergueram contra ele; e como se retorquem todos os argumentos, retorquiram o seu; disseram-lhe:

“Toda religião que não estiver baseada sobre o dogma da imortalidade da alma e sobre as penas e recompensas eternas é necessariamente falsa; ora, o judaísmo não conheceu esses dogmas; portanto o judaísmo, longe de ser sustido pela Providência, era, segundo vossos princípios, uma religião falsa e bárbara que atacava a Providência”.

Esse bispo teve alguns adversários que lhe afirmaram que a imortalidade da alma era conhecida entre os judeus, nos próprios tempos de Moisés; ele lhes provou porém mui evidentemente que nem o Decálogo, nem o Levítico, nem o Deuteronômio tinham uma única palavra a respeito dessa crença, e que é ridículo pretender turvar e corromper algumas passagens dos outros livros para concluir daí uma verdade que não está absolutamente anunciada no livro da lei.

O senhor bispo, tendo escrito quatro volumes para demonstrar que a lei judaica não propunha nem penas nem recompensas depois da morte, jamais pôde responder a seus adversários de maneira satisfatória. Estes lhe diziam: “Ou Moisés conhecia esse dogma e então enganou os judeus não o manifestando; ou ignorava-o, e nesse caso não tinha conhecimentos suficientes para formar uma boa religião. Com efeito, se a religião fosse boa, por que teria sido abolida? Uma religião verdadeira deve ser para todos os tempos e todos os lugares; ela deverá ser como a luz do Sol que ilumina todos os povos e todas as gerações”.

Esse prelado, por esclarecido que fosse, teve muito trabalho em se livrar de todas essas difíceis proposições; porém qual o sistema isento de dificuldades!

Segunda questão

Outro sábio muito mais filosófico, que é um dos mais profundos de nossos dias, apresenta fortes razões para provar que o politeísmo foi a primeira religião dos homens, e que se começou por crer em vários deuses antes que a razão fosse suficientemente esclarecida para não reconhecer senão um Ente Supremo.

Ouso crer, ao contrário, que se principiou por reconhecer um único Deus, e que em seguida a fraqueza humana adotou vários deles; e eis como concebo a coisa:

É indubitável haverem existido burgos antes que se construíssem grandes cidades, e que todos os homens foram divididos em repúblicas antes de ser reunidos em grandes impérios.

É bem natural que um burgo atemorizado pelo trovão, afligido pela perda de suas colheitas, maltratado pelo burgo vizinho, sentindo todos os dias a própria fraqueza, pressentindo por toda parte um poder invisível, tenha terminado por dizer: “Existe algum ser acima de nós que nos causa bens e males”.

Parece-me impossível que tenha dito: “Há dois poderes”. Por que vários? Principia-se sempre pelo simples, em seguida vem o composto e amiúde, enfim, volta-se ao simples mercê de luzes superiores. Tal é a marcha do espírito humano.

Qual é esse ente que se teria invocado a princípio? Seria o Sol? Seria a Lua? Não creio. Examinemos o que se passa entre as crianças; representam mais ou menos o que são os homens ignorantes. Não percebem a beleza nem a utilidade do astro que anima a natureza, nem os socorros que a Lua nos presta, nem as variações regulares do seu curso; não o pensam, estão muito acostumadas a todas essas coisas. Não se adora, não se crê senão aquilo que se teme; todas as crianças olham para o céu com indiferença; mas estruja o trovão e elas tremerão, irão se esconder.

Sem dúvida, os primeiros homens agiram de forma idêntica. Apenas umas espécies de filósofos que assinalaram o curso dos astros ensinaram também a admiração e adoração; os cultivadores simples e sem luz alguma não conheciam o bastante para perfilhar tão nobre erro.

Portanto, uma aldeia ter-se-á limitado a dizer: “Há uma potência que troveja, que atira neve sobre nós, que faz morrer nossos filhos: acalmemo-la; mas como? Vemos que acalmamos com pequenos presentes a cólera das pessoas irritadas: façamos pois pequenos presentes a essa potência. É também preciso dar-lhe um nome. O primeiro que se oferece é o de Chefe, Dono, Senhor; essa potência é pois chamada Senhor. É provavelmente a razão pela qual os primeiros egípcios chamaram ao seu deus Knef; os sírios, Adonai; os povos vizinhos, Baal ou Bel, ou Melch, ou Moloch; os citas, Papeu: palavras que significam Senhor, Mestre.

Foi assim que se encontrou quase toda a América dividida numa multidão de pequenas populações, tendo todas seu deus protetor. Os próprios mexicanos, os peruvianos, que eram grandes nações, tinham apenas um deus: uns adoravam Manco Capaque, outros o deus da guerra. Os mexicanos davam ao seu deus guerreiro o nome de Vitzlipufzli, assim como os hebreus haviam cognominado o seu senhor de Sabaoth.

Não é por uma razão superior e cultivada que todos os povos começaram a reconhecer uma única divindade. Se tivessem sido filósofos, teriam adorado o deus de toda a natureza, e não o deus de uma aldeia; teriam examinado essas relações infinitas de todos os seres, que provam um ente criador e conservador; porém eles não examinaram nada, eles sentiram. Aí está o progresso de nosso frágil entendimento; cada burgo sentiu sua fraqueza e a necessidade de um forte protetor. Imaginou esse ser tutelar e terrível residindo na floresta vizinha, ou na montanha, ou numa nuvem. Apenas imaginou um só deus, pois o burgo não tinha senão um chefe na guerra. Imaginou-o corporal, porque era impossível figurá-lo de outra forma. Não podia crer que o burgo vizinho não tivesse também o seu deus. Eis por que Jefté disse aos habitantes de Moabe: “Possuís legitimamente o que vosso deus Camos vos fez conquistar; deveis deixar-nos gozar dos bens que nosso deus nos concedeu por suas vitórias” (61).

Tais palavras ditas por um estrangeiro a outros estrangeiros são notáveis. Os judeus e os moabitas tinham desapossado os naturais do país; uns e outros apenas tinham o direito da força, e uns disseram aos outros: – “Vosso Deus vos protegeu em vossa usurpação, tolerai agora que nosso Deus nos proteja na nossa”.

Jeremias e Amos perguntaram um ao outro “que razão teve o deus Melcom para se apoderar do país de Gade”. Parece evidente, por essas passagens, que a antiguidade atribuía a cada país um Deus protetor. Encontram-se ainda hoje vestígios dessa teologia em Homero.

É bem natural que havendo-se aquecido a imaginação dos homens e tendo seu espírito adquirido conhecimentos confusos, tenham eles multiplicado seus deuses, e estipulado protetores para os elementos, mares, florestas, fontes, campos. Quanto mais examinaram os astros, mais foram feridos pela admiração. Poder-se-á não adorar o Sol, quando se adora a divindade de um ribeiro? Desde que o primeiro passo foi dado, a terra em breve foi coberta de deuses; e enfim desce-se dos astros aos gatos e às cebolas.

Entretanto é preciso que a razão se aperfeiçoe; o tempo forma, enfim, os filósofos que percebem que nem as cebolas, nem os gatos, nem mesmo os astros concertaram a ordem da natureza. Todos esses filósofos babilônicos, persas, egípcios, citas, gregos e romanos admitem um Deus supremo remunerador e vingador.

Eles não o dizem a princípio ao povo: pois quem falasse mal das cebolas e dos gatos diante das velhas e dos padres teria sido lapidado; quem quer que reprochasse aos egípcios o fato de comerem os seus deuses, acabaria sendo ele próprio devorado, como, de feito, Juvenal nos relata que um egípcio foi morto e comido completamente cru numa disputa de controvérsia (62).

Mas que se fez? Orfeu e outros estabeleceram mistérios, que os iniciados prometeram mediante juramentos execráveis nunca revelar, e o principal desses mistérios é a adoração de um único Deus. Essa grande verdade penetra metade da terra; o número dos iniciados torna-se imenso. É verdade que a antiga religião sempre subsistiu; mas, como não é contrária ao dogma da unidade de Deus, deixa-se que subsista. E por que aboli-la? Os romanos reconhecem o Deus optimus maximus; os gregos têm o seu Zeus, seu Deus supremo. Todas as outras divindades são apenas intermediárias: imperadores e reis são instalados no posto de deuses, isto é, de bem-aventurados; é porém certo que Cláudio, Otávio, Tibério e Calígula não são considerados como criadores do céu e da terra.

Numa palavra, parece provado que, no tempo de Augusto, todos os que tivessem uma religião reconheciam um Deus superior, eterno, e várias ordens de deuses secundários, cujo culto foi chamado mais tarde idolatria.

Os judeus jamais foram idólatras: porque, não obstante terem admitido alguns malakhim, anjos, seres celestes de uma categoria inferior, sua lei não ordenava de forma alguma que tais divindades secundárias tivessem culto entre eles. Adoravam os anjos, é verdade, isto é, prostravam-se diante deles quando bem entendiam; mas, como isto não sucedia com freqüência, não havia cerimonial nem culto estabelecido para eles. Os querubins da arca não recebiam homenagem alguma. Era costume adorarem os judeus abertamente um único Deus, assim como a multidão inumerável dos iniciados o adoravam secretamente em seus mistérios.

Terceira questão

Foi ao tempo em que o culto de um Deus supremo estava universalmente estabelecido na opinião de todos os sábios, na Ásia, na Europa e na África, que a religião cristã nasceu e se desenvolveu.

O platonismo auxiliou bastante a compreensão de tais dogmas. O Logos, que para Platão significava a sapiência, a razão do Ser Supremo, tornou-se em nossos tempos o Verbo e uma segunda pessoa de Deus. Uma metafísica profunda e acima da inteligência humana foi um santuário inacessível no qual se desenvolveu a religião.

Não procuremos repetir aqui como Maria foi declarada mãe de Deus, como se estabeleceu a consubstancialidade do Pai e do Verbo e a processão do Pneuma, órgão divino do divino Logos, duas naturezas e duas vontades resultantes da hipóstase, e enfim a manducação superior, a alma nutrida tal como o corpo dos membros e do sangue do Homem-Deus adorado e comido sob a forma do pão, presente aos olhos, sensível ao paladar, e contudo anulado. Todos os mistérios foram sublimes.

Começou-se, desde o segundo século, por esconjurar os demônios em nome de Jesus; depois se expulsavam em nome de Jeová ou Ihaho: pois conta S. Mateus que tendo os inimigos de Jesus dito que ele esconjurava os demônios em nome do príncipe dos demônios, ele lhes respondeu: “Se é por Belzebú que eu esconjuro os demônios, em nome de quem o fazem vossos filhos?”

Não se sabe em que tempo os judeus reconheceram por príncipe dos demônios a Belzebú, que era um Deus estrangeiro; sabe-se porém (e é José quem no-lo diz) que havia em Jerusalém exorcistas especiais para esconjurar os demônios dos corpos dos possessos, isto é, dos homens atacados de doenças singulares, as quais se atribuíam então em grande parte da terra a gênios malfeitores.

Exconjuravam-se pois os demônios com a verdadeira pronunciação de Jeová hoje perdida, e com outras cerimônias esquecidas hoje em dia.

Esse exorcismo por Jeová ou outros nomes de Deus estava ainda em uso nos primeiros séculos da igreja. Orígenes, disputando contra Celso, diz-lhe, no. 262: “Se, invocando Deus ou jurando em seu nome, chamam-no o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, alguma coisa há de haver nesses nomes, cuja natureza e força são tais que os demônios se submetem a quem os pronuncia; mas se o chamamos com outro qualquer nome, como Deus do mar ardente, suplantador, esses nomes não terão virtude. O nome de Israel traduzido em grego nada operará; pronunciai-o porém em hebreu, com os outros termos necessários, e imediatamente operareis a conjuração”.

O próprio Orígenes, no número 19, diz estas palavras notáveis: “Há nomes que têm uma virtude natural, como os que empregam os sábios entre os egípcios, os magos da Pérsia, os brâmanes da Índia. O que chamamos magia não é uma arte vã e quimérica, tal como o pretendem os estóicos e os epicuristas: nem o nome de Sabaote nem o de Adonai foram feitos para seres criados; mas pertencem a uma teologia misteriosa que se liga ao Criador; de lá vem a virtude desses nomes quando coordenados e pronunciados segundo as regras, etc.”.

Assim falando Orígenes não apresenta seu sentimento particular: exprime a opinião universal. Todas as religiões então conhecidas admitiam uma espécie de magia; distinguia-se a magia celeste e a magia infernal, a necromancia e a teurgia: tudo aí era prodígio, adivinhação, oráculo. Os persas não negavam os milagres dos egípcios, nem os egípcios os dos persas; Deus permitiu que os primeiros cristãos fossem persuadidos dos oráculos atribuídos às sibilas, e lhes deixou ainda alguns erros pouco importantes, que não corrompiam o fundamento da religião.

Coisa grandemente notável é que os cristãos dos dois primeiros séculos votavam o maior horror aos templos, aos altares e às imagens. É o que diz Orígenes, no. 374. Tudo mudou depois com a disciplina, quando a igreja recebeu uma forma constante.

Quarta questão

Desde que uma religião é legalmente estabelecida num estado, todos os tribunais se ocupam imediatamente de impedir que se modifiquem a maioria dos atos praticados nessa religião antes de ter sido publicamente acatada. Os fundadores reuniam-se secretamente apesar dos magistrados; hoje não se permitem as assembléias públicas senão sob os olhos da lei, e todas as associações que se afastarem dela são proibidas. A antiga máxima era que é melhor obedecer a Deus do que seguir as leis do estado. Apenas se ouvia falar em obsessões e possessões, o diabo andava à solta na terra: já hoje o diabo não sai de sua morada. Os prodígios, as profecias, eram necessárias então: já não se admitem. Um homem que profetizasse calamidades nas praças públicas seria metido num manicômio. Os fundadores recebiam secretamente dinheiro dos fiéis; um homem que recolhesse hoje dinheiro para dele dispor sem ser autorizado pela lei teria que responder perante a justiça. Assim, estão completamente fora de uso todos os caibros que serviram para construir o edifício.

Quinta questão

Depois da nossa santa religião, que sem dúvida alguma é a única boa, qual será a menos má?

Não seria a mais simples? Não seria aquela que ensinasse muita moral e pouquíssimos dogmas? a que tendesse a tornar os homens justos sem os tornar absurdos? a que não ordenasse absolutamente crer em coisas impossíveis, contraditórias, injuriosas à Deidade e perniciosas ao gênero humano, e que não ousasse ameaçar com as penas eternas os que tivessem o senso comum? Não seria aquela que não sustentasse sua crença por intermédio de tribunais nem inundasse a terra de sangue por causa de sofismas ininteligíveis? aquela que de um equívoco, um jogo de palavras e duas ou três cartas sobrepostas não fizesse um soberano, e um Deus de um padre freqüentemente incestuoso, homicida e envenenador? a que não submetesse os reis a esse padre? a que não ensinasse senão a adoração de um Deus, a justiça, a tolerância e a humanidade?

Sexta questão

Diz-se que a religião dos gentios era absurda em muitos pontos, contraditória, perniciosa; mas não se lhe teriam imputado maiores males do que na realidade praticou, e mais tolices do que pregou?

“Pois em ver Júpiter mudado em touro, – serpente, mono ou outra coisa qualquer, – nada de belo encontro – nem me admirará se suceder”. (Prólogo de Anfítrion).

Sem dúvida isto é muito impertinente; mostrem-me, porém, em toda a antigüidade um templo dedicado a Leda deitando com um mono ou com um touro. Houve em Atenas ou Roma algum sermão para encorajar as moças a fazer crianças com os macacos do seu pátio? As fábulas recolhidas e ornadas por Ovídio constituem a religião? Não se parecem elas à nossa Lenda Dourada, à nossa Flor dos Santos? Se algum brâmane ou dervis nos viesse objetar a história de Santa Maria egipciana, a qual, não tendo com que pagar aos marinheiros que a conduziram ao Egito, deu a cada um deles o que chamamos favores, à guisa de dinheiro, diríamos ao brâmane: “Meu reverendo padre, estais enganado, nossa religião não é a Lenda Dourada”.

Reprovamos aos antigos seus oráculos, seus prodígios: se eles voltassem ao mundo e pudéssemos contar os milagres de Nossa Senhora de Loreto e os de Nossa Senhora de Éfeso, para que lado penderia a balança?

Os sacrifícios humanos foram estabelecidos em quase todos os povos, mas muito raramente postos em uso. Apenas temos a filha de Jefté e o rei Agague imolados entre os judeus, porque Isaque e Jônatas jamais o foram. A história de Ifigênia não é muito acreditada entre os gregos; os sacrifícios humanos são muito raros entre os antigos romanos. Numa palavra, a religião pagã fez derramar pouquíssimo sangue, enquanto a nossa alagou a terra. A nossa é sem dúvida a única boa, a única verdadeira; mas fizemos tanto mal por seu intermédio que quando falamos das outras devemos ser modestos.

Sétima questão

Se um homem quiser persuadir de sua religião a estrangeiros ou compatriotas não deverá empregar a doçura mais insinuante e a mais acareante moderação? Se começar por dizer que o que ele anuncia está demonstrado, encontrará uma multidão de incrédulos; se ousar dizer-lhes que eles não rejeitam a sua doutrina senão porque ela condena as suas paixões, que o seu coração corrompeu o seu espírito, que eles apenas têm uma razão falsa e orgulhosa, ele os revolta, anima-os contra si, arruina ele próprio o que quer edificar.

Se a religião que anuncia é verdadeira, torná-la-ão a insolência e o arrebatamento mais verdadeira? Ficais encolerizados quando dizeis que é preciso ser dócil, paciente, benfeitor, justo, preencher todos os deveres da sociedade? Não, porque todo mundo é do vosso parecer. Por que, pois, dizeis injúrias ao vosso irmão quando lhe pregais uma metafísica misteriosa? É que o seu bom senso irrita o vosso amor próprio. Tendes o orgulho de exigir que vosso irmão submeta a sua inteligência à vossa; o orgulho humilhado conduz à cólera, nem é outra a sua origem. O homem ferido por vinte balas numa batalha não fica encolerizado; mas um doutor ferido pela recusa de um sufrágio torna-se furioso e implacável.


 

RESSURREIÇÃO

Conta-se que os egípcios não construíram as suas pirâmides senão para fazer túmulos e que os seus corpos embalsamados por dentro e por fora esperavam que suas almas viessem reanimá-los ao fim de mil anos. Mas se os seus corpos deviam ressuscitar, por que a primeira operação dos perfumistas era perfurar-lhes o crânio e tirar-lhes o cérebro? A idéia de ressuscitar sem cérebro faz supor (se se permitir a expressão) que os egípcios não o tinham muito vivo; é preciso, porém, considerar que a maioria dos antigos julgava que a alma estivesse no peito. E por que deveria estar no peito mais do que em qualquer outra parte? É que, com efeito, em todos os nossos sentimentos um pouco violentos experimentamos perto do coração um confrangimento ou uma dilatação, que fez pensar ser ali o alojamento da alma. Essa alma era qualquer coisa de abstrato, de aéreo; era uma figura leve que vagava pelo espaço até encontrar de novo seu corpo.

A crença da ressurreição é muito mais antiga do que os tempos históricos. Atálida, filha de Mercúrio, podia morrer e ressuscitar ao seu bel prazer: Esculápio restituiu a vida a Hipólito; Hércules a Alceste; Pélopes, tendo sido cortado em pedaços pelo pai, foi ressuscitado pelos deuses. Conta Platão que Eros ressuscitou por quinze dias somente.

Os fariseus, entre os judeus, só adotaram o dogma da ressurreição muito tempo depois de Platão.

Há nos Atos dos Apóstolos um fato bem singular e digno de atenção Jacó e vários dos seus companheiros aconselharam S. Paulo a ir ao templo de Jerusalém observar todas as cerimônias da antiga lei, por cristão que ele fosse, “a fim de que todos saibam”, dizem-lhe, “que tudo o que se diz de vós é falso e que continuais a guardar a lei de Moisés”.

Então S. Paulo foi durante sete dias ao Templo, mas no sétimo foi reconhecido. Acusaram-no de lá ter ido com estrangeiros e de o ter profanado. Eis como ele se livrou da entaladura:

“Ora, sabendo Paulo que uma parte dos que lá estavam eram saduceus e outra fariseus, gritou na assembléia: “Meus irmãos, eu sou fariseu e filho de fariseu; é por causa da esperança duma outra vida e da ressurreição dos mortos que me querem condenar” (63). Não houvera nenhuma questão da ressurreição dos mortos em todo esse negócio; Paulo dizia-o apenas para atirar os fariseus e saduceus uns contra os outros.

V. 7. “Paulo, tendo assim falado, motivou uma dissensão entre os fariseus e saduceus, e a assembléia foi dividida.

V. 8. “Porque os saduceus dizem que não há ressurreição, nem anjo, nem espírito, enquanto os fariseus reconhecem um e outro, etc.”.

Pretendeu-se que Jó, que é muito antigo, conhecesse o dogma da ressurreição. Citam-se as suas palavras: “Sei que o meu redentor está vivo e que um dia a sua redenção se erguerá sobre mim, ou que eu me erguerei do pé, que minha pele voltará e que ainda verei Deus em minha carne”.(64)

Mas vários comentadores entendem por essas palavras que Jó espera que há de melhorar em breve de sua doença, e que não permanecerá sempre deitado na terra como estava. Há provas de que essa explicação seja verdadeira, porque ele gritou aos seus falsos e empedernidos amigos: “Por que então dizeis: persigamo-lo?” ou então: “Porque direis: porque nós o perseguimos”. Isso evidentemente não quer dizer: “Arrepender-vos-eis de me haver ofendido quando me virdes no meu primeiro estado de saúde e opulência?” Um doente que diz: “Eu me levantarei”, não diz: “Eu ressuscitarei”. Dar sentidos forçados a passagens claras é o meio seguro de jamais se entender.

S. Jerônimo coloca o nascimento da seita dos fariseus muito pouco tempo antes de Jesus Cristo. O rabino Hilel passa por ser o fundador da seita farisaica, e esse Hilel foi contemporâneo de Gamaliel, o mestre de São Paulo.

Vários desses fariseus acreditavam que somente os judeus ressuscitariam e que o resto dos homens não valiam a pena. Outros sustiveram que não se ressuscitaria senão na Palestina, e que os corpos daqueles que forem enterrados alhures serão secretamente transportados para Jerusalém, a fim de se juntarem à sua alma. Mas São Paulo, escrevendo aos habitantes de Tessalônica, diz-lhes que “O segundo advento de Jesus Cristo é para eles e para ele, que eles serão testemunhas”.

V. 16. “Porque logo que o sinal for dado pelo arcanjo e pelo som da trombeta de Deus o próprio Senhor descerá do céu, e os que estiverem mortos em Jesus Cristo ressuscitarão por primeiros”.

V. 17. “Depois nós que somos vivos e que tenhamos sobrevivido até então seremos elevados com eles às nuvens para irmos perante o Senhor, no meio do ar, e assim viveremos para sempre com o Senhor” (65).

Essa importante passagem não prova evidentemente que os primeiros cristãos esperavam ver o fim do mundo, como de feito se prediz em S. Lucas, no tempo mesmo em que viveu S. Lucas?

Acreditava Sto. Agostinho que as crianças, e mesmo as crianças natimortas, ressuscitariam na idade madura. Os Orígenes, os Jerônimos, os Atanásios, os Basílios não creram que as mulheres pudessem ressuscitar com o seu sexo.

Enfim, sempre disputamos sobre o que fomos, sobre o que somos e sobre o que seremos.


 

SALOMÃO

Teria sido Salomão rico como se disse?

Afiançam os Paralipômenos que o “melk” Davi, seu pai, deixou-lhe cerca de vinte milhões de nossa moeda corrente, segundo o cálculo mais modesto. Não há tal soma de dinheiro corrente em toda a terra e é muito difícil que Daví tivesse podido amealhar tamanho tesouro no pequeno país da Palestina.

Salomão, segundo o terceiro livro dos Reis, tinha quarenta mil coudelarias para os cavalos de suas carruagens. Quando mesmo cada coudelaria não contivesse mais que dez cavalos, isso somaria apenas o número de quatrocentos mil que, juntos a seus doze mil cavalos de sela, teria feito quatrocentos e doze mil cavalos de batalha. É muito para um “melk” judeu que jamais praticou a guerra. Essa magnificência não tem exemplo num país que apenas produzia asnos e onde hoje não existe outra montaria. Mas parece que os tempos mudaram. É verdade que um príncipe tão sábio, que tinha mil mulheres, podia ter também quatrocentos e doze mil cavalos, quando mais não fosse para levá-las a passeio ou ao longo do lago de Genezaré ou de Sodoma, ou à torrente de Cedrão, que é um dos sítios mais deliciosos da terra, embora, na verdade, essa torrente esteja seca durante nove meses do ano e o terreno seja um tanto rochoso.

Mas teria esse sábio Salomão realmente escrito as obras que lhe atribuem? É verossímil, por exemplo, que seja o autor da égloga intitulada Cântico dos Cânticos?

Pode ser que um monarca que possuía mil mulheres dissesse a uma delas: “Que ela me beije com um beijo de sua boca, pois seus seios são melhores do que o vinho”. Um rei e um pastor, quando se trata de beijar na boca, podem se exprimir da mesma maneira. É verdade que é muito estranho haver-se pretendido que foi a moça quem assim falou elogiando os seios do amante.

Não negarei que um rei galante tenha podido fazer que sua amante dissesse: – “Meu bem amado é como um ramilhete de mirra, ele morará em meus seios”. Não entendo muito bem o que significa esse ramilhete de mirra; mas enfim, quando a bem amada diz ao bem amado que lhe passe a mão direita sobre o pescoço e a abrace com a direita, entendo muito bem.

Poder-se-ia pedir algumas informações ao autor do Cântico quando diz: “Vosso umbigo é como uma taça na qual há sempre algo que beber; vosso ventre é como um alqueire de trigo; vossos seios são como duas crias de cervo e vosso nariz é como a torre do monte Líbano”.

Confesso que as églogas de Virgílio são de outro estilo; mas cada um tem o seu, e um judeu não é obrigado a escrever como Virgílio.

É aparentemente um belo efeito de eloquência oriental dizer: “Nossa irmã é ainda pequena, ela não tem seios. Que faremos de nossa irmã? Se é um muro, construamos sobre ele; se é uma porta, fechemo-la”.

Belas coisas, belas anedotas para Salomão, o mais sábio dos homens... Era, dizem, seu epitálamo para o seu casamento com a filha do faraó; é porém natural que o genro do faraó deixe sua bem amada durante a noite para ir passear em seu jardim das nogueiras, que a rainha corra sozinha, descalça, atrás dele, que seja espancada pelos guardas da cidade e que estes lhe tirem a roupa?

Poderia a filha de um rei ter dito: “Eu sou morena, mas sou bela como as peliças de Salomão”? Tais expressões poder-se-iam atribuir a um pastor, porquanto ao cabo de contas não há grande relação entre peliças e a beleza de uma moça. Mas, enfim, as peliças de Salomão poderiam ter sido admiradas em seu tempo, e um judeu do povo, que fazia versos à amante, poderia ter dito, em seu linguajar judeu, que jamais rei algum tivera roupas de pele tão bonitas como as dela; quanto ao rei Salomão, deveria estar muito entusiasmado com suas peliças para compará-las à amante: se um rei de nossos dias compusesse um tal epitálamo para o seu casamento com a filha de um rei vizinho não passaria, com toda certeza, pelo melhor poeta de seu reino.

Vários rabinos sustiveram que não só essa pequena égloga voluptuosa não era do Salomão, mas que também não era autêntica. Teodoro de Mopsueste tinha idêntica opinião, e o célebre Grótio chama ao Cântico dos Cânticos obra libertina, flagitiosus; contudo ela está consagrada, e é considerada como uma perpétua alegoria dos esponsais de Jesus Cristo com sua igreja. É preciso não esquecer que a alegoria é um pouco forte, nem se sabe que poderia a igreja deduzir do ponto em que o autor diz que sua irmã não tem seios, e que, se é um muro, é preciso construir sobre ela.

O livro da Sabedoria tem um tom mais sério; porém não pertence mais a Salomão do que o Cântico dos Cânticos. Atribui-se comumente a Jesus, filho de Siraque, outros a Fílon de Biblos; mas, seja quem for o autor, parece que no seu tempo ainda não existia o Pentateuco, porque ele diz no capítulo 10 que Abraão quis imolar Isaque no tempo do dilúvio, e, por outro lado, fala do patriarca José como de um rei do Egito.

Os Provérbios foram atribuídos a Isaías, a Elzias, a Sobna, a Eliacin, a Joaquê e a vários outros. Mas, quem quer que seja que compilou essa coletânea, de sentenças orientais, não há o menor viso de verdade em que tenha sido um rei quem se deu a tal trabalho. Teria ele dito que “O terror do rei é como o rugido de um Leão?” É assim que fala um súdito ou um escravo, que a cólera do seu senhor faz tremer. Teria Salomão falado tanto da mulher impudica? Teria dito: “Não olheis o vinho quando se afigura claro e sua cor brilha através do copo”?

Ponho francamente em dúvida a existência de copos no tempo de Salomão: é uma invenção muito recente; toda a antigüidade bebia em taças de madeira ou de metal; e essa única passagem indica que essa obra foi elaborada por um judeu de Alexandria muito tempo depois de Alexandre.

Resta o Eclesiastes, que Grótio pretende ter sido escrito sob o reinado de Zorobabel. Sabe-se perfeitamente com que liberdade o autor do Eclesiastes se exprime; sabe-se que ele disse que: “Os homens nada têm mais do que as bestas; que mais vale nunca ter nascido, do que existir; que não existe nenhuma outra vida; que a única coisa boa em tudo isso é podermos diverti-nos com aquela a quem amamos”.

Pode ser que Salomão tenha feito tais discursos a algumas de suas mulheres; pretende-se tratar-se de objeções; porém essas máximas, de ar um tanto libertino, nem de leve se parecem a objeções, e entender num autor o contrário do que ele diz é zombar da humanidade.

Aliás, vários padres pretenderam que Salomão tenha feito penitência; assim, pode-se perdoá-lo.

Porém, que esses livros tenham ou não sido escritos por um judeu, que nos importa? Nossa religião cristã alicerceia-se sobre a judaica, mas não sobre todos os livros que os judeus escreveram. Por que será o Cântico dos Cânticos mais sagrado para nós do que as fábulas do Talmude? Porque, diz-se, nós o incluímos no cânon dos hebreus. E que é esse cânon? Uma coletânea de obras autênticas. Essa é boa! Uma obra, por ser autêntica, é divina? Uma história dos reis de Judá e de Siquêm, por exemplo, será algo mais que uma história? Eis um estranho preconceito. Nós abominamos os judeus, e queremos que tudo o que por eles foi escrito e por nós recolhido traga o sinete da Divindade. Jamais se viu contradição tão palpável.


 

SENSAÇÃO

As ostras têm, diz-se, dois sentidos; as toupeiras, quatro; os outros animais, como os homens, cinco. Algumas pessoas admitem um sexto, mas é evidente que a sensação voluptuosa de que pretendem falar reduz-se ao sentimento do tato e que cinco sentidos constituem o nosso quinhão. É nos impossível imaginar ou desejar mais que isso.

Pode ser que em outros planetas existam sentidos de que não fazemos a mínima idéia; pode ser que o número de sentidos aumente de planeta em planeta e que o ser que tem sentidos inúmeros e perfeitos seja o termo de todos os seres.

Mas, nós outros com os nossos cinco órgãos, qual é o nosso poder? Sentimos sempre contra nossa vontade, e jamais por que o desejemos; é-nos impossível deixar de ter a sensação que a nossa natureza nos destina quando o objeto nos fere. O sentimento está em nós mas não depende de nós. Nós o recebemos; e como o recebemos? Sabe-se perfeitamente que não há nenhuma relação entre o ar agitado e as palavras que me cantam e a impressão que essas palavras gravam no meu cérebro.

Admiramo-nos do pensamento; mas o sentimento é igualmente maravilhoso. Um poder divino lampeja na sensação do último dos insetos como no cérebro de Newton. Contudo, que milhares de animais morram à vossa vista, não vos inquietareis pelo que possa vir a ser a sua faculdade de sentir, embora tal faculdade seja obra do Ser dos seres; vós os olhais como máquinas da natureza, nascidas para morrer e dar lugar a outras.

Como e por que a sua sensação deveria subsistir quando eles já não existem? Que necessidade teria o autor de tudo o que existe de conservar as propriedades cujo sujeito está destruído? Equivaleria a dizer que o poder da planta chamada sensitiva de retrair suas folhas subsiste mesmo quando a planta deixa de existir. Perguntareis sem dúvida como, se a sensação dos animais morre com eles, o pensamento do homem jamais perecerá. Não posso responder a essa questão, não sei o bastante para resolvê-la. Só o autor eterno da sensação e do pensamento sabe como a concede e como a conserva.

Toda a antigüidade afirmou que nada existe em nosso entendimento que não tenha passado por nossos sentidos. Descartes, nos seus romances, pretendia que tivéssemos idéias metafísicas antes de conhecer os seios de nossa ama; uma faculdade de teologia proscreveu esse dogma, não porque fosse um erro, mas porque era uma novidade; em seguida adotou esse erro, porque fora destruído por Locke, filósofo inglês, e era necessário que o inglês errasse. Enfim, depois de haver mudado tantas vezes de princípios, ela tornou a proscrever essa antiga verdade, que os sentidos são as portas do entendimento. Fez como esses governos sobrecarregados de dívidas que ora dão livre curso a certas cédulas e ora as interdizem; mas desde muito tempo que ninguém quer saber das cédulas dessa faculdade.

Todas as faculdades do mundo jamais impedirão os filósofos de ver que nós começamos por sentir e que nossa memória não é senão uma sensação contínua. Um homem que nascesse privado dos seus cinco sentidos seria privado de toda idéia, se pudesse viver. As noções metafísicas não nos chegam senão pelos sentidos: pois como medir um círculo ou um triângulo se não se viu ou tocou um círculo e um triângulo? Como conceber uma idéia mesmo imperfeita do infinito sem estabelecer limites? E como estabelecer limites sem os ter visto ou sentido?

A sensação envolve todas as nossas faculdades, disse um grande filósofo (66).

Que concluir de tudo isso? Vós que ledes, que pensais, concluí.


 

SONHOS

Somnia, quae mentes ludunt volitantibus umbris,
non delubra deum nec ab oethere nurnina mittunt,
sed sibi quisque facit
(67).

 

Mas como, estando todos os sentidos mortos no sono, existe um sentido que vive? Como, nossos olhos não vendo mais, vossos ouvidos nada entendendo, vedes, contudo, e ouvis em vossos sonhos? O cão está na caça, em sonho; late, segue a presa. O poeta faz versos dormindo; o matemático vê figuras; o metafísico raciocina bem ou mal: temos exemplos contundentes.

Serão esses os únicos órgãos da máquina que funcionam? É a alma pura que, subtraída ao império dos sentidos, usufrui dos seus direitos em liberdade?

Se os órgãos, por si sós, produzem os sonhos à noite, por que não produzirão também, sós, as idéias de dia? Se a alma pura, tranqüila, no repouso dos sentidos, agindo por si própria é a causa única, o sujeito único de todas as idéias que tendes dormindo, por que serão essas idéias quase sempre irregulares, desarrazoadas, incoerentes? Como! É no momento em que essa alma está menos turbada que ela tem mais perturbações em todas as suas imaginações! Ela está livre e é louca! Se houvesse nascido com idéias metafísicas como o dizem tantos escritores que sonham de olhos abertos, suas idéias puras e luminosas do Ser, do infinito, de todos os primeiros princípios deveriam despertar em si com a maior energia quando o corpo está adormecido: nunca se seria bom filósofo senão em sonho.

Seja qual for o sistema que abraceis, sejam quais forem os esforços vãos que façais para provar a vós mesmos que a memória agita o vosso cérebro, que vosso cérebro agita vossa alma, é mister convirdes em que todas as vossas idéias vos acodem durante o sono, sem vós e apesar de vós: vossa vontade não intervêm aí. É portanto certo que podeis pensar sete ou oito horas seguidas sem ter a mínima vontade de pensar, sem mesmo estar seguro de que pensais. Ponderai isto tudo: procurai adivinhar o que vem a ser o complexo do animal.

Os sonhos foram sempre um grande objeto de superstição; nada mais natural. Um homem vivamente comovido pela doença de sua amante sonha que a vê morrer; ela morre no. dia seguinte: portanto, os deuses predisseram-lhe a sua morte.

Um general do exército sonha que vence uma batalha; ganha-a, com efeito: os deuses o advertiram de que seria vencedor.

Não se levam em consideração senão os sonhos que foram confirmados; esquecem-se os outros. Os sonhos participam grandemente da história antiga, tal como os oráculos.

Assim traduz a Vulgata o fim do versículo 26 do cap. 19 do Levítico: “Não observareis os sonhos”. Mas o termo sonho não existe no hebraico e seria muito estranho que se reprovasse a observação dos sonhos no próprio livro em que se diz que José se tornou o benfeitor do Egito e de sua família mediante a explicação de três sonhos.

A explicação dos sonhos era uma coisa tão comum que a gente não se limitava a essa prática: era preciso ainda adivinhar algumas vezes o que outro homem sonhara. Nabucodonosor, tendo olvidado um sonho que tivera, ordenou aos seus magos a sua adivinhação, e os ameaçou de morte caso não chegassem a bom fim; mas o judeu Daniel, que era da escola dos magos, salvou-lhes a vida adivinhando o sonho do rei, com a respectiva interpretação. Essa história e muitas outras poderiam servir para provar que a lei dos judeus não proibia a oneiromancia, isto é, a ciência dos sonhos.


 

SUPERSTIÇÃO

(Capítulo extraído de Cícero, Sêneca e Plutarco)

Quase tudo o que vai além da adoração de um Ser Supremo e da submissão do coração às suas ordens eternas é superstição. O perdão aos crimes acompanhado de certas cerimônias é uma das mais perigosas.

Et nigras mactant pecudes, et manibu divis inferias mittunt (68).
Ah! nimium faciles qui tristia crimina coedis fluminea tolli posse putatis aqua! (69).

Pensais que Deus olvidará vosso homicídio se vos banhardes num rio, se imolardes um cordeiro preto e se se pronunciarem sobre vós algumas palavras. Um segundo homicídio vos será pois perdoado ao mesmo preço, e assim um terceiro, e cem mortes não vos custarão mais do que cem cordeiros negros e cem abluções! Fazei melhor, miseráveis humanos: nada de mortes e nada de cordeiros negros.

Que infame idéia imaginar que um sacerdote de Isis e de Cíbele, tocando címbalos e castanholas, vos reconciliará com a Divindade! E quem é pois esse sacerdote de Cibele, esse eunuco errante que vive de vossas fraquezas, para se arvorar intermediário entre o Céu e vós outros? Que espécie de patentes recebeu ele de Deus? Recebe de vós algum dinheiro para balbuciar algumas palavras, e credes que o Ser dos seres ratificará as palavras desse charlatão?

Há superstições inocentes: dançais nos dias de festa em honra de Diana ou de Pomona, ou de qualquer desses deuses secundários de que está repleto o vosso calendário: pois podeis continuar. A dança é muito agradável, é útil ao corpo, alegra a alma, não faz mal a ninguém; não acrediteis porém que Pomona e Virtuna se comovam por haverdes saltado em sua honra e que vos puniriam se o não houvésseis feito. Não existem outra Pomona nem outra Virtuna que a enxada e a pá do jardineiro. Não sejais tão imbecil a ponto de acreditar que vosso jardim se queimará por haverdes deixado de dançar a pírrica ou a cordácia.

Existe provavelmente uma superstição perdoável e mesmo reconfortante para a virtude: é a de colocar entre os deuses os grandes homens que foram benfeitores do gênero humano. Melhor sem dúvida seria olhá-los simplesmente como homens veneráveis e sobretudo procurar imitá-los. Venerai sem culto um Sólon, um Tales, um Pitágoras; não adoreis porém um Hércules por ter limpado as estrebarias de Augias e por ter-se deitado com cinqüenta mulheres numa noite.

Guardai-vos de instituir um culto para certos patifes que não têm outro mérito que a ignorância, a vivacidade e a sordidez; que fizeram um dever e uma gloria do ócio e da glotonaria: esses que quando muito foram completamente inúteis durante sua vida, merecerão por acaso a apoteose depois da morte?

Lembrai-vos de que os tempos mais supersticiosos foram sempre os dos crimes mais horríveis.


 

TIRANIA

Chamamos tirano ao soberano que não conhece por leis senão o próprio capricho, que se apodera dos bens de seus súditos e que em seguida os arrola para ir tomar os dos vizinhos. Não existe tal espécie de tiranos na Europa.

Distingue-se a tirania de um só e a de vários. Essa tirania de vários seria a de um corpo que invadisse os direitos dos outros corpos e exercesse o despotismo a favor das leis por ele corrompidas. Tão pouco existe essa espécie de tiranos na Europa.

Sob qual tirania gostaríeis de viver? Sob nenhuma; mas se fosse preciso escolher, eu detestaria menos a tirania de um só do que a de vários. Um déspota tem sempre alguns bons momentos; uma assembléia de déspotas jamais. Se um tirano me faz uma injustiça, poderei desarmá-lo por intermédio de sua amante, por seu confessor ou por seu pagem; mas uma companhia de graves tiranos é inacessível a todas as seduções. Quando não é injusta é no mínimo impiedosa, e jamais concede favores.

Se tenho apenas um déspota, salvo-me com o simples colar-me a um muro à sua passagem; ou por me prosternar, ou por bater a fronte no solo, segundo o costume do país; mas se houver uma companhia de cem déspotas, estarei exposto a repetir essa cerimônia cem vezes por dia, o que é exaustivo, quando não se tem os fundilhos reforçados. Se eu tiver uma pequena herdade nas vizinhanças de um de nossos senhores, serei esmagado; se reclamar contra um parente dos parentes de nossos senhores, estarei arruinado. Que fazer? Temo que neste mundo estejamos reduzidos a um triste dilema: ser bigorna ou martelo. Feliz de quem escapar a essa alternativa!


 

TOLERÂNCIA

Que é a tolerância?

É o apanágio da humanidade. Estamos todos empedernidos de debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é a primeira lei da natureza.

Que na bolsa de Amsterdã, de Londres, de Surata ou de Bassorá, os guebros, os banianos, os judeus, os mafomistas, os deícolas chins, os brâmanes, os cristãos gregos, os cristãos romanos, os cristãos protestantes, os cristãos quakers façam suas traficâncias juntos: eles não brigarão de punhal. Por que motivo, pois, nos esganamos quase sem interrupção desde o primeiro concílio de Nicéia?

Constantino começou por baixar um édito que permitia todas as religiões; terminou por perseguir. Antes dele os cristãos apenas eram perseguidos quando começavam a ter alguma força dentro do estado. Os romanos permitiam todos os cultos, até o dos judeus, até o dos egípcios, pelos quais tinham tanto desprezo. Por que tolerava Roma esses cultos? É que nem os egípcios nem mesmo os judeus procuravam exterminar a antiga religião do império, não perdendo tempo em revolver terras e mares para angariar prosélitos: o que queriam era ganhar dinheiro; é porém incontestável que os cristãos desejavam que sua religião fosse a dominante. Os judeus não queriam que a estátua de Júpiter estivesse em Jerusalém; mas os cristãos não admitiam que estivesse no Capitólio. Sto. Tomás tem a boa fé de convir em que, se os cristãos não destronavam os imperadores, é que o não podiam fazer. Sua opinião era que toda a terra devia ser cristã. Eram portanto inimigos de toda a terra, até que esta se convertesse.

Havia entre eles inimigos uns dos outros em todos os pontos de sua controvérsia. Antes de mais nada é preciso considerar Jesus Cristo como Deus, os que o negam são anatematizados sob o nome de ebionitas, que anatematizam os adoradores de Jesus.

Alguns deles desejam que todos os bens sejam comuns, como pretendem que o tenham sido no tempo dos apóstolos: seus adversários os chamam nicolaitas, acusando-os dos crimes mais infames. Outros, tendentes a uma devoção mística, são chamados gnósticos e perseguidos com furor. Marcião é tratado de idólatra por disputar sobre a Trindade.

Tertuliano, Praxedes, Orígenes, Novato, Novaciano, Sabélio, Donato, são todos perseguidos por seus irmãos antes de Constantino; e apenas Constantino fez reinar a religião cristã; os atanasianos e eusebianos se separaram; e desde então a igreja cristã foi inundada de sangue até hoje.

O povo judeu era, reconheço, um povo bastante bárbaro. Degolavam sem piedade todos os habitantes de um desgraçado e pequeno país sobre o qual não tinham mais direito do que sobre Paris e Londres. Entretanto, quando Naamã é curado de sua lepra por se haver banhado sete vezes no Jordão; quando, para testemunhar sua gratidão a Eliseu, que lhe ensinou esse segredo, conta-lhe que adorava o Deus dos judeus por reconhecimento, reserva-se a liberdade de adorar também o Deus de seu rei; pede licença a Eliseu, e o profeta não hesita em conceder-lha. Os judeus adoravam o seu Deus; mas nunca se admiraram de que cada povo tivesse o seu. Achavam muito natural que Camoes concedesse um certo distrito aos moabitas, contanto que o seu Deus também lhes desse um. Jacó não hesitou em desposar as filhas de um idólatra. Labão tinha seu Deus assim como Jacó tinha o seu. Eis belos exemplos de tolerância entre o povo mais intolerante e cruel de toda a antigüidade: nós o imitamos em seus furores absurdos, e não em sua indulgência.

É claro que todo indivíduo que persegue um homem, seu irmão, porque não é da sua mesma opinião, é um monstro. Isto está fora de dúvidas. Mas o governo, mas os magistrados, mas os príncipes, como deverão proceder para com indivíduos que têm um culto diferente do seu? Se forem estrangeiros poderosos, é claro que um príncipe fará aliança com eles. Francisco I., muito cristão, unir-se-á aos muçulmanos contra Carlos V, muito cristão. Francisco I dará dinheiro aos luteranos da Alemanha para sustentá-los em sua revolta contra o imperador; mas principiará, segundo o costume, por fazer queimar alguns luteranos em sua própria casa. Paga-os em Saxe por política; por política queima-os em Paris. Mas que acontecerá? As perseguições criam prosélitos; em breve a França estará repleta de novos protestantes. A princípio deixar-se-ão enforcar, em seguida começarão também a enforcar. Haverá guerras civis, em seguida o S. Bartolomeu e esse recanto do mundo será pior que tudo o que antigos e modernos já disseram do inferno.

Insensatos, que jamais soubestes render um culto puro ao Deus que vos criou! Desgraçados, que o exemplo dos noaquidas, dos letrados chineses, dos parsis e de todos os sábios jamais pode edificar! Monstros, que necessitais de superstições corno o urubu de carniça! Já se vos disse, e não temos outra coisa que dizer-vos: se tiverdes duas religiões, elas se trucidarão; se tiverdes trinta, viverão em paz. Vede ó grão-turco: governa guebros, banianos, cristãos gregos, nestorianos, romanos. O primeiro que experimentar provocar um tumulto é empalado, e todos permanecem em santíssima paz.


 

VIRTUDE

Que é virtude? Beneficência para com o próximo. Poderei chamar virtude a outra coisa senão ao bem que me fazem? Eu sou indigente, tu és liberal; eu estou em perigo, tu vens em meu socorro; enganam-me, tu me dizes a verdade; esquecem-me, tu me consolas; eu sou ignorante, tu me instruis: chamar-te-ei sem dificuldade virtuoso. Mas que acontecerá com as virtudes cardinais e teologais? Algumas delas ficarão nas escolas.

Que me importa que sejas temperante? É um preceito de saúde que observas; beneficiar-te-ás com isso e eu te felicito. Tens fé e esperança, redobro-te minhas felicitações: elas te concederão a vida eterna. Tuas virtudes teologais são dons celestes: tuas virtudes cardinais são excelentes qualidades que servem para te conduzir ao bom caminho; mas não são virtudes que se relacionem com o teu próximo. O prudente faz o bem a si, o virtuoso fá-lo aos homens. S. Paulo teve razão ao dizer que a caridade implica a fé e a esperança.

Mas como! admitiremos apenas as virtudes que são úteis ao próximo? Então! como poderei admitir outras? Vivemos em sociedade; nada existe de verdadeiramente bom para nós senão o que beneficia a sociedade. Um solitário será sóbrio, piedoso; revestir-se-á de um cilício: pois bem, será santo; porém não o chamarei virtuoso senão quando praticar algum ato de virtude em proveito dos homens. Enquanto for só, não será nem malfeitor nem benfeitor; nada é para nós. Se S. Bruno pacificou as famílias, se socorreu a indigência, foi virtuoso; se jejuou, rezou na solidão, foi um santo. A virtude entre os homens é um comércio de benefícios; o que não participa desse comércio não deve ser considerado. Se esse santo estivesse no mundo, sem dúvida praticaria o bem; mas enquanto não o estiver o mundo terá razão em não lhe conceder o nome de virtuoso: será bom para consigo próprio, e não para nós.

Mas, dizeis-me, um solitário glutão, bêbedo, entregue à devassidão secreta consigo mesmo, é um vicioso: será portanto virtuoso se tiver qualidades contrárias É no que não posso convir: será um homem muito vil se tiver de fato os defeitos que dizeis; mas não pode ser um vicioso, mau, susceptível de punição, no que diz respeito à sua relação com a sociedade, a quem suas infâmias não fazem mal algum. É de presumir que se entrar na sociedade praticará o mal, será um grande criminoso; é até muito mais provável que venha a ser um homem mau do que incerto é que outro solitário, casto, temperante, venha a ser um homem de bem: pois na sociedade os defeitos aumentam e as boas qualidades diminuem.

Faz-se uma objeção mais forte; Nero, o papa Alexandre VI. e outros monstros dessa espécie fizeram benefícios; ouso responder que foram virtuosos nesse dia.

Dizem alguns teólogos que o divino imperador Antonino não era virtuoso; que era um estóico tençoeiro que, não contente de governar os homens, ainda queria ser estimado por eles; que fazia reverterem a si próprio os benefícios que fazia ao gênero humano; que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples vaidade, e que apenas enganou os homens com a sua virtude; neste caso exclamarei: “Meu Deus, dai-nos a basto velhacos desta laia!”


 

NOTAS

(1) – Esta inscrição acha-se gravada na fachada do templo de Delfos.
(2) – Virgílio, Geórgicas, III, 244.
(3) – Ovídio, Metáforas, X, 84-5.
(4) – Isaías, XIV, 8 e 12.
(5) – Justino o Mártir, nascido por volta do ano 114, foi condenado à morte por Rústico, prefeito de Roma, em 168.
(6) – Livro V, capítulo XXXIII.
(7) – História da Igreja, livro VII, capítulo XXV.
(8) – Comparação entre Aristófanes e Menandro.
(9) – J. Fr. Arpe, autor da Apologia pro Julio Caesare Vanino.
(10) – Horácio, Epigr., II, ii, Sat., II, i.
(11) – Em seus Ensaios de Teodicéia sobre a Bondade de Deus, etc., Amsterdã, 1710, in-8.
(12) – Li – medida itinerária chinesa equivalente a. 576 metros.
(13) – Sinus denominação dada pelos chineses aos judeus das dez tribos que, em sua dispersão, penetraram até a China.
(14) – Os cinco livros sagrados chineses, que contêm a doutrina de Confúcio.
(15) – Salmos, LXVII, 16-17.
(16) – Anagrama do abade Castel do Saint-Pierre
(17) – Anagrama de Lelièvre.
(18) – Anagrama de Arnoult.
(19) – Anagramas do príncipe de Condé e do duque de Brunswick.
(20) – Neste diálogo o japonês figura um inglês; os cozinheiros designam os padres; o grande lama, o paga; o imperador mencionado, o rei Henrique VIII; paiscopie, anagrama de episcopais, são os bispos; breuseh, hebreus; pispatas, papistas; Teluro, Lutero; Vicalno, Calvino; quekars, batistanaos, diestas, etc., respectivamente, quakers, anabatistas, deistas, etc. (Nota de Avenel).
(21) – Canusi – antigos sacerdotes japoneses.
(22) – Anagrama de Horácio Flaco.
(23) – Anagrama de Racine. Trata-se de Louis Racine, filho do grande Racine.
(24) – Trata-se de Abraham Chaumeix, crucificado a 2 de março de 1749, na rua Saint-Denis. Foi quem denunciou a Encyclopédie ao parlamento.
(25) – Jerusalém Libertada, canto IV, 3.
(26) – Ilíada, livro XXII.
(27) – O Testament Politique de Charles V, due de Lorraine et de Bar, en faveur du roi de Hongrie, Leipzig, Weitman (Paris), 1696, in-12, foi editado pelo abade de Chevremont; tem por autor Henri de Straatman, membro do conse1ho áulico do imperador.
(28) – Testament Politique de M. de Vauban, etc., dans lequel ce seigneur donne les moyens d’augmenter considérablement les revenus de la Couronne par l’établissement d’une dime royale, etc., 1707 ou 1708, 2 vol. in-i12. A obra aparecera em 1695 sob o título Le Détail de la France sons le règne de Louis XIV.
(29) – Sát., I, ii, 127.
(30) – Les Femmes Savantes, III, ii.
(31) – Foi em virtude deste passo que Larcher chamou Voltaire “besta fera de que se tem tudo a temer”.
(32) – Veja-se, nos Romans, Le Monde comme il va.
(33) – Gavacho em espanhol quer dizer canalha.
(34) – Denominação dada pelos espanhóis aos árabes e que, segundo Littré, se tornou uma injúria significando traidor, pérfido, tratante. Do espanhol marrano – porco e também maldito.
(35) – Satyricon, capítulo XLIV.
(36) – Sat., I, VIII.
(37) – Livro VIII, epigr., XXIV.
(38) – De Ponto, II, VIII.
(39) – Teb., XII.
(40) – Livro IX, 578.
(41) – Ovídio, Fastos, IV.
(42) – 617-618.
(43) – Sua obra intitula-se Apologie de M. Petit-Pierre sur son Système de non Éternité des Peines à Venir, 1761, in-12.
(44) – Jean Le Pelletier é autor de uma Dissertation sur l’Arche de Noé, Ruão, 1704, in-12.
(45) – Opinião de Descartes professada nas escolas ao tempo de Voltaire.
(46) – Veja-se capítulo XI dos Juizes.
(47) – Levítico, capítulo XXVII, 29.
(48) – Codorlaomor – rei dos elamitas contemporâneos. de Abraão. Mentzel – chefe da ala austríaca na guerra de 1741. Tomou Munich a 15 de feverero de 1742.
(49) – Na Défense du Mondain, do próprio Voltaire.
(50) – Ovídio, Met., I, 32.
(51) – III dos Reis, capítulo XIX, 15 e 16.
(52) – Atos dos Apóstolos, capítulo V, 34, 35 e 36.
(53) – Atos dos Apóstolos, capítulo VIII, 9.
(54) – Sócrates, História Eclesiástica, livro II, capítulo XXXVIII.
(55) – Cf. Ensaio sobre os costumes, capitulo CXCI.
(56) – Ospiniam, p. 230.
(57) – Isto foi escrito em 1764.
(58) – La Fontaine, livro II, fábula II.
(59) – Cf. Owen, livro V, epigr. VIII.
(60) – O rei de Portugal José II.
(61) – Juizes, XI, 81-83.
(62) – Sátira XV, 81-83.
(63) – Atos dos Apóstolos, capítulo XXIII, 6.
(64) – Jó, XIV, 26.
(65) – Epístola aos Tessálios, cap. IV.
(66) – Condillac, Traité des Sensations, t. II, p. 128.
(67) – Petrônio, CIV 1-3.
(68) – Lucrécio, III, 52-3.
(69) – Ovidio, Fastos, II, 45-6.


 

©2001 — Ridendo Castigat Mores

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Junho 2001

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