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O HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS

Voltaire

Ridendo Castigat Mores


 

O Homem dos Quarenta Escudos (1768)
Voltaire (1694-1778)

Edição
Ridendo Castigat Mores

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eBooksBrasil.org

Fonte Digital
www.jahr.org

Copyright:
Domínio Público


 

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO
BIOGRAFIA DO AUTOR
I.
QUEBRA DO HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS
II.
CONVERSAÇÃO COM UM GEÔMETRA
III.
AVENTURA COM UM CARMELITA
IV.
AUDIÊNCIA DO SENHOR INSPETOR GERAL
V.
CARTA AO HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS
VI.
NOVAS CONTRARIEDADES OCASIONADAS PELOS NOVOS SISTEMAS
VII.
CASAMENTO DO HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS
VIII.
O HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS TORNA-SE PAI E DISCORRE SOBRE OS MONGES
IX.
DOS IMPOSTOS PAGOS AO ESTRANGEIRO
X.
DAS PROPORÇÕES
XI.
DA SÍFILIS
XII.
GRANDE QUERELA
XIII.
A EXPULSÃO DE UM CELERADO
XIV.
O BOM SENSO DO SENHOR ANDRÉ
XV.
DE UMA BELA CEIA EM CASA DO SENHOR ANDRÉ
NOTAS


 

O HOMEM DOS
QUARENTA ESCUDOS

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VOLTAIRE


 

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

 

Esta obra é fruto do particular interesse de Voltaire pela Economia Política e pela agricultura. Defendia que o desenvolvimento de um país dependia da riqueza produzida pelo trabalho produtivo de seus habitantes. Suas idéias a respeito estão concentradas no diálogo entre “O homem dos quarenta escudos” e “O Geômetra”. Aí se discute distribuição de renda, enriquecimento iníquo, tributação excessiva, desigualdade, exploração, injustiça. Aborda ainda inúmeros outros assuntos, sempre com sua peculiar ironia.

Escreveu o texto numa época (1768) em que surgiam inúmeras teorias propondo novos sistemas para a economia e agricultura. Voltaire que nutria profunda ojeriza pelos sistemas metafísicos, irritou-se ainda mais com sistemas formulados para uma área que considerava depender apenas de experiência e bom senso.

Uma de suas afirmações a respeito é incisiva:

“Desconfie, toda a vida, dos testamentos e dos sistemas; já fui vítima deles, como o senhor. Se os Sólons e Licurgos modernos zombaram do senhor, ainda mais zombaram de mim os novos Triptólemos; e, não fosse uma pequena herança que me reanimou, teria eu morrido de miséria.”

Sobre a fúria tributária das autoridades, a irreverência é total:

“Homens de gênio profundo apresentaram-lhe projetos. Imaginara um lançar impostos sobre a inteligência.

— Todos – dizia ele – se apressarão a pagar, pois ninguém quer passar por tolo.

— Declaro-o isento do imposto – retrucou-lhe o ministro.”

Mesmo quando enaltece, o faz numa espécie de argumento a contrário, em que a crítica acaba prevalecendo, é o que se vê na passagem sobre a importância do livro:

“Muitos bons burgueses, muitas grandes cabeças, que se julgam boas cabeças, dizem, com ar importante, que os livros não servem para nada. Mas não sabem, esses vândalos, que não são governados a não ser por livros? Não sabem que o código civil, o código militar e os Evangelhos são livros de que dependem continuamente. Leiam, esclareçam-se; só pela leitura se fortifica a alma; a conversação a dissipa, o jogo a limita.”

E a ironia continua, sua visão da arrogância humana se destaca pelo sarcasmo:

“O homem dos quarenta escudos, que já o era no mínimo dos duzentos, perguntou em que local se achava o seu filho.

— Numa pequena bolsa – lhe disse o amigo, – entre a bexiga e o intestino reto.

— Santo Deus! – exclamou ele. – A alma imortal de um filho nascida e alojada entre a urina e algo pior!

— Sim, meu caro vizinho, a alma de um cardeal não teve outro berço; e com tudo isso ainda se fazem de arrogantes e dão-se ares.”

Nem poupou os médicos, sem nenhuma sutileza:

“Estava arruinado, perdido, se não fora uma velha tia que um grande médico despachou para o outro mundo, raciocinando tão bem em medicina como eu em agricultura.”

O ataque frontal, como sempre, se dá em relação aos jesuítas pelos quais tinha um profundo desprezo:

“A ceia se prolongou bastante, e no entanto não se discutiu sobre religião, como se nenhum dos convivas jamais tivesse alguma; o que quer dizer que nos tornamos polidos, e por isso tanto mais receamos contristar os outros, à mesa. O que não acontece com o regente Coger, e o ex-jesuíta Nonnotte, e o ex-jesuíta Patouillet, e o ex-jesuíta Rotalier, e todos os animais dessa espécie. Esses sórdidos nos dizem mais tolices numa brochura de duzentas páginas do que se pode dizer de agradável e instrutivo numa ceia de quatro horas. E o mais estranho é que eles não se atreveriam a dizer de cara, a ninguém, o que têm a impudência de imprimir.”

“O Homem dos Quarenta Escudos” é mais uma obra imperdível, daquele que foi um dos mais geniais pensadores de seu tempo e se tornou eterno.


 

 

BIOGRAFIA DO AUTOR

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FRANÇOIS-MARIE AROUET, filho de um notário do Châtelet, nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694. Depois de um curso brilhante num colégio de jesuítas, pretendendo dedicar-se à magistratura, pôs-se ao serviço de um procurador. Mais tarde, patrocinado pela sociedade do Templo e em particular por Chaulieu e pelo marquês de la Fare, publicou seus primeiros versos. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado na Bastilha, de onde saiu seis meses depois, com a Henriade quase terminada e com o esboço do OEdipe. Foi por essa ocasião que ele resolveu adotar o nome de Voltaire. Sua tragédia OEdipe foi representada em 1719 com grande êxito; nos anos seguintes, vieram: Artemise (1720), Marianne (1725) e o Indiscret (1725).

Em 1726, em conseqüência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente recolhido à Bastilha, de onde só pode sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Três anos mais tarde, regressou e publicou Brutus (1730), Eriphyle (1732), Zaïre (1732), La Mort de César (1733) e Adélaïde Duguesclin (1734). Datam da mesma época suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se em Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até 1749. Aí se entregou ao estudo das ciências e escreveu os Eléments de le Philosophie de Newton (1738), além de Alzire, L'Enfant Prodigue, Mahomet, Mérope, Discours sur l'Homme, etc.

Em 1749, após a morte de Madame du Châtelet, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde já estivera alguns anos antes como diplomata. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade, porém, não durou muito: as intrigas e os ciúmes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753.

Sem poder fixar-se em parte alguma, esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar, Lyon, Genebra, Nantua; em 1758, adquiriu o domínio de Ferney, na província de Gex e aí passou, então, a residir em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim viveu, cheio de glória e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, Histoire du Parlement de Paris, etc., sem contar numerosas peças teatrais.

Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu no dia 30 de março desse mesmo ano, aos 84 anos de idade.

Um velho, que sempre lastima o presente e louva o passado, me dizia:

— A França, meu amigo, não é tão rica hoje como no tempo de Henrique IV. E por quê? Porque as terras já não são tão bem cultivadas; os homens subtraem-se à terra e, tendo o jornaleiro encarecido o trabalho, vários proprietários deixam as suas herdades incultas.

— De que provém essa escassez de trabalhadores?

— É que todos aqueles que sentiram alguma habilidade adotaram os ofícios de tecelão, gravador, relojoeiro, procurador ou teólogo.

— É que a revogação do édito de Nantes abriu um grande vácuo no reino; multiplicaram-se as religiosas e os mendigos; e enfim, cada qual fugiu, o mais que pôde, ao penoso trabalho da, lavoura, para o qual Deus nos criou, e que tornamos ignominioso, tão insensatos somos.

Outra causa da nossa pobreza está nas necessidades novas. Temos de pagar a nossos vizinhos quatro milhões de um artigo, e cinco ou seis de outro, para metermos nas ventas um pó mal cheiroso vindo da América; o café, o chá, o chocolate, a cochonilha, o anil, as especiarias, nos custam mais de sessenta milhões por ano. Tudo isso era desconhecido no tempo de Henrique IV, fora as especiarias, cujo consumo, no entanto, era muito menor do que hoje. Queimamos cem vezes mais velas, e adquirimos mais de metade da nossa cera no estrangeiro, porque negligenciamos as colmeias. Vemos cem vezes mais diamantes, nas orelhas, pescoço e mãos das cidadãs de Paris e de nossas grandes cidades, do que as tinham todas as damas da Corte de Henrique IV, inclusive a rainha. E essas superfluidades, foi preciso pagá-las quase todas à vista.

Considere principalmente que pagamos aos estrangeiros mais de quinze milhões das rendas do Palácio da Prefeitura e que Henrique IV, ao subir ao trono, tendo encontrado cerca de dois milhões ao todo nesse palácio imaginário, embolsou sensatamente uma parte para aliviar o Estado desse fardo.

Considere que as nossas guerras civis tinham derramado na França os tesouros do México, quando don Phelippo el discreto queria comprar a França, e que, desde então, as guerras estrangeiras nos desembaraçaram da metade do nosso dinheiro.

Eis as causas de nossa pobreza. Ocultamo-la sob lambris envernizados e com o artifício das modistas: somos pobres com bom gosto. Há financistas, empreiteiros, negociantes muito ricos; seus filhos, seus genros, são muito ricos; a nação, em geral, não o é.

Boas ou más, as razões desse velho causaram-me profunda impressão; pois o cura de minha paróquia, que sempre me teve amizade, ensinou-me um pouco de geometria e história, e começo agora a refletir, coisa bastante rara na minha província. Não sei se ele estava com a razão em tudo; mas, sendo eu muito pobre, não tive maiores dificuldades em acreditar que possuía muitos companheiros.(1)


 

I.
QUEBRA DO HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS

 

Folgo em comunicar ao universo que possuo uma terra que me daria uma renda líquida de quarenta escudos, se não fora a taxa a que está sujeita.

Apareceram vários éditos de algumas pessoas que, dispondo de lazeres, governam o Estado do canto da sua lareira. O preâmbulo desses éditos rezava que os poderes legislativo e executivo nasceram co-proprietários da minha terra, por direito divino, e que eu lhes devo pelo menos metade do que como. Ante a enormidade do estômago do legislativo e do executivo, fiz um grande sinal da cruz. Que seria se esses poderes, que presidem à ordem essencial das sociedades, tivessem a minha terra inteira? Um é ainda mais divino que o outro.

Bem sabe o senhor inspetor geral que eu só pagava ao todo doze libras; que era um fardo bastante pesado para mim, e que eu teria sucumbido se Deus não me houvera dado o gênio de fazer cestos de vime, que me ajudavam a suportar a miséria. Como, pois, poderei dar de uma só vez vinte escudos ao rei?

Os novos ministros diziam, mais, no seu preâmbulo, que só se devem taxar as terras, visto que tudo vem da terra, até a chuva, e, por conseguinte, apenas os frutos da terra é que devem imposto.

Um de seus meirinhos veio à minha casa por ocasião da última guerra; pediu-me, por minha quota parte, três sesteiros de trigo e um saco de favas, num total de vinte escudos, para sustentar a guerra que faziam e cuja razão eu jamais soubera, tendo apenas ouvido dizer que, na tal guerra, nada havia a ganhar para o meu país, e muito a perder. Como então eu não tivesse nem trigo, nem favas, nem dinheiro, o legislativo e o executivo me puseram na cadeia; e fizeram a guerra como foi possível.

Ao sair da prisão, não tendo mais que a pele em cima dos ossos, encontrei um homem rechonchudo e corado, numa carruagem de seis cavalos; tinha seis lacaios e pagava de ordenado a cada um o dobro da minha renda. Seu mordomo, tão vermelho quanto ele, recebia dois mil francos, e roubava-lhe, por ano, vinte mil. Sua amante lhe custava quarenta mil escudos em seis meses; eu o conhecera outrora, no tempo em que ele tinha menos do que eu: confessou-me, para me consolar, que tinha quatrocentas mil libras de renda.

— Pagas então duzentas mil libras ao Estado – lhe disse eu, – para auxiliar a vantajosa guerra que sustentamos; pois eu, que tenho exatamente as minhas cento e vinte libras, devo pagar a metade delas.

— Eu? Contribuir para as necessidades do Estado! – exclamou ele. – Estás brincando, meu amigo: herdei de um tio que ganhara oito milhões em Cádiz e Surata; não possuo uma polegada de terra; todos os meus haveres consistem em contratos, em título; nada devo ao Estado: é a ti que compete entregar metade da tua subsistência, pois és um proprietário rural. Não compreendes que, se o ministro das finanças exigisse de mim algum auxílio para a pátria, não passaria de um imbecil incapaz de calcular? Pois tudo vem da terra; o dinheiro e os títulos não são mais que símbolos: em vez de arriscar no faraó cem sesteiros de trigo, cem bois, mil carneiros e duzentos sacos de aveia, jogo rolos de ouro que representam esses gêneros incômodos. Se, depois de cobrado o imposto único sobre esses gêneros, ainda me viessem pedir dinheiro, não vês que seria uma dupla operação, que seria exigir duas vezes a mesma coisa? Meu tio vendeu em Cádiz uns dois milhões do vosso trigo e uns dois milhões de tecidos fabricados com a vossa lã; ganhou mais de cem por cento nesses dois negócios. Bem compreendes que esse lucro foi auferido de terras já taxadas: o que o meu tio vos comprava aqui por dez soldos, vendia-o por mais de cinqüenta francos no México, e, descontadas as despesas, voltou com oito milhões.

Já se vê que seria uma horrível injustiça reclamar-lhe alguns óbulos sobre os dez soldos que ele vos deu. Se vinte sobrinhos como eu, cujos tios houvessem ganho, nos bons tempos, oito milhões cada um, no México, em Buenos Aires, em Lima, em Surata ou Pondichere, emprestassem cada um ao Estado apenas duzentos mil francos, para as necessidades urgentes da pátria, isso importaria em quatro milhões: que horror! Paga, pois, meu amigo, tu que desfrutas em paz de uma renda segura e líquida de quarenta escudos; serve bem à tua pátria, e vem algumas vezes jantar com os meus lacaios.

Essas plausíveis considerações muito me fizeram refletir, mas não me consolaram nada.


 

II.
CONVERSAÇÃO COM UM GEÔMETRA

 

Acontece às vezes que nada se pode responder, sem que no entanto se esteja de acordo. Fica-se vencido mas não convencido. Sente-se no fundo d'alma um escrúpulo, uma repugnância que nos impede de acreditar no que nos provaram. Demonstrou-nos um geômetra que, entre um círculo e uma tangente, podemos fazer passar uma infinidade de linhas curvas e que não podemos fazer passar uma linha reta. Os nossos olhos, a nossa razão nos dizem o contrário. O geômetra responde-nos gravemente que se trata de um infinito de segunda ordem. Caiamo-nos, pois, e retiramo-nos estupefatos, sem nenhuma idéia nítida, sem nada compreender e sem nada replicar.

Vamos então consultar a um geômetra de melhor fé, que nos explica o mistério.

— Imaginamos – disse ele – o que não pode existir na natureza linhas que têm comprimento mas não têm largura; é impossível, fisicamente falando, que uma linha real penetre uma outra. Nenhuma curva, ou nenhuma reta real, pode passar entre duas linhas reais que se tocam: trata-se de jogos do entendimento, de quimeras ideais; e a verdadeira geometria é a arte de medir as coisas existentes.

Fiquei muito contente com a confissão desse sábio matemático, e pus-me a rir, na minha desgraça, ao saber que havia charlatanismo até na ciência a que chamam de alta ciência.

O meu geômetra era um cidadão filósofo que se dignara conversar algumas vezes comigo na minha cabana.

— O senhor procurou – disse-lhe eu – esclarecer os basbaques de Paris quanto ao que mais interessa os homens, a duração da vida humana. Só pelo senhor ficou sabendo o ministério o que deve dar aos rendeiros vitalícios, segundo as diferentes idades. Propôs-se fornecer às casas da cidade a água que lhes falta e salvar-nos enfim do opróbrio e do ridículo de ouvirmos sempre clamar por água e de vermos mulheres, encerradas num arco, carregarem dois baldes d'água, de quinze libras cada um, até um quarto andar. Tenha a bondade de dizer-me quantos animais de duas mãos e de dois pés existem em França.

O Geômetra: – Supõe-se que haja cerca de vinte milhões, e prefiro adotar esse cálculo bastante provável (2), à espera de que o verifiquem, o que seria fácil e ainda não fizeram por que nunca se lembram de tudo.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Quantas jeiras calcula o senhor para o território de França?

O Geômetra: – Cento e trinta milhões, sendo quase metade em estradas, cidades, vilas, landes, charnecas, pântanos, areias, terras estéreis, conventos inúteis, parques mais agradáveis que úteis, terrenos incultos, maus terrenos mal cultivados. Poder-se-ia reduzir as terras de boa produção a setenta e cinco milhões de jeiras quadradas; mas ponhamos oitenta milhões: impossível fazer mais pela pátria.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Quanto julga que cada jeira produza em média, num ano normal, em trigo, grãos de toda espécie, Vinhos, madeiras, metais, gado, frutas, lã, leite e azeite, todas as despesas feitas, sem contar o imposto?

O Geômetra: – Se produzirem, cada uma, vinte e cinco libras, já é muito; ponhamos, no entanto, trinta libras, para não desanimar os nossos concidadãos. Há jeiras que produzem valores contínuos estimados em trezentas libras; outras há que produzem três libras. A média proporcional entre três e trezentos é trinta: pois bem vê que três está para trinta como trinta está para trezentos. É verdade que, se houvesse muitas jeiras de três libras e pouquíssimas de trezentas libras, a nossa conta não valeria; mas, ainda uma vez, não quero fazer chicana.

O Homem dos Quarenta Escudos: – E então, senhor, quanto dão, fazendo o cálculo em dinheiro, os oitenta milhões de jeiras?

O Geômetra: – O cálculo se faz por si: dão, anualmente, dois bilhões e quatrocentos milhões de libras, ao câmbio atual.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Li que Salomão, só em dinheiro, possuía vinte e cinco bilhões; e certamente não há dois bilhões e quatrocentos milhões em circulação na França, que me dizem ser muito maior e mas rica que o país de Salomão.

O Geômetra: – Aí é que está o mistério: há agora no reino talvez uns novecentos milhões em circulação, e esse dinheiro, passando de mão em mão, dá para pagar todos os gêneros e todos os trabalhos; o mesmo escudo pode passar mil vezes do bolso do cultivador para o do taberneiro e do funcionário.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Compreendo. Mas o senhor me disse que somos vinte milhões de habitantes, entre homens e mulheres, crianças e velhos? quanto toca a cada um?

O Geômetra: – Cento e vinte libras, ou quarenta escudos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – O senhor adivinhou a minha renda: possuo quatro jeiras que, entre os anos de descanso e os de produção, me valem cento e vinte libras; é pouco. Como! Se cada um possuísse uma parte igual, como na idade de ouro, não teria cada um senão cinco luises de ouro por ano?

O Geômetra: – Não mais, segundo o nosso cálculo, que eu arredondei um pouco. Tal é a condição humana. A vida e a fortuna são muito limitadas; em média, só se vive, em Paris, de vinte e dois a vinte e três anos; e em média, só se dispõe de cento e vinte libras por ano para gastar; quer dizer que o seu alimento, o seu vestuário, a sua casa, os seus móveis, são representados pela soma de cento e vinte libras.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Que é isso? Que lhe fiz eu, para que assim o senhor me tire a fortuna e a vida? E verdade que só tenho vinte e três anos de vida, a menos que roube a parte de meus camaradas?

O Geômetra: – Isso é incontestável na boa cidade de Paris; mas, desses vinte e três anos, cumpre subtrair pelo menos dez anos da infância; pois a infância não é uma função da vida, é uma preparação: é o vestíbulo do edifício, é a árvore que ainda não deu frutos, é a aurora de um dia. Subtraia aos treze anos que lhe restam o tempo do sono e do tédio, é pelo menos a metade; sobram seis anos e meio que o senhor gastará nos aborrecimentos, nas dores, em alguns prazeres e na esperança.

O Homem dos Quarenta Escudos: – O seu cálculo só concede três anos de existência suportável

O Geômetra: – A culpa não é minha. Pouco se preocupa a natureza com os indivíduos. Há outros insetos que só vivem um dia, mas cuja espécie dura para sempre. A natureza é como esses grandes príncipes que não levam em conta a perda de quatrocentos mil homens, contanto que cheguem ao fim de seus augustos desígnios.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Quarenta escudos e três anos de vida! Que medida imagina o senhor contra essas suas maldições?

O Geômetra: – Quanto à vida, seria preciso tornar mais puro o ar de Paris, que os homens comessem menos e fizessem mais exercícios, que as mães amamentassem os filhos, que a gente não fosse tão mal avisada para temer a inoculação: é o que já tenho dito; e, quanto à fortuna, é só casar e fazer filhos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Como? Quer dizer que o meio de viver comodamente é associar minha miséria à de outrem?

O Geômetra: – Cinco ou seis misérias juntas constituem uma situação bastante tolerável. Arranje uma boa mulher, dois rapazes e duas meninas apenas, o que dará setecentas e vinte libras para a sua casa, na hipótese de que haja justiça e cada indivíduo tenha cento e vinte libras de renda. Os seus filhos, quando pequenos, não lhe custam quase nada; grandes, o aliviarão; seus auxílios mútuos lhe cobrem quase todas as despesas, e o senhor viverá muito venturosamente com toda a filosofia, contanto que esses senhores que governam o Estado não cometam a barbaria de extorquir a cada um vinte escudos por ano; mas a desgraça é que não mais estamos na idade de ouro, em que os homens, nascidos todos iguais, tinham igual parte nos generosos produtos de uma terra não cultivada. Já é muito que, hoje, cada criatura de duas mãos e dois pés possua um fundo de cento e vinte libras de renda.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Ah! o senhor nos arruina. Dizia há pouco que, num país onde há oitenta milhões de jeiras de terra bastante boa e vinte milhões de habitantes, deve cada qual gozar de cento e vinte libras de renda, e agora o senhor no-las tira!

O Geômetra: – Eu calculava pelos dados do século de ouro, quando se deve calcular pelo século de ferro. Há. muitos habitantes que não têm senão dez escudos de renda, outros que só tem quatro ou cinco, e mais de seis milhões de homens que não têm absolutamente nada.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Mas esses morreriam de fome ao cabo de três dias.

O Geômetra: – Absolutamente; os outros que possuem a sua porção, os fazem trabalhar e dividem-na com eles; é o que paga o teólogo, o confeiteiro, o boticário, o procurador, o comediante, o pregador e o cocheiro. O senhor se julgou digno de lástima por não ter senão cento e vinte libras para gastar anualmente, reduzidas a cento e oito libras devido à taxa de doze francos; mas considere os soldados que dão o sangue pela pátria: a quatro soldos por dia, só dispõem de setenta e três libras, com as quais vivem alegremente, agrupando-se em alojamentos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Quer dizer então que um ex-jesuíta ganha cinco vezes mais que um soldado. No entanto os soldados prestaram mais serviços ao Estado, à vista do rei, em Fontenoy, em Laufelt, no cerco de Friburgo, do que jamais o fez o reverendo padre La Valette.

O Geômetra: – Nada mais verdadeiro; e ainda assim, cada jesuíta tornado livre tem mais que gastar do que custava ao convento: há até alguns que ganharam muito dinheiro fazendo brochuras contra os parlamentos, como o reverendo padre Patouillet e o reverendo padre Nonnotte. Cada qual se industria neste mundo: um dirige uma fábrica de tecidos, outro, de porcelana; aquele se dedica à ópera; este redige uma gazeta eclesiástica; este outro uma tragédia burguesa ou um romance ao gosto inglês; mantém o papeleiro, o vendedor de tinta, o livreiro, o bufarinheiro, que, não fora ele, estariam pedindo esmola. Afinal, é a restituição das cento e vinte libras aos que nada têm que faz florescer o Estado.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Bela maneira de florescer!

O Geômetra: – Não há outra: em todo país, o rico faz o pobre viver. Eis a única fonte da indústria do comércio. Quanto mais industriosa a nação, mais ganha do estrangeiro. Se conseguíssemos do estrangeiro dez milhões anuais, pelo comércio, dentro em vinte anos haveria duzentos milhões a mais no Estado: seriam mais dez francos para distribuir lealmente a cada um; quer dizer que os negociantes fariam ganhar a cada pobre dez francos a mais, na esperança de obter lucros ainda mais consideráveis. Mas o comércio tem seus limites, como a fertilidade da terra: a não ser assim, a progressão iria ao infinito: por outro lado, não é seguro que a balança comercial nos seja sempre favorável; há tempos em que perdemos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Ouvi falar muito em população. Que aconteceria se nos puséssemos a fazer o dobro dos filhos que habitualmente fazemos, se a nossa pátria fosse povoada ao dobro, se tivéssemos quarenta milhões de habitantes em vez de vinte?

O Geômetra: – Aconteceria que cada um só teria em média vinte escudos para gastar, ou seria preciso que a terra rendesse o dobro do que rende, ou tivesse o dobro de pobres, ou cumpriria ter o dobro de indústria e ganhar o dobro do estrangeiro, ou enviar metade da nação para a América, ou que metade da nação comesse a outra.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Contentemo-nos pois com os nossos vinte milhões de homens e as nossas cento e vinte libras por cabeça, repartidas como apraza a Deus; mas essa situação é triste, e bem duro o seu século de ferro.

O Geômetra: – Não há nação nenhuma que esteja em melhores condições; e outras há que estão muito pior. Acredita que haja no Norte com que dar o equivalente de cento e vinte libras a cada habitante? Se possuíssem o equivalente, não teriam os hunos, godos, vândalos e francos desertado a sua pátria para estabelecer-se alhures, a ferro e fogo.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Se o deixasse falar, o senhor em breve me persuadiria de que eu sou muito feliz com os meus cento e vinte francos.

O Geômetra: – Se o senhor pensasse que é feliz, nesse caso o seria.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Impossível que alguém imagine ser o que não é, a menos que esteja louco.

O Geômetra: – Já disse que o senhor, para sentir-se mais a gosto e mais feliz do que é, devia tomar mulher; mas acrescentarei que esta também deverá ter cento e vinte libras de renda, isto é, quatro jeiras a dez escudos a jeira. Os antigos romanos não tinham senão três. Seus filhos, se forem industriosos, poderão ganhar o mesmo cada um, trabalhando para os outros.

O Homem dos Quarenta Escudos: – De modo que não poderão eles ter dinheiro sem que outros o percam?

O Geômetra: – É a lei de todas as nações; só se respira por esse preço.

O Homem dos Quarenta Escudos: E ainda será preciso que minha mulher e eu entreguemos, cada um, metade da nossa colheita ao poder legislativo e executivo, e que os novos ministros do Estado nos arrebatem metade do preço do nosso suor e da subsistência de nossos pobres filhos antes que estes possam ganhar a vida?! Diga-me a quanto monta o dinheiro de direito divino que os nossos ministros carregam para os cofres do rei.

O Geômetra: – Paga o senhor vinte escudos por quatro jeiras que rendem quarenta. O rico que possui quatrocentas jeiras pagará, por essa nova tarifa, dois mil escudos, e os oitenta milhões de jeiras renderão, para o rei, anualmente, um bilhão e duzentos milhões de libras, ou quatrocentos milhões de escudos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Isto me parece impraticável e impossível.

O Geômetra: – O senhor tem toda a razão, e tal impossibilidade é uma demonstração geométrica de que há um vício fundamental de raciocínio nos planos dos novos ministros.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Não está também patente uma prodigiosa injustiça no fato de me tomarem metade do meu trigo, do meu cânhamo, da lã de meus carneiros, etc., e não exigirem nenhuma contribuição daqueles que terão ganho dez ou vinte ou trinta mil libras de renda com o meu cânhamo, de que fabricaram o tecido, com a minha lã de que fizeram cobertas, com o meu trigo, que terão vendido mais caro do que compraram?

O Geômetra:- Tão evidente é a injustiça dessa administração quanto errôneo o seu cálculo. Cumpre que a indústria seja favorecida, mas cumpre que a indústria opulenta socorra o Estado. Essa indústria sem dúvida lhe tirou uma parte das suas cento e vinte libras e delas se apropriou vendendo-lhe camisas e roupas vinte vezes mais caro do que lhe custariam se o senhor mesmo as tivesse feito. O fabricante, que enriqueceu à custa do senhor, deu, confesso-o, um salário aos respectivos operários, que nada possuíam de seu; mas reteve para si próprio, anualmente, uma soma que lhe valeu afinal trinta mil libras de renda: foi, pois, à custa do senhor que ele adquiriu a sua fortuna; o senhor nunca lhe poderá vender os seus gêneros tão caro que possa indenizar-se do que ele ganhou nas suas costas; pois, se tentasse essa alta, ele compraria no estrangeiro a preço mais conveniente. Uma prova de que isso é verdade é que ele continua sempre no gozo das suas trinta mil libras de renda, ao passo que o senhor fica com as suas cento e vinte libras, que, longe de aumentar, seguidamente diminuem.

É, pois, necessário e eqüitativo que a indústria refinada do negociante pague mais do que a indústria grosseira do lavrador. O mesmo se dá com o recebedor dos juros públicos. Sua taxa era de doze francos antes que os nossos grandes ministros lhe tivessem tomado vinte escudos. Sobre esses doze francos ficava o publicano com dez soldos. Se há na sua província quinhentas mil almas, terá ele ganho duzentos e cinqüenta mil francos anuais. Que gaste cinqüenta, é claro que ao fim de dez anos possuirá dois milhões. É muito justo que ele contribua proporcionalmente, sem o que tudo estaria pervertido e desequilibrado.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Agradeço-lhe por haver taxado esse financeiro, isto alivia a minha imaginação. Mas, visto que ele aumentou tão lindamente o seu supérfluo, como poderei eu fazer para também aumentar minha pequena fortuna!

O Geômetra: – Já lhe disse: casando-se, trabalhando, procurando tirar de sua terra mais alguns feixes do que ela lhe proporcionava.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Na hipótese de que eu tenha trabalhado bastante, que toda a nação haja feito o mesmo, que o legislativo e executivo tenham angariado com isso maior tributo, quanto a nação terá ganho no fim do ano?

O Geômetra: – Nada, a menos que tenha feito um útil comércio exterior: mas terá vivido mais comodamente. Cada qual, em proporção, terá tido mais vestuários, mais camisas, mais móveis do que antes. Terá havido no Estado uma circulação mais abundante, os salários terão sido aumentados, com o tempo, mais ou menos em proporção ao número das medas de trigo, das mãos de lã, dos couros de bois, cervos e cabras que tenham sido aproveitados, dos racimos que tenham ido para o lagar. Ter-se-á pago ao rei mais valores de gêneros e dinheiro, e o rei terá devolvido valores aos que houver feito trabalhar sob as suas ordens; mas não haverá um escudo a mais no reino.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Que restará então ao poder no fim do ano?

O Geômetra: – Nada; é o que acontece a todo poder: não entesoura; foi alimentado, vestido, alojado, mobiliado; todo o mundo também o foi, cada qual conforme a sua condição. E, caso entesoure, arranca à circulação tanto dinheiro quanto acumulou; fez tantos desgraçados quantas porções de quarenta escudos meteu no cofre.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Mas esse grande Henrique IV não passava então de um vilão, de um ladravaz, de um larápio; pois me contaram que enfurnara na Bastilha mais de cinqüenta milhões na moeda atual

O Geômetra: – Era um homem tão bom, tão prudente quão valoroso. Ia fazer uma guerra justa e, acumulando nos seus cofres vinte e dois milhões na moeda da época, tendo ainda a receber mais outros vinte que deixava circular, poupava ao povo mais de cem milhões que lhe custaria se não houvesse tomado essas úteis medidas. Tornava-se moralmente seguro do sucesso contra um inimigo que não tomara as mesmas precauções. O cálculo das probabilidades era prodigiosamente em seu favor. Seus vinte e dois milhões entesourados provavam que havia então no reino o valor de vinte e dois milhões de excedente nos bens da terra; assim ninguém era prejudicado.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Bem que o meu velhote me havia dito que se era relativamente mais rico sob a administração do duque de Sully que sob a dos novos ministros que lançaram o imposto único e me tomaram vinte escudos sobre quarenta. Diga-me, há. alguma nação no mundo que goze desse belo benefício do imposto único?

O Geômetra: – Nenhuma nação opulenta. Os ingleses, que não riem nunca, puseram-se a rir, quando souberam que pessoas inteligentes haviam proposto entre nós esse sistema. Os chineses exigem uma taxa de todos os vassalos negociantes que abordam em Cantão; os holandeses, quando admitidos no Japão, pagam tributo em Nagasaki, sob o pretexto de que não são cristãos. Os lapões e samoeses são na verdade submetidos a um imposto único, em peles de marta; a república de S. Marinho só paga dízimos para sustentar o esplendor do Estado.

Há na Europa uma nação, famosa por sua equanimidade e valor, que não paga nenhuma taxa. É o povo helvético; mas eis o que aconteceu: esse povo pôs-se no lugar dos duques de Áustria e de Zeringue; os pequenos cantões são democráticos e muito pobres, cada habitante paga uma soma bastante módica, para as necessidades da pequena república. Nos cantões ricos, devem-se ao Estado os tributos que os arquiduques da Áustria e os senhores latifundiários exigiam; os cantões protestantes são o dobro mais ricos que os católicos, pois ali o Estado possui os bens que pertenceriam aos padres. Os que eram súbditos dos duques da Áustria, dos duques de Zeringue e dos padres, hoje o são da pátria; pagam à pátria os mesmos dízimos, os mesmos direitos, os mesmos laudêmios que pagavam aos antigos senhores; e, como os súditos em geral têm pouco comércio, o negócio não é sujeito a nenhum tributo, exceto pequenos direitos de entreposto: o que faz entrar algum dinheiro no seu país à nossa custa; exemplo tão único no mundo civilizado como o imposto estabelecido por nossos novos legisladores.

O Homem dos Quarenta Escudos: – De modo que os suíços não são despojados da metade de seus bens por direito divino, e o que possui quatro vacas não entrega duas ao Estado?

O Geômetra: – Não, certamente. Num cantão, sobre treze tonéis de vinho, entrega-se um e bebem-se doze. Num outro cantão, paga-se a duodécima parte e bebem-se as onze restantes.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Ah! que me façam suíço! Maldito esse iníquo imposto único, que me reduziu a pedir esmola! Mas trezentos ou quatrocentos impostos, que até os nomes é impossível reter e pronunciar, são acaso mais justos e honestos? Já houve legislador que, ao fundar um Estado, tenha imaginado delegados reais aferidores de carvão, avaliadores de vinho, inspetores de lenha, examinadores de porcos, fiscais de manteiga? Sustentar um exército de pândegos duas vezes mais numeroso que o de Alexandre, comandado por sessenta generais que requisitam tudo, que todos os dias conseguem assinaladas vitórias, que fazem prisioneiros e que às vezes os sacrificam no ar ou num tablado, como faziam os antigos citas, pelo que me disse o cura.

Tal legislação, contra a qual se elevavam tantos clamores e que fazia derramar tantas lágrimas, acaso valia mais do que essa que de repente me tira, sem cerimônia, metade da minha subsistência?

O Geômetra: Ilíacos intra muros peccatur et extra.

Est modus in rebus, caveas ne quid nimis.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Aprendi um pouco de história e geometria, mas não sei latim.

O Geômetra: – Isso significa mais ou menos que mal está de ambos os lados, que em tudo se deve guardar o meio termo: nada de excessos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Sim, nada de excessos é o que acontece comigo; mas sucede que não tenho o suficiente.

O Geômetra: – Convenho em que o senhor morrerá de fome, e eu também, e o Estado também, no caso que a nova administração dure apenas uns dois anos; mas é de esperar que Deus se compadeça de nós.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Passa-se a vida a esperar e morre-se. Adeus, o senhor me esclareceu, mas tenho o coração partido.

O Geômetra; – É muitas vezes o fruto da ciência.


 

III.
AVENTURA COM UM CARMELITA

 

Depois de agradecer devidamente os esclarecimentos que me prestara o sócio da Academia de Ciências, retirei-me maravilhado, mas murmurando entre dentes estas tristes palavras: “Apenas vinte escudos com que viver, e viver só vinte e dois anos! Meu Deus, quem dera que a nossa vida fosse ainda mais curta, já que é tão desgraçada!”

Logo me encontrei defronte a uma casa soberba. Já sentia fome; não tinha nem ao menos a centésima-vigésima parte do que toca, de direito, a cada indivíduo; mas, quando me disseram que aquele palácio era o convento dos reverendos carmelitas descalços, enchi-me das maiores esperanças e disse com os meus botões. “Visto que esses santos são tão humildes a ponto de andar descalços, hão de ser bastante caridosos para me darem de comer”.

Bati; apareceu um carmelita:

— Que desejas, meu filho?

— Pão, meu reverendo; os novos éditos me tiraram tudo.

— Meu filho, nós pedimos. esmola, não a damos.

— Como! Então o vosso santo instituto vos ordena não usar sapatos, e tendes uma casa principesca, e ainda me recusais comida?!

— É verdade que não usamos sapatos nem meias, meu filho; é uma despesa a menos; mas não sentimos mais frio nos pés do que nas mãos; e se o nosso santo instituto nos houvesse ordenado que andássemos de bunda de fora, não sentiríamos frio no traseiro. Quanto à nossa bela casa, construímo-la com toda a facilidade, pois temos cem mil libras de renda em casas na mesma rua.

— Ah, ah! Com que então me deixam morrer de fome e têm cem mil libras de renda?! Quer dizer então que pagam cinqüenta mil ao novo governo?

— Deus nos livre de pagar um óbulo! Só o produto da terra cultivada por mãos laboriosas, endurecidas de calos e molhadas de lágrimas, é que deve tributos ao poder legislativo e executivo. As esmolas que nos foram dadas habilitaram-nos a construir essas casas de que auferimos cem mil libras anuais. Mas essas esmolas provêm dos frutos da terra, que já pagaram tributo, e o tributo não deve ser pago duas vezes. Tais esmolas santificaram os fiéis que empobreceram enriquecendo-nos; e nós continuamos a pedir esmola e a pôr em contribuição o faubourg Saint-Germain, para santificar ainda mais os fiéis.

Dito isto, o carmelita fechou-me a porta no nariz.

Passei pelo quartel dos mosqueteiros; contei a história a um desses senhores: eles me deram um bom almoço e um escudo. Um deles propôs incendiarem o convento; mas um mosqueteiro mais sensato demonstrou-lhe que ainda não era chegado o tempo, e pediu-lhe para esperar uns dois ou três anos.


 

IV.
AUDIÊNCIA DO SENHOR INSPETOR GERAL

 

Fui, com o meu escudo, apresentar um requerimento ao senhor Inspetor Geral, que dava audiência naquele dia. Sua antecâmara estava cheia de gente de toda espécie. Havia principalmente faces ainda mais rechonchudas, barrigas mais empinadas, fisionomias mais altivas que as do meu homem dos oito milhões. Não ousava aproximar-me: via-os, e eles não me viam.

Um monge, grande dizimeiro. intentara um processo contra cidadãos a quem chamava de seus camponeses. Tinha mais rendimentos que a metade de seus paroquianos; e ainda por cima era senhor feudal. Pretendia que seus vassalos, tendo convertido com grande dificuldade as charnecas em vinhedos, lhe deviam a décima parte do vinho que produziam, o que constituía, contando o preço do trabalho e do material, mais de quarta parte da colheita. Mas como as dízimas – dizia ele – são de direito divino, peço o quarto da substância de meus camponeses em nome de Deus. – Bem vejo – disse o ministro – quanto o senhor é caridoso.

Disse então um arrendatário de impostos, muito hábil no seu mister:

— Senhor, essa aldeia nada pode dar a esse monge; pois tendo ele obrigado os paroquianos a pagar, no ano passado, trinta e dois impostos sobre o vinho, condenando-os em seguida a pagar o excesso de consumo, acham-se os pobres completamente arruinados. Fiz com que vendessem os animais e os móveis, e ainda são meus devedores. Oponho-me às pretensões do reverendo padre.

— Tem razão de ser seu rival – replicou o ministro. – Tanto um como o outro amam o próximo, e ambos me edificam.

Um terceiro, monge e senhor, cujos camponeses são inalienáveis, esperava também uma decisão do conselho que o tornasse possuidor de todos os bens de um indivíduo de Paris, que tendo, por inadvertência, permanecido um ano e um dia numa casa sujeita àquela servidão e encravada nos Estados dele, padre, ali viera a falecer.

O ministro achou o monge tão justo e brando de coração como os dois primeiros.

Um quarto, que era fiscal do domínio, apresentou um belo memorial, com que se justificava de haver reduzido vinte famílias à miséria. Tinham elas herdado de tios ou tias, irmãos, ou primos; fora preciso pagar os competentes direitos. O senhor generosamente lhes provou que não tinham avaliado com exatidão a sua herança; que eram muito mais ricas do que supunham; e, tendo-as, por conseguinte, condenado à multa do triplo, arruinando-as nas custas, e prendendo os chefes de família, lhes comprara as melhores propriedades, sem desembolsar coisa alguma.

Disse-lhe então o inspetor Geral (em um tom na verdade um pouco amargo): “Eugé! fiscal bone et fidelis, quia super pauca fuisti fidelis rendeiro geral te constituam”. (3)

Mas cochichou a um referendário que se achava a seu lado:

— Essas sanguessugas, sagradas ou profanas, devem ser obrigadas a vomitar: já é tempo de aliviar o povo, que, se não fora a nossa assistência e equidade, nunca teria com que viver senão no outro mundo. (4)

Homens de gênio profundo apresentaram-lhe projetos. Imaginara um lançar impostos sobre a inteligência.

— Todos – dizia ele – se apressarão a pagar, pois ninguém quer passar por tolo.

—.Declaro-o isento do imposto – retrucou-lhe o ministro.

Outro propôs estabelecer o imposto único sobre as canções e o riso, visto que a nação era a mais alegre do mundo e que, uma canção a consolava de tudo. Mas o ministro observou que havia tempo que não faziam canções alegres, e mostrou-se receoso de que, para escapar ao imposto, todo o mundo se tornasse demasiado sério.

Surgiu um sábio e excelente cidadão que projetava fazer com que o rei recebesse três vezes mais, pagando o povo três vezes menos. O ministro aconselhou-lhe que fosse aprender aritmética.

Um quarto provava ao rei, por amizade, que este não podia recolher senão setenta e cinco milhões, mas que ele lhe ia proporcionar duzentos e vinte e cinco.

— Isso muito nos beneficiará – disse o ministro – quando tivermos pago as dividas do Estado.

Chegou afinal um representante do novo autor que faz o poder legislativo co-proprietário de todas as nossas terras, por direito divino, e que garantia ao rei um bilhão e duzentos milhões de renda. Reconheci o homem que me mandara para a cadeia por não haver pago os meus vinte escudos. Lancei-me aos pés do senhor Inspetor Geral e pedi-lhe justiça; ele deu uma gargalhada e disse-me que me haviam pregado uma peça. Ordenou àqueles gracejadores de mau gosto que me dessem cem escudos de indenização, e dispensou-me da taxa para o resto da vida. – Deus o abençoe, senhor – lhe disse eu.


 

V.
CARTA AO HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS

 

Embora seja eu três vezes mais rico que o senhor, isto é, embora possua trezentas e sessenta libras ou francos de renda, escrevo-lhe no entanto de igual para igual, sem afetar o orgulho das grandes fortunas.

Li a história do seu desastre e da justiça que lhe concedeu o Inspetor Geral. Meus cumprimentos. Mas por desgraça acabo de ler Le Financier Citoyen, apesar da repugnância que me causara o título, que a muita gente se afigura contraditório. Esse cidadão lhe tira vinte francos da sua renda e a mim sessenta: apenas concede cem francos a cada indivíduo, na totalidade dos habitantes. Mas, em compensação, um homem não menos ilustre eleva as nossas rendas até cento e cinqüenta libras; vejo que o seu geômetra preferiu o meio termo. Não é desses magníficos senhores que, com uma penada, povoam Paris de um milhão de habitantes, e fazem circular pelo reino um bilhão e meio de metal sonante, depois de tudo o que perdemos nas últimas guerras.

Como sei que é um grande leitor, emprestar-lhe-ei Le Financier Citoyen. Mas não se fie nele em tudo: cita o testamento do grande ministro Colbert, e não sabe que se trata de uma rapsódia ridícula, feita por um tal Gatien de Courtilz; cita a Dízima do marechal de Vauban, e não sabe que é de um tal Boisguilbert; cita o testamento do cardeal de Richelieu, e não sabe que é do abade de Bourzéis. Supõe haver dito esse cardeal que, quando a carne encarece, paga-se mais ao soldado. No entanto, a carne subiu muito sob o seu ministério, e o pagamento do soldado não aumentou; o que prova, independentemente de cem outras provas, que esse livro, tido por apócrifo ao aparecer, e depois atribuído ao próprio cardeal, é tanto seu como os testamentos do cardeal Alberoni e do marechal de Belle-Isle.

Desconfie, toda a vida, dos testamentos e dos sistemas; já fui vítima deles, como o senhor. Se os Sólons e Licurgos modernos zombaram do senhor, ainda mais zombaram de mim os novos Triptólemos; e, não fosse uma pequena herança que me reanimou, teria eu morrido de miséria.

Possuo cento e vinte jeiras na mais bela região da natureza e no solo mais ingrato. Cada jeira, na minha terra, descontadas as despesas, só rende um escudo de três libras. Mal vi nos jornais que um famoso agricultor inventara uma nova semeadeira, e que lavrava as suas terras por tabuleiros a fim de que, semeando menos, colhesse mais, apressei-me em tomar dinheiro emprestado, comprei uma semeadeira, lavrei por tabuleiros; perdi o dinheiro e o trabalho, bem como o ilustre agricultor, que não mais semeia por tabuleiros.

Quis a minha má sorte que eu lesse o Journal Economique, que se vende no Boudot, em Paris. Dei com os olhos na experiência de um engenhoso parisiense que, para se distrair, mandara lavrar quinze vezes o seu jardim, ali plantando trigo, em vez de tulipas: fez uma colheita abundantíssima. Arranjei mais dinheiro emprestado. “Basta fazer quinze lavras – dizia eu comigo – e terei o dobro da colheita desse digno parisiense, que descobriu princípios de agricultura na ópera e na comédia, e eis-me enriquecido com as suas lições e o seu exemplo”.

Na minha terra, lavrar quatro vezes que seja, é uma coisa impossível; o rigor e as súbitas mudanças das estações não o permitem; por outro lado, a desgraça de semear por tabuleiro, como o ilustre agricultor de que falei, forçara-me a vender a minha atrelagem. Mandei lavrar trinta vezes as minhas cento e vinte jeiras por todas as charruas de quatro léguas em derredor. Três amanhos para cada jeira me custaram cento e vinte libras: o das minhas cento e vinte jeiras importou em catorze mil e quatrocentas libras. Minha colheita que monta, num ano normal, em minha maldita terra, a trezentos sesteiros, subiu, é verdade, a trezentos e trinta, o que a vinte libras o sesteiro, me rendeu seis mil e seiscentas libras: perdi sete mil e oitocentas libras.

Estava arruinado, perdido, se não fora uma velha tia que um grande médico despachou para o outro mundo, raciocinando tão bem em medicina como eu em agricultura.

Quem dizia que eu ainda havia de ter a fraqueza de me deixar seduzir pelo Journal de Boudot? Esse homem, afinal de contas, não havia jurado a minha perdição. Li na referida publicação que bastava inverter quatro mil francos para conseguir quatro mil libras de renda em alcachofras. Ora, pois, com certeza Boudot me devolverá em alcachofras o que me fez perder em trigo. E eis os meus quatro mil francos despendidos e as minhas alcachofras devoradas pelos ratões. Fui vaiado no meu cantão como o diabo de Papefiguière.

Escrevi uma fulminante carta de censura a Boudot. Como única resposta, o bandido divertiu-se à minha custa, no seu Journal. Negou-me impudentemente que os caraíbas fossem vermelhos. Vi-me obrigado a enviar-lhe o testemunho de um antigo procurador do rei de Guadalupe, de como Deus fez vermelhos aos caraibas, como fez pretos aos negros, Mas essa pequena vitória não me impediu de perder, até o último ceitil, toda a herança da minha tia, por haver acreditado em demasia nos novos sistemas. Cuidado, meu caro senhor, cuidado com os charlatães.


 

VI.
NOVAS CONTRARIEDADES OCASIONADAS PELOS NOVOS SISTEMAS

(Trecho extraído dos manuscritos de um velho solitário)

 

Vejo que, se bons cidadãos se divertiram em governar os Estados e colocar-se no lugar dos reis, se outros se julgaram Triptólemos e Ceres, outros houve, mais ambiciosos, que se puseram sem cerimônia no lugar de Deus e criaram o universo com a pena, como Deus os criou outrora com o verbo.

Um dos primeiros que se apresentaram à minha adoração foi um descendente de Tales, chamado Teliamed, que me fez saber que as montanhas e os homens são produzidos pelas águas do mar. Houve primeiro belos homens marinhos, que depois se tornaram anfíbios. A sua bela cauda bipartida se transformou em pernas. Estava eu ainda sob a impressão das Metamorfoses de Ovídio e de um livro onde se demonstrava que a raça dos homens era bastarda de uma raça de babuínos: tanto me importava descender de um peixe como de um macaco.

Com o tempo, vieram-me dúvidas quanto a essa genealogia e até no tocante à formação das montanhas.

— Como! – disse-me ele. – Não sabe então que as correntes marítimas que amontoam continuamente areia a dez ou doze pés de altura quando muito, produziram, no decorrer de longos séculos, montanhas de vinte mil pés de altura, as quais não são de areia? Fique sabendo que o mar já. cobriu necessariamente toda a superfície do globo. A prova está em que se viram âncoras de navio sobre o monte S. Bernardo, que ali se achavam vários séculos antes que os homens tivessem navios. Imagine que a terra é um globo de vidro que foi por muito tempo todo coberto de água.

Quanto mais ele me doutrinava, mais incrédulo me tornava eu.

— Pois então não viu – disse-me ele – o fálum de Touraine, a trinta e seis léguas do mar? E um acúmulo de conchas, com as quais se aduba a terra, como com esterco. Ora, se o mar depositou, na sucessão dos tempos, uma mina inteira de conchas a trinta e seis léguas do Oceano, por que não se terá estendido até três mil léguas, durante vários séculos, sobre o nosso globo de vidro?

— Senhor Teliamed – respondi-lhe eu, – há pessoas que fazem quinze léguas por dia a pé, mas não podem fazer cinqüenta. Não creio que o meu jardim seja de vidro e, quanto ao seu fálum, continuo a duvidar que seja um leito de conchas marinhas. Bem podia ser que não passasse de um depósito de pequenas pedras calcárias que tomam facilmente a forma de fragmentos de conchas, como há pedras que tomaram a configuração de línguas e que não são línguas; de estrelas, e que não são astros; de serpentes enroscadas, e que não são serpentes; de partes naturais do belo sexo, e que no entanto não são despojos das damas. Vêem-se dendrites, pedras figuradas, que representam árvores e casas, sem que jamais essas pequenas pedras tenham sido casas e carvalhos.

Se o mar depositou tantos leitos de conchas em Touraine, por que teria negligenciado a Bretanha, a Normandia, a Picardia, e todas as outras costas? Receio que esse fálum tão gabado provenha tanto do mar como os homens. E, mesmo que o mar se expandisse trinta e seis léguas, não quer dizer que o tenha feito até três mil, ou trezentas mil, e que todas as montanhas foram produzidas pelas águas. Tanto faz dizer que o Cáucaso formou o mar como pretender que o mar formou o Cáucaso.

— Mas que me diz, senhor incrédulo, das ostras petrificadas que foram encontradas no cume dos Alpes?

— Direi, senhor Criador, que não vi mais ostras petrificadas que âncoras de navio no alto do Monte Cinéreo. Direi o que já se disse, que se encontraram conchas de ostras (as quais facilmente se petrificam) a grandes distâncias do mar, como se desenterraram medalhas romanas a cem léguas de Roma; e prefiro acreditar que peregrinos de St. Jacques abandonaram algumas conchas a caminho de St. Maurice a imaginar que o mar formou o monte de S. Bernardo.

Há conchas por toda parte; mas não se poderá afirmar que são despojos de testáceos e crustáceos dos nossos lagos, tanto como de pequenos animais marinhos?

— Senhor incrédulo, olhe que o porei a ridículo no mundo que me proponho criar!

— Senhor criador, faça o que bem lhe parecer; cada qual é senhor no seu mundo; mas nunca me fará acreditar que este em que estamos seja de vidro, nem que algumas conchas sejam prova de que o mar produziu os Alpes e o monte Taurus. Bem sabe que não há nenhuma concha nas montanhas da América. Com certeza não foi o senhor quem criou aquele hemisfério, e deve contentar-se em haver formado este velho mundo: já é bastante.

— Senhor, senhor, se não descobriram conchas nas montanhas da América, haverão de descobri-las.

— Isto é que é falar como criador, que conhece o seu segredo e está seguro do que faz. Deixo-lhe, pois, o seu fálum, desde que o senhor me deixe as minhas montanhas. Aliás, declaro-me humilde e obediente servo de Vossa Providência.

No tempo em que assim me instruía com Teliamed, um jesuíta irlandês disfarçado de homem, aliás grande observador, e que tinha bons microscópios, fez enguias com farinha de trigo mofado. Não mais se duvidou então que fosse possível fazer homens com farinha de bom trigo. Logo se criaram partículas orgânicas que constituíram homens. Por que não? O grande geômetra Fatio havia ressuscitado mortos em Londres; com a mesma facilidade podia-se fazer criaturas vivas, em Paris, com partículas orgânicas; mas havendo infelizmente desaparecido as novas enguias de Needham, os novos homens também desapareceram e fugiram para as mônadas que encontraram em meio da matéria sutil, globulosa e estriada.

Não que esses criadores de sistemas não hajam prestado grandes serviços à física; Deus me livre de menosprezar os seus trabalhos! Já os compararam a esses alquimistas que, fabricando ouro (que não se fabrica), descobriram bons remédios ou pelo menos coisas bastante curiosas. Pode alguém ser um homem de raro mérito e enganar-se quanto à formação dos animais ou à estrutura do globo.

Os peixes transformados em homens, as águas transformadas em montanhas, não me haviam causado tanto mal quanto o senhor Boudot; limitava-me tranqüilamente a duvidar, quando um lapônio me tomou sob a sua proteção. Era um profundo filósofo, mas que jamais perdoava aos que não pensavam como ele. Fez-me, a princípio, ver claramente o futuro, exaltando minha alma. Fiz tão prodigiosos esforços de exaltação, que adoeci; mas ele curou-me, untando-me de pixe da cabeça aos pés. Mal me vi em condições de andar, propõe-me uma viagem às terras austrais, para ali dissecar cabeças de gigantes, o que nos faria conhecer claramente a natureza da alma. Como eu não podia suportar o mar, teve a bondade de levar-me por terra. Mandou cavar um grande túnel no globo terráqueo: esse túnel ia dar direito na Patagônia. Partimos; quebrei uma perna à entrada do túnel; tiveram enorme dificuldade em encaná-la: formou-se um calo que me aliviou bastante.

Já falei de tudo isso em uma de minhas diatribes, para instruir o universo atento a essas grandes coisas. Estou bastante velho; gosto algumas vezes de repetir as minhas histórias, a fim de melhor as inculcar na cabeça dos meninos, para os quais trabalho há tanto tempo.


 

VII.
CASAMENTO DO HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS

 

Já bastante instruído, e havendo reunido uma pequena fortuna, o homem dos quarenta escudos desposou uma linda moça que possuía cem escudos de renda. Sua esposa logo ficou grávida. Ele foi procurar o seu geômetra, e perguntou-lhe se ela lhe daria um menino ou uma menina. Respondeu-lhe o geômetra que as parteiras e as criadas ordinariamente o sabiam, mas que os físicos, que predizem os eclipses, não eram tão esclarecidos quanto elas.

Quis saber depois se o seu filho, ou filha, já possuía uma alma. O geômetra disse-lhe que isso não era da sua competência e que fosse falar com o teólogo da esquina.

O homem dos quarenta escudos, que já o era no mínimo dos duzentos, perguntou em que local se achava o seu filho.

— Numa pequena bolsa – lhe disse o amigo, – entre a bexiga e o intestino reto.

— Santo Deus! – exclamou ele. – A alma imortal de um filho nascida e alojada entre a urina e algo pior!

— Sim, meu caro vizinho, a alma de um cardeal não teve outro berço; e com tudo isso ainda se fazem de arrogantes e dão-se ares.

— Ah, senhor sábio, não me poderia dizer como se formam os filhos?

— Não, meu amigo; mas, se quiser, dir-lhe-ei o que os filósofos imaginaram, isto é, como os filhos não se formam.

Em primeiro lugar, o reverendo padre Sánchez, no seu excelente livro De Matrimônio, é inteiramente da opinião de Hipócrates; crê, como artigo de fé, que os dois veículos fluidos do homem e da mulher se lançam e unem-se e que, em tal momento, o filho é concebido por essa união; e tão persuadido está desse sistema físico, tornado teológico, que o examina no capítulo XXI do livro segundo: Utrum virgo Maria semen emiserit in copulatione cum Spiritu Sancto.

— Ai senhor, já lhe disse que não entendo latim; explique-me em francês o oráculo do padre Sánchez.

O geômetra lhe traduziu o testo e ambos fremiram de horror.

O recém-casado, achando Sánchez prodigiosamente ridículo, ficou entretanto muito satisfeito com Hipócrates; e estimava que sua mulher houvesse preenchido todas as condições impostas por aquele médico para fazer um filho.

— Infelizmente – disse-lhe o vizinho, – há muitas mulheres que não expandem nenhum licor, que só recebem, com aversão as carícias maritais, e no entanto têm filhos. Só isto decide contra Hipócrates e Sánchez.

De resto, tudo leva a crer que a natureza age sempre nos mesmos casos pelos mesmos princípios; ora, há muitas espécies de animais que engendram sem cópula, como os peixes escamados, as ostras, os pulgões. Tiveram pois os físicos de procurar uma mecânica de gerações que conviesse a todos os animais. O célebre Harvey, que primeiro demonstrou a circulação, e que era digno de descobrir o segredo da natureza, julgou tê-lo achado nas galinhas: estas põem ovos; ele concluiu que as mulheres também os punham. Os gracejadores de mau gosto disseram que era por isso que os burgueses, e até alguns cortesãos, chamam a mulher, ou a amante, de minha franguinha, e quando se diz que as mulheres são galantes é porque elas desejariam que os galos lhes arrastassem a asa. Apesar dessas zombaria, Harvey não mudou de opinião, e ficou estabelecido em toda a Europa que nós provimos de um ovo.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Mas o senhor me disse que a natureza é sempre semelhante a si mesma, que age sempre pelo mesmo princípio no mesmo caso: as mulheres, as éguas, as mulas, as enguias, não põem; o senhor está brincando.

O Geômetra: – Elas não põem para fora, mas põem para dentro; têm ovários como todas as aves; as éguas, as enguias também os têm. Um ovo se destaca do ovário; é chocado na matriz. Veja todos os peixes escamados, as rãs: lançam ovos, que o macho fecunda. As baleias e os outros animais marinhos dessa espécie fazem brotar os ovos na matriz. As traças, os mais vis insetos, são visivelmente formados de um ovo: tudo vem de um ovo; e o nosso globo é um grande ovo que contém todos os outros.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Palavra! esse sistema tem todas as características da verdade; é simples, é uniforme, é patente em mais de metade dos animais. Estou satisfeito, não quero outro. Nada me é mais caro do que o. ovos de minha mulher.

O Geômetra: – Afinal, cansaram-se desse sistema: e começaram a fazer filhos de outra forma. O Homem dos Quarenta Escudo.: – E por que? Essa forma não é tão natural?

O Geômetra: – É que pretenderam que as nossas mulheres não têm ovários, mas somente pequenas glândulas.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Com certeza pessoas que tinham outro sistema preparado quiseram desacreditar os ovos.

O Geômetra: – Pode ser. Dois holandeses deram para examinar, ao microscópio, o licor seminal do homem e de vários animais, e julgaram perceber animais já formados que corriam com inconcebível rapidez. Descobriram-nos até no fluido seminal do galo. Julgou-se então que os machos faziam tudo e as fêmeas nada; estas só serviam para carregar o tesouro que o macho lhes confiara.

O Homem dos Quarenta Escudos: – É muito estranho isso. – Tenho algumas dúvidas sobre todos esses animaizinhos que se agitam tão prodigiosamente em um licor, para ficarem em seguida imobilizados nos ovos dos pássaros, e não menos imóveis durante nove meses (fora alguns solavancos) no ventre da mulher; isso não me parece conseqüente. Não é essa (pelo que posso julgar) a marcha da natureza. E como são esses homenzinhos que nadam tão bem no licor de que me fala?

O Geômetra: – São como vermes. Havia principalmente um médico chamado Andry que via vermes por toda parte e que queria absolutamente destruir o sistema de Harvey. Teria, se pudesse, acabado com a circulação do sangue, porque outro a descobrira. Enfim, dois holandeses e o senhor Andry, à força de cair no pecado de Onan e examinar coisas no microscópio, reduziram o homem a lagarta. Somos, no princípio, um verme, como ela; depois no nosso invólucro, nos tornamos como ela, durante nove meses, uma verdadeira crisálida, que os campônios chamam favas. Em seguida, se a lagarta se torna borboleta, nós nos tornamos homens: eis as nossas metamorfoses.

O Homem dos Quarenta Escudos: – E a coisa parou ai? Não veio depois nova moda?

O Geômetra: – O pessoal se cansou de ser lagarta. Um filósofo extremamente divertido descobriu, em uma Vênus Física, que a atração é que fazia os filhos, e eis como a coisa se opera. Tombado o germe na matriz, o olho direito atrai o olho esquerdo, que chega para se unir a ele na qualidade de olho; mas é impedido pelo nariz, que topa no caminho, e que o obriga a colocar-se à esquerda. O mesmo acontece com os braços e pernas. E difícil explicar, em tal hipótese, a situação dos mamilos e das nádegas. Esse grande filósofo não admite nenhum desígnio do Ser criador na formação dos animais. Está longe de acreditar que o coração seja feito para receber o sangue e expeli-lo, o estômago para digerir, os olhos para ver, o. ouvido para ouvir: isso lhe parece demasiado vulgar; tudo se faz por atração.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Um louco varrido, está visto. Espero que ninguém haja adotado uma teoria tão extravagante.

O Geômetra: – Riram muito, até; mas o triste é que esse insensato se assemelhava aos teólogos, que perseguem o mais que podem àqueles a quem fazem rir.

Outros filósofos imaginaram outras maneiras, que não fizeram maior sucesso: não é mais o braço que vai procurar o braço, não mais a coxa que corre atrás da coxa; são pequenas moléculas, pequenas partículas de braço e coxa que se colocam umas sobre as outras. Talvez que um dia, depois de tanto tempo perdido, a gente seja obrigado a voltar aos ovos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Estimo muito; mas qual foi o resultado de todas essas disputas?

O Geômetra: – A dúvida. Se a questão fosse debatida entre teólogos, haveria excomunhões e derramamento de sangue; mas, entre físicos, logo se estabelece a paz; cada qual foi deitar com a respectiva mulher, sem se preocupar absolutamente com os seus ovários ou as suas trompas de Fallope. As mulheres engravidaram, sem ao menos indagar como se opera esse mistério. É assim que semeamos trigo e ignoramos como o trigo germina na terra.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Oh! eu sei; disseram-me há muito tempo: é por apodrecimento. Mas às vezes me dá vontade de rir de tudo o que me disseram.

O Geômetra: – É uma excelente disposição. Aconselho-o a duvidar de tudo, exceto que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos, e que os triângulos que têm igual base e igual altura são iguais entre si, ou outras proposições semelhantes,, como por exemplo, que dois e dois são quatro.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Sim, creio que é muito sensato duvidar; mas sinto-me curioso depois que fiz fortuna e que disponho de lazeres. Desejaria, quando a minha vontade move o meu braço ou a minha perna, descobrir a mola pela qual os move. Sinto-me às vezes atônito de poder levantar e baixar os olhos e não poder mover as orelhas. Eu penso, e desejaria conhecer um pouco... isto aqui... tocar com o dedo o meu pensamento. Deve ser muito interessante. Indago se penso por mim mesmo, se Deus me dá as minhas idéias, se minha alma veio para o meu corpo no prazo de seis semanas ou de um dia, e como se me alojou no cérebro; se penso muito quando durmo profundamente, e quando estou em letargia. Rebento os miolos para saber como um corpo produz outro corpo. As minhas sensações não me espantam menos: encontro nelas algo de divino, e sobretudo no prazer. As vezes me esforço por imaginar um novo sentido, e jamais pude consegui-lo Os geômetras sabem todas essas coisas; tenha a bondade de instruir-me.

O Geômetra: – Ai de nós, somos. tão ignorantes quanto o senhor: dirija-se à Sorbona.


 

VIII.
O HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS TORNA-SE PAI E DISCORRE SOBRE OS MONGES

 

Quando se viu pai de um menino, o homem dos quarenta escudos começou a julgar-se de algum peso no Estado; esperava dar ao menos dez súbditos ao rei, e todos eles úteis. Era o melhor cesteiro do mundo, e sua mulher uma excelente costureira. Nascera ela nas proximidades de uma grande abadia de cem mil libras de renda. Seu marido perguntou-me um dia por que motivo aqueles senhores, que eram tão pouco numerosos, haviam embolsado tantas porções de quarenta escudos.

— São mais úteis à pátria do que eu?

— Não, meu caro vizinho.

— Concorrem, como eu, para o povoamento do país?

— Não, pelo menos aparentemente.

— Cultivam a terra? Defendem o Estado quando este sofre uma agressão?

— Não, rezam pelo senhor.

— Pois bem! Eu rezarei por eles, e dividamos. Quantos desses úteis indivíduos, entre homens e mulheres, encerram os conventos do reino?

— Segundo os memoriais dos intendentes de fins do século passado, havia cerca de noventa mil.

— Por nossa velha conta, a quarenta escudos por cabeça, eles só deveriam possuir dez milhões e oitocentas mil libras. Quanto possuem?

— Chega a uns cinqüenta milhões, contando as missas e coletes dos monges mendicantes, que na verdade gravam consideravelmente o povo. Um irmão pedinte de um convento de Paris vangloriou-se publicamente de que a sua sacola dava oitenta mil libras de renda.

— E divididos os cinqüenta milhões pelas noventa mil cabeças tonsuradas, quanto toca a cada uma?

— Quinhentas e cinqüenta e cinco libras. É uma soma considerável numa sociedade numerosa, em que as despesas diminuem devido à própria quantidade dos consumidores; pois custa muito menos a dez pessoas viverem juntas do que se cada uma tivesse o teto e a mesa em separado.

E os ex-jesuítas, a quem dão hoje quatrocentas libras de pensão, perderam então nesse negócio?

— Não o creio: pois estão quase todos morando com parentes que os ajudam; vários dizem missa a dinheiro, o que não faziam antes; outros se fizeram preceptores, outros são sustentados por devotas, e cada qual se arranjou à sua maneira; e talvez poucos existam hoje que, tendo provado do mundo e da liberdade, queiram retomar as antigas cadeias. A vida monacal, por mais que se diga, não é de todo invejável. É máxima bastante conhecida que os monges são criaturas que se unem sem conhecer-se, vivem sem estimar-se, e morrem sem se lamentarem.

— Acha então que se lhes prestaria um grande serviço, desfradando-os a todos?

— Ganhariam bastante, sem dúvida, e o Estado ainda mais, devolver-se-iam à pátria cidadãos e cidadãs que sacrificaram temerariamente a sua liberdade em uma época em que as leis não permitem que se disponha de um fundo de dez soldos de renda; tirar-se-iam esses cadáveres dos túmulos: seria uma verdadeira ressurreição. As suas casas seriam prefeituras, hospitais, escolas, fábricas. A população aumentaria e todas as artes seriam melhor cultivadas. Poder-se-ia ao menos limitar o número dessas vítimas voluntárias, fixando o número dos noviços. A pátria teria mais homens úteis e menos infelizes. É o sentir de todos os magistrados, é o desejo unânime do público, desde que os espíritos se esclareceram, o exemplo da Inglaterra, e de tantos outros Estados, é uma prova evidente da necessidade de tal reforma. Que seria hoje da Inglaterra se, em vez de quarenta mil marinheiros tivesse quarenta mil padres? Quanto mais se multiplicam as artes, mais necessário é o número de súditos laboriosos. Há sem dúvida pelos claustros muitas inteligências sepultas, que estão perdidas para o Estado. É preciso, para que um reino floresça, o mínimo possível de padres e o máximo possível de artesãos. A ignorância e barbaria de nossos país, longe de constituir uma regra para nós, não são mais que um aviso para fazermos o que eles fariam, se estivessem em nosso lugar, como as nossas luzes.

— Quer dizer que não é por ódio aos monges que deseja o senhor aboli-los? É por piedade deles? E por amor à pátria? Sou do seu parecer. Não desejaria que meu filho fosse padre. E, se sonhasse que iria ter filhos para o claustro, não deitaria com a minha mulher.

— Qual é, com efeito, o bom pai de família que não chore ao ver seu filho ou filha perdidos para a sociedade? Chamam a isto salvar-se; mas um soldado que se salva quando deve combater, é punido. Somos todos soldados do Estado; estamos a soldo da sociedade, e tornamo-nos desertores quando a deixamos. Que digo? Os monges são parricidas que aniquilam uma posteridade inteira. Noventa mil enclausurados, que berram ou fanhoseiam latim, poderiam dar, cada um, dois súditos ao Estado: o que soma cento e oitenta mil homens que eles fazem perecer ainda em germe. Ao cabo de cem anos, a perda é imensa, coisa que se demonstra por si mesma.

— Por que então prevaleceu o monarquismo?

— Porque o governo, desde Constantino, foi, quase por toda parte, detestável e absurdo; porque o império romano teve mais sacerdotes que soldados; porque só no Egito havia cem mil; porque eram isentos de trabalho e impostos; porque os chefes das nações bárbaras que destruíram o império, tendo-se feito cristãos para governar cristãos, exerceram a mais horrível tirania; porque as pessoas se lançavam em multidão nos claustros para escapar ao furor desses tiranos, e mergulhavam numa escravidão para evitar uma outra; porque os papas, instituindo tantas ordens diferentes de mandriões sagrados, constituíram outros tantos súditos nos outros Estados; porque um camponês prefere ser chamado meu reverendo padre e distribuir bênçãos a conduzir a charrua; porque não sabe que a charrua é mais nobre que a batina; porque gosta mais de viver à custa dos tolos do que por um trabalho honrado; enfim, porque não sabe que, fazendo-se monge, reserva para si mesmo dias infelizes, tecidos de tédio e arrependimento.

— Basta, pois, de monges, para felicidade nossa e dos próprios monges Mas causa-me aflição ouvir ao senhor de minha aldeia, pai de quatro filhos e três filhas, que não saberá como os estabelecer se não mandar as filhas para um convento.

— Essa alegação, tantas vezes repetida, é inumana, antipatriótica e destrutora da sociedade. Todas as vezes que se possa dizer de uma condição, qualquer que seja: “Se todos se submetessem a esta condição, estaria perdido o gênero humano”, está demonstrado que essa condição não vale nada e que aquele que a abraça prejudica o gênero humano. Ora, é claro que, se todos os jovens de ambos os sexos se enclausurassem, o mundo pereceria; já só por isso, a fradaria é inimiga da natureza humana, independentemente dos terríveis males que algumas vezes lhe causou.

— Não se poderia dizer o mesmo dos soldados?

— Certamente que não: pois, se cada cidadão se exercita nas armas, como outrora em todas as Repúblicas, e sobretudo na de Roma, não deixa o soldado de ser melhor cultivador; o soldado cidadão casa-se, e combate pela mulher e pelos filhos. Prouvera a Deus que todos os lavradores fossem soldados e esposos! Seriam assim excelentes cidadãos. Mas um monge só serve, como monge, para devorar a substância de seus compatriotas. Não há verdade mais reconhecida.

— Mas e as filhas dos gentis-homens pobres, que não podem casar, que farão elas?

— Farão, como já se disse mil vezes, o que fazem as da Inglaterra, da Escócia, da Irlanda, da Suiça, da Holanda, de metade da Alemanha, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Tartária, da Turquia, da África, e de quase todo o resto da terra. Serão melhores esposas e mães, quando os homens se tiverem acostumado, tal como na Alemanha, a tomar esposas sem dote. Uma mulher laboriosa e afeita às lides domésticas será de mais utilidade numa casa do que a filha de um financista, que, só em superfluidades, gasta mais do que trouxe ao marido.

Cumpre que haja casas de retiro para a velhice, para a invalidez, para a deformidade. Mas devido ao mais detestável dos abusos, só existem fundações para a juventude e para as pessoas bem conformadas. Começa-se, nos claustros, por obrigar os noviços de um e outro sexo a patentear sua nudez, apesar de todas as leis do pudor; são atentamente examinados por diante e por trás, Vá uma velha corcunda apresentar-se para entrar num convento, e será ignominiosamente escorraçada, a menos que contribua com um dote imenso. Que digo? Toda religiosa deve trazer seu dote, sem o que se transformará no rebotalho do convento. Nunca se viu mais intolerável abuso.

— Bem, senhor, juro-lhe que as minhas filhas jamais serão religiosas. Aprenderão a fiar, a coser, a fazer renda, a bordar, a ser úteis, em suma. Considero os votos como um atentado contra a pátria e contra si mesmo. E como se explica que um de meus amigos, para contrariar o gênero humano, alegue que os monges são muito úteis à população de um estado, porque as suas casas têm melhor passadio que as dos senhores e as suas terras melhor cultivo?

— E que amigo é esse, que faz uma asserção tão estranha?

— É o Amigo dos Homens, ou antes, dos monges.

— Estava brincando, com certeza; bem sabe ele que dez famílias, cada uma com cinco mil libras de rendas da terra, são cem vezes, mil vezes mais úteis do que um convento que desfruta de uma renda de cinqüenta mil libras e que tem sempre um tesouro secreto. Louva as belas casas construídas pelos monges, e é precisamente o que irrita os cidadãos; é motivo das queixas da Europa. O voto de pobreza condena os palácios, como o voto de humildade se opõe ao orgulho, e como o voto de aniquilar a própria raça está em contradição com a natureza.

— Começo a crer que se deve desconfiar dos livros.

— Deve-se é proceder com eles como com os homens, escolher os mais razoáveis, examiná-los, e só se render à evidência.


 

IX.
DOS IMPOSTOS PAGOS AO ESTRANGEIRO

 

Há coisa de um mês, veio procurar-me o homem dos quarenta escudos, dando verdadeiras barrigadas de riso, e com tão boa gana que também me pus a rir, sem saber do que se tratava, de tal forma é o homem imitador por natureza, tanto nos senhoreia o instinto, tão contagiosas são as grandes expansões da alma.

Ut ridentibus arrident, its flentibue adflent (5)
Humani vultus.

Depois que riu à vontade, contou-me que acabava de encontrar um homem que se dizia protonotário da Santa Sé, e que esse homem remetia considerável soma, a trezentas léguas daqui, a um italiano, em nome de um francês a quem o rei doara um pequeno feudo, e que esse francês Jamais poderia gozar do benefício do rei se não remetesse ao referido italiano o seu primeiro ano de renda.

— A coisa é bem verdade – disse-lhe eu, – mas não é tão divertida assim. Essas pequenas contribuições custam à França umas quatrocentas mil libras anuais; e, durante os dois séculos e meio que vem durando esse costume, já descarregamos na Itália uns oitenta milhões.

— Santo Deus! – exclamou ele. – Quantas vezes quarenta escudos! Quer dizer então que esse italiano nos subjugou há dois séculos e meio e nos impôs esse tributo?

— Na verdade, ele nos taxava outrora muito mais onerosamente. Isso não passa de uma bagatela em comparação como o que ele por muito tempo tirou da nossa pobre nação e das outras pobres nações da Europa.

Contei-lhe então como se haviam estabelecido essas santas usurpações. Ele sabe um pouco de história; tem bom senso: compreendeu facilmente que éramos ex-escravos aos quais ainda restava uma ponta de grilhões. Por muito tempo, falou energicamente contra tal abuso, mas com que respeito pela religião em geral! Como venerava os bispos! Como lhes desejava muitos e muitos quarenta escudos, a fim de que os gastassem em obras pias nas respectivas dioceses!

Queria também que todos os curas de campanha tivessem um número suficiente de quarenta escudos, para que pudessem viver com decência.

— É triste – dizia ele – que um cura se veja obrigado a disputar três medas do trigo ao seu rebanho, e não seja largamente remunerado pela província. É vergonhoso que estejam sempre em demanda com os seus senhores. Essas eternas querelas por direitos imaginários e dízimas destroem a consideração que se lhes deve. O infeliz cultivador, que já pagou aos prepostos a sua dízima, e os dois soldos por libra, e a talha, e a capitação, e o resgate, pelo alojamento de militares, depois de já os ter alojado, etc., etc., etc., esse desgraçado, dizia eu, que ainda vê o seu próprio cura arrebatar-lhe o décimo da sua colheita, não mais o considera como o seu pastor, mas como o seu escorchador, que lhe arranca o pouco de pele que lhe resta. Compreende que, ao lhe arrebatarem a décima meda de direito divino, têm a crueldade diabólica de não levar em conta o que lhe custou para produzir aquela meda. Que sobra para ele e a família? O pranto, a necessidade, o desânimo, o desespero, e acaba morrendo de fadiga e miséria. Se o cura fosse pago pela província, seria o consolo de seus paroquianos, em vez de ser olhado por eles como um inimigo.

O bom do homem enternecia-se ao pronunciar tais palavras; amava a pátria e era idólatra do bem público. E exclamava às vezes: “Que grande nação a França, se a gente o quisesse!”

Fomos ver seu filho, a quem a mãe, muito asseada, apresentava um farto seio branco. O menino era bastante bonito.

— Eis-te aqui – disse o pai – e só tens direito a vinte e três anos de vida e a quarenta escudos!


 

X.
DAS PROPORÇÕES

 

O produto dos extremos é igual ao produto dos meios: mas dois sacos de trigo roubados, não estão, para aquelas que os subtraíram, na mesma relação em que está a perda da sua vida para os interesses da pessoa prejudicada.

O prior de D***, a quem dois criados roubaram dois sesteiros de trigo, acaba de fazer enforcar os dois delinqüentes. Tal execução custou-lhe mais do que lhe rendera toda a colheita, e desde esse tempo não encontra empregados.

Se a lei dispusesse que aqueles que roubam o trigo do patrão lhe lavrassem a terra durante toda a vida, com ferros nos pés, e uma campainha ao pescoço, presa à golinha, muito teria ganho o referido prior.

Cumpre amedrontar o crime, na verdade; mas o trabalho forçado e a ignomínia permanente intimidam mais do que a morte.

Há alguns meses, em Londres, foi um malfeitor condenado a ir trabalhar com os negros, nos engenhos de açúcar da América. Todos os criminosos na Inglaterra, como em muitos outros países, têm direito de dirigir-se ao rei, para pedir comutação ou abrandamento da pena. Quanto a este, pediu para ser enforcado. Alegou que odiava mortalmente o trabalho e que preferia ser estrangulado um minuto a fabricar açúcar toda a vida.

Podem outros pensar de outra maneira, e cada qual a seu gosto; mas já se disse, e cumpre repetir, que um enforcado não serve para coisa alguma, e que os castigos devem ser úteis.

Há alguns anos, na Tartária, dois jovens foram condenados ao empalamento por terem assistido, de chapéu na cabeça, a uma procissão de lamas. O imperador da China, que é homem de muito espírito, disse que os teria condenado a marchar em procissão, sem chapéu, durante três meses.

“Que as penas sejam proporcionais aos delitos”, já o disse o marquês de Beccaria; mas os que fizeram as leis não eram geômetras.

Se o padre Guyon, ou Coger, ou o ex-jesuíta Nonnotte, ou o ex-jesuíta Patouillet, ou o pregador La Beaumelle, fazem miseráveis libelos, em que não há nem verdade, nem razão, nem espírito, vamos nós enforcá-los, como o fez o prior de D*** com os seus dois serviçais, e isto sob o pretexto de que os caluniadores são mais culposos que os ladrões?

Condenaremos o próprio Fréron às galés, por haver insultado o bom gosto, e por ter mentido toda a vida, na esperança de pagar o vendeiro?

Levaremos o senhor Larcher ao pelourinho, por ser muito indigesto, por haver acumulado erro sobre erro, porque nunca soube distinguir nenhum grau de probabilidade, por afirmar que, numa antiga e imensa cidade, famosa por sua severidade e pelo zelo dos maridos, em Babilônia enfim, onde as mulheres eram guardadas por eunucos, todas as princesas iam devotadamente ao templo, entregar-se por dinheiro aos estrangeiros? Não, contentemo-nos em mandá-lo também fazer a vida; sejamos moderados em tudo; estabeleçamos proporção entre os delitos e as penas.

Perdoemos a esse pobre Jean-Jacques quando só escreve para contradizer-se; quando, depois de haver apresentado uma comédia vaiada em Paris, injuria aqueles que fazem representar comédias a cem léguas dali; quando procura protetores, e os ultraja; quando clama contra os romances, e faz romances cujo herói é um tolo preceptor que recebe esmola de uma suíça na qual fez um filho, e que vai gastar o dinheiro num bordel de Paris; deixemo-lo acreditar que ultrapassou Fénelon e Xenofonte, educando um jovem de qualidade no ofício de marceneiro; essas extravagantes chatezas não merecem uma ordem de detenção; basta o hospício, com bons caldos, sangrias, e regime.

Odeio as leis de Dracon, que puniam igualmente os crimes e as faltas, a maldade e a loucura. Não tratemos o jesuíta Nonnotte, que só é culpado de haver escrito tolices e injúrias, como foram tratados os jesuítas Malagrida, Oldcorn, Garnet, Guiznard, Guéret, e como se devia tratar o jesuíta Le Tellier, que enganou o seu rei e perturbou a França. Distingamos principalmente em todo processo, em todo litígio, em toda querela, o agressor e o ultrajado, o opressor e o oprimido. A ofensiva parte do tirano; aquele que se defende é um homem justo.

Estava eu mergulhado nessas reflexões, quando chegou, em lágrimas, o homem dos quarenta escudos. Perguntei-lhe, alarmado, se o seu filho, que deveria viver vinte e três anos, havia acaso morrido.

— Não – disse ele, – o pequeno vai muito bem, e minha mulher igualmente. Mas fui chamado, como testemunha, contra um marceneiro que foi submetido à tortura e estava inocente. Vi-o desmaiar no suplício; ouvi estalarem-lhe os ossos; ainda ouço os seus gemidos e gritos; eles me perseguem, eu choro de piedade e tremo de horror.

Pus-me também a chorar e a tremer, pois sou extremamente sensível.

Veio-me então à memória a espantosa aventura dos Calas, uma mãe virtuosa posta a ferros, seus filhos desvairados e fugitivos, a casa pilhada, um respeitável pai de família torturado, agonizando na roda e expirando nas chamas, um filho nos grilhões, arrastado perante os juizes, um dos quais lhe disse: Acabamos de levar seu pai à roda e faremos o mesmo com você.

Lembro-me da família Sirven, que um de meus amigos encontrou nas montanhas cobertas de neve, quando fugiam da perseguição de um juiz tão iníquo como ignorante.

— Esse juiz – me disse ele, – condenou ao suplício toda aquela inocente família, na suposição, sem o mínimo indício de prova, de que o pai e a mãe, auxiliados por duas de suas filhas, haviam estrangulado e afogado a terceira, de medo que ela fosse à missa.

Eu via, ao mesmo tempo, nos julgamentos dessa espécie o cúmulo da estupidez, da injustiça e da barbaridade.

O homem dos quarenta escudos e eu lamentávamos a natureza humana. Tinha eu no bolso o discurso de um advogado do Delfinado, que versava em parte sobre essa interessante matéria. Li em voz alta os seguintes trechos:

“Foram por certo verdadeiramente grandes os homens que primeiro ousaram encarregar-se do governo de seus semelhantes e impor-se o fardo da felicidade pública; que, pelo bem que queriam fazer aos homens, se impuseram à sua ingratidão e, para o repouso de um povo, renunciaram ao seu; que se colocaram, por assim dizer, entre os homens e a Providência, para lhes conseguir, por artifício, uma ventura que esta parecia haver-lhes recusado”.

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“Que magistrado, um pouco sensível a seus deveres, à simples humanidade~ poderia sustentar tais idéias. Poderá ele, na solidão do gabinete, sem fremir de horror e de piedade, lançar os olhos sobre esses papéis, infelizes monumentos do crime ou da inocência? Não lhe parecerá brotarem gementes vozes desses fatais escritos, a instá-lo para decidir da sorte de um cidadão, de um esposo, de um pai, de uma família? Que impiedoso juiz (se for encarregado de um único processo) poderá passar de sangue frio por diante de uma prisão? – Sou eu então – dirá ele – que mantenho, nessa detestável morada, meu semelhante, talvez meu igual, meu concidadão, um homem enfim!? Sou eu que todos os dias o agrilhôo, que fecho sobre ele essas odiosas portas!? Talvez que o desespero se haja apoderado da sua alma; lança aos céus o meu nome, de envolta com maldições; e sem dúvida atesta contra mim o grande Juiz que nos observa e que nos deve julgar a ambos.

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“E eis que terrível espetáculo se me apresenta aos olhos: o juiz cansa-se de interrogar com a palavra, quer interrogar com os suplícios: impaciente das suas pesquisas, talvez irritado com a sua inutilidade, manda trazer brandões, cadeias, alavancas e todos esses instrumentos inventados para a dor. Um carrasco se vem ajuntar às funções da magistratura, e termina pela violência um interrogatório iniciado pela liberdade.

“Doce filosofia, tu que só buscas a verdade com a atenção e a paciência, esperavas que, no teu século, empregassem tais instrumentos para a descobrir?

“E mesmo verdade que as nossas leis aprovam esse método inconcebível e que o uso o consagra?

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“Suas leis imitam seus preconceitos; as punições públicas são tão cruéis quanto as vinganças particulares, e os atos da sua razão não são menos impiedosos que os das suas paixões. Qual, pois, a causa dessa estranha oposição? É que os nossos preconceitos são antigos e a nossa moral é recente; é que somos tão compenetrados de nossos sentimentos quão desatentos às nossas idéias; é que a avidez dos prazeres nos impede de refletir sobre as necessidades, e mais nos empenhamos em viver do que em conduzir-nos. E que, numa palavra, nossos costumes são amáveis, e não são bons; é que somos polidos, e nem ao menos somos humanos”.

Esses fragmentos que a eloqüência ditara à piedade encheram de suave consolo o coração de meu amigo. Ele admirava comovidamente.

— Como! – dizia em seus transportes. – Fazem-se obras-primas na província! Tinham-me dito que só havia Paris no mundo.

— Só em Paris – respondi-lhe – é que se fazem óperas cômicas; mas há hoje na província muitos magistrados que pensam com a mesma virtude e se exprimem com a mesma força. Outrora os oráculos da justiça, bem como os da moral, não eram senão ridículos, O doutor Balouard declamava na tribuna e Arlequim no púlpito. Veio enfim a filosofar e disse:

— Falei em público apenas para dizer verdades novas e úteis, com a eloqüência do sentimento e da razão.

— Mas se não tivermos nada de novo a dizer? – exclamaram os palradores.

— Calem-se então – respondeu a filosofia. – Todos esses vãos discursos de aparato, que só contêm frases, são como os fogos de S. João, acesos no dia em que a gente menos necessidade tem de aquecer-se; não causam nenhum prazer, e não lhes sobram nem as cinzas.

Que toda a França leia bons livros. Mas, apesar dos progressos do espírito humano, lê-se muito pouco; e, dentre aqueles que querem às vezes instruir-se, a maioria lê muito mal. Meus vizinhos jogam, após a ceia, um jogo inglês que tenho muita dificuldade em pronunciar, pois o chamam de wist. Muitos bons burgueses, muitas grandes cabeças, que se julgam boas cabeças, dizem, com ar importante, que os livros não servem para nada. Mas não sabem, esses vândalos, que não são governados a não ser por livros? Não sabem que o código civil, o código militar e os Evangelhos são livros de que dependem continuamente. Leiam, esclareçam-se; só pela leitura se fortifica a alma; a conversação a dissipa, o jogo a limita.

— Pouco dinheiro tenho – respondeu-me o homem dos quarenta escudos; mas, se algum dia reunir uma pequena fortuna, comprarei livros no Marc-Michel Rey.


 

XI.
DA SÍFILIS

 

O homem dos quarenta escudos morava num pequeno cantão, onde fazia uns cento e cinqüenta anos que não acampavam soldados. Os costumes, naquele desconhecido rincão, eram mais puros do que o ar que o banha. Não se sabia que alhures pudesse o amor ser infeccionado de um veneno destrutivo, que as gerações fossem atacadas no seu germe, e que a natureza, contradizendo-se a si mesma, pudesse tornar a carícia horrível e o prazer medonho; entregavam-se ao amor com a segurança da inocência. Chegaram tropas, e tudo mudou.

Dois tenentes, o esmoler do regimento, um cabo e um recruta proveniente do seminário bastaram para envenenar doze aldeias em menos de três meses. Duas primas do homem dos quarenta escudos viram-se cobertas de pústulas; caíram-lhes os lindos cabelos; a sua voz tornou-se rouca; as pálpebras de seus olhos fixos e apagados tomaram uma cor lívida, e não mais se fecharam para permitir repouso aos membros deslocados, que uma cárie secreta começava a roer como aos do árabe Job, embora Job jamais tivesse tido semelhante doença.

O cirurgião-mor do regimento, homem de grande experiência, foi obrigado a pedir auxilio à Corte, para curar todas as raparigas da região. O ministro da guerra, sempre inclinado a aliviar o belo sexo, enviou uma leva de recrutas, que estragaram com uma das mãos o que endireitaram com a outra.

O homem dos quarenta escudos lia então a história filosófica de Cândido, traduzida do alemão e de autoria do doutor Ralph, que prova evidentemente que tudo está bem, e que era absolutamente impossível, no melhor dos mundos possíveis que a sífilis, a peste, os cálculos, as areias, as escrófulas, a câmara de Valência e a Inquisição não entrassem na composição do universo, desse universo unicamente feito para o homem, rei dos animais, e imagem de Deus, ao qual bem se vê que se assemelha como duas gotas d'água.

Lia, na história verdadeira de Cândido, que o famoso doutor Pangloss perdera no tratamento um olho e uma orelha.

— Ai! e as minhas primas, as minhas pobres primas, ficarão também tortas e desorelhadas?

— Não – disse-lhe o major, confortadoramente. – Os alemães têm mão pesada; mas, quanto a nós, curamos as raparigas prontamente, seguramente e agradavelmente.

E, com efeito, as duas lindas primas livraram-se do mal ficando com .a cabeça inchada como um balão durante seis semanas, perdendo metade dos dentes, botando uma língua de meio palmo, e morrendo do peito ao cabo de seis meses.

Durante a operação, o primo e o cirurgião-mor assim discorreram:

O Homem dos Quarenta Escudos: – Será possível, senhor, que a natureza tenha unido tão espantosos tormentos a um prazer tão necessário, tanta vergonha a tanta glória, e que haja mais riscos em fazer um filho do que em matar um homem? Será ao menos verdade, para consolação nossa, que esse mal vai diminuindo um pouco pelo mundo e cada dia se torna menos perigoso?

O Cirurgião-mor: – Pelo contrário, alastra-se cada vez mais por toda a Europa cristã; está disseminado até a Sibéria; vi morrer disso quinhentas pessoas, inclusive um grande general e um excelente ministro. São poucos os fracos do peito que resistem à doença e ao remédio. As duas irmãs, la petite et la grosse, coligaram-se ainda mais que os monges para destruir o gênero humano.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Mais uma razão para abolir os monges, a fim de que, recolocados entre os homens, eles reparem um pouco o mal que fazem as duas irmãs. E diga-me uma coisa: os animais. também têm vérole?

O Cirurgião: – Ni la petite, ni la grosse, nem os monges são conhecidos entre eles.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Convenhamos então que são mais felizes e mais prudentes do que nós no melhor dos mundos.

O Cirurgião: – Disso eu nunca duvidei; tem menos doenças do que nós; seu instinto é muito mais seguro do que a nossa razão: jamais se atormentam com o passado nem com o futuro.

O Homem dos Quarenta Escudos: – O senhor que já foi cirurgião do embaixador francês na Turquia: há muita sífilis em Constantinopla?

O Cirurgião: – Os franceses trouxeram-no para o bairro de Pera, onde residem. Conheci ali um capuchinho que estava devorado por ela como Pangloss; mas o flagelo não alcançou a cidade propriamente dita, onde os franceses quase nunca dormem. Não há quase mulheres públicas naquela enorme cidade. Cada homem rico tem mulheres, escravas circassianas, sempre guardadas, sempre vigiadas, e cuja beleza não pode ser perigosa. Os turcos chamam à sífilis o mal cristão, o que redobra o profundo desprezo que dedicam à nossa teologia. Mas, em compensação. têm a peste, doença do Egito, de que fazem pouco caso e que nunca se dão ao trabalho de prevenir.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Em que tempo julga ter começado esse flagelo na Europa?

O Cirurgião: – Pelo ano de 1494, quando Cristóvão Colombo regressou da sua primeira viagem às nações inocentes que não conheciam nem a avareza nem a guerra. Aquelas nações simples e justas estavam contaminadas desse mal desde tempos imemoriais, como a lepra reinava entre os árabes e os judeus, e a peste entre os egípcios. O primeiro fruto que colheram os espanhóis, dessa conquista do novo mundo, foi a sífilis; expandiu-se mais rapidamente que a prata do México, que só circulou na Europa muito tempo depois. A razão era que, em todas as cidades, havia então belas casas públicas, chamadas bordéis, cujo estabelecimento era autorizado pelos soberanos para preservar a honra das damas. Os espanhóis trouxeram o veneno para essas casas privilegiadas de onde os príncipes e bispos requisitavam as raparigas que lhes eram necessárias. Havia em Constança setecentas e dezoito dessas mulheres, para o serviço do Concílio que tão devotadamente mandou queimar João Huss e Jerônimo de Praga.

Só por isso se pode julgar com que rapidez o mal percorreu todos os países. O primeiro senhor que veio a morrer desse mal foi o ilustríssimo e reverendíssimo bispo e vice-rei da Hungria, em 1499, e que Bartolomeu Montanagua, grande médico de Praga, não pode salvar. Assegura Gualtieri que o arcebispo de Mogúncia, Bertold de Henneberg, attaqué de la grosse vérole, rendit son âme à Dieu en 1504. Sabe-se que disso morreu o nosso rei Francisco I, Henrique III o adquiriu em Veneza, mas o jacobino Jacques Clément preveniu os efeitos do mal.

O parlamento de Paris, sempre zeloso do bem público, foi o primeiro que baixou um édito contra a sífilis, isso em 1497. Proibiu a todos os contaminados que permanecessem em Paris, sous peine de la hart. Mas, como não. era fácil convencer juridicamente os burgueses e burguesas de que estavam em delito, não teve esse édito maior efeito do que aqueles que foram depois baixados contra a emética; e, apesar do parlamento, continuava aumentando o número de culpados. É verdade que, se os tivessem exorcismado em vez de enforcá-los, não mais os haveria hoje sobre a face da terra; mas infelizmente nunca se pensou em tal coisa.

O Homem dos Quarenta Escudos: – É então verdade o que li no Cândido, que, entre nós, quando entram em campo dois exércitos de trinta mil homens cada um, pode-se apostar que há vinte mil contaminados de cada banda?

O Cirurgião: – Nada mais verdadeiro. O mesmo acontece com o pessoal da Sorbona. Que quer que façam jovens bacharéis a quem a natureza fala mais alto e mais firme do que a teologia? Posso-lhe jurar que, guardadas as proporções, meus confrades e eu temos tratado mais jovens sacerdotes do que jovens oficiais.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Não haveria algum meio de extirpar esse mal que assola a Europa? Já se tratou de enfraquecer o veneno de uma vêrole; nada se poderá tentar contra a outra?

O Cirurgião: – Só haverá um meio: é que todos os príncipes da Europa se coligassem como nos tempos de Godofredo de Bulhão. Certamente uma cruzada contra a sífilis seria muito mais razoável do que aquelas que outrora tão infelizmente se fizeram contra Saladino, Melecsala e os albigenses. Melhor seria nos combinarmos para expulsar o inimigo comum do gênero humano do que andarmos continuamente a espiar o momento azado para devastar a terra e cobrir os campos de cadáveres, com o fim de arrebatar ao vizinho duas ou três cidades e algumas aldeias. Falo contra os meus próprios interesses, pois a guerra e a sífilis me fazem viver; mas cumpre ser homem antes de ser cirurgião-mor.

Era assim que o homem dos quarenta escudos ia formando, como se diz, o espírito e o coração. Não só herdou das duas primas, que morreram em seis meses, mas ainda lhe coube a sucessão de um parente afastado, que fora sub-arrendatário dos hospitais do exército, e que engordara bastante pondo em dieta os soldados feridos. Esse homem jamais quisera casar-se; possuía um belo serralho. Não reconheceu nenhum de seus parentes, viveu na crapulagem, e morreu de indigestão em Paris. Era, como se vê, um homem muito útil ao Estado.

O nosso novo filósofo viu-se obrigado a ir a Paris receber a herança do parente. Primeiro os rendeiros do domínio lha disputaram. Teve a felicidade de ganhar o processo e a generosidade de dar aos pobres do cantão, que não haviam conseguido o seu quinhão de quarenta escudos de renda, uma parte dos despojos do ricaço. Depois do que, pôs-se a satisfazer a sua grande ambição de formar uma biblioteca.

Lia todas as manhãs, fazia excertos, e à noite consultava os sábios para saber: em que língua falara a serpente à nossa boa mãe; se a alma está localizada no corpo caloso ou na glândula pineal; se S. Pedro permanecera vinte e cinco anos em Roma; que diferença específica existe entre um trono e uma dominação; e por que motivo os negros têm nariz chato. Propôs-me, aliás, jamais governar o Estado e nunca escrever brochuras contra as peças novas. Chamavam-no o senhor André, que era o seu nome de batismo. Aqueles que o conheceram fazem justiça à sua modéstia e às suas qualidades, tanto adquiridas como naturais. Construiu uma casa confortável no seu antigo domínio de quatro jeiras. Seu filho alcançará em breve a idade escolar, mas ele quer mandá-lo para o colégio de Harcourt e não para o de Mazarino, devido ao professor Coger, que faz libelos, e porque um professor de colégio não os deve fazer.

Madame André deu-lhe uma filha bastante bonita, que ele pretende casar com um conselheiro, desde que esse magistrado não tenha a doença que o cirurgião-mor tenciona extirpar da Europa cristã.


 

XII.
GRANDE QUERELA

 

Durante a estada do senhor André em Paris, houve ali uma importante querela. Tratava-se de saber se Marco Antonino era um homem de bem, e se estava no inferno, ou no purgatório, ou no limbo, à espera da ressurreição. Todas as pessoas sensatas tomaram o partido de Marco Antonino. “Marco Antonino – diziam – sempre foi justo, sóbrio, casto, generoso. É verdade que não tem no paraíso um lugar como o de Santo Antônio: pois cumpre guardar as proporções, como bem sabemos; mas é fora de dúvida que a alma do imperador Antonino não foi para o espeto, no inferno. Se está no purgatório, é preciso tirá-la dali; é só mandar dizer missas por ele. Os jesuítas não têm mais que fazer; que digam três mil missas pelo descanso da alma de Marco Antonino; a quinze soldos cada uma, ganharão com isso duas mil duzentas e cinqüenta libras. De resto, deve-se respeito a uma cabeça coroada; não se deve condená-la levianamente”.

Os adversários dessas boas criaturas pretendiam, pelo contrário, que não se deveria ter consideração alguma para com Marco Antonino; que este era um herege; que os carpócratas e os alógios não eram tão maus quanto ele; que morrera sem confissão; que era preciso darem um exemplo; que era bom condená-lo para dar uma lição aos imperadores da China e do Japão, aos da Pérsia, da Turquia e de Marrocos, aos reis da Inglaterra, da Suécia, da Dinamarca, da Prússia, ao stathouder da Holanda, e aos avoyers do Cantão de Berna, que tampouco se confessavam como o imperador Marco Antonino; e que, afinal de contas, é um indizível prazer baixar decretos contra soberanos mortos, quando é impossível lançá-los contra os vivos, por amor às próprias orelhas.

A querela tornou-se tão séria como outrora a das Ursulinas com as Anunciadas, que disputavam a ver quem carregaria por mais tempo ovos quentes entre as nádegas, sem os quebrar. Temia-se um cisma, como nos tempos da carochinha e de certas promissórias pagáveis ao portador no outro mundo. Coisa terrível um cisma, pois significa divisão das opiniões, e, até aquele momento fatal, todos os homens tinham pensado da mesma forma.

O senhor André, que é um excelente cidadão, convidou, para cear, aos chefes de cada um dos partidos. É ele dos melhores companheiros de mesa com que contamos; seu gênio é brando e alerta, sua alegria não é ruidosa; é simples e franco; não tem essa espécie de espírito que parece querer abafar o dos outros; a autoridade que se concilia só é devida às suas graças, à sua moderação, e a uma fisionomia aberta e persuasiva. Seria capaz de fazer cearem alegremente juntos um corso e um genovês, um representante de Genebra e um negativo, o mufti e um arcebispo. Anulou habilmente os primeiros golpes que trocaram os adversários, desviando a conversa e contando uma história muito agradável, que divertiu igualmente os danantes e os danados. Afinal, quando o vinho começou a subir, fê-los assinarem que a alma do imperador Marco Antonino permaneceria in statu quo, isto é, não se sabe onde, aguardando o julgamento definitivo.

As almas dos doutores voltaram tranqüilamente para os seus limbos, após a ceia; tudo ficou em paz. Esse arranjo trouxe grande consideração ao homem dos quarenta escudos; e todas as vezes que se erguia uma disputa muito acesa, muito virulenta, entre letrados ou não letrados, dizia-se a ambas as partes: Senhores, ide cear com o senhor André.

Sei de duas encarniçadas facções que, por não terem ido cear em casa do senhor André, só arranjaram desgraças.


 

XIII.
A EXPULSÃO DE UM CELERADO

 

A reputação que adquirira o senhor André, de apaziguar as querelas dando boas ceias, atraiu-lhe na semana passada uma singular visita. Um homem de preto e mal vestido, curvo, a cabeça inclinada para um lado, de olhar mau e mãos sujas, veio conjurá-lo a que o convidasse para jantar com os seus inimigos.

— Quem são os seus inimigos perguntou-lhe o senhor André. – E quem é o senhor?

— Ai! confesso, senhor, confesso que me tomam por um desses pulhas que escrevem libelos para ganhar a vida e que clamam: “Deus, Deus, Deus, religião, religião”, para arranjar algum pequeno benefício. Acusam-me de haver caluniado os cidadãos mais verdadeiramente religiosos, os mais sinceros adoradores da Divindade, as pessoas mais honradas do reino. E verdade, senhor, que, no calor da composição, escapam às vezes às pessoas de meu ofício pequenas inadvertências que tomam por erros grosseiros, lapsos que qualificam de impudentes mentiras. O nosso zelo é considerado como uma terrível mescla de velhacaria e fanatismo. Asseguram que, embora iludamos a boa-fé de algumas velhas imbecis, somos alvo de desprezo e execração de todas as pessoas honradas que sabem ler.

Meus inimigos são os principais membros das mais ilustres academias da Europa, escritores considerados, cidadãos úteis. Acabo de publicar uma obra que intitulei Antifilosófica. As minhas intenções eram boas, mas ninguém quis comprar o livro. Aqueles a quem o dei lançaram-no ao fogo, dizendo-me que era, não só anti-razoável, mas anticristão e antihonesto.

— Pois bem – disse o senhor André, – imite-os, lance ao fogo o seu libelo, e não falemos mais nisso. Estimo o seu arrependimento, mas é-me impossível fazê-lo cear com homens de espírito que não podem ser inimigos seus, visto que jamais o lerão.

— Não poderia ao menos, senhor. – retrucou o biltre, – reconciliar-me com as parentes do falecido senhor de Montesquieu, cuja memória ultrajei para glorificar o reverendo padre Routh, que veio assediar seus últimos momentos e foi escorraçado do seu quarto?

Ora! – retrucou o senhor André. – Há muito que está morto o padre Routh; vá cear com ele.

O senhor André não é homem de meias medidas, quando tem de tratar com gente dessa espécie. Compreendeu que o pulha só queria jantar em sua casa com homens de mérito para suscitar uma querela, para ir em seguida caluniá-los, para escrever contra eles, para imprimir novas mentiras. Correu-o de sua casa, como haviam corrido Routh do apartamento do presidente Montesquieu.

Impossível enganar ao senhor André. Tão simples e ingênuo era quando não passava de “o homem dos quarenta escudos”, quão atilado se tornou depois que conheceu os homens.


 

XIV.
O BOM SENSO DO SENHOR ANDRÉ

 

Como se fortaleceu o bom-senso do senhor André desde que ele tem uma biblioteca! Trata os livros como aos homens; escolhe-os; e nunca se deixa levar pelos nomes. Que prazer instruir-se e engrandecer a alma por um escudo, sem sair de casa!

Felicita-se por ter nascido numa época em que a razão humana começa a aperfeiçoar-se.

“Como eu não seria infeliz – diz ele – se vivesse no tempo do jesuíta Gerasse, do jesuíta Guignard, ou do doutor Boucher, do doutor Aubry, do doutor Guincestre, ou no tempo em que condenavam às galés os que escreviam .contra as categorias de Aristóteles!”

Se a miséria enfraquecera as molas vitais do senhor André, o bem-estar lhes devolveu a elasticidade. Há no mundo centenas de Andrés aos quais só faltou uma volta da roda da fortuna para os tornar homens de verdadeiro mérito.

Está hoje a par de todos os negócios da Europa, e sobretudo das progressos do espírito humano.

“Parece – dizia-me ele na última terça feira – que a Razão viaja por pequenas etapas, do norte para o sul, com suas duas amigas íntimas, a Experiência e a Tolerância. Acompanham-na a Agricultura e o Comércio. Apresentou-se na Itália, mas a Congregação do Índice a rechaçou. O mais que ela pôde fazer foi enviar secretamente alguns de seus emissários, que não se cansam de fazer o bem. Alguns anos mais, e o país dos Cipiões deixará de ser o dos Arlequins encapuzados.

Consegue, de tempos em tempos, cruéis inimigos na França; mas conta aqui com tantos amigos que afinal acabará sendo primeiro ministro.

Quando se apresentou na Baviera e na Áustria, encontrou dois ou três figurões de peruca, que a fitaram com olhar estúpido e espantado. E disseram-lhe – Nunca ouvimos falar na senhora; não a conhecemos. – Senhores – respondeu-lhes ela, – com o tempo, hão de conhecer-me e estimar-me. Fui muito bem recebida em Berlim, em Moscou, em Copenhague, em Estocolmo. Faz muito que, por obra de Locke, Gordon, Trenchard, milorde Shaftesbury, e tantos outros, recebi carta de naturalização na Inglaterra. Também aqui um dia ma concederão. Sou filha do Tempo, e tudo espero de meu pai.

Ao passar pelas fronteiras da Espanha e de Portugal, deu graças a Deus por ver que – já não se acendiam tão seguidamente as fogueiras da Inquisição. Ficou muito esperançada como a expulsão dos jesuítas. Mas receou que, purgando a terra das raposas, a deixassem exposta aos lobos.

Se ainda fizer tentativas para entrar na Itália, acredita-se que começará por estabelecer-se em Veneza, e que estacionará no reino de Nápoles, apesar de todas as liquefações dessa terra, que lhe dão vapores. Presume-se que a Razão tem um segredo infalível para desembaraçar os cordões de uma coroa que se enredaram, não sei como, aos de uma tiara, e para impedir que as hacanéias façam reverência às mulas!”

Em suma, a conversação do senhor André muito me agrada; e, quanto mais convivo com ele, mais o estimo.


 

XV.
DE UMA BELA CEIA EM CASA DO SENHOR ANDRÉ

 

Ceamos ontem com um doutor da Sorbona, o senhor Pinto, famoso judeu, o capelão da igreja reformada do embaixador batavo, o secretário do senhor príncipe Galitzin, do rito grego, um capitão suíço calvinista, dois filósofos e três damas do espírito.

A ceia se prolongou bastante, e no entanto não se discutiu sobre religião, como se nenhum dos convivas jamais tivesse alguma; o que quer dizer que nos tornamos polidos, e por isso tanto mais receamos contristar os outros, à mesa. O que não acontece com o regente Coger, e o ex-jesuíta Nonnotte, e o ex-jesuíta Patouillet, e o ex-jesuíta Rotalier, e todos os animais dessa espécie. Esses sórdidos nos dizem mais tolices numa brochura de duzentas páginas do que se pode dizer de agradável e instrutivo numa ceia de quatro horas. E o mais estranho é que eles não se atreveriam a dizer de cara, a ninguém, o que têm a impudência de imprimir.

A conversa girou primeiro acerca de um gracejo das Cartas Persas, onde se repete, segundo várias personagens, que o mundo não só vai piorando, mas também se despovoando cada vez mais; de sorte que se o provérbio Quanto mais loucos, mais riso tem alguma dose de verdade, o riso será banido da terra.

O doutor da Sorbona assegurou que, com efeito, o mundo estava reduzido a quase nada. Citou o padre Petau, que nos demonstra que, em menos de trezentos anos, um só dos filhos de Noé (não sei se Jafé ou Sem) procriara uma série de filhos que subia a seiscentos e vinte e três bilhões, seiscentos e doze milhões e trezentos e cinqüenta e oito mil fiéis, no ano 285 após o dilúvio universal.

O senhor André perguntou por que no tempo de Filipe o Belo, isto é, cerca de trezentos anos após Hugo Capeto, não havia seiscentos e vinte e três bilhões de príncipes da casa real. “É que a fé diminuiu”, disse o doutor da Sorbona.

Falou-se muito de Tebas das cem portas e do milhão de soldados que saía por essas portas, com vinte mil carros de guerra.

— Apertem, apertem – dizia o senhor André. – Suspeito, desde que comecei a ler, que o mesmo gênio que escreveu Gargântua escrevia a História antigamente.

— Mas afinal – disse-lhe um dos convivas, – Tebas, Mênfis, Babilônia, Nínive, Tróia, Selêucia, eram grandes cidades e já não existem.

— Lá isso é verdade – respondeu o secretário do senhor príncipe Galitzin, – mas Moscou, Constantinopla, Londres, Paris, Amsterdã, Lião, que vale mais que Tróia, todas as cidades da França, da Alemanha, da Espanha e do Norte, eram então desertos.

O capitão suíço, homem muito instruído, nos confessou que quando os seus antepassados deixaram as montanhas e precipícios natais, para apoderar-se, como era justo, de uma região mais agradável, César, que viu com os seus próprios olhos o desfile desses emigrantes, calculou-os em trezentos e sessenta e oito mil, contando os velhos, as mulheres e as crianças. Hoje, só o Cantão de Berna possui esse número de habitantes: não é nem metade da Suíça, e eu posso assegurar que os treze cantões contam além de setecentas e vinte mil almas, computando os nativos que trabalham ou negociam em país estrangeiro. Depois disso, senhores sábios, façam cálculos e sistemas; serão tão falsos uns quanto os outros.

Em seguida, procurou-se saber se os burgueses de Roma, no tempo dos Césares, eram mais ricos que os burgueses de Paris, no tempo do senhor Silhouette.

— Ah! isto é comigo – disse o senhor André. – Fui por muito tempo o homem dos quarenta escudos; quero crer que os cidadãos romanos possuíam mais. Esses ilustres ladrões de estrada tinham pilhado os mais belos países da Ásia, da África e da Europa. Viviam esplendidamente do fruto de suas rapinas; mas, em todo caso, havia miseráveis em Roma. E estou persuadido de que, entre esses vencedores do mundo, havia muita gente reduzida a quarenta escudos de renda, como eu.

— Não sabe o senhor – disse-lhe um sábio da Academia das Inscrições e Belas Letras – que Lúculo gastava, em cada ceia que dava no salão de Apolo, trinta e nove mil trezentas e setenta e duas libras e treze soldos da nossa moeda corrente? Mas que Ático, o célebre epicurista Ático, não despendia por mês, para a sua mesa, além de duzentas e trinta e cinco libras?

— Se assim é – disse eu, – era digno de presidir a confraria da sovinice, estabelecida há pouco na Itália. Li como o senhor, em Florus, essa incrível anedota; mas com certeza Florus nunca havia ceado em casa de Ático, ou o seu texto foi corrompido, como tantos outros, pelos copistas. Jamais Florus me fará acreditar que o amigo de César e de Pompeu, de Cícero e de Antônio, que muitas vezes comiam na sua casa, se arranjasse com pouco menos de dez luises de ouro por mês.

E eis justamente como se escreve a História.

A senhora André, tomando a palavra, disse ao sábio que, se este lhe orçasse a mesa por dez vezes mais, muito grata lhe ficaria.

Estou certo de que aquele serão do senhor André bem valia um mês de Ático; e as damas não acreditavam que as ceias de Roma fossem mais agradáveis que as de Paris. A conversação foi muito divertida, embora um pouco erudita. Não se falou nem das modas novas, nem dos ridículos alheios, nem do escândalo do dia.

A questão do luxo foi examinada a fundo. Tratava-se de esclarecer se fora o luxo que havia destruído o império romano, e ficou provado que os dois impérios do Ocidente e do Oriente só foram destruídos pela controvérsia e pelos monges. Com efeito, quando Alarico tomou Roma, só se ocupavam de disputas teológicas; e, quando Maomé II tomou Constantinopla, os monges muito mais defendiam a eternidade da luz do Tabor, que viam no umbigo, do que a cidade contra os turcos.

Um dos nossos sábios fez uma reflexão que me impressionou bastante: é que esses dois grandes impérios foram aniquilados e as obras de Virgílio, Horácio e Ovídio subsistem.

Do século de Augusto para o de Luis XIV não foi mais que um salto. Uma dama indagou, com muito espírito, por que já não se escreviam hoje obras de gênio.

O senhor André respondeu que era porque já as haviam escrito no século passado. Essa idéia era fina, e no entanto verdadeira; foi devidamente estudada. Em seguida tombaram de rijo sobre um escocês que se afoitara a dar regras de gosto e a criticar os mais admiráveis trechos de Racine, sem saber francês. (6) Trataram ainda mais severamente a um italiano, chamado Denina, que denegriu, sem o compreender o Espírito das Leis, e que principalmente censurara o que mais se estima nessa obra.

Fez isso lembrar o afetado desprezo que Boileau dedicava a Tasso. Um dos convivas afirmou que Tasso, com todos os seus defeitos, estava tão acima de Homero, quanto Montesquieu, com os seus defeitos ainda maiores, estava acima da moxinifada de Grotius. Protestaram contra essas críticas ditadas pelo ódio nacional e o preconceito. O signor Denina foi tratado como merecia, e como o são os pedantes pelas pessoas de espírito.

Observaram com finura que a maioria das obras literárias do século atual, bem como as conversações, são dedicadas ao exame das obras-primas do século passado. O nosso mérito consiste em discutir o seu. Somos como filhos deserdados que fazem o cômputo dos bens de seus pais. Confessou-se que a filosofia fizera grandes progressos, mas que a língua e o estilo se haviam corrompido um pouco.

É sorte de todas as conversações passar de um assunto a outro. Todos esses objetos de curiosidade, de ciência e de gosto logo desapareceram diante do grande espetáculo que a imperatriz da Rússia e o rei da Polônia davam ao mundo. Acabavam de reerguer a humanidade aniquilada e de estabelecer a liberdade de consciência numa parte da terra muito mais vasta do que jamais o foi o império romano. Esse serviço prestado ao gênero humano, esse exemplo dado a tantas Cortes que se julgam políticas, foi celebrado como merecia.

Bebeu-se à saúde da imperatriz, do rei filósofo e do primaz filósofo, desejando-lhes muitos imitadores. Até o doutor da Sorbona os admirou, pois há algumas pessoas de bom-senso naquele corpo, como houve outrora gente de espírito entre os beócios.

O secretário russo nos espantou com a narrativa de todos os grandes estabelecimentos que se faziam na Rússia. Perguntaram por que se gostava mais de ler a história de Carlos XII, que passara a vida a destruir, do que a de Pedro o Grande, que consumira a sua a criar. Concluímos que a fraqueza e a frivolidade são causa dessa preferência; que Carlos XII foi o D. Quixote do Norte, como Pedro foi o Sólon; que os espíritos superficiais preferem o heroísmo extravagante aos grandes projetos de um legislador; que os pormenores da fundação de uma cidade lhes agradam menos do que a temeridade de um homem que enfrenta dez mil turcos, apenas com os seus serviçais; e que enfim a maioria dos leitores gosta mais de se divertir do que instruir-se. Daí vem que há cem mulheres que lêem As Mil e uma Noites contra uma que lê dois capítulos de Locke.

Do que não se falou naquela ceia, de que por muito tempo hei de lembrar-me! Afinal também se disse algo dos atores e atrizes, assunto eterno das conversações de mesa em Versalhes e Paris. Conveio-se em que um bom declamador era tão raro como um bom poeta. A ceia acabou por uma bela canção que um dos convivas fez para as damas. Quanto a mim, confesso que o banquete de Platão não me causaria mais prazer do que o do senhor e o da senhora André.

Os nossos petimetres e sécias sem dúvida se aborreceriam ali; pretendem eles ser a boa companhia; mas o senhor André e eu jamais coamos com essa boa companhia.


 

NOTAS

 

(1) – Madame de Maintenon, que era em tudo um espírito muito arejado, exceto nos assuntos em que consultava o finório e chicaneiro padre Gobelin, seu confessor, Madame de Maintenon, dizia eu, faz em uma de suas cartas o cômputo das despesas de seu irmão, mais a sua cunhada, pelo ano de 1880. 0 casal alugava uma casa confortável; os criados eram em número de dez; tinham quatro cavalos e dois cocheiros, um bom almoço todos os dias. Madame de Maintenon avalia o total em nove mil francos por ano, e acrescenta três mil libras para o jogo, o teatro, as fantasias e magnificências do casal.

Seria agora preciso mais de quarenta mil libras para levar tal vida em Paris; bastariam seis mil no tempo de Henrique IV. Esse exemplo prova que o bom do velho não dizia nenhum disparate.
(2) – Baseado nos memoriais dos intendentes, em fins do século XVII, em combinação com o censo por domicílio, efetuado em 1753 por ordem do senhor conde de Argenson, e sobretudo com a obra bastante exata do senhor de Messance, feita sob as vistas do senhor intendente de La Michaudière, um dos homens mais esclarecidos do seu tempo.
(3) – Fiz com que um sábio de quarenta escudos me explicasse tais palavras, que muito me divertiram.
(4) – Caso semelhante sucedeu na província onde habito, sendo o fiscal do domínio obrigado a restituir; mas não foi punido.
(5) – O Jesuíta Sanadon pôs adsunt por adflent. Pretende um amador de Horácio que foi por isso que expulsaram os jesuítas.
(6) – Esse senhor Home, árbitro escocês, ensina como se deve fazer falar com espírito os heróis de uma tragédia; e eis aqui um notável exemplo que extrai da tragédia de Henrique IV, do divino Shakespeare. Assim introduz o divino Shakespeare a Milorde Falstaff, que acaba de prender o cavaleiro Jean Coleville. e o apresenta ao rei:

“Sire, ei-lo, eu vo-lo entrego; suplico a Vossa Graça mandardes registrar este feito d'armas entre os outros desta jornada, ou, por Deus, eu o mandarei pôr numa balada, com o meu retrato a frente; verão Coleville a beijar-me os pés. Eis o que farei, se não tornardes a minha glória tão brilhante como uma dourada peça de dois soldos; e então me vereis, no claro céu da fama. empanar vosso esplendor, como a luz cheia apaga os carvões extintos do elemento do ar, que não aparecem em torno dela senão como cabeças de alfinete”. E esse absurdo e abominável mistifório, tão freqüente no divino Shakespeare, que o senhor Jean Home propõe como modelo do bom gosto e do espírito na tragédia. Mas o senhor Home, em compensação, acha a Ifigênia e a Pedra, de Racine, extremamente ridículas.


 

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