capa

eBookLibris

ENGENHEIROS DE ALMAS

—o stalinismo na literatura de Jorge Amado e Graciliano Ramos—

Janer Cristaldo

www.ebooksbrasil.org


Engenheiros de Almas (1886)
—o stalinismo na literatura
de Jorge Amado e Graciliano Ramos—
Janer Cristaldo (1947–    )

Edição
eBooksBrasil

Fonte digital
Documento do Autor

Copyright
©2000-2006 Janer Cristaldo
cristal@altavista.net


ENGENHEIROS DE
ALMAS

—o stalinismo na literatura de Jorge Amado e Graciliano Ramos—

Janer Cristaldo


 

In memoriam

 

Panaïti Istrati,

 

o primeiro a desconfiar


Í N D I C E

Em busca de uma nova religião
Literatura vira panfleto
Amado importa Zdanov
A onipresença do novo deus
Velho Graça vê o Menino
Tudo que é sólido se desmancha no ar
Anexos
Bibliografia


 

Proletariado nosso que estás na terra,
bendito seja teu nome,
seja feita tua vontade,
venha a nós o teu poder.

(Início da prece revolucionária dos
“Construtores de Deus”, movimento
fundado por Gorki e Lunatcharski)

 

Salut à toi,
Parti, ma famille nouvelle
Salut à toi, Parti, mon père désormais
J’entre dans ta demeure où la lumière est belle
Comme un matin de premier mai!

Louis Aragon, Mon parti lumineux, 1960

 

Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stalin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos. Não há muito ele completou 70 anos. Foi uma festa mundial, seu nome foi saudado na China e no Líbano, na Rumânia e no Equador, em Nicarágua e na África do Sul. Para o rumo do leste se voltaram nesse dia de dezembro os olhos e as esperanças de centenas de milhões de homens. E os operários brasileiros escreveram sobre a montanha o seu nome luminoso.

Jorge Amado, O Mundo da Paz, 1951


 

EM BUSCA DE UMA NOVA RELIGIÃO

 

Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, ex-seminarista sem maiores luzes, teve uma influência na literatura deste século, com a qual jamais sonharia em seus dias de menino na Geórgia. Sem ser pensador, filósofo, teórico da literatura ou criador de sistemas, determinou durante décadas o que era ou não era arte, na União Soviética e no mundo todo ocidental. Latino-americanos sempre à reboque do que se pensa na Europa, não escaparíamos à ditadura mental da religião laica que oprimiu o século.

Ao fechar as portas do século passado, o homem ocidental, se olhasse para trás, veria um ilustre cadáver putrefato, o cadáver do Deus cristão. Nietzsche, pouco antes de mergulhar nas trevas de sua loucura, já anunciara sua morte pela boca de Zaratustra. Ao descer da montanha, “enfastiado de minha sabedoria como a abelha que acumulasse demasiado mel”, Zaratustra encontra um santo no bosque tecendo cânticos a Deus. Mas “será possível que este santo ancião ainda não tivesse ouvido em seu bosque que Deus já morreu?”

Nietzsche penetra em sua noite particular, não sem antes decretar sua Lei contra o Cristianismo, datada do “dia da Salvação, primeiro dia do ano Um (a 30 de setembro de 1888, pelo falso calendário)”, onde propugna a expulsão do cristianismo não apenas da Europa, mas da História:

“O lugar de maldição onde o cristianismo chocou os seus ovos de basilisco será completamente arrasado, e sendo sobre a terra o local sacrílego, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Aí serão criadas serpentes venenosas”.

Nietzsche assina-se então Anticristo. Simbolicamente, morre com o século, pressentindo o odor abominável que exala o cadáver de um deus insepulto. Freud também o pressentia e escreve — em 1927 — em O Futuro de uma Ilusão:

“Se quisermos expulsar de nossa civilização européia a religião, não se poderá chegar a isso senão com a ajuda de um novo sistema doutrina, e este sistema, desde sua origem, adotará todas as características psicológicas da religião: santidade, rigidez, intolerância e a mesma proibição de pensar, como autodefesa”.

Que mais não fosse, em O Idiota, através da boca do príncipe Mychkine, o ortodoxo Dostoievski há muito previra que o catolicismo romano originaria um socialismo ateu. Ateu em relação ao Deus dos céus e dos infernos, mas religioso em relação ao homem enfim divinizado. Morto o Deus judaico-cristão, deus nenhum outro à vista para sucedê-lo, o homem ocidental, órfão e carente de fé, irá criar um deus vivo.

Os russos, excitados talvez pelo messianismo chauvinista e anti-semita de Dostoievski, já andavam procurando o seu. Por volta de 1850, Vladimir Soloviev erige o movimento revolucionário “Os Buscadores de Deus”, que acaba não achando nada. Mas a semente está lançada. Será após o fracasso da revolução de 1905, que Maxim Gorki e Lunatcharski (futuro escritor oficial da era staliniana) fundarão o movimento “Os Construtores de Deus”.

Gorki, que julgava a mentira necessária contra as “verdades nefastas”, diz em uma carta de 1908, dirigida a Gregor Alexinski, que o “socialismo deve se transformar em culto”. Em A Mãe, escrito nos Estados Unidos em 1906, um militante diz aos operários em cortejo: “nossa procissão agora marcha em nome de um deus novo”. Em uma novela de 1908, A Confissão, o incipiente deus já ensaia seus poderes: à passagem de uma manifestação de operários, um paralítico deitado em uma maca se levanta e anda. E antes de morrer (suspeita-se que assassinado por seu “Deus”), Gorki afirma:

“Lá onde reina o proletariado não há lugar para uma querela entre o saber e a fé, pois a fé neste caso é o resultado do conhecimento pelo homem do poder da razão”.

Os tempos estão maduros para a emergência da nova fé. Marx e Engels fornecem o Livro, pois toda religião que se preze se fundamentará em um livro. Os revolucionários de 17 conquistam um território. Só falta o Deus feito carne. Em Gori, na Geórgia, nasce o Menino.

A partir da década de 30, em plena ascensão de Stalin — pois assim decidiu chamar-se o menino de Gori — constituía sacrilégio, para um escritor, não pertencer ao Partido Comunista. Enquanto os defensores incondicionais da “Idéia” gozavam de privilégios, viagens iniciáticas, traduções e gordos direitos de autor, em função de suas adesões ao novo culto, heréticos como Panaïti Istrati ou André Gide eram condenados ao ostracismo. Como pano de fundo desta intervenção ideológica no campo da estética, imperava o arbítrio do homem “de aço”, pois assim se traduz Stalin do russo. Qualquer semelhança com Clark Kent — a identidade secreta do Superman ianque — não passará de mera coincidência.

Como todo seminarista que perde a fé, Stalin intuía o vazio deixado pela ausência de Deus. Morto Lênin, toma posse do cargo. E organiza seu culto. Em ensaio publicado em O Estado de São Paulo, Christian Jelen e Banki Lazitch nos fazem um resumido inventário das fórmulas e metáforas empregadas na ladainha do novo Deus:

— O guia imortal da humanidade
— Nossa luz
— Grandioso edificador do comunismo
— Genial continuador de Marx, Engels e Lênin
— O maior titã de todos os tempos
— Gigante do pensamento e da ação
— Mestre incomparável da ciência marxista
— O cérebro mais poderoso de nossa época
— O senhor dos rios
— Nossa fonte de luz e energia
— O melhor amigo dos judeus
— Corifeu das ciências
— Sabedoria, honra e consciência de nossa época
— O prodigioso cérebro em que se reúnem todas as experiências revolucionárias que o proletariado realizou durante um século
— Sol da verdade
— Arco-íris da humanidade progressista

Etc., etc., etc. Ad nauseam. Os pronomes que o designavam, como nos textos cristãos, são grafados, em meio à frase, com maiúsculas: Ele, Lhe, O, Seu. Stalin é o maior filósofo de todos os tempos, o mais bravo dos combatentes, o maior personagem de cinema, o mais sábio lingüista, o agrônomo por excelência. As vacas dão mais leite com Seu pensamento, os campos produzem mais trigo, os rios não são mais senhores de seus cursos. Superman não faria melhor.

Moscou, para os crentes órfãos do deus hebraico-cristão, torna-se a Terra Prometida, a Nova Jerusalém. Os melhores cérebros do mundo, peregrinos, em procissão, vão adorar o novo Messias. Entre os criadores do Ocidente, coube principalmente aos escritores — definidos por Zdanov como “engenheiros de almas” — fornecer a maior fatia de apóstolos da nova religião.

A lista demandaria páginas e páginas. Alguns nomes, entre milhares: Nikos Kazantzakis, André Gide, Bertold Brecht, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Annie Kriegel, Louis Aragon, Henry Barbusse, Romain Rolland, Heinrich Mann, Paul Eluard, Vaillant-Couturier, Roger Garaudy, Henri Léfebvre, Rafael Alberti.

Na América Latina, sem querer esticar muito a relação: Pablo Neruda, Otávio Paz, Jorge Amado e Graciliano Ramos. Verdade que desta lista alguns nomes irão cair, é o caso de Gide e Otávio Paz. Mas os demais permaneceram cegos ante a evidência dos fatos e morreram stalinistas ferrenhos, ou ainda vivem, confusos crentes incapazes de mudar de crença.

Poucos homens representativos das letras desta primeira metade do século tiveram suficiente lucidez para escapar ao fascínio do novo Deus. Entre estes, Pierre Pascal, Panaïti Istrati, David Rousset, Arthur Koestler, George Orwell, Victor Serge, Albert Camus, Ernesto Sábato. Todos pagaram seu preço. Na Europa e, conseqüentemente, entre nós, extensão da Europa, tiveram decretadas suas mortes civis e uma espécie de excomunhão os baniu — ou tentou banir — do mundo intelectual.

O caso de Panaïti Istrati, escritor romeno de expressão francesa, é dramático. Convidado para os festejos do décimo aniversário da Revolução, em 1927, encontra-se em Moscou com o cretense Nikos Kazantzakis, místico apaixonado por Cristo, Buda e Lênin. Istrati, o haidouc autor de romances telúricos como Os Cardos do Barragan, Kyra Kyralina, Tio Ângelo, é o primeiro escritor ocidental a suspeitar — e denunciar — que algo errado ocorria na Rússia de Stalin.

Em 1929, Istrati publica Vers l’autre flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente. A recusa ao novo dogma é tão traumática que, tendo seu livro publicado em Paris, em 1929, uma segunda edição só surgiria na mesma cidade em 1980. Suas Obras Completas são publicadas pela Gallimard, exceto Vers l’autre flamme, cujos originais levam Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo:

“Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais”.

Não foram muitos os escritores a intuir que não se estava precisamente ante uma revolução, mas ante uma nova religião. Entre estes, poucos foram tão precisos na denúncia do novo dogma como Nikos Kazantzakis. No relato de sua peregrinação à Rússia — Voyages — Russie —, diz o cretense que pouco a pouco a luz se fazia em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplista. Como em todas as religiões, eles buscavam divulgar essas respostas, tentando torná-las compreensíveis para o povo. Kazantzakis reconhece então, na Rússia, a existência de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos e educava como bem entendia milhões de crianças.

Este exército, diz o cretense, possui seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin. E seus apóstolos fanatizados que pregam as Boas Novas a todas as gentes. Possui também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, sua hierarquia, sua liturgia e mesmo a excomunhão. E sobretudo a fé, que lhe assegurava deter a verdade e trazia a resposta definitiva aos problemas da vida.

Não há apenas um Livro — acrescentaríamos —, como também os livros apócrifos. Assim como a Igreja Romana censura os testemunhos gnósticos que não servem à sua ambição de poder, assim censurou-se até mesmo a obra de Marx na finada União Soviética. “Nós somos contemporâneos — diz Kazantzakis — deste grande momento em que nasce uma nova religião”.

Albert Camus é outra voz solitária a denunciar o caráter eclesial da nova idéia. O proletariado — diz Camus tentando entender o marxismo — “por suas dores e suas lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação”.

Sua percepção do caráter religioso do marxismo é continuamente retomada em seus ensaio mais ambicioso, L’Homme Revolté:

“O movimento revolucionário, ao final do século XIX e ao começo do século XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário”.

“A revolução russa permanece só, viva contra seu próprio sistema, ainda longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia se afasta ainda mais. A fé resta intacta, mas ela se curva sob uma enorme massa de problemas e de descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo diante de Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre”.

A nova religião nascera e os intelectuais do Ocidente, os lúcidos entre os lúcidos, caíram como patinhos no engodo. Este é o grande enigma que cerca o fenômeno Stalin: como foi possível que espíritos abertos e generosos da época se tornassem cúmplices e devotos deste formidável assassino? Ou talvez não fossem tão lúcidos, nem tão abertos nem tão generosos, e sim pobres crianças em busca de um novo pai? Não será por acaso que a ladainha mais freqüente entoada a Stalin é a de Paisinho dos Povos.

Desde então, sete décadas rolaram sob as pontes. Houve os gulags (que datam de 1918, é bom lembrar), as primeiras purgas de 1935, o pacto Stalin/von Ribbentrop, de 1939, a affaire Lyssenko, de 1949, e o XX Congresso do PCUS, em 1956, année-charnière. Interrompido o sonho quiliasta dos intelectuais deste século, o final dos anos 50 assistiu a um congestionamento na estrada de Damasco. Não poucos escritores refizeram ou tentaram refazer suas obras, renegaram livros e suprimiram poemas de suas antologias.

Falar de realismo socialista na literatura brasileira é falar da história do PC no Brasil, partido que, desde sua fundação, em 1922, poucos anos teve de vida legal, entre os quais se destaca o período de 1947 a 1949, tendo depois emergido da clandestinidade em 1985. Criticar o realismo socialista, método de trabalho dos escritores-militantes de um partido clandestino, era atitude interpretada como delação. Por outro lado, em função deste clima de opressão intelectual, os escritores comunistas raras vezes tiveram ocasião de defender publicamente suas idéias no Brasil, fato rotineiro em países como Alemanha, França ou Itália.

Do que decorre uma outra circunstância também nefasta para o pesquisador: se um escritor não tem a oportunidade de defender publicamente uma doutrina, tampouco necessitará negá-la quando a evidência dos fatos desmente determinadas teorias. Assim, não temos na história das idéias no Brasil polêmicas férteis como a de D’Astier de la Vigerie com Albert Camus, as affaires Lyssenko e Kravchenko, os depoimentos de Panaïti Istrati sobre a União Soviética, as reflexões de Arthur Koestler, Ignazio Sillone, Richard Wright, André Gide, Louis Fischer e Stephen Spender em Le Dieu des ténébres. O trabalho desenvolvido por David Caute nos Estados Unidos e na Europa, The Great Fear e Le Communisme et les intellectuels français, só foi feito no Brasil tardiamente, por John. W. F. Dulles, em Anarquistas e Comunistas no Brasil e O Comunismo no Brasil. Há nas ditaduras uma burrice intrínseca que, ao proibir a livre expressão de pensamento, concede uma aura de martírio aos defensores de idéias obsoletas.

Neste Brasil de hoje, em que ninguém é encarcerado por suas convicções filosóficas, políticas ou ideológicas, é oportuno detectar os efeitos do zdanovismo na obra de seu introdutor e bem mais sucedido intérprete no Brasil. Como uma análise de todos os romances de Jorge Amado em que esta tosca teoria se manifesta seria por demais tediosa e redundante, fixamo-nos em Os Subterrâneos da Liberdade, “totalmente influenciado pelo stalinismo”, conforme declara o próprio autor. Desta trilogia, escolhemos Os Àsperos Tempos para nele isolar o maniqueísmo decorrente de tal concepção estética em alguns de seus personagens.

Dezenas de outros escritores tentaram os mesmos rumos, e as atuais novelas da TV Globo — Dias Gomes que o diga — muito devem às teorias zdanovistas. Perseguir a fórmula em todas estas manifestações estéticas seria redundante. Dedicaremos ainda um capítulo a um escritor talentoso, Graciliano Ramos. Mesmo pretendendo resistir ao canto de sereia, acabou capitulando pela pressão de seus contemporâneos.

Quanto às teorias que embasam boa parte da obra de Amado, citaremos o discurso de Andrei Zdanov, pronunciado no I Congresso de Escritores Soviéticos, realizado em Moscou, em 1934, e textos outros anteriores a este congresso. Para não afastá-los ainda mais dos textos originais russos, são mantidos em espanhol, língua pela qual a eles tivemos acesso, através da antologia Estética y Marxismo, de Adolfo Sánchez Vázquez.


 

LITERATURA VIRA PANFLETO

 

A história é longa. Ao desterrar os poetas de sua República — com exceção daqueles que compusessem hinos aos deuses e heróis — Platão, há mais de dois milênios, certamente não imaginaria estar assumindo o papel de teórico avant la lettre de uma doutrina estética que constituiu formidável camisa-de-força para os criadores da primeira metade deste século e até hoje asfixia as manifestações artistícas em países como Cuba ou China, o realismo socialista. Ou sozrealism, para os iniciados.

Platão à parte, a nova teoria vinha sendo nutrida pelas resoluções do Partido Comunista da União Soviética (vide anexos 1 e 2), pelas idéias estéticas de Plekhanov, Lênin, Bukharin, Klebnikov, Derjavine, Polianski, Bogdanov, Lunatcharski, Fadéev, Sholokov e mesmo por um criador poderoso como Maxim Gorki. Na introdução a El Realismo Socialista en Literatura y el Arte, M. Parjómenko e A. Miasnikov nos dão uma primeira idéia da nova teoria.

“Quizás una de las más maravillosas realizaciones del marxismo-leninismo sea haber cambiado en el hombre de filas la visión de la historia y del mundo actual. Los clásicos del marxismo-leninismo han demostrado que existen unas determinadas leyes de la historia, que esas leyes se pueden conocer y que, apoyándo-se en ellas, el hombre puede inmiscuirse en el proceso histórico e influir en el curso de la historia. Cómo hán hecho cambiar estos descubrimientos de la sicología de los hombres! Estos se han sentido fuertes, poderosos. Han adquirido conciencia del optimismo histórico.

“Este optimismo histórico distingue a los mejores personajes del arte y la literatura del realismo socialista: son personas que arden en deseos de hacer la historia y la hacen prácticamente, consideran el mundo como dueños y señores de el, como sus constructores, que se han planteado el objetivo de transformarlo para hacer feliz al hombre, para hacer del globo terrestre ‘una maravillosa vivienda de la humanidad, unida en una sola família’ (Máximo Gorki).”

Para os compiladores destes textos, a luta socialista e os ideais do comunismo formaram um novo tipo de artista, que participa na batalha pelos corações e mentes de milhões de pessoas. Sua maneira de ver a liberdade de criação não é a mesma do “artista burguês”. Sua arte produzirá um novo arquétipo, o personagem positivo. Não será exatamente um personagem “ideal”, mas suas características pessoais e os traços dominantes de seu mundo espiritual devem sempre “tender” ao ideal:

“En el desarrollo de los hermosos rasgos y cualidades del personaje positivo, que no sólo se manifiestan en su mentalidad, sino también en sus obras, ve el lector la más convincente prueba de que semejante camino es real y posible para él mismo. Ese es el ‘secreto’ de la fuerza educativa del personaje positivo, de esa acción educativa sobre el lector que hace a la literatura soviética participante de la formación del nuevo hombre de la sociedad comunista y le permite educar mediante la veracidad y la belleza de las imágenes literarias”.

Em suma, uma arte catequética. Segundo os antólogos, seriam quatro os seus princípios fundamentais:

1) a arte reflete a realidade e ouve atentamente a “linguagem do objeto” pintado, do qual falou Marx.

2) o artista que possui talento e uma determinada concepção do mundo não é um médium passivo, que deve unicamente escutar e transmitir o que a vida lhe oferece. Deve, isto sim, recriar o visto, reproduzir a vida com espírito criador, contrapondo o existente com seu ideal do que deve ser.

3) a obra de arte não é uma cópia da vida, uma repetição, mas uma “realidade estética” particular, um instrumento de conhecimento, estudo e transformação da vida.

4) a verdadeira obra de arte existe apenas quando revela aos homens algo novo, enriquece seus sentimentos, sua inteligência e vontade e nelas desperta o artista.

O realismo socialista é visto por Parjómenko e Miaskinov como “método único de criação”. Que mais não fosse, está regulamentado pelos Estatutos da União de Escritores Soviéticos, nos quais se lê que o realismo socialista “ofrece a los escritores posibilidades máximas de creación libre e iniciativa en la esfera del contenido y de la forma, para la manifestación de las peculiaridades individuales de su talento, presupone riqueza y variedad de procedimientos y estilos y contribuye a la innovación en todos los domínios de la creación artística.”

Em meio à fracassada revolução de 1905, Lênin já antecipava as bases da nova teoria. A literatura deve adquirir um caráter partidário.

“Em qué consiste este principio de la literatura del Partido? No consiste solamente en que literatura no puede ser para el proletariado socialista un medio de lucro de individuos o grupos, ni puede ser, en general, obra individual, independiente de la causa proletaria común. Abajo los literatos apolíticos! Abajo los literatos superhombres! La literatura deve ser una parte de la causa proletaria, deve ser “rueda y tornillo” de un solo y gran mecanismo social-demócrata, puesto en movimiento por toda la vanguardia consciente de toda la clase obrera.”

Mas não basta, para Lênin, que a literatura esteja a serviço do Partido. A seu serviço também devem estar a imprensa, as editoras e seus depósitos, as livrarias, salas de leitura, bibliotecas e distribuidoras de publicações. O próprio escritor deve fazer parte das organizações do Partido. Aos que possam temer pela subordinação ao interesse coletivo de algo tão delicado e individual como a criação literária, Lênin adverte:

“Tranquilizaos, señores! En primer lugar, se trata de la literatura del Partido y de su subordinación al control del Partido. Cada uno es libre de escribir y de hablar cuanto quiera, sin la menor cortapisa. Pero toda asociación libre (incluido todo partido) es también libre para arrojar de su seno a aquellos de sus miembros que utilicen el nombre de un partido para propugnar puntos de vista contrarios a éste. La libertad de palabra y de prensa deve ser completa. Pero también debe serlo la libertad de asociación. Yo tengo la obligación de concederme a mí, em nombre de la libertad de asociación, el derecho a concertar o anular una alianza con quienes se expresan de tal y tal manera.”

Ou seja, a liberdade de criação deve ceder, caso se encontre em conflito com a liberdade de associação. Vladimir Illich Ulyanov não consegue tranqüilizar-nos. Seu dogmatismo será endossado por um ilustre remanescente da época tzarista, Maxim Gorki.

Místico e revolucionário, ativo participante da abortada revolução de 1905 (sua detenção provocou protestos internacionais), Gorki será o único escritor de sua geração a ajustar sua literatura aos ideais da Revolução de 17, passando a defender, mais tarde, os princípios do realismo socialista, atitude indubitavelmente decorrente de seus encontros com Lênin em Capri, nos anos de 1908 e 1910.

Antes do primeiro encontro, Gorki acabara de publicar A Mãe, romance hoje considerado como modelo de narração social revolucionária. Com a divulgação de suas obras nos meios operários, Gorki torna-se praticamente um símbolo da Revolução de 17, da qual foi colaborador infatigável no campo cultural. É preciso, no entanto, voltarmos alguns anos atrás, para melhor captar este culto de Gorki pelo proletariado.

Surgiu na Rússia, em 1850, um grupo conhecido como os “Buscadores de Deus”, que tentava conciliar a idéia de Deus com a luta revolucionária. Em Lénine, l’art et la révolution, escreve Jean-Michel Palmier:

“Ce mouvemente était, à l’origine, lié à la poésie et à la philosophie, plus particulièrement à l’oeuvre de Vladimir Soloviev. Le mouvement par la suite se radicalisa: certains voulurent unir plus étroitement la religion et le socialisme en le divinisant. Ainsi naquit le mouvement des Constructeurs de Dieu. Les premiers — les Chercheurs de Dieu — restaient fidèles au christianisme traditionnel, alors que les ‘constructeurs’ étaient en quête d’un Troisiéme Testament, cherchant à édifier un Dieu nouveau, social et socialiste, à partir de tous les efforts de l’humanité.”

Em 1908, Gorki publica Uma confissão, longo poema em prosa descrevendo uma vida e uma busca de Deus, reflexo de sua crise religiosa decorrente da influência de Tolstoi. Mas este “Deus” ainda não existe e seus construtores são, para Lunatcharski e Gorki, os operários das fábricas. Assim é que, no artigo “Ócios Literarios”, Gorki afirma:

“La historia impone a los escritores de la Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas la tarea y el deber de crear una literatura verdaderamente universal. Debe ser una literatura capaz de emocionar profundamente al proletariado de toda la tierra y de formar en él la conciencia revolucionaria de su razón. Poseemos material para crear una poesia y una prosa de alto valor, poseemos un material absolutamente nuevo, que la valentía revolucionaria con que actúan los obreros y los campesinos y el multifacético talento que unos y otros ponen de manifiesto han creado y siguen creando incesantemente. Es el material de una victoria del proletariado y de la afirmación de su dictadura. El sentido y la importancia histórica mundial de esa victoria excluyen por completo de nuestra literatura el tema de la desesperación, de la insensatez de la existencia del individuo, el tema del sufrimiento, santificado por esa archinociva mentira que es el cristianismo.”

Em seu informe para o I Congresso dos Escritores da URSS (1934), Gorki considera que o personagem principal da nova literatura deve ser o trabalho, “ es decir, el hombre organizado por los procesos del trabajo, pertrechado en nuestro país de toda la fuerza de la técnica moderna; el hombre que, a su vez, organiza un trabajo más productivo, elevándolo al rango de arte.”

O informe deste buscador de Deus não poderia deixar de terminar com um toque messiânico:

“El realismo socialista afirma la vida como acción, cuya finalidad es el desarollo ininterrumpido de las más valiosas facultades individuales del hombre, en aras de su victoria sobre las fuerzas de la naturaleza, en aras de su salud y longevidad, en aras de la gran dicha de vivir en la tierra, que él, en correspondencia con el incesante crecimiento de sus necesidades, quiere cultivar toda como hermosa morada de la humanidad, unida en una sola familia...”

No ano seguinte ao I Congresso, Gorki escreverá a A. S. Scherbakov:

“El realismo de la literatura burguesa es crítico, pero tan sólo en la medida en que la crítica es necesaria para la ‘estrategia’ de clase, para verter luz sobre los errores de la burguesia en la lucha por la estabilidad del poder. El realismo socialista está orientado a luchar contra los vestigios del ‘viejo mundo’, contra su influencia deletérea, y a extirpar esa influencia. Pero sua tarea principal consiste en estimular la concepción y percepción del mundo socialistas, revolucionarias.”

Para Anatoli Lunatcharski, outro buscador de Deus, a tarefa da literatura sempre foi organizar a classe cujos interesses expressa. O conceito de literatura está intimamente ligado ao de classe.

“Incluso cuando la literatura se denominaba a sí misma arte por el arte y se deslindaba escrupulosamente de cualquier objetivo político, religioso o cultural, en realidad servía al logro de ese objetivo, ya que la llamada literatura pura es también un reflejo concreto de un estado concreto de la clase que la promueve.”

O realismo socialista, para Lunatcharski, assim como a filosofia para Marx e Engels, tem seus fundamentos na práxis: “El quid de la cuestión reside en que el realismo socialista es activo. No simplemente trata de conocer el mundo, sino que tiente a transformarlo”. Distingue-se do romantismo, mas ao mesmo tempo com ele se confunde:

“Sin embargo, nuestro romanticismo es parte del realismo socialista. Este, en cierta medida, es inconcebible sin cierta dosis de romanticismo. Eso es lo que lo distingue de una fría consignación de los hechos. Es realismo má entusiasmo, realismo más combatividad. En los casos en que ese entusiasmo y esa combatividad predominan, cuando, pongamos por caso, se pone en juego con fines satíricos la hipérbole o la caricatura; cuando pintamos el futuro, que todavia no conocemos realmente, o cuando damos forma definitiva a un tipo que en la vida aún no la tiene y presentamos de cuerpo entero al hombre que queremos forjar, damos preferencia, naturalmente, al elemento romantico.”

A arte — soviética, por enquanto — está insatisfeita com a realidade, que transformá-la e pensa que pode fazê-lo. “El país al que de vez en cuando agrada trasladarse, para descansar y fortalecerse, es el futuro.”

Para completar este quadro, mais uma pincelada de Alexandr Fadéev:

“Marx, Engles y Lenin comprendían por realismo artístico la proximidad a la verdad histórica objetiva, la revelación de aspectos esenciales de la realidad, la denuncia valerosa de las contradicciones, la intrepidez para ‘quitar todas las caretas’ con que las clases explotadoras trataban de encubrir la verdadera esencia explotadora de su dominación, y, al mismo tiempo, un audaz vuelo del pensamiento, un revolucionario y apasionado sueño basado en la realidad, que había de verse cumplido en el mañana. Desde este punto de vista, el impulso romántico hasta el futuro es uno de los aspectos del verdadero realismo.”

À guisa de conclusão destas tautologias, escreve ainda Fadéev:

“La tendencia dominante en la literatura soviética es el realismo socialista. Por qué? Porque según la interpretación marxista-leninista, el verdadero realismo artístico es la creación cercana a la verdad histórica y capaz de ver la tendencia principal del desarrollo de la realidad en su lucha contra las fuerzas de lo viejo. Por qué ese verdadero realismo es en nuestros dias el realismo socialista? Porque el artista contemporáneo que pinta verazmente la realidad a la luz de la tendencia principal de nuestra época pinta esa realidad desde las posiciones del socialismo.”

Com exceção da carta de Gorki a Scherbakov, estes textos antecedem a intervenção de Andrei Zdanov, aos 17 de agosto de 1934, por ocasião do I Congresso de Escritores da União Soviética, realizado em Moscou. Se as teorias literárias são em geral posteriores às obras que pretendem elucidar e jamais têm data de vigência, o inverso ocorre com o realismo socialista. Sua institucionalização ocorre neste congresso, como palavra de ordem aos seiscentos delegados do mundo todo lá presentes.

Com um breve e encomiástico discurso, onde “nosso chefe e mestre, o camarada Stalin” é invocado nove vezes, Andrei Zdanov vide anexo 3) decreta as bases da doutrina que castrará por bem mais de meio século, toda e qualquer manifestação literária, teatral, pictórica ou cinematográfica na União Soviética. Escritor que discordar da cartilha zdanovista é ostracisado e, se permitir a publicação de seus livros no exterior, será internado em hospitais psiquiátricos.

Permanecesse este vírus circunscrito à geografia que o gerou, teríamos a lastimar — o que já não é pouco — a morte de uma cultura que nos deu, sem ir mais longe, Dostoievski. Acontece que os escritores presentes a este I Congresso portaram-se como agentes transmissores desta perversão estética que contaminou durante décadas a literatura ocidental.

Após 1934, muito papel e tinta ainda seriam gastos na difusão da nova teoria. Além dos demais manifestos compilados por Parjómenko e Miaskinov, Adolfo Sánchez Vázquez nos dá uma idéia abrangente de sua repercussão internacional nos dois gordos tomos de Estética y Marxismo. Para não ficarmos patinando na mesmice de uma só idéia sempre repetida com outras palavras, apanhemos a definição — esta sim, verdadeiramente realista, de realismo socialista, proposta por Edward Hyams, em seu Dicionário das Revoluções Modernas:

“ O único estilo de arte tolerado na URSS desde que Stalin subiu ao poder e que, infelizmente, continua até depois de sua morte. A teoria é que o trabalho do artista deve mostrar as vidas dos trabalhadores não apenas realisticamente mas também de tal forma que seja um apoio e faça sobressair a moral do socialismo da forma como ele é interpretado pelo PC da URSS e tudo o que o proletariado conseguiu fazer na construção do socialismo, graças à orientação do PC. Qualquer obra de arte que não se enquadre nessa teoria é classificada como burguesa decadente, como acontece com a escola abstrata de pintura e escultura. A Arte Realista Socialista pode ser considerada como a ortodoxa dos comunistas soviéticos e equivalente à arte comercial do ocidente, uma forma de anunciar que tem por fim fazer crer ao povo a ilusão que a ditadura do proletariado está viva e saudável.”

Ao criador vigoroso, claro está, não é fácil trabalhar cingido por tal camisa-de-força. Continua Hyams:

“O escritor russo realmente original e talentoso é, naturalmente, incapaz de trabalhar dentro das regras do realismo socialista porque elas não permitem qualquer crítica sincera à vida soviética, ao partido comunista e à sociedade do ‘establishment’. Assim, os melhore escritores da URSS, zelosamente guardados pelos tolos que constituem o Sindicato dos Escritores, ficam, em sua maioria, impedidos de publicar seus livros na URSS, são perseguidos e condenados ao ostracismo e são, até mesmo, internados em hospitais psiquiátricos como loucos, se permitirem que seus livros sejam publicados em traduções no exterior, sendo tratados como párias pelos falsos críticos literários do ‘establishment’. Os casos mais conhecidos do público em geral são os dos contemplados com o Prêmio Nobel, Pasternak e Solzhenitzyn.”

Ou seja, arte para a ser catequese e divulgação do novo evangelho. O fanatismo que enfebrecia os seguidores da Revolução de 17 chegou a gerar, na área das ciências, um peculiar Zdanov, o agrônomo T. D. Lyssenko, o qual, através de experiências truncadas com pinheiros e rutabagas, pretendia submeter os próprios genes ao pensamento dialético de Marx. De nossos dias, é difícil avaliar quem causou mais estragos, se Zdanov nas artes ou Lyssenko na agricultura. Lyssenko foi logo desmoralizado, afinal é mais fácil viver sem literatura do que sem trigo. Quanto a Zdanov, somente em 1989, seu nome começou a ser retirado das placas de ruas na União Soviética.

O dogma zdanovista revelou tal poder de sedução que mesmo uma nação de tradições libertárias como a França passou a cultivar o novo gênero. Em Le Communisme et les intellectuels français (1914-1966), David Caute conta-nos que no famoso congresso de 1934, lá estavam Louis Aragon, André Malraux, Paul Nizan e Jean-Richard Bloch. Os resultados não se farão esperar. Em 39, Aragon publica Les Voyageurs de l’impériale, onde tenta mostrar como os esforços da burguesia para preservar sua liberdade e individualidade resultam na degradação do indivíduo e no crime coletivo. Mais tarde, em Les Communistes, romance com mais de duas mil páginas (seis volumes) povoadas por mais de duzentos personagens, o autor pretende analisar a decadência da França burguesa e a luta heróica dos comunistas durante a guerra.

Para Roger Garaudy (citado por Caute), neste romance, cada um dos heróis reagia aos acontecimentos conforme as impulsões de seu coração e, se cada uma destas reações coincidia com as diretivas do partido, isto constituía a prova experimental da humanidade de sua política e da harmonia que existia entre a moralidade do indivíduo e a moralidade de sua classe.

Paul Nizan, por sua vez, se aproximará do realismo socialista com Antoine Bloyé, publicado em 1934 e já saudado por Aragon como inspirado na nova teoria. Produzirá mais tarde Le Cheval de Troie, onde um de seus personagens considera que, face à miséria, ao desemprego e ao desespero, nada pode ser mudado se não for com risco de morte.

Esta obediência às determinações do I Congresso renderá inclusive um prêmio Stalin à França, André Stil. Em Le Premier Choc, romance em três volumes, Stil narra a luta dos estivadores de um porto do Atlântico contra a “ocupação” americana. Os americanos, é claro, representam o mal absoluto, expropriando terras dos camponeses e pequenos proprietários, provocando o desemprego, incorporando em suas forças antigos nazistas e armazenando armas na França para preparar uma guerra contra a URSS. Antes de receber o prêmio Stalin, Stil havia feito sua ode ao grande homem. O elogio é inquietante:

“É verdade, pensam eles, sabe-se muito que todos temos um pouco de Stalin no fundo de nós mesmos, que nos olha de dentro, sorridente e sério, que nos dá confiança. É a consciência que temos nós, comunistas, esta presença interior de Stalin.”

Depois, houve Kruschev e o XX Congresso do PC soviético. A partir de 1956, impossível continuar praticando o novo gênero. Aragon reformula inteiramente Les Communistes e não são poucos os escritores mundo afora que expurgam romances e poemas de suas obras completas.

Extensão cultural da Europa, a América Latina evidentemente não escaparia ao novo culto. No caso específico do Brasil, o introdutor e praticante-mór do realismo socialista é Jorge Amado. Outros tentaram, sem maior sucesso, seguir-lhe as pegadas. Entre eles, Dalcídio Jurandir, com Linha do Parque; Alina Paim, com A Correnteza e A Hora Próxima; José Ortiz Martins, comEles possuirão a Terra (tradução do título de um romance de Robert Charbonneau, publicado em Montreal, em 1941); Maria Alice Barroso, com Os Posseiros; Ibiapaba Martins, com Sangue na Pedra; Figueiredo Pimentel, com A Inspiradora de Luís Carlos Prestes; Lauro Palhano, com O Gororoba, Marupiara e Paracoera.

Escritores de porte, cá e lá, não deixaram de dirigir acenos à nova religião. É o caso de Graciliano Ramos, em São Bernardo e Viagem; Oswald de Andrade, em A Escada Vermelha e O Homem e o Cavalo e Patrícia Galvão, em Parque Industrial. Pagu, justiça seja feita, ao manter um contato mais prolongado com a realidade soviética, torna-se o primeiro escritor, no Brasil, a denunciar o stalinismo. Por outro lado lado, homens como Aníbal Machado e Dyonélio Machado, embora sendo militantes do Partido Comunista, em momento algum se renderam ao novo gênero.

Se Graciliano, apesar de seu culto crepuscular a Stalin, manifesto em Viagem, não se deixou fascinar pelas teorias de Zdanov — a quem considerava “uma besta” — Amado a elas entregou-se qual noiva ardente. Por ocasião da morte de seu mestre, em O Mundo da Paz, carpe sua viuvez:

“Foi em Varsóvia, numa cálida noite de verão, que soubemos a notícia da sua morte repentina quando tanto ele tinha ainda a nos ensinar. Estávamos numa alegre conversa, escritores e artistas de vários países, quando alguém chegou com a terrível nova: ‘Zdanov morreu!’. Entre nós estava Alexandre Fadéev, mestre do romance soviético, amigo e colaborador do homem que, nos últimos anos, deu mais concreta contribuição ao desenvolvimento da literatura e da arte. Pelo resto da noite indormida, Fadéev, emocionado, contou de Zdanov. Parecia-nos tê-lo ali, junto a nós, comandando o povo de Leningrado na resistência indomável, vencendo não só os inimigos nazistas mas também a fome e o medo, o desânimo e o desespero. Nós o víamos, depois, andando para um piano, na discussão sobre música com os compositores soviéticos, para ilustrar, tocando um ária qualquer, as teses justas que explanava, ele a quem não parecia estranho nenhum problema da ciência política, da filosofia, da literatura e da arte, esse exemplo da cultura bolchevique.

“A voz de Fadéev, molhada de dor, trazia para junto de nós, naquela noite de luto, a presença do grande desaparecido. Pensávamos na estrada aberta, sob seu comando, sob o gelo, cada dia apagada pela neve, cada dia reconstruída, que garantia o contato de Leningrado assediada com o resto da pátria. Pensávamos nele, nessa mesma cidade de Varsóvia, em 1947, fazendo seu histórico informe na primeira reunião do Bureau de Informação dos Partidos Comunistas. Gigante do pensamento humano, esse outro filho da classe operária, educado pelo Partido Bolchevique, nascido dos ensinamentos de Lênin e Stalin.”

Mais adiante, Amado acusa a “imprensa burguesa” de ter silenciado sobre as discussões literárias presididas por Zdanov, contentando-se “em gastar manchetes e títulos para difundir calúnias: escritores presos, artistas deportados, cientistas fuzilados”. Contemplada de nossos dias, e considerando que foi assinada em livro publicado dois anos após a affaire Kravchenko — não por acaso em 1951, ano em que Amado recebe o prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra — esta afirmativa sabe a cumplicidade com o Petit Père des Peuples.

O curioso é que Zdanov, em um informe sobre literatura pronunciado em Leningrado, em 1946 — citado pelo próprio Amado em O Mundo da Paz, antecipa o Jorge de nossos dias:

“Por mais bela que possa ser a forma exterior das obras dos escritores burgueses atuais da Europa ocidental ou da América, dos diretores cinematográficos ou teatrais, eles não poderão salvar ou elevar o nível de sua cultura burguesa, porque está colocada a serviço da propriedade privada capitalista, ao serviço de interesses egoístas, de uma sociedade privilegiada burguesa. Toda a multidão de escritores, de ‘metteurs en scéne’ burgueses, busca desviar a atenção das camadas progressistas da sociedade, das questões apaixonantes da luta política e social, e de a dirigir para uma literatura e uma arte apolíticas, repletas de gangsters, de girls de teatros de variedades, de apologia do adultério e de feitos de aventureiros de toda espécie e de cavalheiros de indústria.”

Um intuitivo, Zdanov. Há exatamente meio século, antevia o roteirista da rede Globo em que se transformou seu mais aplicado discípulo brasileiro.


 

AMADO IMPORTA ZDANOV

 

Em sua História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi constata a inclinação de Amado por uma literatura de partido, a partir da influência de Raquel de Queiroz, de romances da nova literatura proletária russa e de autores como Michael Gold (a quem Amado dedica os três tomos de Subterrâneos) e Steinbeck. Sem entrar na questão do realismo socialista — tema tabu para a quase unanimidade dos historiadores da literatura brasileira, salvo a honrosa exceção de Wilson Martins —, Bosi prolata uma rude sentença:

“Cronista de tensão mínima; soube esboçar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco: pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez da captação estética do meio, tipos ‘folclóricos’ em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano.”

Em Jorge Amado: política e literatura, certamente o mais sólido estudo sobre esta primeira fase do autor baiano, Alfredo Wagner Berno de Almeida analisa em profundidade as raízes de Subterrâneos:

“Feito o lançamento, instaura-se uma discussão que, embora já houvesse espocado timidamente em análises relativas à obra de Amado, ainda não se consolidara como um recurso idôneo para a compreensão de determinado momento de sua trajetória e quiçá da história da literatura brasileira. Ela concerne à aplicação do realismo socialista.”

Em O Mundo da Paz, escreve Berno de Almeida, “Amado descrevera os princípios gerais e as teorias subjacentes a este método de fabricação literária. Ademais, além de seus formuladores principais, o autor assinalara indícios de sua execução prática e sua incorporação em itens do Estatuto da União de Escritores Soviéticos. Com Subterrâneos da Liberdade ele se dirige ao público, que acompanha de perto o curso de sua produção literária, aplicando o manancial teórico de que antes se apresentara como detentor. Vale recordar que, com o arquivamento do processo instaurado a propósito de O Mundo da Paz, o público amplo consumidor teve acesso ao livro a partir de 1952, sem maiores restrições. (...) Concorria também para coroar esta expectativa o fato de Amado ter sido agraciado, em 1951, com o Prêmio Stalin Internacional da Paz atribuído ao conjunto de sua obra, e este ser o primeiro livro por ele publicado depois deste acontecimento. A concessão do prêmio significou, por assim dizer, um reconhecimento da eficácia da ‘função cosmopolita” desempenhada pelo autor nos anos de desterro.”

Entre os historiadores de nossa literatura, Wilson Martins é talvez o único a denunciar os estragos produzidos por Zdanov. Sem ater-se a Amado, em A História da Inteligência Brasileira, escreve:

“... de um lado, os bons, ou seja, os que se incluem na “chave” mística do “trabalhador”, do “operário”; de outro lado, os maus, isto é, todos os outros mas, em particular, o “proprietário” e a “polícia”, as duas entidades arimânicas deste singular universo. Os primeiros são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução e do progresso, patriotas, bons pais de família, sóbrios, artesãos delicados, técnicos conscienciosos, empregados eficientes (embora revoltados), imaginativos e incansáveis, focos de poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais irrepreensível, corajosos, sentimentais, poetas instintivos, sede de paixões violências (oh! no bom sentido!), modelos de solidariedade grupal, argumentadores invencíveis, repletos, em suma, de uma nobreza que em torno deles resplandece como um halo. O “trabalhador” é o herói característico desses romances de cavalaria: sem medo e sem mácula, ele tem tantas relações com a realidade quanto o próprio Amadis de Gaula.

“Já o “proprietário” é um ser asqueroso e nojento, chafurdado em todos os vícios, grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens e perseguidor feroz das idosas, barrigudo, fumando enormes charutos, arrotando sem pudor, repleto de amantes e provavelmente de doenças inconfessáveis, membro da sociedade secreta chamada “capitalismo”, onde, como todos sabem, é invulnerável a solidariedade existente entre seus membros; indivíduo que favorece todos os deboches, inclusive dos seus próprios filhos; covarde, desonesto, egoísta, ignorante, vendido ao dólar americano, lúbrico, marido brutal e pai perverso, irritante e antipático, rotineiro, frio como uma enguia, incapaz de sinceridade, sem melhores argumentos que a força bruta, verdadeira encarnação contemporânea dos demônios chifrudos com que a Idade Média se assustava a si mesma.”

Wilson Martins continua enumerando detalhadamente os demais estereótipos utilizados neste tipo de romance, entre eles a polícia, o tabelião, o posseiro, o governador, o latifundiário, o camponês. Seria por demais monótono continuar a descrição deste universo maniqueísta, como tampouco teria sentido acompanhar a repetição — ad nauseam — de uma fórmula primária de fabricar livros. Como ao pesquisador nem sempre é dado lidar com matéria nobre, nada mais lhe resta senão arregaçar as mangas e enfiar as mãos no lixo.

Após acenar com Cristo como solução, em seu livro de estréia, O País do Carnaval, Amado toma um rumo aparentemente oposto em seu segundo romance, Cacau, escrito, conforme declarações a Miécio Táti, “com evidentes intenções de propaganda partidária”. Já neste livro, Amado depara-se com uma dificuldade: como escrever um romance proletário, como construir um personagem proletário, sendo ele, o autor, um burguês?

No Brasil de então, a grande polêmica entre os comunistas é a proletarização do Partido, fator que impediu o ingresso de Prestes no PC. Amado resolve sem maiores dificuldades o impasse: Sergipano, seu personagem central, é filho de um fazendeiro falido. Proletarizando o personagem-narrador, o autor pretende dar-lhe verossimilhança. Assim, não deverá causar espécie ao leitor ver um operário de uma fazenda de cacau falando em consciência de classe. Vagos pruridos de um Jorge Amado inseguro, que se sente na obrigação de afirmar sua sinceridade em nota introdutória fora do corpo da obra:

“Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?”

Era. Nas primeiras páginas do romance, Manuel Misael de Souza Teles é condenado sem remissão. Seu nome é traduzido por Mané Miserável Saqueia Tudo ou, ainda, Merda Mexida Sem Tempero. Aceitos estes pressupostos — entre eles o de que um fazendeiro é, ipso facto, um vilão — em nada nos espanta que ao final da obra surja um personagem insólito na literatura brasileira, a Consciência de Classe:

“— Eu gostava de Colodino... Mas eu não queimei o bruto porque ele era alugado como a gente. Matá coroné é bom, mas trabaiadô não mato. Não sô traidô...

“Só muito tempo depois soube que o gesto de Honório não se chamava generosidade. Tinha um nome mais bonito: Consciência de Classe.”

Cacau foi publicado em 1933. Até Subterrâneos da Liberdade, 1954, Amado freqüentará, com maior ou menor assiduidade, o gênero espúrio. Em entrevista para Istoé (18/11/81), o autor estabelece algumas nuanças:

“— Não sei se o termo “realismo socialista” se aplica a todos os meus livros daquela época. Estariam em face do realismo socialista, mas o fato é que Jubiabá (1935) Mar Morto (1936) e Capitães de Areia (1937), do período ao qual você se refere, só puderam ser publicados em russo depois da morte de Stalin. Acredito que a classificação seja justa para Terras do Sem Fim (1943), Seara Vermelha (1946) e Subterrâneos da Liberdade (1954). Se existe um livro meu totalmente influenciado pelo stalinismo, é Subterrâneos da Liberdade, que reflete uma posição totalmente maniqueísta.”

Assim sendo, concedida a vênia pelo próprio autor, mãos à obra.

Os Subterrâneos foi escrito em Dobris, na ex-Tchecoeslováquia (no mesmo castelo da  União de Escritores Tchecoeslovacos onde Amado produziu O Mundo da Paz), de março de 1952 a novembro de 1953, ou seja, no período imediatamente posterior à obtenção do Prêmio Stalin pelo autor. Como pano de fundo histórico temos, como não poderia deixar de ser, a Revolução de 1917. Outras datas e fatos posteriores determinarão poderosamente a construção dos personagens.

Em 1930, Trotsky funda a Quarta Internacional, opondo-se a Stalin e à sua tese do “socialismo em um só país”. (Quando Amado trabalha em seu projeto, há muito Trotsky fora assassinado, a mando de Stalin, e a Quarta acha-se cindida e enfraquecida). Em 1935, ocorre no Brasil a Intentona Comunista. Em 36, Prestes é preso, Olga Benário deportada para a Alemanha de Hitler e Getúlio Vargas consegue persuadir o Congresso e criar um Tribunal de Segurança Nacional para punir os insurgentes. Ainda neste ano de 36, eclode na Espanha a Guerra Civil, confronto que envolveu todas as nações européias e constituiu uma espécie de ensaio geral para a Segunda Guerra, detonada em 1939, circunstância amplamente explorada por Amado.

Em 1937, os integralistas lançam Plínio Salgado como candidato às eleições presidenciais de janeiro do ano seguinte, abortadas a 10 de novembro pelo golpe com que Getúlio consolida o Estado Novo. Para desenvolver sua história, Amado fixará um dos mais turbulentos períodos deste século, que até hoje continua gerando rios de bibliografia. A ação de Os Subterrâneos situa-se precisamente entre outubro de 37 (às vésperas do Estado Novo e em meio à Guerra Civil Espanhola) e finda aos 7 de novembro de 39, 23º aniversário da proclamação do regime soviético na Rússia.

Amado, escritor e militante, tem por incumbência várias missões. A primeiríssima consiste na defesa dos ideais de 17, encarnado em Lênin e Stalin, potestades várias vezes invocadas ao longo dos três volumes. Segunda, fazer a defesa do Messias que salvará o Brasil, Luís Carlos Prestes, e não por acaso a trilogia encerra-se com seu julgamento. Missões secundárias, mas não menos vitais: denunciar o imperialismo ianque, condenar a dissidência trotskista, pintar Franco com as cores do demônio e fustigar Getúlio por ter esmagado a atividade comunista a partir de 35.

Seus personagens, como veremos, serão títeres inverossímeis e sem vontade própria, embebidos em álcool se são burgueses, ou imbuídos de certezas absolutas, mais água mineral, se são operários ou militantes, estes sempre obedientes aos ucasses emitidos às margens do Volga.

A obra, composta por três volumes — Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite e A Luz no Túnel — constituiria apenas a primeira parte de uma trilogia mais vasta, com pretensões a ser o Guerra e Paz brasileiro. Os três tomos são publicados em maio de 1945, um ano após a morte de Stalin e dois antes do XX Congresso dos PCURSS, o que obriga o autor a interromper seu projeto. Pela segunda vez, na trajetória literária de Amado, sua ficção será determinada não por uma análise da realidade brasileira, mas por decisões tomadas em Moscou.


 

A ONIPRESENÇA DO NOVO DEUS

 

O personagem por excelência do romance é o Partido Comunista, onipresente como o antigo deus cristão e feito carne na figura de Stalin. A luta do PC é a luta — na ótica do autor — do povo brasileiro contra a tirania, no caso, Getúlio Vargas. Externamente, os inimigos são os Estados Unidos da América, a Alemanha, Franco e Salazar. Sem falar, é claro, na IV Internacional e nos trotskistas. Onipresente como o Deus cristão, o PC está infiltrado na classe dominante, disperso na classe média e fervilha nos meios operários. Invade as cidades e o campo, a pampa e a floresta, os salões burgueses, as fábricas e os portos, corações e mentes.

“Quantos outros, do Amazonas ao Rio Grande do Sul”, — reflete o militante Gonçalo — “não se encontravam nesse momento na mesma situação que ele, ante problemas complicados e difíceis, devendo resolvê-los, sem poder discutir com as direções, sem poder consultar os camaradas? Gonçalo sabe que os quadros do Partido não são muitos, alguns mil homens apenas na extensão imensa do país, alguns poucos milhares de militantes para atender à multidão incomensurável de problemas, para manter acesa a luta nos quatro cantos da pátria, separados por distâncias colossais, vencendo obstáculos infinitos, perseguidos e caçados como feras pelas polícias especializadas, torturados, presos, assassinados. Um punhado de homens, o seu Partido Comunista, mas este punhado de homens era o próprio coração da pátria, sua fonte de força vital, seu cérebro poderoso, seu potente braço.”

Esta onipresença extrapola o país, manifesta-se onde quer que andem os personagens, no Uruguai, França, Espanha, no planeta todo. Inevitáveis as referências à foice e ao martelo. E a Stalin, naturalmente, guia, mestre e pai. A litania dirigida ao grande assassino tem por vezes características de humor negro:

“— Quantos mais formos” — diz a militante Mariana — “mais trabalho terão os dirigentes. Pense em Stalin. Quem trabalha no mundo mais que ele? Ele é responsável pela vida de dezenas de milhões de homens. Outro dia li um poema sobre ele: o poeta dizia que quando todos já dormem, tarde da noite, uma janela continua iluminada no Kremlin, é a de Stalin. Os destinos de sua pátria e de seu povo não lhe dão repouso. Era mais ou menos isto que dizia o poeta, em palavras mais bonitas, é claro...”

O poeta em questão é Pablo Neruda, já citado em O Mundo da Paz: “Tarde se apaga a luz de seu gabinete. O mundo e sua pátria não lhe dão repouso.” Consta de uma ode a Stalin, subtraída às Obras Completas do poeta chileno, onde, por enquanto, ainda se pode encontrar uma “Oda a Lenin”.

Quando Apolinário Rodrigues, por exemplo, passa por Montevidéu em viagem para a Espanha, lá está o Partido pedindo a libertação de Prestes:

“Nenhum comunista estava sozinho em meio à batalha, mesmo quando de passagem numa cidade estrangeira, indo de um campo de luta a outro campo de luta. Nenhum estava só, perdido e abandonado, nem mesmo na prisão mais incomunicável, nem mesmo no cárcere mais imundo, separado dos demais como perigosa fera. Em torno deles, rodeando-os de militante solidariedade, estavam milhões e milhões de homens sobre a terra, a defendê-los e a ajudá-los. O ex-oficial sentia-se como alguém a quem tivessem rasgado um abscesso, numa alegria de convalescença subindo no seu peito. A chuva fina penetrava através da fazenda da roupa, mas ele não sentia frio, um calor de primavera subia do seu peito para os olhos, enevoando-os de emoção. Ao seu lado um operário de barba rala fez um aceno, convidando-o a abrigar-se sob o seu guarda-chuva. Apolinário sorriu agradecendo, se colocou ao lado do companheiro desconhecido, deixou que a voz rolasse proclamando o nome bem-amado de Prestes, deixou que rolasse a obstinada lágrima.”

Ao chegar a Madri, Apolinário (personagem calcado em Apolônio de Carvalho, que participara da Intentona de 35) sente-se em casa pois, para onde quer que se vire, lá está o Partido. A única cor local da capital espanhola parece ser a luta pela libertação de Prestes:

“Quando chegara à Espanha, vindo de Montevidéu, vivera dias de intensa emoção, ao encontrar por toda a parte, no país em guerra, nas ruas bombardeadas das cidades e aldeias, nos muros da irredutível Madri, as inscrições pedindo a liberdade de Prestes. Cercava-o o calor da intensa solidariedade desenvolvida pelos trabalhadores e combatentes espanhóis para com os antifascistas brasileiros presos e, em particular, para com Prestes. (...) Era uma única luta em todo o mundo, pensava Apolinário, ante essas inscrições, o povo espanhol o sabia, e em meio às suas pesadas tarefas e múltiplos sofrimentos, estendia a mão solidária ao povo brasileiro.”

A coincidência da instituição do Estado Novo com a explosão da Guerra Civil Espanhola é uma oportunidade única para Amado de inserir seus personagens no conflito internacional que redundaria na II Guerra, expondo ao mesmo tempo a linha do Partido. Tão única é esta oportunidade e tanto o autor quer aproveitá-la, que chega a deslocar para 1938 uma greve dos portuários de Santos, efetivamente ocorrida em 1946, o que aliás provocou um certo debate. Estaria Amado realmente sendo fiel ao método que “exige do artista uma representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário”, conforme proclamavam os estatutos da União de Escritores Soviéticos? Ao autor isto pouco importa. Deslocando a greve para 38, pode criar um navio alemão que vem buscar, no Brasil, café para a Espanha. De uma só tacada, Amado fustiga Hitler, Getúlio e Franco:

“Em algumas palavras (o velho Gregório) historiou o motivo por que a direção do sindicato havia convocado essa sessão: o governo oferecera ao general Franco, comandante dos rebeldes espanhóis (“um traidor”, gritou uma voz na sala), uma grande partida de café. Agora se encontrava no porto um navio alemão (“nazista”, gritou uma voz na sala) para levar o café.”

Na Guerra Civil Espanhola, segundo Amado, há apenas “nazistas alemães e fascistas italianos”. Tão pródigo em elogios à Stalin e à União Soviética, em sua trilogia o autor silencia sobre a presença russa na Espanha, constituída por pilotos de guerra, técnicos militares, marinheiros, intérpretes e policiais.

Em Diccionario de la Guerra Civil Española, Manuel Rubio Cabezas informa-nos que a primeira presença estrangeira em terras de Espanha foi a soviética, com o envio de material bélico e pessoal militar altamente qualificado, em troca das três quartas partes (7800 caixas, de 65 quilos cada uma) das reservas de ouro disponíveis pelo Banco de España. Pagos adiantadamente. Silêncio de Amado: a representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário pode esperar mais um pouco.

A presença do Partido permeará a trilogia das primeiras páginas de Os Ásperos Tempos às últimas de A Luz no Túnel. Nestas, a militante Mariana, antes de presa, assiste ao julgamento de Prestes. A voz do líder comunista é “a voz vitoriosa do Partido sobre a reação e o terror”:

“Eu quero aproveitar a ocasião que me oferecem de falar ao povo brasileiro para render homenagem hoje a uma das maiores datas de toda a história, ao vigésimo terceiro aniversário da grande Revolução Russa que libertou um povo da tirania...”

Seria monótono e redundante perseguir esta onipresença do Partido na trilogia de Amado. Como também investigar ad nauseam a construção de seus personagens, estereótipos maniqueístas de primárias concepções de bem e mal, no melhor estilo de um filme de mocinho e bandido. À guisa de argumentação, pincemos em Os Ásperos Tempos, alguns destes seres de carne, osso e ideologia.

Mariana Azevedo é o primeiro dos “personagens positivos" a surgir no romance. Tem mãe viúva e uma irmã mais moça, as três trabalhando como operárias e vivendo numa casinha nos subúrbios de São Paulo. Após a morte do pai — ele também operário e um dos iniciadores do movimento comunista no Estado, ela se torna militante aos dezoito anos de idade. Sabe de cor os títulos dos livros que o pai lia: O Manifesto Comunista, Origens da Família, O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, um resumo de O Capital em espanhol. Visada pela Polícia Política, perde o emprego e passa a trabalhar pelo Partido, na clandestinidade. Aos 22 anos, conhece Aguinaldo Penha, dirigente regional do Partido (surge no livro com o codinome João) com quem casa em pleno Estado Novo e tem um filho, cujo nome, é claro, é Luís Carlos. Em vida, o pai sempre mostrara “alegre de explicar-lhe a significação da luta operária, de contar-lhe sobre a União Soviética, de falar-lhe sobre Lênin e Stalin.”

No enterro de seu pai, um camarada, à beira do túmulo, diz algumas palavras: é um herói anônimo da classe operária que enterramos hoje, mas a bandeira que conduziu com tanta valentia se levantará cada vez mais alto nas mãos do proletariado até o dia da vitória; é a invencível bandeira de Marx, de Engels, de Lênin e de Stalin.”

Mariana substituirá seu pai na célula do Partido. Militante impoluta, toma água mineral, por oposição a personagens como Shopel, que toma uísque. De escassa interioridade, está sempre preocupada com o Partido, com Prestes e com João.

“Pensa em todos esses homens, em seu Partido Comunista clandestino, como em São Paulo é em todo o Brasil e como no Brasil é em grande parte do mundo. Ao seu lado passam homens e mulheres, operários e operárias que seguem para o trabalho, nesse começo de manhã, quando a vida acorda rumorosa pelas ruas. A maioria desses homens e mulheres não suspeita sequer da existência daqueles que estão forjando seu destino futuro. Por vezes, os camaradas contam feitos heróicos de companheiros mortos em combates, de homens enfrentando a polícia com uma coragem de gigantes, mas Mariana pode pensar e julgar desse heroísmo cotidiano da vida ilegal, desses comunistas, encafuados em esconderijos, que jogam sua liberdade a cada momento, que não têm direito a nenhuma diversão, muitos deles sequer possibilidade de vida privada, que são o corpo e o sangue do Partido, a cabeça da classe operária. Ela conhece o seu dia-a-dia de anônimos heroísmos, ela se pergunta a si mesma o que deve fazer para ser digna companheira de tais homens, para ser digna mulher de João, que a espera, que tem uma pergunta a lhe fazer.”

Aguinaldo Penha — ou João, como quisermos — é um jovem magro, branco de cabelos negros, rosto pálido e sério. É dirigente comunista em São Paulo e vive na clandestinidade. Bebe café e constituirá, com Mariana, o par romântico desta saga vermelha. Foi posto no Partido pelo pai de Mariana, que por ele se enamora já no primeiro encontro:

“Como era magro o camarada João, e sua camisa estava rasgada em mais de um lugar, ela o notara, dura é a vida dos camaradas, mais dura daqueles que são solteiros e não têm quem cuide de sua comida, de sua roupa, não têm um seio onde repousar a cabeça fatigada...”

Sem ser um crítico de artes, o camarada João, em termos de pintura, tem suas intuições. Ao ver um quadro surrealista, Mariana manifesta sua perplexidade:

“— Eu não entendo nada de pintura, não posso criticar. Mas o que eu gostaria de saber é que coisa o pintor quis mostrar com essa complicação...”

João, o dirigente, não tem dúvidas. Basta-lhe apenas olhar a tela mais vez para pontificar:

“— Antes de tudo, ele não quis mostrar a realidade. É uma das maneiras de fazer arte contra o povo.”

Ante um óleo primitivista, devidamente destroçado pelo camarada Ruivo, como veremos logo adiante, João exerce a crítica com destemor:

“— E têm coragem de chamar isto de arte...”

O autor não pede a seus personagens comentário algum sobre o cubismo. Picasso, como Amado, fora também contemplado com o prêmio Stalin.

Entre uma reunião e outra do Partido, em uma pausa na luta pela libertação, sem que saibamos por quais razões, João pede a mão de Mariana em casamento. Mas a clandestinidade e a militância impõem uma rápida despedida. Vale a pena registrar como Amado — em um momento antológico — descreve o estado de espírito da noiva:

“Mariana sente o calor de suas mãos ossudas. Os lábios de João roçam a sua face e, quando ela os olhos, ele já não está, acaba de atravessar o portão do jardim e seus passos ressoam na calçada, levando-o para um lugar distante, no cumprimento de uma nova tarefa, e ninguém sabe por quanto tempo estará ausente. Mas com ela ficou o calor de suas mãos, a carícia quase imperceptível do seu beijo. Por entre o jasmineiro de envolvente olor, brilha a luz de uma estrela fugidia. Como se chamará essa estrela, testemunha de seu noivado, iluminando com seu brilho o solto cabelo castanho de Mariana?”

Entre os personagens que integram o time do bem, está ainda José Gonçalo, ou Gonçalão, homem de porte gigantesco, braços como ramos de árvores, mãos cheias de calos. Foi enfermeiro no Exército, profissão que passou a exercer num hospital, onde um médico o introduziu no movimento comunista. Por defender as terras indígenas, é condenado a quarenta anos de prisão. Tinha então trinta e dois anos e foge da Bahia para o vale do Rio Salgado, em meio às florestas do Mato Grosso. Passa então a chefiar a população ribeirinha, defendendo suas roças reclamadas por empresas ligadas ao Estado Novo, interessadas na exploração do manganês. Ao saber pelo camarada Vítor, do secretariado do Nordeste, que os americanos estão interessados pelo vale, Gonçalão não tem dúvidas: “Amanhã mesmo me afundo pra lá”.

“Os trabalhadores das fazendas, os colonos, os pequenos lavradores o escondiam, davam-lhe de comer, sorriam para ele. Gonçalão deixara crescer a barba e lhes aparecia como um daqueles santos e beatos, periodicamente surgidos da fome e da miséria na caatinga nordestina. Só que esse não falava do fim do mundo, da morte e do castigo de Deus. Falava da luta e da vida, de um futuro feliz a conquistar”.

Gonçalão torna-se lenda entre os bardos da Bahia:

“Dos índios capitão,
coronel da gente pobre,
general da valentia,
Zé Gonçalo ou Gonçalão!
Revoltoso perseguido,
escondido na Bahia
e condenado à prisão.
Nunca que prender vão
Zé Gonçalo ou Gonçalão!”

Mais que personagem com vida própria, Gonçalão é uma extensão deste partido sempre onipresente, até mesmo na hinterlândia brasileira.

Na galeria dos personagens positivos, tão ao gosto de Zdanov, destaca-se o camarada Ruivo, dirigente comunista em São Paulo, tísico e do tipo nórdico europeu. Seu pulmão esquerdo, lesionado, “não é bolchevique”. O que não o impede de sair de um sanatório em Campos do Jordão para lutar pela causa. Tem 35 anos e gosta de dançar:

“— Trinta e cinco anos... mas já faz bem cinco que não danço, penso que nem sei mais arrastar os pés. E agora, com esse pulmão assim, não poderia. O médico me diz: repouso, repouso, como se a gente pudesse repousar enquanto o fascismo avança pelo mundo e os integralistas marcham para o poder... imagine só que ele queria mandar para um sanatório em Campos do Jordão... Quando faltam os quadros, quando Prestes está preso, ele e tantos camaradas... Eu vou me curar é aqui mesmo e vai ser uma dessas curas de verdade, esse pulmão vai ficar mais forte que o são...”

Ao que tudo indica, sua fé revolucionária operou milagres: uma vez preso, foi para o Rio de Janeiro, onde pegou cinco anos de cadeia e melhorou. Pois não pode morrer antes da vitória:

“— Eu também espero. Não quero morrer agora com Hitler no poder e Thallmann preso, com Mussolini no poder e Togliatti no exílio, com Getúlio no governo e Prestes na cadeia. Quero ver ainda as tabuletas do Partido legal nas sacadas de um prédio em São Paulo. E hei de ver, Mariana. Nós vamos passar dias difíceis, bem difíceis, mas depois tudo será melhor. O futuro é nosso e ninguém poderá nos roubar.”

Mais adiante, quando Saquila, o anarquista, lhe mostra um óleo de uma primitiva brasileira, Sibila (Tarsila?), Ruivo torna-se crítico de artes e recita a cartilha zdanovista, capítulo pintura:

“— Meu velho, isso pode ser tudo, menos pintura, só que não é pintura. Pelo menos pintura para meus olhos de operário...

“— Meu caro, você é um reacionário em arte, um acadêmico sem gosto, não percebe a força revolucionária da arte moderna.

“— Pode ser. Mas, de minha parte, eu penso outra coisa. Penso que você confunde moderno com revolucionário e assim quer fazer passar como revolucionária essa pintura que é produto de uma burguesia podre. Jamais a classe operária poderá aceitar esses quadros. A classe operária é sã, esses quadros são enfermiços; a classe operária está voltada para a vida, esses quadros são fugas da vida; a classe operária possui sentimentos limpos, esses quadros são frutos de sentimentos sujos...”

Como Trotsky diverge de Stalin, a partir da Quarta Internacional, o jornalista Abelardo Saquila, desde sua aparição, é visto com desconfiança. Intelectual paulista com algus livros de poemas publicados, frustrado por não ter concluído o curso universitário, participa da Aliança Nacional Libertadora e ingressa no Partido Comunista, do qual é excluído por ser cissionista. (O vocábulo, não o encontramos dicionarizado, mas pode ser traduzido por trotskista). Quando alguém cita Prestes e os clássicos marxistas, mostrando que apesar das dificuldades presentes (estamos em 37) não havia motivo para desespero, Saquila sorri, cachimba e pontifica:

“— Muro medieval de pedras, intransponível muralha...”

Mariana repete a frase a Ruivo, que condena sem remissão a Quarta Internacional:

“— Isso que te parece apenas uma frase sonora de um literato é o indício de uma coisa muito mais séria. Há um trabalho do inimigo no seio mesmo do Partido, Mariana. Especialmente aqui em São Paulo, onde está concentrado o grosso da indústria do país, onde a classe operária é mais numerosa e mais desenvolvida. Faz tempo que a direção vem notando essa infiltração de ideologia estranha, esse trabalho de sapa tentando criar um ambiente de pânico entre os camaradas, levá-los ao desespero e, como conseqüência, ao afrouxamento do trabalho. Veja bem: o inimigo tenta impedir, com isso, por um lado, o crescimento do Partido e de sua influência nos meios operários, nas grandes empresas, onde devem estar assentadas nossas raízes profundas. Por outro lado, tenta infiltrar em nosso seio uma ideologia pequeno-burguesa, desesperada e suicida. Há um grupo de pequenos-burgueses, de intelectuais em geral, que vieram ao movimento por amadorismo ou por oportunidade no tempo da Aliança, e que servem de veículo a esse trabalho do inimigo. Saquila é um deles...”

Mais adiante, Ruivo fulmina novamente a Quarta:

“— Você, Saquila, é um homem que leu Marx, Engels, O Capital completo, obras de Lênin e Stalin, tudo que pôde arrebanhar de marxismo pelas livrarias e o que manda buscar no estrangeiro. Leu e não entendeu nada, meu velho. Indigestou. É o mal de vocês, intelectuais metidos num gabinete a devorar marxismo, distante das massas. Em vez de se alimentarem de teoria para melhor agir na prática, vocês indigestam e depois só fazem besteira...”

Maria preocupa-se com a prisão de Saquila. Ruivo, nem tanto:

“— A de Saquila, por quê? É melhor ele preso do que em liberdade, botando teias de aranha na cabeça dos outros...”

Em sua preocupação em condenar a Quarta, através de Ruivo, Amado chega até mesmo a justificar os processos inquisitoriais de Moscou:

“— A burguesia, Mariana, na sua luta para sobreviver, emprega contra nós todos os métodos de luta, desde o terror até os mais sutis como o da infiltração de inimigos em nosso meio. Mais difícil era pensar que Trotsky eram agente do inimigo e hoje, quem duvida? E toda essa turma dos processos de Moscou? Eram velhos membros do Partido bolchevique, não eram? No entanto, foram desmascarados como agentes do inimigo. O inimigo não se contenta com nos cercar. Ele procura também atacar de dentro. É o que Saquila faz em São Paulo. Ele e seu grupo...”

Saquila não bebe, mas fuma cachimbo, fala com ar doutoral e gosta de pintura surrealista. Elogia o quadro que tanto desagrada aos militantes João e Ruivo e tenta explicá-lo:

“— Ah! Trata-se da reação do artista diante de um domingo de festa religiosa. Todo o tumulto de boas e más emoções que a visão da pequeno-burguesia lhe provoca. (...) São as emoções do artista refletidas no jogo dessas cores e linhas, aparentemente sem harmonia. Você não sente a angústia, a solidão, os instintos primários, o medo telúrico e o desejo de libertação misturados no quadro?”

João, o militante, acha que “é necessário ter apodrecido por dentro para gostar de uma coisa dessas.” O personagem Saquila está calcado em Hermínio Sachetta, jornalista que foi secretário do PC em São Paulo, mais tarde expulso do Partido por trotskismo. Durante anos dirigiu uma facção da Quarta Internacional. Apesar das cores com que o pinta, temos de convir que Amado foi mais gentil com Sachetta do que Stalin com Trotsky.

César Guilherme Shopel, mal surge em Ásperos Tempos, já aparece sob luz desfavorável: “é mulato e gordíssimo”. Duas páginas adiante, recebe mais duas generosas pinceladas: “gordo de mais de cento e vinte quilos, as banhas do rosto mulato balançando-se sob o riso de admiração que se espalhava sobre a larga face”. Quando arranca o charuto da boca, a cinza se espalha sobre o smoking. Afirma ainda que Hitler deve toda sua carreira ao Mein Kampf. Mais uma página e fita uma mulher “com uns olhos ensombreados de desejo”. Tem “um corpanzil imenso e balofo”. Entre as frases, “chupava o charuto”.

Poeta e editor, Shopel gostava de fazer pequenos favores aos fascistas. Era católico, “sua poesia estava cheia de horror do pecado, do terror da ira de Deus, das penas do inferno, de cataclismos inesperados, do juízo final”. Mais ainda, é editor mercenário. De um ex-ministro, recebe um longo poema, de monotonia terrível. “Ele ia editá-lo, é claro, pois era edição paga, e bem paga, pelo autor e, ao demais, o ex-ministro estava em muito boas relações com os integralistas e com Getúlio, fora ele, sem dúvida, o principal redator da constituição a ser proclamada em breve quando viesse o golpe...”

Segundo o deputado Artur Carneiro, “é completamente cínico e capaz de tudo pelo dinheiro. Até de ser leal...” Para outro personagem, Henriqueta, “é um monstro com essa gordura de capado e essa mania de se jogar em cima de todas as mulheres”. Vinte páginas adiantes, as catilinárias sobem de tom. Quando Paulo Carneiro, filho único do deputado Artur Carneiro, confessa não ter conseguido apreciar o gosto de ser enganado por sua futura mulher, “o poeta revirou olhos enormes, estalou a língua:

“— Ah!, é um prazer refinado, para raros... Dói, mas é bom... Eu o digo porque o sei... — e saiu declamando os versos de um seu poema recente:

De todas as humilhações quero sentir o gosto,
chorando, em leito imundo, ir procurar-te,
perdoar sabendo que outra vez te irás
e outra vez de joelhos te buscar!

Ao ver uma parede pichada, Shopel pede morte aos comunistas:

“— É preciso liquidar com essa gente. Enquanto eles existem, ninguém pode ter sossego...”

Seu sentimento dominante:

“Um medo o assaltava, um medo avassalador desses homens perseguidos e persistentes, agindo desde a profundeza da ilegalidade, ameaçando a estabilidade das fortunas assentadas, perigo sobre a sociedade e também sobre os projetos que deveriam transformar o poeta Shopel de um pequeno editor intelectual, de bolsos eternamente vazios, num homem de negócios, temido, respeitado e adulado. Ah! Esses comunistas!”

O personagem Shopel marca a ruptura de Amado com o poeta católico — e também gordo — Augusto Frederico Schmidt, editor de seu primeiro livro individual, O País do Carnaval.

José da Costa Vale, de origem plebéia, mas milionário e banqueiro, também pertence ao time dos maus. Logo, tem testa calva e um “rosto pálido onde brilhavam uns olhos frios e agudos”. Admira Hitler, cuja carreira atribui ao Mein Kampf:

“— Vejam a diferença entre a Alemanha de Hitler e a França da Frente Popular. Na Alemanha é a ordem, a precisão no trabalho, um ritmo acelerado, nada de greves, de desordens, de motins. Na França é a anarquia, os comunistas ameaçando as instituições mais respeitáveis.”

Quanto aos comunistas, tem sua fórmula para enfrentá-los:

“— Hitler acabou com eles na Alemanha e acabará com eles no mundo inteiro — sentenciou Costa Vale dando às suas palavras todo o peso da autoridade de um homem recém-chegado da Europa. - Eu vi a obra de Hitler com meus próprios olhos... Admirável. Um grande homem!”

O arquiteto Marcos de Souza também é rico, mora em bairro elegante. Mas empresta dinheiro e casa para o Partido, logo é “uma figura romântica, de revolta cabeleira prateada, a gravata larga de artista boêmio, e aquela constante estima pelos comunistas.” Havia apoiado a Aliança Nacional Libertadora (leia-se a insurreição de 35) e durante o Estado Novo aproxima-se do Partido. Marcos de Souza é o intelectual em crise, próximo à “traição de classe”. (Sua presença é discreta em Os Ásperos Tempos, mas os volumes seguintes evidenciam o arquiteto Carlos Niemeyer).

Esta técnica de construir — ou destruir, conforme o caso — fisicamente o personagem vai assumir cores mais fortes em Camaleão, que ingressa no romance já sob o peso do próprio apelido. Tipógrafo e membro do Partido, “era um homem comprido e pálido, quase esverdeado, de mãos sempre suarentas e voz arrastada”, com um resto de cigarro apagado pendendo sempre do lábio. Tem uma amante com dentes podres, toma porres de cachaça e vomita. Dentro da visão maniqueísta de Amado, como pode o Partido tolerar tais tipos? Explica-se: Camaleão é o traidor, trazido pelo trotskista Saquila ao movimento, que irá denunciar os antigos companheiros ao Estado Novo.

Entre os personagens femininos, por oposição à casta e revolucionária Mariana Azevedo, Amado pinta, por exemplo, Marieta Vale, esposa de Costa Vale, dama da alta sociedade paulista, bela e desejável apesar de seus 43 anos. Casa-se por dinheiro e obviamente é adúltera:

“Amor para ela significa a posse no leito, a paixão da carne delirante, os encontros clandestinos nas garçonnières, as festas com champanha, é um amor limitado, mas por isso mesmo de violência brutal. Nada mais que isso lhe diz a palavra amor. (...) Para ela, o amor não tem nenhuma alegria, não conduz a nenhuma doce sensação, a nenhuma ternura repousante. Se ela tivesse de definir o amor diria que ele era antes o desejo violento e após o cansaço e o fastio, que ele queimava como fogo, para não deixar depois senão cinzas, que o vento, com o passar do tempo, levaria consigo”.

Neste universo imperam o bem e o mal absolutos. O bem, evidentemente, é representado pelo novo Deus buscado por Gorki e Lunatcharski, o proletariado. O mal, pela burguesia detentora do capital. Entre um universo e outro transitam eventualmente seres camaleônicos, “traidores de classe” ou traidores do Partido. Estes personagens, pintados ou em preto ou em branco — com algumas exceções pardas — permeiam os três volumes de Subterrâneos e boa parte da obra do autor baiano. Persegui-los exige a paciência de um funcionário do censo e só provocaria bocejos no leitor. A mostragem que pinçamos parece-nos suficiente para uma reflexão.

Dividir o universo em duas metades, uma boa e outra má, nada tem de novo e original. Tal princípio vem do século III, através da doutrina do persa Mani. O espantoso é que continue a viger em pleno século XX, e mais: impondo gostos, comportamentos e até mesmo filiação partidária aos personagens de um romance. Os representantes do Bem amam. Os representantes do Mal têm amantes. Os bons bebem café ou água mineral. Os maus bebem cachaça ou uísque. Os bons são magros e idealistas. Os maus são gordos e mesquinhos. Os bons têm gargalhar sadio, os maus têm dentes podres. Os bons não têm posses. Os maus são proprietários. Os bons são pobres, os maus ricos. Os bons pertencem ao Partido ou com ele colaboram. Os demais são maus. Os bons, diga-se de passagem, estão aprisionados em tal camisa-de-força ideológica que sequer podem se dar ao luxo de gostar de pintura surrealista ou naïve.

Atrás de tudo, Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, ex-seminarista da Geórgia, que bem absorveu a sede russa dos Construtores de Deus. Até 1954, Amado traduzirá em sua literatura as determinações do Partido Comunista. Não deste ou daquele partido comunista. Mas, mais precisamente, do Partido Comunista das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Eufemismos à parte, do PC russo.

Em 1956, com Kruschev e o XX Congresso, assumir as determinações de Zdanov já não mais é possível. Em carta publicada pela Imprensa Popular, do dia 10 de outubro do mesmo ano, Amado faz um tímido mea culpa:

“Aproximamo-nos, meu caro, dos nove meses de distância do XX Congresso do PCUS, o tempo de uma gestação. Demasiado larga essa gravidez de silêncio e todos perguntam o que ela pode encobrir, se por acaso a montanha não vai parir um rato.

“Creio que devemos discutir, profunda e livremente, tudo o que comove e agita o movimento democrático e comunista internacional, mas que devemos, sobretudo, discutir os tremendos reflexos do culto à personalidade entre nós, nossos erros enormes, os absurdos de todos os tamanhos, a desumanização que, como a mais daninha e venenosa das árvores, floresceu no estrume do culto aqui levado às formas mais baixas e grosseiras, e está asfixiando nosso pensamento e ação. (...) Sinto a lama e o sangue em torno de mim, mas por cima deles enxergo a luz do novo humanismo que desejamos acesa e quase foi submergida pela onda dos crimes e dos erros.”

Jorge Amado não mais permite a reedição de O Mundo da Paz. Quanto à sua obra ficcional, embasada no realismo socialista, esta continua sendo reeditada e traduzida. O exemplar de Subterrâneos, usada neste ensaio, é uma 35ª edição. Após as denúncias de Kruschev, o autor muda bruscamente de rumos e escreve Gabriela, Cravo e Canela.


 

VELHO GRAÇA VÊ O MENINO

 

Graciliano Ramos, escritor e militante do Partido, não escaparia ao novo dogma e um dia irá prestar culto ao deus vivo.

Já em São Bernardo, Graciliano lança o germe de uma idéia insólita na época, pelo menos no Brasil, o socialismo. Paulo Honório, o prepotente dono da terra, saído do nada, à custa de astúcia e mesmo crime, irá confrontar-se com as idéias novas de Padilha, o semi-bacharel de quem tomou a fazenda. Ao casar-se com Madalena, terá em seu leito uma inimiga. Madalena é urbanidade, cultura, civilização, por oposição à rude incultura de Paulo Honório. Há ainda padre Silvestre, que sem ser ateu e materialista, pretende salvar o país por processos violentos. Em 1934, com sua intuição, Graciliano já define as duas religiões européias, ciumentas, em luta pela América Latina.

“Padres! exclamou Luís Padilha com desprezo.

“Era ateu e transformista. Depois que eu o havia desembaraçado da fazenda, manifestava idéias sanguinárias e pregava, cochichando, o extermínio dos burgueses”.

Padre Silvestre, por sua vez, se opõe ferozmente às novas idéias:

“— Essas doutrinas exóticas não se adaptam entre nós. O comunismo é a miséria, a desorganização da sociedade, a fome”.

Logo adiante:

“— Uma nação sem Deus! Bradava padre Silvestre a d. Glória. Fuzilaram os padres, não escapou um. E os soldados, bêbados, espatifavam os santos e dançavam em cima dos altares”.

Na época, não perceberam ainda, cristãos e marxistas, que pertencem a uma mesma religião, pequenas nuanças à parte. O que importa não são os dogmas de superfície de um sistema de pensamento, mas a corrente subterrânea que o nutre. Duas são as inovações básicas do cristianismo, por oposição ao paganismo greco-romano: a idéia de que todos os homens são iguais perante Deus (ridícula para gregos e romanos) e a de que a História tem um sentido, a Parusia. O marxismo — e aqui voltamos à intuição de Dostoievski em O Idiota — reafirma a igualdade de todos os homens, abstraindo o “perante Deus”, e também a idéia de que a História tem um sentido, só que desta vez não é mais a Parusia, mas o Estado Comunista.

A posição de Paulo Honório não é a de quem possa discutir ideais humanitários. Ao julgar Madalena materialista, conclui:

“A verdade é que não me preocupo muito com o outro mundo. Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça. Tenho portanto um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível.”

“Comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil. ‘Palestras amenas e variadas’. Que haveria nas palestras? Reformas sociais, ou coisa pior. Sei lá! Mulher sem religião é capaz de tudo”.

Logo adiante:

“Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena e comecei a sentir ciúmes”.

Paulo Honório fica quatro meses sem pagar o ordenado a Padilha, agora seu empregado. E ainda faz piada:

“— Tenha paciência. Logo você se desforra. Você é um apóstolo. Continue a escrever os contozinhos sobre o proletário”.

Quando Padilha chora, pedindo emprego no fisco, Paulo Honório é cru:

“— Impossível, Padilha. Espere o soviete. Você se colocará com facilidade na guarda vermelha. Quando isso acontecer, não se lembre de mim não, Padilha, seja camarada”.

Madalena provoca em Paulo um duplo ciúme. De um lado é a mulher que se lhe foge — e sua fuga se consumará no suicídio. Por outro lado, com suas idéias, Madalena lhe quer também tomar a condição de terratenente. Se Madalena morre, a idéia de revolução persiste. Paulo Honório, que a considerava parte de seu patrimônio, é um homem que fracassa.

Estamos, na ficção militante de Graciliano, face a um mundo em transformação. As vítimas são seres cultos e civilizados, Madalena e Padilha. O carrasco é o ser bárbaro, que inclusive admite sua bárbarie. As vítimas são socialistas, comunistas. Paulo Honório, o boçal, opõe-se às idéias novas professadas pelas vítimas. Qual partido resta ao leitor tomar?

Graciliano, como tantos outros, não menos ilustres, caiu na arapuca. É militante do partido desde 1945 e, em 1952 — duas décadas após as denúncias de Gide, oito anos após O Zero e o Infinito, de Koestler, e do debate de Albert Camus com d’Astier de la Vigerie — nosso escritor vai adorar o deus encarnado. Adoração não tão tão derramada, como a do apologético O Mundo da Paz, de Amado. Mas ainda adoração.

A primeira frase da carta enviada de Moscou, datada de 1º de maio de 1952, diz tudo e dispensaria mais comentários:

“Clarita, Luísa, Ricardo: cá estamos na Terra Santa”.

O seco Graciliano, de repente, vira místico desbordado.

Em Moscou, encontrará Jorge Amado, já Prêmio Stalin. Tudo é festa e deslumbramento.

“Tenho bebido vodca, ido várias vezes ao Kremlin, à Praça Vermelha, visto a Catedral de São Basílio e o túmulo de Lênin. Ontem visitei a VOKS: doces, frutas, vinho, arranjo do programa, discurso do Presidente, um professor de cabeça pelada. À noite, Romeu e Julieta no teatro Bolshoi, com Ulanowa no papel de Julieta. Havia talvez mais de duzentas figuras. Nunca imaginei coisa semelhante. Hoje, a festa para que fomos convidados. O desfile começou às dez horas e deve ter-se prolongado até sete da noite. Deixamos o Kremlin às três horas. Víamos, de longe, com dificuldade, a cabeça de Stalin. Furor de aplausos na multidão”.

Graciliano apanha então binóculos para melhor ver seu deus:

“Subi à última plataforma exterior do Kremlin, fui andando para a esquerda, cheguei a poucos metros do túmulo de Lênin, no momento em que Stalin ia subindo a escada. Aproximei-o com o binóculo. Está velho, gordo e curvo. Nessa altura um tipo se avizinhou e quis tomar-me o binóculo. Fingi não entendê-lo. ‘Sou estrangeiro, não compreendo o russo’. Stalin passou. Recuei dez metros, quis examinar os figurões que estavam ali a pequena distância; outro guarda, falando e gesticulando, deu-me a entender que era proibido usar binóculos. Ignoro o motivo desta proibição”.

Antes de passarmos à entusiástica transcrição deste episódio em Viagem, cabe determo-nos alguns segundos em uma frase de sua carta:

“Enquanto as organizações operárias desfilavam, Kaluguin perguntou-me quais os meus livros que deveriam ser traduzidos em russo. Talvez nenhum, respondi. E expliquei minha divergência com o pessoal daí”.

As divergências de Graciliano se referem ao zdanovismo. O alagoano se recusava a submeter-se às normas do realismo socialista, tentação à qual não resistiu Amado. Importante sublinhar nesta frase de Graciliano a proposta da edição de livros.

Afirmar que a fortuna internacional de escritores como Graciliano e Amado deve-se mais às suas relações com o Partido do que a seus talentos é enunciar o óbvio. Mas trata-se de um óbvio sacrílego, pois implica afirmar que tais escritores utilizaram o partido como agência publicitária, ou que o Partido os utilizou como agentes publicitários.

De qualquer forma, fica claro na carta de Graciliano que as traduções são decorrência da viagem, e ninguém recebe mordomias gratuitamente. O sucesso de Amado na Europa, por exemplo, decorre de suas primeiras traduções em russo. Da URSS, Amado passa à extinta RDA, de onde Meyer-Clason, seu tradutor, o puxa para a Alemanha Ocidental. Só depois sua literatura chegará a Paris e demais países europeus. Em Viagem, Graciliano volta ao tema e concluí que seus livros em nada interessariam àqueles homens.

“São narrativas de um mundo morto, as minhas personagens comportam-se como duendes. Na sociedade nova ali patente, alegre, de confiança ilimitada em si mesma, lembrava´me da minha gente fusca, triste, e achava-me um anacronismo. Essa idéia, que iria assaltar-me com freqüência, não me dava tristeza. Necessário conformar-me: não me havia sido possível trabalhar de maneira diferente: vivendo em sepulturas, ocupara-me em relatar cadáveres”.

Ignoraria Graciliano os milhões de cadáveres que o stalinismo já havia amontoado? Muita tinta já rolara no Ocidente em torno às purgas, deportações e campos de concentração. Mas crente que se preza não quer ver. Ao crente, basta crer.

Uma ligeira dúvida perpassa o espírito de Graciliano e seus companheiros ao verem a cidade cheia de retratos de Stalin, “a demonstração de solidariedade irrestrita não impressionava bem o exterior”. Mas a senhora Nikolskaya, a guia, julga tal observação leviana e absurda, para consolo dos crentes:

“Nenhum russo admitia que as coisas se passassem de outra maneira. Essa réplica, isenta de motivos era, no meu juízo, superior a um longo discurso esteado em razões. Estávamos diante de um fato, e condená-lo à pressa, ao cabo de alguns passeios na rua, parecia-me ingenuidade. Com certeza ele era necessário, e devíamos, antes de arriscar opinião, investigar-lhe a causa. Realmente não compreendemos, homens do Ocidente, o apoio incondicional ao dirigente político; seria ridículo tributarmos veneração a um presidente de república na América do Sul. Não temos em geral nenhum respeito a esses indivíduos”.

Para o escritor alagoano, Stalin é o “estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. Não poderia enganá-lo. Esforçou-se por vencer o explorador, viu-o morto — e seria idiota supor que, alcançada a vitória, desejasse a ressurreição dele. É, desde a juventude, um defensor da classe trabalhadora. Esta expressão, razoável há trinta e cinco anos, tornou-se desarrazoada, pois aqui já não existem classes”.

Graciliano está há poucos dias em Moscou, não fala o russo, tem roteiros rígidos de passeios e visitas, e já afirma peremptoriamente que não mais existe na Rússia uma sociedade de classes. Vista de nossos dias, sua afirmação é de uma ingenuidade atroz. Independentemente desta distância crítica, nada permite a um homem que pensa, fazer tais ilações generalizantes a partir de tão parca experiência do povo soviético. Sem falar que Graciliano nada entendia da línguas russa.

O seco criador de Paulo Honório, inimigo de adjetivações supérfluas, passa a cultivar os adjetivos:

“Não admitimos nenhum culto a pessoas vivas, perfeitamente: a carne é falível, corruptível, inadequada à fabricação de estátuas. Mas não se trata de nenhum culto, suponho: esse tremendo condutor de povos não está imóvel, de nenhum modo se resigna à condição de estátua. Homens embotados, afeitos à corrupção e à fraude, percebemos isto: a massa tem confiança absoluta nele e manifesta a confiança impondo-lhe a obrigação de admitir as ruidosas aclamações e os retratos. (...) Agradecimentos e louvores palpitam na alma da multidão, e recusá-los seria uma ofensa, um erro que nenhum político bisonho cometeria”.

Stalin, modesto dirigente, é coagido a aceitar a religiosa adoração das massas agradecidas. E Graciliano, que sequer pode olhar para Stalin com binóculos, chega à conclusão que “este tremendo condutor de povos” não é o monstro que o Ocidente imagina:

“Deixavam-me passar. E deixavam-me subir a escadaria, galgar as insignificantes barreiras de meio metro, avizinhar-me do homem que a burguesia odeia com razão. Stalin não vive numa toca, defendida por metralhadoras e canhões”.

O homem que, em rápido turismo por Moscou, afirma não mais existir a sociedade de classes na União Soviética, mais adiante nos alerta para o perigo das generalizações. É quando passeia pelos jardins do Kremlin, em meio a “cinzas preciosas”. Lá estão as de John Reed, americano, portanto inimigo, pelo menos em princípio. Mas Reed escreveu a grande reportagem da Revolução. Logo, “esse nome nos enche de sentimentos bons. Perigoso entregar-nos a generalizações feitas à pressa. Nem toda a gente na América deseja aniquilar a humanidade com bombas atômicas e bactérias. Não vamos responsabilizar duzentos milhões de indivíduos, oito milhões e meio de quilômetros quadrados, porque um oficial de instinto ruim tentou furtar uma estatueta amarela no Hotel Savoy”.

Ao visitar o Kremlin, o espírito de Graciliano é tomado por sensações místicas (os itálicos são nossos):

“...pisamos o núcleo de Moscou, a cidadela venerável exposta de longe ao mundo com júbilo ou furor, conforme as circunstâncias. Sim senhores. Estamos dentro dela — e as pedras santas das muralhas não caíram em cima de nós para esmagar-nos, estorvar a profanação”.

“É verdade: miseráveis sapatos americanos, brasileiros, pezunham na terra sagrada por diversas razões. Estamos no Kremlin”.

Ante a guia que lhe narra a história do castelo, Graciliano sente-se “aluno chinfrim, seguro o lápis e o caderno, abro os olhos e os ouvidos, quero aprender”.

“Andamos noutros refúgios de religião, transformados em museus, vemos riquezas semelhantes às do primeiro, ouvimos datas, noções peregrinas, toda uma santa arqueologia que a revolução guardou com zelo piedoso”.

Sala de São Jorge: “o Deus dele não podia equiparar-se ao Deus existente na Catedral de S. Basílio, fora do Kremlin”.

Iríamos muito longe se enumerássemos as evocações religiosas suscitadas em Graciliano por sua visita ao Kremlin. Passemos então à visita do escritor ao berço em que nasceu o novo Deus, a cidade de Gori: “o monumento a que nos referimos é apenas uma casa miúda, de tijolos nus, sem reboco”.

Nos dois quartos que perfazem apenas dois metros, morava o velho Djugatchivili, sapateiro. Joseph nasce em 1879 e destinava-se à profissão religiosa, já que o ofício de sapateiro rendia pouco. Troque-se o sapateiro por marceneiro, a cabana por manjedoura, coloque-se uma nova no firmamento, adicione-se mais três magos, e essa história já conhecemos. Olhando o ambiente, inconscientemente, o Velho Graça — como era chamado por seus amigos — chega a trair-se: “Onde estava a cama do menino?”

Perseguir em Viagem este preito stalinista até o fim, tornar-se-ia monótono. Passemos a uma consideração final do autor:

“Meses depois, no meu país, homens sagazes e verbosos censurar-me-iam a ignorância a respeito da União Soviética. Tinham-me os guias exibido coisas necessárias à propaganda e eu, ingênuo, acreditara nelas. Indispensável aceitar verdades ocultas abaixo das aparências brilhantes. E, sem nunca ter ido à URSS, explicar-me-iam, generosos, horrores medonhos, trabalhos forçados, enxovias horríveis, fuzilamentos diários. Seria preciso admitir que as moças do Teatro Paliachivili e a menina do Instituto Marx-Engels estavam nesses lugares para enganar-me. Os transeuntes eram impostores, a serviço da polícia. As fábricas, as escolas, os palácios de pioneiros, tudo logro. Venenos do socialismo”.

Por ironia, esta irônica hipótese de Graciliano é a que acaba se configurando como a realidade da época stalinista. No XX Congresso, três anos após a morte do escritor e de seu deus, Kruschev abre as cortinas do grande teatro e revela a face do mais operoso assassino do século. Como pode Graciliano ter-se deixado embarcar em tal canoa?

Wilson Martins, ao analisar suas contradições, em O Modernismo, parece tê-lo entendido:

“Uma análise pormenorizada dessas contradições não poderia ignorar um tema que, por enquanto, deixo de lado: esse individualista e esse clássico tornou-se militante do Partido Comunista, no qual via, bem entendido, apenas os aspectos idealísticos e programáticos. O seu livro de turismo à União Soviética é, nesse particular, extremamente revelador: não me parece temerário supor que a realidade comunista, uma vez instalada no Brasil, causar-lhe-ia a mesma repugnância que a realidade republicana (no sentido radicalista da palavra). Viagem é, do começo ao fim, um livro de evasão: não de evasão do Brasil, mas de evasão da própria viagem que o escritor realizava. Não será preciso grande acuidade psicológica para perceber que Graciliano Ramos esforça-se subconscientemente, não apenas para aceitar o que lhe contam e o que lhe mostram, mas para sufocar qualquer veleidade de espírito crítico ou de curiosidade inoportuna. Tocando a Terra Prometida, ele eliminou, por um processo muito simples de sublimação psicológica, qualquer contato com o mundo imediato e com ele próprio: Graciliano Ramos não via a URSS da geografia, da política ou da sociologia, viu a URSS tal como ela se configura no mito mental que os comunistas do mundo inteiro e nomeadamente os do Brasil elaboraram pouco a pouco em anos e anos de diáspora imaginária”.

Não é difícil entender este movimento psicológico. Imaginemos um escritor de talento, isolado em um obscuro rincão de qualquer país, em nosso caso, o Brasil. Seu talento não é reconhecido em nível merecido e sua recompensa é o cárcere. Um belo dia, é convidado pelos dirigentes de uma prestigiosa revolução a visitar o paraíso terrestre. Neste éden ignoto, onde é recebido com tapetes vermelhos, mal chega já lhe perguntam quais de seus livros devem ser traduzidos na sociedade ideal. A qual escritor não comoveria tal convite?

Em Viagem, vemos quão amargas são as marcas deixadas pelo Brasil em Graciliano. De que jeito vivem em sua terra? — pergunta-lhe uma advogada. O alagoano não se furta a explicar:

“Caí num monólogo triste, falando interiormente às deliciosas vizinhas erguidas no fim da platéia. Isso mesmo. Entalam-nos o crânio, somos coagidos a não pensar direito: as nossas idéias se esfarelam, espalham-se em torno de pequenas misérias. E nem só os pensamentos se reduzem. Os corpos também se aniquilam, nas prisões e fora delas. Uma prensa invisível nos comprime. O ar em nossa terra é denso, pesado; às vezes necessitamos esforço para respirar. E até isso nos roubam, estragando-nos os pulmões: ao sair da cadeia, estamos tuberculosos. Como vivemos? Propriamente não vivemos: aquilo não é vida. Quando entramos na Colônia Correcional, dizem-nos — “Não vêm corrigir-se. Vêm morrer. E ninguém tem direitos. Nenhum direito”. Espanta-nos a franqueza. Numa existência de animais, ficamos semanas em jejum completo. Descerram-se enfim as grades, vemos o Sol. Não realizaram, pois a ameaça? Não nos mataram? Em parte, realizaram: estamos na verdade quase mortos. Ganhamos cabelos brancos e rugas. Assim tão fracos, tão velhos, não conseguiremos trabalhar. Arrasaram-nos”.

Segunda ironia na viagem do Velho Graça: tentando descrever o Brasil a partir de sua experiência pessoal, na verdade descreve a sociedade dos gulags, da qual é hóspede privilegiado.

Tão intensa é sua vontade de crer, que vê como grande avanço do socialismo a aniquilação das diferenças individuais. Em Moscou, pergunta à sua guia se uma transeunte próxima seria empregada em oficina ou repartição pública. A senhora Nikolskaya, moscovita, não consegue satisfazer-lhe a curiosidade: “É impossível saber. Não achamos distinção”. O viajante cede então ao utópico sonho de Lênin, o da sociedade em que o pedreiro seria também engenheiro:

“Um ofício não é superior a outro — e os homens tendem a uniformizar-se. Essa idéia choca o nosso individualismo pequeno-burguês: achamos vantagens nas discrepâncias, receamos tornar-nos rebanho. E nem vemos que somos um rebanho heterogêneo, medíocre, dócil ao proprietário. Queremos guardar o privilégio imbecil de não nos assemelhar-nos ao vizinho. Enfraquecendo-nos, julgamo-nos fortes. Realmente, somos bestas”.

O gesto é de contrição.

Antes de regressar ao Brasil, nas proximidades do aeroporto de Moscou, o escritor tira o chapéu à horrenda arquitetura que nos legou Brasília. Vê casas e, intimamente, propõe a destruição delas:

“Há na vizinhança do aérodromo casinholas de madeira, lastimosas, lôbregas, a cair de velhice. Não exibem realmente a miséria das nossas favelas, mas tristes, feias, abrigam enorme desconforto. Vestígios de outras épocas, impressionam mal o visitante. Próxima se eleva a universidade, imensa, e isto aumenta a penúria dos infelizes pardieiros. Conveniente destruí-los, pensei, evitar-nos a visão molesta. O prejuízo não seria grande: os habitantes das minguadas velharias, pouco numerosos, achariam sem esforço asilo noutros lugares, e os estrangeiros de maus instintos, resolvidos a torcer o nariz ao socialismo, perderiam num instante aparências de razões badaladas com rigor lá fora: os indivíduos aqui não têm onde morar: na cidade enorme, sete milhões de criaturas se alojam a custo, várias famílias arrumando-se num quarto miúdo. Estupidez, é claro. Mas por que não suprimir a causa da estupidez?”

O cauteloso escritor que se recusa a escrever sobre um mosteiro em Sukhumi, cidade balneária, porque “não me aventuro a expor conhecimentos arranjados à pressa, numa carreira de oitenta quilômetros por hora”, mal passa alguns dias em uma cidade de sete milhões de habitantes, com passeios orientados a palácios e museus, sente-se à vontade para escrever que é estupidez afirmar que os sete milhões de moscovitas habitam mal. Haja fé.

A senhora Nikolskaya, com ar de forte desprezo, o esclarece:

“— Estão aí as belezas do individualismo”.

O ensejo de Graciliano Ramos cumpriu-se. As belezas do individualismo não mais existem em Moscou. Todo moscovita, Nomenklatura à parte, vivia em blocos cinzas de concreto, e o problema habitacional persistia ainda nos dias de regime marxista, a ponto de jovens combinarem casamentos brancos com o fim exclusivo de obter do Estado alguns parcos metros quadrados. E o que é pior: a desoladora arquitetura staliniana acabou sendo transplantada para o Planalto Central brasileiro e, salvo terremoto ou bomba atômica, ali restará séculos afora.

Ao final da viagem, em Gagra, vilarejo às margens do Mar Negro, os anfitriões mais vez cobram o escritor. Uma professora lhe pergunta se não vai escrever um livro sobre a União Soviética.

“Não sei, minha senhora. Acho que não. Faltam-me observações, demoro pouco”.

Na despedida, na Geórgia, Leonidze, presidente da União dos Escritores — a quem o convidado oficial da VOKS (Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países Estrangeiros) dedica um capítulo, indignado com a imprecisão de seus informes — afirma que a viagem renderá a ele, Graciliano, um livro.

“— Muito difícil. Ignorância completa”.

Mas renderia, ainda que póstumo. E o criterioso Graciliano, que recusava dobrar-se aos ditames de Zdanov, acaba escrevendo uma obra-prima de realismo socialista. Enquanto suas ficções não são ficções, mas a realidade do homem nordestino, seu relato de viagem não é real, mas ficção pura, e das mais infelizes.

Sobrevivesse Graciliano ao XX Congresso, qual seria sua atitude? Ignoramos. Era, sem dúvida alguma, um homem íntegro. Mas a necessidade de crer em algo é mais forte, no homem, do que sua coerência.


 

TUDO QUE É SÓLIDO
SE DESMANCHA NO AR

 

As mais maravilhosas realizações do marxismo-leninismo. Otimismo histórico. Uma maravilhosa vivenda da humanidade, unida em uma só família. Os formosos traços e qualidades do personagem positivo. O novo homem da sociedade comunista. A causa proletária. O multifacético talento de operários e camponeses. A vitória do proletariado e a afirmação de sua ditadura. O homem que queremos forjar. A verdade histórica. O país do socialismo triunfante. A tendência principal de nossa época. O bem-estar material das massas na União Soviética. A gigantesca ampliação de horizontes. O avanço progressivo rumo à sociedade comunista. A conquista do poder pela classe operária. O materialismo dialético. Os critérios infalíveis do proletariado sobre o conteúdo sociopolítico de qualquer obra literária. Os escritores proletários. A hegemonia dos escritores proletários. As forças culturais do comunismo. Os futuros dirigentes ideológicos da literatura soviética. A literatura proletária. A crítica marxista.

A estruturação do novo modo de vida. Os companheiros de viagem. Os engenheiros de almas. Os consideráveis êxitos da edificação socialista. O CC do PC (b) da URSS. A Construção das bases da economia socialista. A direção genial de nosso grande chefe e mestre, o camarada Stalin. O modo socialista de produção. A vitória sobre os elementos capitalistas. As cores brilhantes da cultura soviética. O baluarte poderoso da próxima revolução socialista mundial. A construção da sociedade socialista sem classes. A linha política do Partido. A doutrina grandiosa de Marx, Engels, Lênin e Stalin. A vitória da grande causa de Marx, Engels, Lênin e Stalin. Os êxitos da literatura soviética. As realizações do regime socialista. A direção atenta e cotidiana do Comitê Central. O socialismo triunfante. O capitalismo agonizante e em vias de putrefação. A revolução proletária mundial. O poderoso exército de escritores proletários. A construção da sociedade comunista. O realismo socialista.

Vistos destes dias, decorridos sete anos da queda do Muro de Berlim, cinco anos do desmoronamento da União Soviética, estes slogans e palavras de ordem — que por décadas embasaram boa parte da literatura deste século e constam dos anexos a este ensaio — sabem-nos a merencório e sinistro romantismo. Como diria o próprio Marx, tudo que é sólido se desmancha no ar.

O realismo socialista, dizia Lunatcharski, é, em certa medida, inconcebível sem certa dose de romantismo. Isso é o que o distingue de uma fria consignação dos fatos. É realismo mais entusiasmo, realismo mais combatividade. Lunatcharski admite a hipérbole e a caricatura quando se trata de pintar um futuro que ainda não existe ou personagens que a vida ainda não produziu, Na tentativa de construir o homem que se quer forjar, o escritor — engenheiro de almas — dá preferência ao elemento romântico.

Zdanov, em seu discurso no I Congresso, também evocava um novo romantismo, o revolucionário, que deveria integrar a criação literária como uma de suas partes constitutivas, já que a vida do Partido e da classe operária e seu combate devem unir o trabalho prático ao heroísmo e às perspectivas grandiosas. As normas do Partido Comunista russo sobre a conduta dos escritores na União Soviética logo se tornaram método de trabalho de não poucos escritores ocidentais.

Nestes dias em que a estrela vermelha sempre vislumbrada por Mariana tornou-se estrela cadente, retirada de prédios públicos dos países socialistas por cidadãos enfurecidos, e em que as estátuas colossais do Menino de Gori adorado por Graciliano foram demolidas no mundo ex-soviético, torna-se oportuno dar um minuto de atenção a estes escritores que, pertencendo em geral à classe média, escreviam para a classe média contra a classe média, no dizer de David Caute. Pois não é fácil entender como criadores dotados de talento tenham consumido boa parte de suas vidas na confecção de panfletos primários fundamentados em toscas teorias emanadas da Nova Jerusalém, como já foi denominada Moscou. Em vez de personagens, na trilogia de Amado, temos marionetes que contrabandeiam ao Brasil um debate com o qual, afinal de contas, até mesmo pela distância geográfica das potências em luta, pouco ou nada tínhamos a ver: a Guerra Fria.

No fundo, uma fria sensação de orfandade. Não por acaso, os Construtores de Deus surgem duas décadas após Nietzsche ter decretado a morte de Deus. Ao proclamar a vitória do novo deus, o proletariado, Gorki manifesta seu sofrido luto, denunciando a “arquinociva mentira do cristianismo”. Tampouco é por acaso que em seu livro de estréia, Amado acena com Cristo como solução. Já em sua trilogia stalinista, uma estrela anuncia o novo deus que nasce.

A luta do homem contra o poder — escreve Milan Kundera — é a luta da memória contra o esquecimento. Nestes dias em que até a múmia de Lênin se revolve em seu sarcófago, sacudida pelas transformações na Ex-URSS e no Leste europeu, sempre é bom lembrar que o realismo socialista não só castrou intelectualmente, como também enviou para gulags, não poucos criadores deste século.

E que liberdade é flor que não vinga quando plantada em subterrâneos.


 

 

ANEXOS


Sobre la política del partido en el terreno de la literatura

Resolução do Comitê Central do Partido Comunista (Bolchevique) da Rússia, de 18 de junho de 1925.
In Adolfo Sánchez Vázquez, Estética y Marxismo.

 

1. El aumento del bienestar material de las masas en los últimos tiempos crea, debido a los radicales cambios de mentalidad producidos por la revolución, a la acentuación de la actividad de las masas, al gigantesco ensanchamiento de los horizontes, etc... un incremento colosal de las demandas y las necesidades culturales. Hemos entrado, de tal suerte, en el campo de la revolución cultural, que es una premisa del sucesivo hacia la sociedad comunista.

2. Una parte de esse desarollo cultural masivo es el incremento de la nueva literatura: de la proletaria y la campesina en primer término, empezando por sus formas embrionarias, pero al mismo tiempo de una amplitud extraordinaria por lo que abarcan (corresponsales obreros y rurales, periódicos murales, etc.), y terminando con la producción literario-artística conscientemente ideológica.

3. Por outra parte, la complejidad del proceso económico, el desarollo simultáneo de formas económicas contradictorias e incluso directamente hostiles entre si, y el proceso, suscitado por este desarollo, de nacimiento y consolidación de una nueva burguesia; la atracción inevitable hacia ésta, aunque no siempre consciente en los primeros momentos, de una parte de la vieja y nueva intelectualidad; la eliminación química, del seno de la sociedad, de nuevos y nuevos agentes de esa burguesia; son cosas que se deben dejar sentir también en la superfície literaria de la vida social.

4. Por lo tanto, así como no cesa en nuestro país la lucha de clases en general, exactamente igual no cesa tampoco en el frente literario. En la sociedad clasista no hay ni puede haber un arte en general y de la literatura en particular se manifiesta en formas infinitamente más diversas que, por ejemplo, en la política.

5. Pero seria desacertadísimo perder de vista el hecho principal de nuestras vida social, a saber: la conquista del poder por la clase obrera, la existencia de la dictadura del proletariado en el país. Si antes de tomar el poder el partido proletario atizaba la lucha de clases y seguía la línea del socavamiento de toda la sociedad, en el período de la dictadura proletaria el partido tiene planteado el problema de cómo convivir armoniosamente con el campesinado e irlo transformando poco a poco; el problema de cómo aceptar cierta colaboración con la burguesia e ir desplazando a ésta lentamente; el problema de cómo poner la intelectualidad técnica, y toda la demás, al servicio de la revolución y conquistársela ideológicamente a la burguesia. Así, pues, aunque la lucha de clases no cesa, cambia de forma, pues el proletariado, antes de tomar em poder, procura la destrucción de la sociedad dada, mientras que en el período de su dictadura destaca al primer plano la “labor pacífica de organización”.

6. El proletariado debe, manteniendo, reforzando y ampliando má y más su dirección, ocupar la posición correspondiente también en toda una série de nuevos sectores del frente ideológico. El proceso de penetración del materialismo dialético en regiones completamente nuevas (la biología, la psicología, las ciencias naturales en general) há empezado ya. La conquista de posiciones en el campo de la literatura, tarde o temprano, há de llegar a ser exactamente un hecho igual.

7. Pero no se há de olvidar que esta tarea es de una complejidad infinitamente mayor que otros problemas que resuelve el proletariado, ya que la clase obrera pudo preparar-se en el marcode la sociedad capitalista para la revolución triunfante, preparar para la magnífica arma ideológica de la lucha política. Pero no podía desarollar los problemas de las ciencias naturales ni los técnicos, igualmente que, siendo una clase abrumada en el aspecto cultural, no podía desarrollar su literatura, su singular forma artística ni su próprio estilo. Si el proletariado tiene ya en sus manos criterios infalibles sobre el contenido sociopolítico de cualquer obra literaria, todavía le faltan respuestas definidas análogas para todas las cuestiones relativas a la forma artística.

8. Por lo antedicho se debe determinar la política rectora del partido del proletariado en el campo de la literatura. A esto se refieren, en primer término, las cuestiones siguientes: la correlación entre los escritores proletarios, los escritores campesinos y los llamados “compañeros de viaje” y demás; la política del partido con respecto a los mismos escritores proletarios; las cuestiones de la crítica del estilo y la forma de las obras de arte y los métodos de elaboración de nuevas formas artísticas y por último, los problemas de carácter orgánico.

9. La correlación entre las diversas agrupaciones de los escritores que por su contenido socioclasista y social de grupo es la que determina nuestra política general. Pero se há de tener en cuenta que la dirección en el campo de la literatura pertenece a la clase obrera en su conjunto, con todos sus recursos materiales e ideológicos. La hegemonia de los escritores proletarios no existe aún, y el partido debe ayudarles a ganarse el derecho histórico a tal hegemonia. Los escritores campesinos deben encontrar una acogida amistosa y gozar de nuestro apoyo incondicional. La tarea consiste en encauzar sus crecientes efectivos por la vía de la ideología proletaria, pero sin extirpar de sus obras, ni mucho menos, las imágenes literario-artísticas campesinas, que precisamente son una premisa imprescindible para la influencia sobre el campesinado.

10. Con respecto a los “compañeros de viaje”, se há de tener en cuenta: 1) su diferenciación; 2) la importancia de muchos de ellos como “especialistas” calificados en esta capa de los escritores. La diretriz general debe ser en este caso tratarlos con tacto y cuidado, es decir, con un enfoque que asegure todas las condiciones necesarias para su paso con la mayor rapidez posible al lado de la ideologia comunista. Al separar a los elementos antiproletarios y antirrevolucionarios (insignificantísimos en la actualidad) y luchar contra la ideologia en formación de na nueva burguesia entre la parte de los “compañeros de viaje” de tendencia smienovejista, el Partido deve mostrar una actitud tolerante hacia las formas ideológicas intermedias, ayudando con paciencia a eliminar esas formas, inevitablemente numerosas, en el proceso de una colaboración camaraderil cada vez más estrecha con las fuerzas culturales del comunismo.

11. Con respecto a los escritores proletarios el partido debe adotar la postura siguiente: contribuyendo por todos los medios a su desarrollo y prestándoles un apoyo general a ellos y sus organizaciones, debe prevenir a toda costa las manifestaciones de altaneria comunista entre ellos como el fenómeno más nocivo. Precisamente porque ve en ellos los futuros dirigentes ideológicos de la literatura soviética, el partido debe luchar por todos los medios contra la actitud frívola y desdeñosa hacia la vieja herencia cultural, así como hacia los especialistas en letras. Igualmente merece ser censurada la posición que subestima la propia importancia de la lucha por la hegemonia ideológica de los escritores proletarios. Contra el espíritu de capitulación, por una parte, y contra la altaneria comunista, por la outra: tal debe ser la consigna del partido. Este debe luchar también contra los intentos de crear una literatura “proletaria” puramente de invernadero. Abarcar ampliamente los fenómenos en toda su complejidad; no encerrarse en el marco de una empresa; ser literatura no de taller, sino de una gran clase que lucha y arrastra en pos suya a millones de campesinos: tales deben ser los marcos del contenido de la literatura proletaria.

12. Por lo antedicho, en suma, se determinan las tareas de la crítica, que es uno de los principales instrumentos educativos en manos del partido. Sin ceder ni por un instante en las posiciones del comunismo, ni retroceder un àpice de la ideologia proletaria y poniendo de manifiesto el sentido clasista objetivo de las diversas obras literarias, la crítica comunista debe luchar sin cuartel contra las manifestaciones contrarrevolucionarias en la literatura, denunciar el liberalismo smienovejista, etc., y al mismo tiempo dar pruebas del mayor tacto, solicitud y tolerancia con respecto a todas aquellas capas literarias que pueden marchar con el proletariado y marcharán con él. La crítica comunista debe desterrar de sus usos el tono de orden o mando literario. Esa crítica tendrá una profunda importancia educativa sólo cuando haga hincapié en su superioridad ideológica. La crítica marxista debe expulsar enérgicamente de sus medios toda altaneria comunista presuntuosa, semianalfabeta e infatuada. Se debe plantear una consigna: aprender, y debe oponer resistencia debida a toda ramploneria e improvisación en sus própios medios.

13. Identificando inquebrantablemente el contenido social de clase de las corrientes literarias, el partido, en general, no puede, ni mucho menos, maniatarse con la adhesión a una orientación cualquiera en el terreno de la forma literaria. Y al dirigir la literatura en su conjunto, no puede apoyar a una fracción cualquiera de la literatura (clasificando esas fracciones por la diferencia de criterios sobre la forma y el estilo) de la misma manera que no puede resolver con resoluciones los problemas de la forma de la familia, a pesar de que, en general, indudablemente dirige y debe dirigir la estructuración del nuevo modo de vida. Todo hace suponer que el estilo correspondiente a la época será creado, pero lo será por otros métodos, y la solución de este problema no se insinúa todavía. Todo intento de vincular al partido, respecto a esta cuestión, con cierta fase del desarrollo cultural del país debe ser rechazado.

14. Por eso el partido se debe manifestar en pro de la libre emulación de las diversas agrupaciones y corrientes en este campo. Toda outra solución del problema sería una pseudo-solución oficinesco-burocrática. Exactamente igual es inadmisible el monopolio legalizado por decreto o por acuerdo del partido de cualquier grupo u organización literaria en cuanto a la obra literario-editorial. Al apoyar material y moralmente a la literatura proletaria y proletario-campesina, al ayudar a los “compañeros de viaje” y demás, el partido no puede conceder el monopolio a ningún grupo, ni aun al más proletario por su contenido ideológico: ello significaría, ante todo, la ruina de la literatura proletaria.

15. El partido debe desarraigar por todos los medios los intentos de ingerencia administrativa improvisada e incompetente en los asuntos literarios; se debe preocupar de la selección minuciosa de los individuos en las instituciones encargadas de los asuntos de la prensa con el fin de garantizar la dirección realmente acertada, útil y con tacto de nuestra literatura.

16. El partido debe indicar a todos los trabajadores de la literatura la necesidad de deslindar acertadamente las funciones entre los críticos y los literatos. Para los últimos es necesario el desplazamiento del centro de gravedad de su trabajo a la producción literaria en el sentido lato de la palabra, empleando para ello el gigantesco material de la época. Es indispensable prestar mayor atención también al desarrollo de la literatura nacional en las numerosas repúblicas y regiones de nuestra Unión.

El partido debe reclacar la necesidad de crear una literatura destinada al lector realmente masivo: el obrero y el campesino; hay qye romper con mayor audacia y decisión con los prejuícios señoriales en la literatura y, empleando todas las realizaciones técnicas de la vieja maestria, elaborar una forma adecuada, comprensible para millones de personas.

La literatura soviética y su futura vanguardia proletaria sólo podrán cumplir su misión cultural-histórica cuando resuelvan este gran problema.


2. Sobre la reestructuración de las organizaciones artístico-literárias

Resolução do Comitê Central do Partido Comunista (Bolchevique) da União Soviética, do 23 de abril de 1932.
In Adolfo Sánchez Vázquez, Estética y Marxismo.

 

El CC consigna que en los últimos años, sobre la base de los considerables éxitos de la edificación socialista, se há logrado un gran desarrollo, tanto cuantitativo como cualitativo, de la literatura y el arte.

Hace algunos años, cuando en literatura aún existia una influencia considerable de los elementos extraños, que se habían reanimado particularmente en los primeros años de la NEP, y los cuadros de la literatura proletaria eran débiles todavía, el partido contribuyó por todos los medios a la constitución y el robustecimiento de organizaciones proletarias especiales en el campo de la literatura y el arte, con el fin de reforzar las posiciones de los escritores y los trabajadores del arte proletario.

En la actualidad, cuando ya han tenido tiempo de forjarse cuadros de la literatura y el arte proletarios y se han destacado nuevos escritores y artistas del seno de las empresas, fábricas y koljoses, el marco de las organizaciones artístico-literarias ya existentes (UAEPUS, AREP, AREJ)* y otras es ya estrecho y pone impedimientos a la seria envergadura de la creación artística. Estas circunstancia origina el peligro de la transformación de dichas organizaciones, de medio para la mayor movilización de los escritores y artistas sociéticos en torno a las tareas de la edificación socialista, en medio de cultivo del aislamiento de círculo, de apartamiento de las tareas políticas de la época y de considerables grupos de escritores y artistas que simpatizan con la edificación del socialismo.

De ahí la necesidad de la oportuna reestructuración de las organizaciones artístico-literarias y de la ampliación de la base de su labor.

Partiendo de ello, el CC del PC (b) de la URSS acuerda:

1) disolver las asociaciones de escritores soviéticos (UAEPUS, AREP);

2) reunir a todos los escritores que apoyan la plataforma del poder soviético y que aspiran a participar en la construcción socialista en una unión única de los escritores soviéticos, con una fracción comunista en ella;

3) realizar cambios análogos por la línea de las demás ramas del arte;

4) encomendar al Buró de organización el desarrollo de las medidas prácticas para la aplicación de este acuerdo.

______________________

N O T A

* — UAEPUS, AREP e AREJ são respectivamente as siglas de União de Associações de Escritores Proletários da União Soviética, Associação Russa de Escritores Proletários e Associação Russa de Escritores Jovens.


O realismo socialista

Discurso de Andrei Zdanov, pronunciado no I Congresso de Escritores Soviéticos, em Moscou, aos 17 de agosto de 1934.
In Adolfo Sánchez Vázquez, Estética y Marxismo.

 

En nombre del Comité Central del Partido Comunista (Bolchevique) de la Unión Soviética y del Consejo de Comisarios del Pueblo de la URSS, permitanme ustedes transmitir al Primer Congreso de Escritores Soviéticos, y através de él a todos los escritores de nuestra Unión soviética, con el gran escritor proletario Alexei Maximovitch Gorki a la cabeça, nuestro cálido saludo bolchevique.

Camaradas, se reúne vuestro Congreso en momentos que ya han sido superadas las dificultades esenciales que nos salían al paso en la ruta de la construcción socialista, en que nuestro país ha completado la construcción de los cimientos de la economia socialista, que está ligada a la victoria de la política de industrialización y de construcción de los sovjoses y de los koljoses.

Se reúne vuestro Congreso en un período en que, bajo la dirección del Partido Comunista, bajo la guía genial de nuestro gran jefe y maestro el camarada Stalin, ha triunfado en nuestro país definitivamente y sin retroceso posible el modo socialista de producción. De esta etapa, de victoria en victoria, del fuego de la guerra civil al período del restablecimiento y del período del restablecimiento a la reconstrucción socialista de toda la economia nacional, nuestro partido ha llevado al país a la victoria sobre los elementos capitalistas, expulsándolos de todos los sectores de la economia nacional.

La URSS ha llegado a ser un país industrial avanzado y el país de la mayor agricultura socialista del mundo. La URSS se ha convertido en el país de la cultura socialista de vanguardia, el país donde se despliega y florece con los más brillantes colores nuestra cultura soviética.

Como consecuencia de la victoria del régimen socialista, se ha realizado la liquidación de las clases parasitarias, la liquidación del desempleo, la liquidación de la miséria en los campos, la liquidación de los tugurios urbanos. La fisionomia del país soviético ha cambiado por completo. Y la conciencia de los hombres ha cambiado, igualmente, de modo radical. Entre nosotros, los grandes hombres son ahora los constructores del socialismo, los obreros, los koljosianos.

El robustecimiento de la situación exterior e interior de la Unión Soviética marcha a la par con las victorias del socialismo en nuestro país; su autoridad y su influencia internacionales se acrecientan, lo mismo que crece su papel de brigada de choque del proletariado internacional, de baluarte poderoso de la próxima revolución proletaria mundial.

El camarada Stalin, en el XVII Congreso del Partido, hizo un análisis genial, inigualado, de nuestras victorias y de sus condiciones, de nuestra situación en el tiempo presente, e indicó el programa de trabajo ulterior para la terminación de la construcción de la sociedad socialista sin clase. El camarada Stalin hizo un análisis exhaustivo de los sectores retardatarios de nuestro trabajo y de las dificultades que nuestro partido, y bajo su dirección, millones de miembros de la clase obrera y del campesinato koljosiano luchan sin descanso, día tras día, por superar.

El camarada Stalin ha puesto al desnudo las causas de nuestras dificultades y de nuestras deficiencias. Estas dimanan del retraso práctico de organización en relación con las exigencias de la línea política del partido y de las necesidades que impone la realización del Segundo Plan Quinquenal. He aquí por qué el XVIII Congreso de nuestro partido afirmó en toda su amplitud la necesidad de elevar nuestro trabajo de organización al nivel de las grandiosas tareas políticas que se nos ofrecen. El partido, bajo la dirección del camarada Stalin, organiza a las masas en la lucha por la liquidación definitiva de los elementos capitalistas, por la extirpación de las supervivencias del capitalismo en la economia y en la conciencia de las gentes y por la terminación de la reconstrucción técnica de la economia nacional. Extirpar las supervivencias del capitalismo en la conciencia de las gentes significa luchar contra todos los restos de la influencia burguesa en el proletariado, contra la apatia, la frivolidad, la holgazaneria, la indisciplina y el individualismo pequeñoburgueses, la codícia y la falta de conciencia respecto de la propriedad colectiva.

Tenemos en nuestras manos una arma segura y poderosa para vencer las dificultades que se alzan en nuestro camino. Esta arma es la doctrina grandiosa e invencible de Marx, Engeles, Lenin y Stalin, que encarna en la vida de nuestro Partido de los Soviets.

La gran causa de Marx, Engels, Lenin y Stalin ha triunfado. Y precisamente a la victoria de esta causa es a lo que debemos que se reúna aquí el Primer Congreso de Escritores Soviéticos. Sin tal victoria, vuestro congreso no se habría celebrado. Un congreso como éste no puede convocarlo nadie fuera de nosotros los bolcheviques.

Los éxitos de la literatura soviética están condicionados por los éxitos de la construcción socialista. Su crecimiento es la expresión de los éxitos y de las realizaciones de nuestro régimen socialista. Nuestra literatura es la más joven de todas las literaturas de todos los pueblos y de todos los países. En cambio, es la literatura más rica en contenido, la más avanzada y la más revolucionaria. No hay ni ha habido jamás una literatura, fuera de la literatura soviética, que haya movilizado a los trabajadores y a los oprimidos para la lucha por la aniquilación definitiva de la exploración y del yugo de la esclavitud asalariada.

No hay ni ha habido jamás outra literatura que tome por base de los temas de su producción la vida de la clase obrera y del campesinato y su lucha por el socialismo. No hay en ningún outro lugar, en ningún outro país del mundo, una literatura que defienda y sostenga la igualdad de derechos de los trabajadores de todas las naciones, que mantenga la igualdad de derecho de las mujeres. No hay ni puede haber en ningún país burgués una literatura que se alce de manera firme y constante contra todo oscurantismo, contra todo misticismo, toda beateria y diableria como lo hace la literatura nuestra.

Solo la literatura soviética, que es carne y sangre de nuestra construcción socialista, podía llegar a ser tan avanzada, rica de contenido y revolucionaria.

Los escritores soviéticos han creado ya no pocas obras llenas de talento, que describen la vida de nuestro país soviético con exactitud y verdad. Hay ya una serie de nombres de los que tenemos derecho a sentirnos orgullosos. Bajo la dirección del partido, bajo la guía atenta y cotidiana del Comité Central, con el sostén y la ayuda incansables del camarada Stalin, la masa toda de los escritores soviéticos se ha juntado en torno del poder soviético y del partido. He aquí que, a la luz de los éxitos de nuestra literatura soviética, se revela aún mayor y más tajante la oposición entre nuestro régimen, el régimen del socialismo triunfante, y el régimen del capitalismo agonizante y en vías de putrefacción.

Qué puede escribir el escritor burgués, con qué puede soñar, qué entusiasmo puede arrebatar sus pensamientos, y de dónde podrá extraer esse entusiasmo, si es lo cierto que el obrero, en los países capitalistas, no tiene ninguna seguridad del mañana, si no sabe si tendrá trabajo al dia siguiente; si el campesino no sabe si mañana labrará su pedazo de tierra o si será arrojado de él por la crisis capitalista, si el trabajador intelectual se ve hoy sin trabajo y no sabe si lo tendrá mañana?

Qué puede escribir el escritor burgués, qué entusiasmo puede animarle, si es lo cierto que el mundo, de un día al outro, puede ser nuevamente precipitado al abismo de una nueva guerra imperialista?

La situación actual de la literatura burguesa es tal, que no puede ya crear grandes obras. La decadencia y la corrupción de la literatura burguesa, que dimanan de la decadencia y la corrupción del régimen capitalista, se presentan como el rasgo característico, como la particularidad característica del estado de la cultura burguesa y de la literatura burguesa en el tiempo presente. Han pasado para siempre los tiempos en que la literatura burguesa, al reflejar las victorias de la sociedad burguesa sobre el feudalismo, podía crear las grandes obras que señalan el período del impulso inicial y la primera expansión del capitalismo. Actualmente, lo que se observa es la degeneración general de sus temas y de sus talentos, de sus autores y de sus personajes.

Obseso por un terror mortal a la revolución proletaria, el fascismo se abalanza contra la cultura, hace retroceder a la humanidad a los períodos más bárbaros y más siniestros de la história, quema en la hoguera y aniquila salvajemente las producciones de los espíritus más elevados.

El desencadenamiento del misticismo y del clericalismo y la apetencia de pornografia son características de la decadencia y la corrupción de la cultura burguesa. Las celebridades de la literatura burguesa, de esa literatura que ha vendido su pluma al capital, son hoy los ladrones, los soplones, los prostituidos, los bribones.

Todo esto es característico de aquella parte de la literatura burguesa que se esfuerza por ocultar la corrupción de la sociedad burguesa, que se empeña en vano en demostrar que no pasado nada, que todo marcha del mejor modo en el reino de Dinamarca, y que nada se está pudriendo en la sociedad capitalista. Los representantes de la literatura burguesa que perciben con mayor acuidad la realidad de ese estado de cosas, se dejan llevar del pesimismo, de la incertidumbre del mañana, de la atracción de las tinieblas; preconizan el pesimismo como teoría y práctica artísticas. Y solamente un reducido número de escritores, los más honrados y perspicaces, tratan de buscar una salida por otros caminos, en otras direcciones, y de ligar su suerte a la del proletariado y de su lucha revolucionaria.

El proletariado de los países capitalistas está formando ya el ejército de sus escritores, de sus artistas, de esos escritores revolucionarios a cuyos representantes nos sentimos muy felices de saludar hoy en el Primer Congreso de Escritores Soviéticos. La falange de escritores revolucionarios en los países capitalistas no es todavía muy amplia, pero se extiende y se extenderá de día en día, a medida que se acentúa la lucha de clases y que crecen las fuerzas de la revolución proletaria mundial.

Creemos firmemente que la decena de camaradas extranjeros que están aqui presentes constituyen el núcleo y el germen del poderoso ejército de escritores proletarios que la revolución proletaria mundial habrá de crear mas allá de nuestras fronteras.

Así van las cosas en los países capitalistas. Pero no sucede lo mismo entre nosotros. Nuestro escritor soviético extrae los materiales de su creación artística, sus temas, sus imágenes, su lenguaje y su estilo, de la vida y de la experiencia de los hombres del Dnieprostoi y del Magnitogorsk. Nuestro escritor extrae sus materiales de la epopeya del Cheliuskin, de la experiencia de nuestros koljoses, de la actividad creadora que bulle en cada rincón de nuestro país.

Aquí, los héroes principales de las obras literarias son los construtores activos de la vida nueva: obreros y obreras., Koljosianos y koljosianas, miembros del partido, administradores, ingenieros, jóvenes comunistas, pioneros. He ahí los tipos fundamentales y los héroes esenciales de nuestra literatura soviética. El entusiasmo y la pasión del heroísmo impregnan nuestra literatura. Ella es optimista, pero en modo alguno por una especie de primordial instinto zoológico. Es optimista en su esencia, porque es la literatura de la clase ascendente, del proletariado, de la única clase progresista, de vanguardia. La fuerza de nuestra literatura soviética reside en que sirve la causa nueva, la causa de la construcción del socialismo.

El camarada Stalin ha llamado a nuestros escritores los ingenieros de almas. Qué significa esto? Qué obligaciones os impone esse título?

Eso quiere decir, en primer término, conocer la vida a fin de poder representarla veridicamente en las obras de arte; representarla no de manera escolástica, muerta, no simplemente como realidad objetiva sino representar la realidad en su desarrollo revolucionario.

Y también, la verdad y el carácter histórico concreto de la representación artística devem aunarse a la tarea de transformación ideológica y de educación de los trabajadores en el espíritu del socialismo.

Nuestra literatura soviética no teme ser acusada de tendenciosa. Sí; la literatura soviética es tendenciosa, porque no hay ni puede haber, en época de lucha de clases, literatura que no sea literatura de clase, que no sea tendenciosa, que sea apolítica.

Y yo opino que todo escritor soviético puede decir a cualquier burgués obtuso, a cualquier filisteo, a cualquier escritor burgués que hable del carácter tendencioso de nuestra literatura: “Sí; nuestra literatura soviética es tendenciosa, y estamos orgullosos de que lo sea, porque nuestra tendencia consiste en querer liberar a los trabajadores y a todos los seres humanos del yugo de la esclavitud capitalista”.

Ser ingeniero de almas quiere decir tener las plantas firmemente apyadas en el suelo de la vida real. Y significa, a la vez, romper con el romanticismo a la antigua, con el romanticismo que representaba una vida inexistente y personajes inexistentes, que llevaba al lector a evadirse de las constradicciones y del dogal de la vida, lanzándolo a un mundo quimérico de utopia. A nuestra literatura, que tiene los pies plantados sobre sólidos cimientos materialistas, no puede serle ajeno el romanticismo; pero es un romaticismo de tipo nuevo: el romanticismo revolucionario. Decidimos que el realismo socialista es el método fundamental de la literatura y de la crítica literaria soviéticas, pero esto supone que el romanticismo revolucionario debe integrar la creación literaria como una de sus partes constitutivas, porque toda la vida de nuestro partido, toda la vida la clase obrera y su combate consisten en unir el trabajo práctico más severo, más razonado, al heroísmo y a las perspectivas grandiosas. Nuestro partido ha sido siempre fuerte porque unió y une el espíritu práctico más riguroso a las perspectivas más amplias, a la marcha contínua hacia el futuro, a la lucha por la construcción de la sociedad comunista. La literatura soviética debe saber representar a nuestros héroes, debe saber mirar hacia nuestros mañanas. Y esto no es entregar-se a la utopía, porque nuestros mañanas se preparan desde hoy por un trabajo consciente y metódico.

No se puede ser ingeniero de almas si no se conoce la técnica del arte literario; y aquí es necesario señalar que la técnica del escritor posee una serie de particularidades que le lon específicas.

Vuestras armas son numerosas. La literatura soviética tiene ante sí todas las posibilidades de utilizar estas armas de todas clases (géneros, estilos, formas y procedimientos de la creación literaria), en su diversidad y su integridad, escogiendo lo mejor de cuanto se haya creado en este terreno durante las épocas anteriores. Desde este punto de vista, el domínio de la técnica y la asimilación crítica del patrimonio literario de todas las épocas constituyen la tarea sin cuyo cumplimiento no podréis llegar a ser ingenieros de almas.

Camaradas, lo mismo que sucede en otros campos de la cultura material y espiritual, el proletariado es el heredero único de todo cuanto hay de mejor en el tesoro de la literatura mundial. La burguesia ha despilfarrado el patrimonio literario, nuestro deber consiste en recogerlo, estudiarlo, y luego asimilarlo de manera crítica, utilizarlo en nuestra marcha hacia adelante.

Ser ingeniero de almas quiere decir luchar activamente por un lenguaje rico, por obras de calidad. Nuestra literatura no corresponde todavía a las necesidades de nuestra época. Sus debilidades reflejan el retraso de la conciencia respecto de la economia, de la que, no hay que decirlo, no son independientes nuestros escritores. Por eso un trabajo incansable sobre sí mismo y sobre su armamento ideológico en el espíritu del socialismo es la condición indispensable sin la cual los escritores soviéticos no serán capaces de reeducar la conciencia de sus lectores y de hacer-se, así, ingenieros de almas.

Necesitamos un perfecto domínio del arte literario, y a este respecto es verdaderamente inestimable la ayuda que aporta Alexei Maximovitch Gorki al partido y al proletariado, en la lucha de éstos por una literatura de calidad y un lenguaje colmado de riqueza.

Así, los escritores soviéticos está rodeados de todas las condiciones necesarias para que les sea posible crear obras que estén, como se acostumbra decir, al unísono con la época: obras que sean manancial de lecciones para los contemporáneos y motivo de orgullo para la generaciones por venir.

Están creadas todas las condiciones para que la literatura soviética pueda producir obras que correspondan a las necesidades acrecentadas de las masas en el terreno de la cultura. Nuestra literatura, y sólo ella, posee la posibilidad de ligarse tan estrechamente a sus lectores, a la vida de los trabajadores, como sucede en la Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas. A este respecto, el presente Congreso resulta especialmente significativo. Ha sido preparado, no solamente por los escritores, sino por todo el país con ellos. En esta preparación se han expressado magníficamente el amor y la atención con que el partido, los obreros y el campesinato koljosiano rodean a los escritores soviéticos. No hay más que un país, el nuestro, donde la literatura y los escritores sean abojeto de tal estimación.

Organizad, pues, los trabajos de vuestro congreso y, en el futuro, el trabajo de la Unión de Escritores soviéticos, de modo que la actividad creadora de los escritores responda a las victorias logradas por el socialismo.

Cread obras de perfecta maestria y de elevado contenido ideológico y artístico!

Sed los organizadores más activos de la reeducación de la conciencia de las gentes en el espíritu del socialismo! Situaos en las primeras filas de los combatientes por la sociedad socialista sin clases!


BIBLIOGRAFIA

AMADO, Jorge. Cacau. Rio, Record, 1981, 37ª edição.

____. O Mundo da Paz. Rio, Editorial Vitória, 1952.

____. Os Subterrâneos da Liberdade: v. 1. Os Ásperos Tempos; v. 2. Agonia da Noite; v.3. A Luz no Túnel. Rio, Record, 1980, 35ª edição.

BERNO DE ALMEIDA, Alfredo Wagner. Jorge Amado: Política e Literatura. Rio, Editora Campus, 1979.

BESANÇON, Alain. Les Origines intellectuelles du leninism. Paris, Calmann-Lévy, 1977.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 3ª edição, s/data.

CAMUS, Albert. L’Homme révolté. In: Essais, Paris, Gallimard, 1965.

CAUTE, David. Le Communisme et les intellectuelles français (1914-1966). Paris, Gallimard, 1967.

____. Les Compagnons de route (1917-1968). Paris, Robert Laffont, 1979.

____. The Great Fear. New York, Simon and Schusters, 1979.

CHAMPARNAUD, François. Révolution et contre-révolution culturelles en URSS (de Lenine a Jdanov). Paris, Editions Anthropos, 1975.

CHILCOTE, Ronald H. Partido Comunista Brasileiro — Conflito e Integração (1922-1972). Rio, Edições Graal, 1982.

DULLES, John W. H. Anarquistas e Comunistas no Brasil (1900-1935). Rio, Nova Fronteira, 1977.

____. O Comunismo no Brasil (1935-1945). Rio, Nova Fronteira, 1985.

HYAMS, Edward. Dicionário das Revoluções Modernas. Rio, Artenova, 1975.

ISTOÉ. “O jubileu de Jorge”. São Paulo, 18/11/81.

KAZANTZAKIS, NIKOS. Voyages — Russie. Paris, Plon, 1977.

KOESTLER, Arthur et alli. Le Dieu des ténèbres. Paris, Calmann-Lévy, 1950.

MALAURIE, Guillaume. L’Affaire Kravchenko. Paris, Robert Laffont, 1987.

MARTINS, Wilson. O Modernismo. São Paulo, Cultrix, 1977.

____. História da Literatura Brasileira, v. VII. São Paulo, Cultrix / Edusp, 1979.

MEDVEDEV, Roy. Le Stalinisme. Paris, Editions du Seuil, 1971.

NERUDA, Pablo. Obras Completas. Buenos Aires, Losada, 1973.

NIETZSCHE, Friedrich. O Anti-Cristo. Lisboa, Editorial Presença, 1973.

____. Assim falava Zaratustra. São Paulo, Publicações Brasil Editora, 1976.

PALMIER, Jean-Michel. Lénine, l’art et la révolution. Paris, Payot, 1975.

PARJÓMENKO, M. e MIASKINOV, A. El Realismo Socialista en la Literatura y el Arte. Moscou, Editorial Progreso, s/data.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio, Record, 1973.

____. Viagem: Tchecoslováquia — URSS. Rio, Record, 1983.

____. Cartas. Porto Alegre, MPM-Comunicações, s/d; edição especial fora de comércio.

ROY, Claude. Les Chercheurs de Dieux. Paris, Gallimard, 1971.

RÚBIO CABEZA, Manuel. Diccionario de la Guerra Civil Española. Barcelona, Editorial Planeta, 1987.

SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Estética y Marxismo. México, Ediciones Era, 1970.

SOUVARINE, Boris. Staline. Paris, Editions Champs Libre, 1977.

TAVARES. Paulo. Criaturas de Jorge Amado. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1979.

ULAM, Adam. B. Staline, l’homme et son temps. Paris, Calmann-Lévy/Gallimard, 1973.


 

RocketEdition™

eBooksBrasil
Maio — 2000

© Jader Cristaldo
cristal@altavista.net

 

Proibido todo e qualquer uso comercial.
Se você pagou por esse livro
VOCÊ FOI ROUBADO!
Você tem este e muitos outros títulos
GRÁTIS
direto na fonte:
eBooksBrasil.org

 

Edições em pdf e eBookLibris
eBooksBrasil.org
__________________
Abril 2006

 

eBookLibris
© 2006 eBooksBrasil.org