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Eurípides


Electra
Eurípides (c. 485 A.C.-406 A.C.)

Tradução
J. B. de Mello e Souza*

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Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Clássicos Jackson, Vol. XXII
Diagramação adaptada aos formatos de eBook disponíveis

© 2005 — Eurípides


ELECTRA

EURÍPIDES


ELECTRA

PERSONAGENS

UM TRABALHADOR MICENIENSE
ELECTRA
ORESTES
PÍLADES
CLITEMNESTRA
UM ANCIÃO
UM MENSAGEIRO
OS DIÓSCUROS
O CORO


 

Um trabalhador miceniense

O TRABALHADOR

Ó veneranda Argos, da terra por onde corre o Ínaco, e de onde, outrora, comandando mil navios de guerra, até as plagas de Tróia velejou o rei Agamêmnon! Tendo vencido a Príamo, que reinava sobre a terra ilíada, ele retornou a Argos, deixando em ruínas a cidade ilustre de Dárdano; e depositou nos altos templos numerosos despojos daqueles bárbaros. Foi feliz, lá na Ásia, sim! — mas, aqui, de regresso ao lar, pereceu vítima da astúcia de sua esposa Clitemnestra, e sob o golpe de Egisto, filho de Tiestes. Pereceu o detentor do cetro antigo de Tântalo; e é Egisto quem manda agora nesta terra, e possui a Tíndaris, esposa do Atrida. Este deixara em sua casa, ao partir para Tróia, seu filho Orestes e sua filha Electra. Um velho, que fora mestre do pai, conseguiu levar consigo Orestes, quando Egisto ia matá-lo; e confiou-o, na terra de Focéia, a Estrófio, para que o criasse; mas a jovem Electra permaneceu no lar paterno. Logo que atingiu a puberdade, os mais ilustres helenos pediram-lhe a mão; mas o usurpador, receando que do consórcio da princesa com um árgio eminente nascesse um descendente que vingasse um dia a morte de Agamêmnon, preferiu con­ser­vá-la solteira. Mesmo assim, temendo sua união, em segredo, com algum homem ilustre, resolveu sacrificá-la; mas sua mãe, embora cruel, salvou-a das mãos de Egisto. Com efeito, ela tivera razão para sacrificar seu primeiro marido; mas temia atrair sobre si o ódio geral com a morte dos filhos. Eis por que Egisto urdiu este plano: exilado o filho de Agamêmnon, como estava, ele prometeu avultado prêmio a quem o matasse; e a mim, que descendo de pais micênios, me deu Electra por esposa. Em rigor, não mereço censura, visto que sou oriundo de família ilustre; mas sou pobre, e minha alta hierarquia está prejudicada pela pobreza... É certo que, dando-a a um homem humilde, nada tem a temer, ao passo que se a unisse a um esposo nobre, arriscar-se-ia a ver relembrado o assassínio de Agamêmnon, e a sofrer, um dia, o merecido castigo. Mas nunca — que o diga a deusa Vênus! — nunca manchei o leito de Electra; ela continua virgem! Com efeito, seria odioso, para mim, violentar uma jovem, filha de gente ilustre, e a quem eu não quereria esposar. Lamento, porém, que o infortunado Orestes, meu parente apenas de nome, se algum dia voltar a Argos, venha a saber deste infeliz casamento de sua irmã. E se alguém me considerar insensato, porque recebi uma jovem como esposa, e a conservo intacta, saiba que insensato será quem assim pensa.

O TRABALHADOR, ELECTRA, depois ORESTES e PÍLADES

ELECTRA

Ó Noite escura, nutriz dos astros de ouro; sob teu manto de sombra eu vou, com este cântaro à cabeça, em busca da fonte... Não que me veja reduzida a tão grande miséria, mas para mostrar aos deuses os crimes de Egisto, e espalhar, pelo espaço afora, minhas lamentações por meu pai. Expulsou-me Tíndaris de seu lar, para agradar ao marido; e desde que deu um filho a Egisto, considera-nos, a Orestes e a mim, como estranhos em sua casa...

O TRABALHADOR

Ó infeliz, por que fazes essas coisas para mim, e trabalhas dessa forma, tu, que foste educada com tanto carinho? Por que, apesar de minhas exortações, não vais repousar?

ELECTRA

Eu te considero um amigo, como são para mim os deuses, porque não me ofendeste em minha desgraça. Para os mortais é uma felicidade encontrar quem os conforte no infortúnio. Cumpre-me, pois, mesmo sem tua ordem, auxiliar-te no trabalho em quanto puder, para que possas suportar mais facilmente teus penosos encargos. Tens muito que fazer fora de casa; devo, portanto, zelar pelos serviços do­més­ti­cos. Quando o lavrador volta, é grato encontrar tudo em boa ordem em sua casa.

O TRABALHADOR

Se te apraz, vai... A fonte não fica longe daqui. Eu me encarrego de levar, desde a madrugada, os bois ao campo, e tratarei de lavrar a terra. Nenhum preguiçoso, ainda que tenha o nome dos deuses nos lábios, conseguirá alimento sem trabalho.

(Sai O TRABALHADOR)

ORESTES

Ó Pílades, tu és, entre os homens, o mais fiel dos amigos, porque és o único dos amigos de Orestes que não o abandonou no infortúnio, quando me fazem sofrer cruelmente Egisto (que matou meu pai), e minha mãe, que o ajudou na prática desse crime. Agora, confiando na palavra de uma divindade, e sem que ninguém saiba, volto a esta terra argiana, disposto a dar a morte aos assassinos de meu pai. Visitei, esta noite, seu túmulo; ofereci-lhe minhas lágrimas e as primícias de meus cabelos; e, à revelia dos tiranos que mandam nesta terra, deitei ao fogo crematório o sangue de uma ovelha. Não porei os pés no recinto da cidade, por ora. Tenho um duplo e urgente desejo, como sabes; mas permanecerei na fronteira do estado para que a qualquer momento possa evadir-me caso alguém me reconheça durante a busca que darei, a fim de rever minha irmã... Dizem que ela foi obrigada a casar-se... que não consentiram que continuasse solteira... Quero combinar com ela a vingança, e saber dela o que se passa no palácio. Cuidado! Eôs já se mostra clara e iluminada; não deixemos sinais de nossa passagem por esta vereda. Havemos de encontrar um lavrador, ou uma camponesa, que nos informe se minha irmã reside por estas bandas. Vejo ali uma criatura que conduz à cabeça uma vasilha d’água. Sentemo-nos por aqui mesmo, Pílades, e tratemos de saber, por esta escrava, se é possível apurar alguma notícia con­cer­nente aos fins que me trou­xe­ram a esta terra.

ELECTRA, O CORO

ELECTRA

Apressa teus pas­sos, que já é tempo! Caminha, caminha! Chora, mas sempre avante! Ai de mim! Sou filha de Agamêmnon, e da odiosa filha de Tíndaro! Clitemnestra me deu a vida; os cidadãos me chamam Electra. Pobre de mim! A que triste condição me reduziu a sorte! Ó meu pai! E tu jazes na região sinistra do Hades, massacrado por tua própria esposa, e Egisto!

Renova, ó infeliz, tuas la­men­ta­ções! Deixa que corram de novo estas lágrimas que aliviam! Caminha, caminha mais ainda, imersa em tua dor... Ai de mim! Em que ci­da­de es­ta­rás tu, ó meu des­ven­tu­ra­do irmão, que dei­xas­te tua irmã tão digna de lástima, na miséria da casa paterna! Livra-me de tanta desventura, ó Jú­pi­ter possante! Conduze teus passos a Ágis, e vinga a morte de meu pai!

Aqui deporei esta urna, des­can­san­do minha cabeça; aqui direi a meu pai meus quei­xu­mes em gritos de dor, e can­ta­rei o hino em honra de Plutão. Querido pai, da sepultura onde repousas, ouve este clamor que sem cessar faz ouvir minha garganta lacerada, e que eu repito arrancando os cabelos de desespero, ao pensar em tua morte!

Tal como um cisne aflito, que nas águas do rio procura em vão os seus, colhidos pelas redes e armadilhas, assim também eu choro por ti, meu infeliz pai!

Meu infeliz pai, que ao re­gres­sar de Tróia, ao cabo de tão longa ausência, encontraste a morte, a morte cruel pelo ma­cha­do, con­se­qüência da traição de minha mãe, que ao invés de te receber com flores e coroas festivas, preferiu entregar-te à fúria assassina de Egisto, e ainda desposou esse infame adúltero!

O CORO

Ó filha de Agamêmnon, desventurada Electra, nós vimos ver-te em tua agreste morada. Um mon­ta­nhês de Micenas acaba de chegar, e trouxe a notícia de que os Argivos farão um holocausto dentro de três dias, e que todas as virgens são convocadas ao templo de Juno.

ELECTRA

Meu coração não se preocupa com colares de ouro; não farei parte do coro das vir­gens argivas. As lá­gri­mas substituem, para mim, as danças festivas... estas lá­gri­mas que todos os dias vertem meus olhos. Vede o estado de meus cabelos e de minhas vestes. Por acaso condizem com a situação de uma prin­ce­sa? Ou se assemelham aos de uma troiana escrava que na guerra tenha caído prisioneira de meu pai?

O CORO

A deusa é poderosa! Vem, Electra! Aceita de nós as luxuosas vestes e os ornamentos de ouro que te daremos para realce de tua cintilante formosura. Pensas tu, que cho­ran­do, e es­que­cendo o culto devido aos deuses, levarás vantagem a teus inimigos? Não! Não será com inúteis lamentações, mas sim, honrando os deuses com tuas preces, que hás-de re­adquirir a felicidade perdida.

ELECTRA

Nenhuma di­vin­da­de ouve os clamores de uma mísera criatura, nem se re­cor­da dos antigos sacrifícios que meu pai lhe ofereceu. Ai de mim! — meu pai está morto, e meu irmão vagando em terra estranha, procura, talvez, um abrigo, — ele, que descende de um progenitor tão ilustre! E quan­to a mim, vivo numa po­bre choupana, so­fren­do o des­gosto de me ver exilada da casa paterna, enquanto minha mãe se uniu criminosamente a outro, num lar maculado pelo crime!

O CORO

Helena, a irmã de tua mãe, foi a causadora de imensas desgraças para os gregos, e para tua família.

ELECTRA

Está bem, amigas: eu deixarei de me lamentar. Aproximam-se de nós vultos suspeitos, que parecem sair de algum esconderijo. Fujamos; vós, por este atalho, e eu, no rumo de minha casa, para evitar estes malfeitores.

ORESTES

Não fujas, cri­a­tu­ra: nada temas de mim.

ELECTRA

Ó Apolo! eu te pe­ço! Faze com que eu não mor­ra!

ORESTES

Não é a ti que pre­ten­do ferir, mas a outros, que me são odiosos.

ELECTRA

Vai-te embora da­qui! Não to­ques em quem é ve­da­do tocar.

ORESTES

Talvez não haja no mundo pessoa a quem eu possa abraçar com mais direito!

ELECTRA

Dize: por que razão me surpreendes perto de minha casa, assim armado com uma espada?

ORESTES

Acalma-te, e ou­ve, por­que estarás dentro em bre­ve de inteiro acordo co­mi­go.

ELECTRA

Pois seja! Estou a teu dispor, visto que és o mais forte.

ORESTES

Trago-te notícias de teu irmão.

ELECTRA

Oh! De meu que­ri­do irmão! Dize: está ele vivo ou morto?

ORESTES

Está vivo. Quero dar-te boas notícias.

ELECTRA

Sê feliz, amigo, em paga de tuas confortadoras palavras!

ORESTES

Para que sejamos ambos felizes é que te venho dizê-las.

ELECTRA

Em que lugar, em que terra anda esse infeliz exilado?

ORESTES

Ele não sofre sob as leis de uma só cidade, mas de várias.

ELECTRA

Falta-lhe o ali­men­to, talvez?

ORESTES

Não; ele tem com que se nutrir: mas um des­ter­ra­do é sempre um indigente.

ELECTRA

E que notícias tra­zes de­le?

ORESTES

Ele quer saber se tu vives, e de que sofrimentos tua vida está amargurada.

ELECTRA

Tu bem vês o quan­to es­tou ma­gra e aba­ti­da.

ORESTES

Vejo, sim, que deves ter sofrido muito, e isso me comove profundamente.

ELECTRA

Meus cabelos fo­ram cor­tados rente, fi­can­do-me a cabeça devastada como a das bárbaras.

ORESTES

Teu pai já não vi­ve... e teu irmão te dá cui­da­dos, sem dúvida...

ELECTRA

Pobre de mim! Que tinha eu, no mundo, de mais precioso do que eles?

ORESTES

Por acaso teu irmão terá alguém, a quem ele preze mais do que a ti?

ELECTRA

Ele está longe... e não me pode valer com seu fraternal afeto.

ORESTES

Por que vives aqui, longe da cidade?

ELECTRA

Fui forçada a aceitar, ó estrangeiro, um casamento desastroso.

ORESTES

Teu irmão ficará desgostoso... Casaste com um micênio?

ELECTRA

Sim: mas não um daqueles com quem meu pai quereria ver-me casada.

ORESTES

Conta-me, pois, para que eu transmita a teu irmão o que me disseres.

ELECTRA

Pois bem: eu vivo aqui, nesta choupana.

ORESTES

Parece-me casa de um lavrador, ou vaqueiro.

ELECTRA

Pois é um homem pobre, mas generoso, que me respeita.

ORESTES

Mas que respeito poderá tributar à esposa, o seu marido?

ELECTRA

É que ele jamais ousou aproximar-se de meu leito.

ORESTES

Por acaso possui o dom da castidade divina, ou te julga indigna dele?

ELECTRA

Ele não quer ofender a minha família.

ORESTES

Como se explica que ele não tenha ficado satisfeito com semelhante consórcio?

ELECTRA

Ele sabia, es­tran­gei­ro, que quem me forçou a esse ca­sa­men­to, não tinha o di­rei­to de o fazer.

ORESTES

Ah! Compreendo... ele receou a cólera de Orestes...

ELECTRA

Acredito... mas asseguro que é um homem digno.

ORESTES

Sim; pelo que dizes, é um homem generoso, e deve ser bem tratado.

ELECTRA

Sim... se aquele que anda ausente, ainda voltar um dia a seu lar.

ORESTES

E tua mãe, que te criou, consentiu nisso?

ELECTRA

As mulheres, ó estrangeiro, amam os homens, não aos filhos.

ORESTES

Por que assim te ultrajou Egisto?

ELECTRA

Ele quer que meus filhos sejam uns pobres submissos, e julgou que o conseguiria dando-me tal marido.

ORESTES

Certamente para que teus filhos nunca venham a ser vingadores!...

ELECTRA

Foi esse o plano... Tomara que ele sofra um dia o castigo desse crime!

ORESTES

E o marido de tua mãe sabe que continuas virgem?

ELECTRA

Não... ele ignora o que se passa, porque re­sol­ve­mos guardar segredo.

ORESTES

Estas mulheres que nos ouvem são tuas amigas?

ELECTRA

Sim... Podemos confiar; elas guardarão em sigilo tuas palavras, e as minhas.

ORESTES

Que pensas tu que faria Orestes, se voltasse a Argos?

ELECTRA

Tu ainda per­gun­tas? Acaso não sabes que as coisas che­ga­ram ao mais alto grau de ignomínia?

ORESTES

Compreendo... Mas, uma vez de volta, como poderia ele matar os assassinos do pai?

ELECTRA

Usando, para com esses inimigos, da mesma audácia com que vitimaram a Agamêmnon.

ORESTES

E tu, prestando-lhe auxílio, terias coragem de matar tua mãe?

ELECTRA

Sem dúvida! E com o mesmo ferro com que meu pai foi ferido.

ORESTES

Poderei dizer isso a Orestes? Tua resolução é inabalável?

ELECTRA

Sim! Ainda que eu tenha de morrer, logo após o derramamento do sangue de minha mãe!

ORESTES

Ah! Prouvera aos deuses que Orestes estivesse aqui, e ouvisse tudo isso!

ELECTRA

Mas, estrangeiro, mesmo que eu o veja, não o reconhecerei...

ORESTES

Não admira: foste separada dele quando éreis ambos ainda crianças!

ELECTRA

Um só de meus amigos poderia reconhecê-lo!

ORESTES

Não será aquele que, segundo dizem, o salvou da morte?

ELECTRA

Sim! O mestre de meu pai, um homem já idoso...

ORESTES

Mas teu pai re­ce­beu se­pul­tu­ra?

ELECTRA

Uma sepultura vul­gar... fo­ra da ci­da­de.

ORESTES

Pobre de mim! Oh! que digo eu! O pesar pelos males alheios aflige os homens! Mas, continua a falar, a fim de que eu, bem informado de tudo, possa transmitir a teu irmão este relato doloroso, que ele precisa conhecer. A compaixão é natural, não nas naturezas rudes, mas no coração dos sábios; mas a prudência em excesso pode ser prejudicial a quem a possui.

O CORO

Também nós es­ta­mos ansiosas por ouvir a ver­da­de sobre tudo isso. Ha­bi­ta­mos longe da cidade, e não conhecemos os males que nela se praticam; mas de­se­ja­mos conhecê-los.

ELECTRA

Eu falarei, visto que é mister que eu fale; convém confiar aos amigos as minhas desditas e as de meu pai. Eu te peço, ó forasteiro, que informes Orestes acerca da minha sorte e da de meu pai; dize-lhe que sórdidos panos me servem de vestuário; em que imundície vivo, e sob que pobre teto habito eu, uma descendente de estirpe real! Que fiz eu própria minhas roupas, sem o que estaria nua e sem agasalho; que eu própria carrego água do rio, que me privo de assistir às festas sagradas, e as danças; que evito a convivência com as mulheres, e que continuo virgem, já tendo retornado para a companhia dos deuses, meu primo Castor, a quem eu fora prometida por meus pais. Que minha mãe, cercada de troféus vindos da Frígia, está no trono; em torno dela, escravas asiáticas, trazidas por meu pai, e cobertas de mantos lidianos com presilhas de ouro. E que o sangue escuro de meu pai mancha ainda as paredes, e aquele que o matou sobe, publicamente, ao carro que pertencia ao rei, e glorifica-se de conduzir, nas mãos es­tig­ma­ti­za­das pelo crime, o cetro com o qual sua vítima reinava sobre os Helenos. E que o túmulo de Agamêmnon está abandonado; nunca recebeu libações, nem ramos de murta: sua fo­guei­ra nunca teve ofe­ren­das. Sempre em estado de embriaguez, o ilustre marido de minha mãe, — como o apelidaram — insulta o túmulo, ataca a pontapés o marco funerário de meu pai, ousando proferir estas palavras: “Onde está teu filho Orestes?” “Estará ele defendendo corajosamente tua memória?” Meu irmão ausente é assim ultrajado, estrangeiro; eu te peço, conta-lhe tudo isto! Eu sou a in­tér­pre­te de muitas vozes que chamam por ele, an­sio­sa­mente! Com os braços, com os lábios, com o coração amar­gu­ra­do, com os cabelos sa­cri­fi­ca­dos, eu chamo por ele, como a memória de meu pai, também! É incrível que o filho de um herói, que dominou a tantos Frígios, não possa matar um homem só, sendo jovem, e des­cen­den­te de um pai ilustre!

O CORO

Eis que se apro­xi­ma, rumo da casa, o homem que dizes ser teu marido, e que terminou seu trabalho.

Volta O TRABALHADOR

O TRABALHADOR

Oh! Quem são estes estrangeiros que vejo perto de minha casa? Por que motivo vieram ter a este rude vestíbulo? Querem al­gu­ma coisa comigo? Porque não é decente, para uma mulher, demorar-se em con­ver­sa com jovens des­co­nhe­ci­dos.

ELECTRA

De nada suspeites, meu caro. Estes forasteiros vieram trazer-me notícias de Orestes. Senhores, perdoai o que ele disse.

O TRABALHADOR

E que di­zem eles? Vi­ve ainda Orestes? Vê a luz do sol?

ELECTRA

Eles afirmam que sim, e eu creio no que me dizem.

O TRABALHADOR

Lembra-se ele ainda de teu pai, e de tua infelicidade?

ELECTRA

Devemos admitir que sim. Mas um exilado nada pode fazer...

O TRABALHADOR

E que re­ca­do de Orestes te trou­xe­ram?

ELECTRA

Ele os enviou para que obtivessem notícias de minha situação.

O TRABALHADOR

Uma boa parte eles estão vendo aqui; quanto ao mais, tu lhes con­tas­te?

ELECTRA

Já sabem de tudo; nada lhes ocultei.

O TRABALHADOR

Conviria, pois, que as portas lhes ti­ves­sem sido já abertas. Entrai em nossa casa. Em troca das notícias que trouxestes, aceitai a hospitalidade, tal como minha pobre casa permite. Servos, conduzi para dentro a bagagem destes senhores. E vós, que viestes, como amigos, que sois, de quem é nosso amigo, não deixeis de nos atender. Embora pobre, quero mostrar-vos que tenho bom coração.

ORESTES

Pelos deuses! dize: foi este homem que não quis se unir a ti, para não ofender a Orestes?

ELECTRA

Ele mesmo; é quem dizem ser o marido da infeliz Electra.

ORESTES

Ah! Não há sinal seguro quanto à virtude de um homem. A natureza dos mortais nos induz à confusão... Já vi o filho de um homem ilustre tornar-se um nulo, e filhos de criaturas perversas revelarem nobres qualidades. Tenho visto a miséria na alma de um ricaço, e um belo espírito no corpo de um pobretão. Como havemos de discernir as coisas? Pela riqueza? Seria um péssimo guia... Pelo que nada tem? Mas a pobreza não raro instiga ao mal aquele a quem tudo falta. Devemos nos regular pelas armas? Mas quem pode assegurar, vendo uma lança, que o indivíduo que a leva é valente? O melhor é deixar correr o mundo... Com efeito, este homem é obscuro entre os Argivos, não se orgulha da glória dos seus antepassados; é um filho do povo; mas é digno de louvor. Não vos tornais mais sábios vós, que tendes sido iludidos por inseguros juízos, e não considerais mais generosos os homens conforme seu carácter, e seus costumes? Tais são os que governam com prudência as cidades e os lares; mas os corpos sem espírito valem menos que as estátuas da ágora. Um braço robusto não sustém melhor a lança do que um mais fraco; é a índole, e o valor moral que tudo fazem. Por isso mesmo, esteja ou não presente, o filho de Agamêmnon, por quem viemos, é digno desta acolhida; aceitemos o asilo que nos oferece este bom homem. Entremos, servos; um hóspede pobre e apressado agradará menos que um rico. Merece louvores a hospitalidade que nos proporciona esta gente. Eu gostaria, porém, que teu irmão, restituído à felicidade, me acolhesse em sua casa. Ele virá, certamente, pois as profecias de Lóxias são infalíveis. Mas eu não dou importância aos vivos...

O CORO

Agora mais do que nunca, Electra, reanimemos, pela alegria, os nossos corações. É a fortuna — quem sabe? — que caminha embora com sacrifício, e aqui virá ter, para nossa felicidade!

ELECTRA

Mas, — infeliz! — visto que sabes quanto é pobre tua residência, por que recebes hóspedes que estão muito acima de ti?

O TRABALHADOR

Que sejam de alta estirpe, como nos parece, e que nossos alimentos sejam abundantes, ou não, por acaso não os aceitarão eles?

ELECTRA

Pois bem: já que não lograste obter senão o pouco que possuis, vai procurar o velho administrador de meu querido pai, o qual, expulso da cidade, apascenta seus rebanhos perto do rio Tánais, fronteira que separa a terra de Argos do solo espartano, e ordena-lhe que volte a sua casa e nos traga alguns acepipes para o alimento dos estrangeiros. Ele ficará satisfeito ao saber que o menino cuja vida salvou outrora, vive até hoje. Com efeito, não será do solar paterno, nem de minha mãe, que poderemos receber qualquer auxílio. A infeliz sentiria uma dor profunda se soubesse por nós que Orestes vive ainda.

O TRABALHADOR

Eu irei, visto que assim queres, levar àquele velho esta notícia; mas volta a nossa casa, e trata dos preparativos domésticos. Uma mulher quando assim quer, acha sempre alguma coisa para uma refeição; e nós havemos de ter o bastante para satisfazer a nossos hóspedes ao menos por um dia. Nestas ocasiões é que eu penso no grande poder da riqueza, que nos permite receber os hóspedes, e salvar-nos na doença. Mas, elas servem para a nutrição de cada dia, porque toda a humana criatura, seja pobre, ou seja rica, se farta da mesma maneira.

(Sai O TRABALHADOR)

O CORO

Salve, gloriosas naus, que graças a inúmeros remos, aportastes um dia a Tróia, dançando como as Nereidas, lá onde o delfim, amigo da flauta, saltava junto às proas azuladas — e conduzindo o filho de Tétis, Aquiles, de pés ligeiros, com Agamêmnon, para as margens troianas do Simois!

* * *

E as Nereidas, tendo deixado as margens do Eubóis, traziam-lhe as armas bem trabalhadas, sobre as bigornas de ouro de Efaístos, através do Pélion, e dos altos bosques sagrados do Ossa, e das Cavernas das Ninfas, onde seu pai, cavaleiro, alçava a luz da Hélade, o filho da marítima Tétis, Aquiles, dos pés ligeiros, sustentáculo dos Atridas!

* * *

Soubemos por um homem vindo de Ílion no porto de Náuplia, que no círculo de teu admirável escudo, ó filho de Tétis, estavam esculpidas estas imagens, terror dos frígios.

* * *

Na beirada do escudo, Perseu voando por sobre o mar, com sandálias aladas, e levando a cabeça da Górgona de­ca­pi­ta­da; depois, o Mensageiro de Zeus, Hermes, o filho agreste de Maia!

* * *

E, no meio do resplendente escudo, o disco brilhante do Sol, sobre seus cavalos alados, e o coro etéreo dos astros, as Plêiades, as Híades, for­mi­dá­veis aos olhos de Heitor! E sobre teu casco, ornado de imagens de ouro, estavam as esfinges, que conduziam nas garras uma presa celebrada pelos aedos! E sobre as armas laterais, a leoa Quimera ba­fe­jan­do fogo, pre­ci­pi­ta­va-se, que­ren­do ar­re­ba­tar o cavalo Pei­re­na­no!

* * *

Enfim, sobre a lança, que des­pe­de a morte, agitavam-se quatro cavalos: e uma poeira negra subia de seu dorso. E tu mataste um rei tal, um rei de lanceiros, teu marido, ó Tíndaris, mulher perversa! Eis aí por que um dia as Urânides hão-de enviar a morte, e um dia, um dia eu verei da tua garganta sangrenta, correr teu sangue, que uma espada fará jorrar!...

O VELHO, ELECTRA

O VELHO

Onde estará minha jovem senhora, a filha res­pei­tável de Agamêmnon a quem outrora eduquei? Como é penoso o acesso a esta casa para os pés de um velho can­sado, como eu! Mas, para servir a bons amigos, é mister que caminhemos com o dorso curvado e os joelhos trêmulos.

Filha minha, eis-me aqui, perto de ti... Venho trazer-te este cordeirinho novo, escolhido no rebanho de minhas ovelhas; e estes louros, e estes queijos que acabo de retirar das formas; e este antigo tesouro de Dionisos, cheio de perfume. É pequeno, realmente; mas é uma delícia uma taça deste vinho, misturado a outro mais fraco. Que sejam estes presentes oferecidos aos hóspedes; quanto a mim, quero apenas enxugar, em minhas vestes, meus olhos lacrimejantes.

ELECTRA

E por que tendes os olhos úmidos, ó velho? Por acaso recordas, depois de tanto tempo, as desgraças que me feriram? Gemes pelo infeliz desterro de Orestes, e por meu pai, a quem tiveste outrora nos braços, e que educaste sem proveito algum para ti e teus amigos?

O VELHO

Sim; estão perdidos... mas ouve o que não permite que eu me console nunca mais: visitei, de passagem, o túmulo de teu pai, e deplorei o abandono em que se acha. Abri o odre que trazia, e fiz uma ligeira libação, depositando ramos de murta em torno do jazigo. Vi, então, sobre os restos da fogueira, uma ovelha negra sacrificada como vítima, sangue re­cen­te­men­te ali der­ra­mado, e ma­dei­xas de cabelo louro. Admirei-me, filha, de que alguém se tivesse aproximado daquela sepultura. Não foi, com certeza, um argivo qualquer, mas sim teu irmão, que teria vindo se­cre­ta­men­te honrar o jazigo de teu infeliz genitor. Vê estes cabelos; compara-os aos teus, e notarás que tuas madeixas têm a mesma cor. Com efeito, por via de regra se assemelham aqueles que re­ce­be­ram o sangue do mesmo pai.

ELECTRA

O que dizes, velho, não é digno de um homem prudente, visto que acreditas que meu irmão, já de regresso, ande por aí oculto com medo de Egisto, — também porque esses cabelos se parecem com os meus. Bem se vê que são de um homem de tratamento, exercitado na palestra, ao passo que os meus são finos e lisos. É impossível, pois, o que presumes. Hás-de achar, bom velho, muitos cabelos iguais, sem que pertençam a criaturas da mesma estirpe.

O VELHO

Vem, ao menos, ó jovem, verificar, pelo sinal de suas san­dá­lias, se o des­co­nhe­cido vi­si­tan­te não tem os pés com a mesma medida.

ELECTRA

Como posso crer que haja ficado a marca de seus passos em terra pe­dre­go­sa? E mesmo que ficasse, como poderia eu reconhecer, pelos meus pés, o tamanho dos de meu irmão? Os pés masculinos são maiores...

O VELHO

Se teu irmão está de regresso, e por aqui, poderás tu reconhecê-lo pela túnica que teceste, e na qual eu o salvei da morte?

ELECTRA

Não sabes que eu era muito jovem ainda quando Orestes partiu? Se é certo que teci o pano de suas vestes, sendo ele então adolescente, é lícito crer que ainda hoje use as mesmas roupas, e que estas hajam crescido, como seu corpo? Terá sido, talvez, um forasteiro, que se condoeu do abandono em que viu a sepultura, e ali deixou um pouco de seus cabelos, ou alguém, natural desta terra, que iludiu a vigilância dos espiões...

O VELHO

Mas onde estão esses hóspedes, menina? Que­ro vê-los, e di­ri­gir-lhes per­gun­tas acerca de teu pai.

ELECTRA

Ei-los que saem de casa, com passo rápido...

O VELHO, ELECTRA e ORESTES

O VELHO

Parecem homens de boa jerarquia, é certo; mas as aparências são ilusórias, porquanto há muita gente de origem ilustre, que descambou para o mal. No entanto, saudarei estes estrangeiros.

ORESTES

Salve, respeitável ancião! Ó Electra, quem é esta ruína humana? Algum de teus amigos?

ELECTRA

Foi este homem quem educou meu pai, ó es­tran­gei­ro!

ORESTES

Que dizes? Foi ele quem salvou teu irmão?

ELECTRA

Sim, foi quem o sal­vou, se é certo que vive ainda.

ORESTES

Oh! Por que será que ele me observa como quem examina um objeto precioso? Por acaso me confunde com alguém?

ELECTRA

Talvez se alegre, por ver que deves ter a mesma idade de Orestes.

ORESTES

Sim... de um ho­mem a quem mui­to pre­zo... Mas por que in­sis­te em andar em torno, assim?

ELECTRA

Eu mesma me sur­preen­do por isso, es­tran­gei­ro.

O VELHO

Ó Electra, minha respeitável senhora, dá graças aos deuses!

ELECTRA

Por alguma coisa presente, ou futura?

O VELHO

Porque acabas de receber uma dádiva que um deus propício te envia.

ELECTRA

Pois seja! In­vo­que­mos os numes! Mas... que que­res dizer com isso, bom velho?

O VELHO

Observa, minha fi­lha! Olha! Eis aqui o mais que­ri­do dos ho­mens!

ELECTRA

Receio bem, meu ca­ro, que não andes bem com tua mente.

O VELHO

Achas que eu não estou em perfeito juízo porque afirmo que estou vendo teu irmão?

ELECTRA

Que ines­pe­ra­da re­ve­la­ção fazes, ó velho!

O VELHO

Asseguro-te que vejo Orestes, filho de Agamêmnon.

ELECTRA

E por que in­dí­cio o re­co­nhe­ces, com tanta cer­te­za?

O VELHO

Pela pequenina cicatriz na pálpebra, que ele fez, um dia, em casa de teu pai, quando perseguindo contigo um veadinho, caiu e machucou-se.

ELECTRA

Que dizes, amigo! Também eu noto, agora, o vestígio daquela queda!

O VELHO

E ainda hesitas em abraçar o que tens de mais querido?

ELECTRA

Não, velho! Estou convencida, por estes sinais... Ó tu, que me apareces enfim e a quem eu tinha perdido a esperança de rever um dia!

ORESTES

Enfim eu te en­con­tro, irmã!

ELECTRA

Quanto eu lon­ge es­ta­va de imaginar tal coisa!

ORESTES

E eu que a não esperava, tão pouco!

ELECTRA

És tu, meu Ores­tes?

ORESTES

Sim... o teu vin­ga­dor... se conseguir recolher os laços que atirarei... Mas, te­nha­mos esperança: seria pre­ci­so admitir que não exis­tem os deuses, se o cri­me su­plan­tar sempre a justiça!

O CORO

Vieste, afinal! E como tardaste em vir, ó dia resplendente! Tu mostras, enfim, a esta cidade, aquele que, há tantos anos errante, infeliz, no exílio, longe do lar paterno, volta agora! Ó amiga, é um deus certamente, um deus que nos concede esta glória! Ergue as mãos, alteia a voz numa prece aos deuses, para que teu irmão entre vitorioso no recinto da cidade!

ORESTES

Está bem! Ale­gram-me teus abraços, mas para isso teremos tempo mais tarde. Quanto a ti, meu velho, visto que chegaste bem a propósito, dize: como me poderei vingar do assassino de meu pai, e de minha mãe, que se uniu a ele por um ímpio casamento? Tenho por aca­so algum ami­go em Argos, ou estamos in­tei­ra­mente ar­rui­na­dos, como nossa fortuna? A quem me devo unir? Agirei de noite ou à luz do dia? Por que caminho atin­gi­rei meus ini­mi­gos?

O VELHO

Oh! meu filho; tu não tens um único amigo em tua desdita. São raros os ver­da­dei­ros amigos, aqueles que conosco partilham da boa, como da má fortuna. Ouve, pois, o que com segurança eu te afirmo: perdeste todos os teus amigos, sem que te reste a mínima esperança a tal respeito. De teu braço e de teu destino dependem todas as probabilidades, que tens, de recuperar teu solar paterno e tua cidade.

ORESTES

Que devo fazer para consegui-lo?

O VELHO

Será preciso que pe­re­çam o filho de Tiestes, e tua mãe.

ORESTES

Quero, sem dú­vi­da, a coroa; mas como hei-de apoderar-me dela?

O VELHO

Não nas muralhas, ainda que o tentasses.

ORESTES

Estão defendidas por guardas e lanceiros?

O VELHO

Com efeito... Ele receia tua volta, e não se des­cui­da.

ORESTES

Vamos, acon­se­lha-me quanto ao mais, que me cumpre fazer.

O VELHO

Ouve! Uma idéia súbita me veio à mente.

ORESTES

Tomara que me sugiras um plano bom, e que eu o execute, tal qual!

O VELHO

Eu vi Egisto quan­do me dirigia para cá.

ORESTES

Já percebo... Por onde anda ele?

O VELHO

Perto daquele cam­po onde pastam os cavalos.

ORESTES

Que vai fazer ali? Vejo uma esperança luzir, em minha desgraça.

O VELHO

Ele prepara uma festa para as ninfas, ao que me pareceu.

ORESTES

Para as crianças que ele educa, ou para as que terá ainda?

O VELHO

Só sei que ele prepara um sacrifício de vários bois.

ORESTES

Quantos homens o acompanham? Ou tem ele consigo apenas seus servos?

O VELHO

Não havia nenhum cidadão árgio; somente servos.

ORESTES

Acreditas que se um deles me vir, me re­co­nhe­ça?

O VELHO

São servos que nunca te viram.

ORESTES

Por acaso serão a nosso favor, se levarmos van­ta­gem?

O VELHO

Assim agem sem­pre os escravos; cir­cuns­tância que te é favorável.

ORESTES

Como poderei apro­xi­mar-me dele?

O VELHO

Caminha ao encontro dele assim que ele te avistar, quando estiver sa­cri­fi­can­do os bois.

ORESTES

O campo onde ele está se estende até a estrada?

O VELHO

Sim; e cer­ta­men­te, ele há-de te convidar para o festim.

ORESTES

Garanto que hei-de ser um convidado bem in­de­se­já­vel, se um deus o qui­ser.

O VELHO

Depois... trata de agir con­for­me as cir­cuns­tân­cias.

ORESTES

Dizes bem. E mi­nha mãe? Onde está?

O VELHO

Em Argos. Mas virá também ao festim.

ORESTES

Mas por que não vem minha mãe com seu atual esposo?

O VELHO

Temendo as cen­su­ras do povo, ela se dei­xa ficar em casa.

ORESTES

Compreendo... Ela sabe que não merece a estima da cidade.

O VELHO

Sim! Essa mulher ímpia tornou-se objeto do ódio popular.

ORESTES

Como eu os ma­ta­rei, a am­bos?

ELECTRA

Eu me incumbo de preparar a morte de minha mãe.

ORESTES

Sem dúvida, o Destino encaminhará tudo para um feliz êxito.

ELECTRA

Oxalá nos seja ele propício!

O VELHO

Assim seja! Como pretendes preparar a morte de tua mãe?

ELECTRA

Vai, bom velho, e dize a Clitemnestra que eu dei à luz...

O VELHO

Que deste à luz há muito tempo... ou mais re­cen­te­men­te?

ELECTRA

Dize-lhe que eu estou no pe­río­do da pu­ri­fi­ca­ção.

O VELHO

Mas como poderá essa notícia causar a morte de tua mãe?

ELECTRA

Ela virá, assim que souber que estou no resguardo do parto.

O VELHO

Acreditas, então, que ela se preocupe muito contigo, minha filha?

ELECTRA

Certamente! Ela quererá deplorar o abas­tar­da­mento de minha raça...

O VELHO

É possível. Mas ter­mina o que ias dizendo.

ELECTRA

Se ela vier, não resta dúvida de que morrerá.

O VELHO

Tomara, pois, que ela transponha logo a soleira de tua casa!

ELECTRA

Será, para ela, a entrada do Hades.

O VELHO

Oh! Que eu morra, depois de ter visto isso!

ELECTRA

Antes, porém, ó ve­lho, leva meu irmão.

O VELHO

Sim, eu o con­du­zi­rei onde Egisto pre­pa­ra um ho­lo­caus­to aos deuses.

ELECTRA

Logo em seguida, vai dar meu recado a minha mãe.

O VELHO

Sim; eu o darei como se ela o ouvisse de teus lábios.

ELECTRA

Agora a ti, Ores­tes, cabe o primeiro golpe!

ORESTES

Irei, se me con­du­zi­rem...

O VELHO

Certo, eu te guiarei, já o disse... e de bom grado!

ORESTES

Ó Júpiter paternal, que me vingas de meus ini­mi­gos, tem pena de nós, que te­mos so­fri­do males tão cruéis!

ELECTRA

Compadece-te, Jú­pi­ter, da­que­les que des­cen­dem de ti!

ORESTES

E tu, Hera, que do­mi­nas nos altares de Mi­ce­nas, dá-nos a vi­tó­ria se julgas que nossos pedidos são justos!

ELECTRA

Dá-nos que vin­gue­mos a morte de nosso pai!

ORESTES

E tu, pai, que jazes no Hades, vítima de um crime nefando; e tu, ó rainha Gaia, a quem estendo as mãos, vinde em nosso auxílio, prestai socorro a vossos filhos! Dá-nos, meu pai, por aliados, todos os mortos que, contigo, destruíram os frígios pelas armas, e todos quantos abominam os traidores! Ouves tu, que tantos males sofreste por causa de minha mãe?

ELECTRA

Sim! Meu pai ouve, seguramente, todas as tuas palavras... Mas já é tempo de partir! Eu te afirmo cla­ra­mente, meu irmão: é preciso que Egisto morra, pois se acaso fores vencido, eu também cairei morta! Não creias que eu te sobreviva, porque ferir-me-ei na garganta com uma espada de dois gumes! Vou recolher-me, para preparar tudo... Se me vierem boas notícias a teu respeito, toda esta casa se alegrará; mas, se sucumbires, será o contrário. Eu to juro!

ORESTES

Compreendo tudo!

ELECTRA

Agora, é preciso que te mostres valente. E vós, mulheres, trazei-me logo a notícia desse combate; eu o esperarei com a espada na mão, pronta para morrer, pois nunca, vencida, consentirei que meus inimigos ultrajem meu corpo ainda com vida!

O CORO

Diz uma antiga tradição que Pã, protetor dos campos, soprando har­mo­nio­sa­mente a flauta, trouxe, outrora, da montanha, um cordeiro com o velo de ouro, que a cabrinha amamentava ainda; e o arauto, sobre o muro de granito, exclamou: “Ó Micênios, vinde à ágora! Vinde admirar as façanhas terríveis de nossos felizes chefes!” E as danças alegravam as casas dos Atridas.

E os templos de ouro per­ma­ne­ciam abertos, e a chama res­plan­decia nos altares da virgem de Argos, a flauta de lótus, serva das Musas, emitia sons deleitosos: cantos amenos se elevavam para o Cordeiro de Ouro. Com efeito, quando Tiestes, impelido por um amor adúltero, seduziu a esposa de Atreu, ele transportou essa relíquia para sua casa; e, retornando à ágora, anunciou que possuía um admirável carneiro com o velo de ouro.

Então Júpiter alterou o rumo luminoso dos astros, a claridade do Sol, e a face pálida da Lua; Hélios alcançou as plagas do ocidente, com sua luz divinamente acesa; as nuvens pejadas de água foram para os lados da Ursa, e as planícies Amoníades, privadas pelo deus dos orvalhos e das chuvas, fe­ne­ce­ram, quei­ma­das! É o que diz a lenda... Mas nós não cremos que Hélios tenha alterado a rota de seu carro de ouro para punir os homens, ou para intervir em suas vinganças recíprocas. Todavia essas nar­ra­ti­vas im­pres­sio­nan­tes devem ser úteis aos mortais, para que os induzam a respeitar os deuses. Só tu não te lembras disso, tu, que deste a morte a teu marido, tu que és mãe de um casal de filhos ilustres! Ah, amigas, dizei; ouvistes um grito, ou terá sido uma ilusão? Dir-se-ia que foi o raio de Júpiter, subterrâneo... Electra, sai da tua casa!

O CORO, ELECTRA

ELECTRA

Que me dizeis, ami­gas? Terminou o combate?

O CORO

Nada sabemos senão isto: ouve-se o gemido de um agonizante.

ELECTRA

Também o ouvi; de longe sim, mas ouvi.

O CORO

De longe vem essa voz; mas nós a ouvimos cla­ra­men­te.

ELECTRA

Será o gemido de um argivo, ou de um dos nossos amigos?

O CORO

Não sabemos, o rumor é confuso.

ELECTRA

Viestes avisar-me que devo procurar a morte? Por que tardais?

O CORO

Deixa essa arma! Aguarda o conhecimento de teu destino.

ELECTRA

Não é possível! Fomos vencidos! Onde estarão os mensageiros?

O CORO

Eles virão. Não é empresa fácil matar um rei!

O CORO, ELECTRA, um MENSAGEIRO

O MENSAGEIRO

Alcançastes uma vitória sem par, ó jovens micenianas! Eu vo-lo declaro, a todas! Orestes venceu na luta! Egisto, o matador de Agamêmnon, jaz por terra! Dai graças aos deuses!

ELECTRA

Mas quem és tu? Como poderemos ter certeza de que dizes a verdade?

O MENSAGEIRO

Por acaso ignoras que sou um servidor de teu irmão?

ELECTRA

Ah! O meu querido irmão! Sim... por causa de meus temores foi que não reconheci logo tua fisionomia! Agora, sim; sei quem tu és! Realmente, tu disseste: o assassino de meu pai está morto?

O MENSAGEIRO

Sim; está morto. Digo-o, e repito-o, já que assim queres!

O CORO

Ó deuses! Ó Justiça! Tardaste, sim; mas finalmente vieste!

ELECTRA

Como foi o filho de Tiestes vencido e morto? Eu quero saber!

O MENSAGEIRO

Logo que nos retirámos destes muros, tomámos a larga estrada aberta pelas rodas dos carros, onde estava o poderoso rei dos Micênios. Ele passeava por seu parque, colhendo ramos de murta nova. Ao ver-nos, exclamou: “Salve, es­tran­gei­ros! Quem sois vós? De onde vindes?” Orestes respondeu: “Somos da Tessália, e vamos às margens do Alfeu, para fazer um sacrifício em honra de Júpiter Olímpico”. Ouvindo isto, Egisto disse: “Por agora, deveis comparecer a nosso festim, porque vou sacrificar algumas reses às ninfas. Amanhã, bem cedo, deixareis vossos leitos e seguireis viagem a vosso destino. Entremos no palácio”. Assim falando, tomou-nos as mãos, e nos fez entrar, de modo que não nos foi possível uma recusa. Uma vez no interior, disse: “Preparem banhos para estes viajantes, para que se possam aproximar das aras purificadoras!” Orestes ad­ver­tiu: “Nós nos banhamos nas águas límpidas do rio; en­tre­tanto, se é permitido a estrangeiros participarem da cerimônia com os cidadãos, Egisto, nós estamos prontos, e aceitamos teu convite”. Aí findou seu discurso; e os servos, tendo depositado as lanças, garantia do rei, puseram mãos à obra. Uns trouxeram o grande vaso; outros, as cestas, enquanto outros ainda acendiam a lenha e dispunham os demais vasos em torno do altar. Todo o palácio vibrava com esses rumores. Então, teu padrasto, espalhando a cevada salgada por sobre as aras, assim falou: “Ó Ninfas das Montanhas! Assim possa eu ainda por longos anos oferecer-vos holocaustos! Assim possamos, eu e Tíndaris, minha esposa, viver nestes palácios felizes como somos hoje, e ven­ce­do­res de nossos inimigos!” Ele referia-se a Orestes, e a ti. Meu senhor fazia votos opostos, mas mentalmente, e não em voz alta... E pedia que lhe fosse dado recuperar o seu patrimônio paterno. Egisto, retirando do cesto a lâmina afiada, cortou os pêlos do bezerro e, com a mão direita, os atirou ao fogo purificador. Em seguida, feriu o animal na espádua, enquanto os servos o seguravam, com as mãos, e disse a teu irmão: “Entre os Tessálios considera-se uma arte nobre esquartejar um touro, e domar um cavalo. Toma esta espada, es­tran­gei­ro, e mostra que esta fama dos Te­ssá­lios é justa”. E Orestes tendo recebido a faca dórica de boa têmpera, e atirado seu manto para os ombros, com presilhas de ouro, escolheu Pílades como auxiliar, afastou os demais servos, e, tomando o bezerro por uma das patas, desferiu um golpe e o prostrou mais rápido do que um cavaleiro a galopar nas corridas do estádio. Depois, abriu as entranhas do animal. Tomando, então, nas mãos as vísceras sagradas, Egisto as observava. E o lóbulo que faltava nos intestinos era um indício de mau agouro para quem os examinava. Meu senhor perguntou: “Por que razão estás apreensivo?” “Ó estrangeiro, eu receio alguma ruim surpresa; tenho um inimigo temível, o mais odioso dos mortais, o filho de Agamêmnon.” Orestes re­pli­cou: “Temes os golpes de um exilado, tu, que mandas sobre uma cidade? Para que eu possa apressar o festim, trazei-me um punhal ftiádio, em lugar desta lâmina dórica; assim é preciso para que eu abra de modo condigno, o peito.” E, tomando o punhal cortou com firmeza, continuando Egisto a observar a vítima. No momento em que ele inclinava a cabeça, teu irmão, firmando-se na ponta dos pés, desferiu-lhe um golpe no dorso, atra­ves­san­do-lhe as vér­te­bras e der­ri­ban­do-o, já nas con­tor­sões finais da agonia! Ao ver isto, os servos correram para as lanças, dispostos a combater, muitos contra dois, somente; mas Orestes e Pílades resistiram com galhardia, brandindo as armas. Disse então Orestes: “Não vim a esta cidade para lhe fazer dano, nem a vós, servos; apenas quis vingar a morte de meu pai! Eu sou o infeliz Orestes! Não me ataqueis, ó servos de meu pai!”. Ouvindo isto, eles abaixaram as lanças. Orestes foi logo reconhecido por um velho servidor do palácio; e todos vieram coroar a cabeça de teu irmão, alegre e feliz. E ele acaba de apresentar aos deuses a cabeça, não da Górgona, mas de Egisto, a quem tu abominas. Seu sangue paga, assim, com usura, o sangue que ele derramou!

O CORO, ELECTRA, e depois ORESTES

O CORO

Junta teus pés aos nossos, ó querida, como a esperta gazela, que salta ligeira e graciosa! Teu irmão alcançou, com esta vitória, uma coroa mais gloriosa do que as alcançaria nas margens do Alfeu. Une teu canto de triunfo a nossa dança!

ELECTRA

Ó luz! Ó brilho do carro de Hélios! Ó terra! Ó trevas que antes escurecíeis meus olhos! Agora eles estão abertos, e fitam livremente o céu, visto que Egisto, o assassino de meu pai, acaba de sucumbir! Todos os ornatos que ainda possuo, queridas amigas, hei-de usá-los hoje em meus cabelos! E hei-de coroar a fronte de meu irmão vitorioso!

O CORO

Traze, pois, os louros para sua cabeça, e nossa dança, agradável às Musas, terá início. Doravante os reis legítimos, a quem tanto prezamos, voltarão a governar esta terra, felizmente arrancada a homens iníquos. Eis por que soltamos aos ares nossos gritos de alegria.

ELECTRA

Vitorioso Orestes! Filho de um pai vencedor nas batalhas de Ílion, cinge tua cabeça com estas coroas! Voltas, com efeito, não de uma simples corrida de seis pletros(1), mas de uma luta em que mataste a Egisto, o assassino de nosso pai. E tu, Pílades, o acompanhaste fielmente, tu filho de pais piedosos, recebe de mim esta coroa a que fazes jus, visto que te coube parte igual nos perigos. E sê feliz!

ORESTES

Ergamos nossos agradecimentos aos deuses, antes de tudo, ó Electra, porque foram eles os fautores de nosso triunfo; louvar-me-ás, a mim, em seguida, porque lhes servi de instrumento, aos deuses, e à Fortuna. Não agi somente por palavras; matei, realmente, a Egisto; e, para que todos o saibam, trouxe até aqui o próprio morto. Atira-o, se assim queres, aos animais ferozes, ou às aves carniceiras; ou suspende-o a um poste, porque ele agora te pertence... ele, que se dizia teu senhor!

ELECTRA

Domina-me a ti­mi­dez... mas bem qui­se­ra falar!

ORESTES

Que há? Dize, pois! Nada tens a temer!

ELECTRA

Receio desagradar aos deuses, assim ultrajando os mortos.

ORESTES

Ninguém te po­de­rá cen­su­rar por isso!

ELECTRA

Esta cidade é ir­ri­tá­vel; sempre disposta à cen­su­ra.

ORESTES

Fala, pois, irmã! Sempre tivemos por esse homem um ódio insaciável!

ELECTRA

Ouvi, pois! Que insultos te devo dirigir, de início? Como os encerrarei? E que direi no intervalo? Todas as manhãs, eu recordava em mente o que te haveria de dizer, se algum dia me visse liberta dos terrores que me afligiam. Agora, que isto se realizou, quero dizer-te o que não pude enquanto vivias... Tu me desgraçaste, bem como a meu irmão; tu nos deixaste órfãos de um pai querido, de quem nenhuma ofensa recebeste! Tiveste a audácia de esposar minha mãe, e a de matar nosso pai, supremo chefe militar dos Gregos, tu que nunca foste à guerra contra os Frígios! E incorreste na loucura de supor que nossa mãe te seria fiel, ela, a quem desposaste violando o leito de nosso pai! Saiba todo aquele que corromper a esposa de outrem por uma união adúltera, e que com ela se consorcia, que é infeliz se supuser que ela lhe concederá a fidelidade que já não concedera ao outro. Tu vivias miseravelmente, na ilusão de que eras feliz... Tu sabias que estavas vinculado por um casamento ímpio, assim como minha mãe sabia que se casara com um homem indigno; e, criminosos ambos, ela conduzia o fardo de tua ruim fortuna, e tu, o peso da sua. Bem que ouvias dizerem os Argivos: “Ele é o marido da mulher, mas ela não é esposa dele...” Porque é uma vergonha que seja a mulher, e não o varão, quem governe a casa... Desprezo os jovens que, na cidade, usam os apelidos de suas mães, e não o de seus pais! Com efeito, sempre que um homem se casa com uma mulher de estirpe mais ilustre que a sua, o marido passa a nada valer, e só a esposa é que se considera. O que mais iludiu tua razão, é que blasonavas ser alguém, pelo fato de possuir um copioso cabedal... mas riquezas nada valem, porque são incertas e transitórias... Só a moral prevalece, e não a pecúnia. A moral granjeia duradouro renome, e triunfa do infortúnio; a opulência injusta torna-se presa dos perversos, e desaparece dos lares onde terá permanecido por pouco tempo... O que fizeste com as mulheres, não compete a uma donzela declarar, e por isso eu me abstenho; mas alguma coisa direi veladamente, de modo a ser compreendida. Tu procedeste com inaudita insolência, como senhor destes palácios reais, confiante em tua beleza. Para mim, prefiro que meu marido apresente uma fisionomia varonil, e não um rosto efeminado. Os descendentes de homens fortes nascem predestinados à carreira das armas; mas os filhos dos outros nunca passarão de dançarinos... Morre, pois, sem que tenhas sequer adivinhado o castigo de teus crimes; e morra igualmente quem quer que seja tão criminoso como tu! E que ninguém se ufane por ter vencido a primeira corrida; que ninguém se considere vencedor enquanto não houver atingido o termo da humana vida!

O CORO

Se ele cometeu crimes horrendos, não menos terrível foi a punição que de vós recebeu, porque a Justiça terá sempre um grande poder.

ORESTES

Despressa, servos! Transportai este cadáver para o interior, a fim de que não o veja minha mãe, quando vier, antes de ser morta por sua vez!

ELECTRA

Basta! Falemos noutro tom de voz.

ORESTES

Que há de novo? Vês, por acaso, gente que vem de Micenas?

ELECTRA

Não! Vejo minha mãe, que me criou.

ORESTES

Ela vem, pois, muito a propósito, cair na armadilha que lhe preparamos.

ELECTRA

Em suas vestes, e em seu carro, exibe grande magnificência.

ORESTES

Que faremos agora, irmã? Daremos a morte a nossa mãe?

ELECTRA

Por acaso tens pena, ao vê-la?

ORESTES

Oh! Como poderei eu matar aquela a quem devo a vida e a nutrição?

ELECTRA

Exatamente como matou ela a quem foi teu pai, e também meu.

ORESTES

Ó Febo! Por que me ordenaste, pelo oráculo, a prática de um ato de tamanha loucura?

ELECTRA

Se Apolo se mostra insano, quem será, então, o ajuizado?

ORESTES

Tu me disseste, irmã, que deveríamos ferir de morte a nossa mãe!... Que impiedade!

ELECTRA

Que tens tu a recear, se vingas o assassínio de teu pai?

ORESTES

Serei culpado de matricídio... eu que nenhum crime até agora havia praticado!

ELECTRA

E se não vingares a morte de teu pai, não passarás de um infame!

ORESTES

Mas serei cas­ti­gado, se a matar!

ELECTRA

Digno de punição tu serás, sim! se deixares de vingar teu pai!

ORESTES

Não teria sido algum espírito infernal quem disso me persuadiu sob a forma de uma divindade?

ELECTRA

Um espírito in­fer­nal... sobre os al­ta­res sa­gra­dos? Ah! Não creio!

ORESTES

No entanto, eu não admitirei nunca que se­me­lhan­te orá­cu­lo tenha sido le­gí­ti­mo...

ELECTRA

Cuidado, meu irmão! Estás des­cam­ban­do para a pu­si­la­ni­mi­da­de!

ORESTES

Então... será forçoso usar do mesmo ar­ti­fí­cio?

ELECTRA

O mesmo... pelo qual conseguiste derrubar a Egisto, seu marido.

ORESTES

Pois seja! Cum­pri­rei a penosa tarefa! Visto que os deuses assim ordenam, que se faça! Mas... será uma ação ao mesmo tempo doce... e tre­men­da!

(Sai ORESTES)

ELECTRA, CLITEMNESTRA, O CORO

O CORO

Ó rainha da terra argiva, filha de Tíndaro, e irmã dos filhos de Júpiter, que habitam, entre os astros, o éter resplendente de luz, e que têm por missão guiar os nautas em pleno mar, salve! Nós te veneramos, como se fosses uma divindade, em atenção a teu poder e tua fortuna! Eis o momento, ó rainha, em que te rendemos a nossa ho­me­na­gem!

CLITEMNESTRA

Descei de vossos carros, escravas, e tomai-me pela mão, para que eu ponha os pés em terra! Os templos sa­gra­dos estão guar­ne­ci­dos de despojos frígios. Quanto a mim, recebi estas cativas troianas, em troca da filha que perdi. Foi insuficiente a dádiva; mas ainda assim tem valor.

ELECTRA

Não é a mim, como escrava também, e expulsa do solar paterno, embora vivendo hoje nesta casa miserável, — que cabe tomar-te as mãos, minha mãe?

CLITEMNESTRA

As escravas aí estão para isso. Não te canses por minha causa.

ELECTRA

Por que não? Não me expulsaste da casa onde nasci? E quando ela foi por outrem ocupada, não fiquei eu reduzida à escravidão, como estas cativas, e não fui privada de meu pai?

CLITEMNESTRA

Teu pai intentou fazer o mesmo àqueles a quem mais devia prezar! Eu te falarei, embora saiba que uma mulher, quando perseguida por uma ruim fama, tem sempre a incredulidade contra suas palavras, — o que é injusto, a meu ver. O que parece justo é que saibamos odiar aqueles que, bem apuradas as coisas, tenham merecido a nossa indignação. A não ser assim, a quem haveremos de odiar, então? Tíndaro me deu a teu pai, mas não para que eu perecesse, eu e meus filhos!... No entanto Agamêmnon, tendo-me ar­re­ba­ta­do minha filha, na esperança de vê-la unida a Aquiles, conduziu-a a Áulis, onde estacionavam os navios. E lá, feriu o alvo peito de Ifigênia, estendida sobre a fogueira do sacrifício! Se é verdade que ele a matou para salvar a Grécia, ou sua casa, e seus demais filhos, sacrificando uma, por todos, ainda seria perdoável; mas, por ter sido Helena uma mulher impudica, e porque seu marido não soube castigar sua traição, — por isso! — ele matou minha filha! No entanto, embora cru­el­men­te ferida, não me irritaria tanto, e não mataria esse homem; mas ele voltou, trazendo uma concubina, cheio de entusiasmo, e pô-la no seu leito, mantendo, assim, duas esposas na mesma casa! Não nego que as mulheres sejam lascivas; mas se um marido comete o crime de desprezar o leito conjugai, é lícito que a esposa o imite, angariando um amante! Contra nós, mulheres, ergue-se, porém, o opróbrio; e ninguém maldiz dos homens que de tudo são causadores! Pois quê! Menelau tivesse sido raptado, seria o caso de sacrificar eu o meu filho Orestes para salvar Menelau, o marido de minha irmã? Como receberia teu pai esse ato? Seria conveniente, pois, que não morresse aquele que sacrificou minha filha, e que eu continuasse maltratada por ele? Matei-o! E procurei o auxílio daqueles que me deviam apoiar, os seus inimigos. Com efeito, quem dentre os amigos de teu pai quereria cometer esse crime comigo? Fala, se queres, e prova que a morte de teu pai não foi um justo castigo!

ELECTRA

Defendeste tua causa, mãe; mas é uma causa vergonhosa, pois uma mulher digna deve, em tudo, ceder a seu marido. E aquela que não atende a esse preceito não merece minha con­si­de­ra­ção. Lembra-te de que em tuas úl­ti­mas pa­la­vras me au­to­ri­zas­te a falar contra ti.

CLITEMNESTRA

Disse, e re­pi­to; não o ne­go.

ELECTRA

Mas... depois de ouvir tudo o que irei dizer, não me farás mal?

CLITEMNESTRA

De modo algum. Espero que me con­for­ma­rei com teu modo de falar.

ELECTRA

Eu falarei, pois: e eis como vou começar: Prou­ve­ra aos deuses, ó mãe! — que tu fosses dotada de melhor espírito! Erguem-se justos louvores à beleza de Helena, e à tua; mas sois ambas igual­mente insensatas, e indignas de Castor! Uma, seduzida, deixou-se levar vo­lun­ta­ria­mente; quanto a ti, mataste o homem mais ilustre da Grécia, sob o pretexto de que punias teu marido pelo sacrifício de uma filha, (e há quem não saiba dessas coisas tanto como eu!) — tu, que, mesmo antes da morte de tua filha, logo após a partida de teu esposo, já compunhas diante do espelho as louras madeixas de teus cabelos! Ora, uma mulher que se requinta em enfeitar-se, na ausência do esposo, devemos desprezá-la como desonesta, pois não há motivo para que se exiba assim tão bela, a menos que premedite algum deslize. Tu foste a única mulher grega que se mostrava alegre quando a sorte favorecia os Troianos; quando estes sofriam reveses na luta, teus olhos se cobriam de tristeza, tamanho era teu desejo de que Agamêmnon não voltasse a Tróia com vida!

Era, todavia, uma excelente oportunidade para que revelasses tua sensatez... Tinhas um esposo, a quem a Grécia elegeu chefe supremo, e que não era, em nada, inferior a Egisto. E, porque tua irmã Helena incorreu em tão aviltante ação, cabia a ti granjear honrosa glória, porquanto os maus, muitas vezes, proporcionam aos bons a oportunidade para a prática de ações exemplares. Admitindo que meu pai, como disseste, causou a morte de tua filha, que mal te havíamos feito eu e meu irmão? Como se explica que, tendo perecido teu marido, não nos fossem entregues as vivendas paternas, e que tu tenhas adquirido um leito estrangeiro, mediante um casamento comprado? Por que não exilaste, em lugar de teu filho, a teu segundo esposo, e por que não foi este morto em meu lugar, visto que me condenou a morrer em vida, com mais crueldade do que meu pai para com minha irmã? Se um homicídio se deve punir com um outro, nós te mataríamos, eu e teu filho Orestes, para vingar nosso pai; porque, se uma ação foi justa, a outra não o será menos. É um louco aquele que, seduzido pelas riquezas, ou pelo nascimento ilustre de alguém, se casa com uma mulher perversa. Um casamento humilde e puro leva vantagem, na família, por sua grandeza.

O CORO

É o destino, tão somente, que decide do casamento das mulheres. Uns vêm a ser benfazejos, e outros funestos para os mortais...

CLITEMNESTRA

É natural, filha, que tenhas sempre amado a teu pai... Acontece que uns prezam com especial carinho a seu genitor, outros a sua mãe. Eu te perdoarei, filha, visto que eu própria não estou satisfeita com certas ações que pratiquei. Mas... como podes tu continuar assim privada do necessário asseio, e trajando estes andrajos, tu que deste à luz recentemente! Oh! Como sou infeliz pelos desejos que tenho realizado!... Mais, do que suponho, posso excitar a cólera de meu marido!

ELECTRA

Tarde te ar­re­pen­des... Já não há remédio; meu pai está morto... Mas... por que não chamas teu filho, que anda, exilado, por terra es­tra­nha?

CLITEMNESTRA

Tenho me­do! De­vo levar em conta o meu interesse, e não o dele. Dizem que ele ainda se conserva irritado pela morte do pai.

ELECTRA

E por que teu ma­ri­do se mostra cruel para co­nos­co?

CLITEMNESTRA

Tal é seu tem­pe­ra­men­to... Tu, também, tens um co­ra­ção in­do­má­vel!

ELECTRA

Porque vivo so­fren­do... Mas hei-de deixar, um dia, essa irritação.

CLITEMNESTRA

Desde então ele não mais se mostrará cruel para contigo!...

ELECTRA

Ora!... ele é or­gu­lho­so... e ha­bi­ta o pa­lá­cio que me per­ten­ce...

CLITEMNESTRA

Vês tu? Es­tás pro­vo­can­do novos con­fli­tos!...

ELECTRA

Pois eu me calo... Temo-o tanto quanto convém que o tema...

CLITEMNESTRA

Deixemos este assunto, filha. Por que me chamaste?

ELECTRA

Creio que já sabes que dei à luz... Pois bem; vem sacrificar, por mim, no décimo dia da criança, porque eu, nunca tendo até agora tido filhos, não sei como se cumprem esses ritos.

CLITEMNESTRA

Isso é obrigação de quem te prestou assistência no parto...

ELECTRA

Ninguém me au­xi­liou; eu me de­sem­ba­ra­cei so­zi­nha!

CLITEMNESTRA

Vives assim tão abandonada de amigos, nesta casa?

ELECTRA

Ninguém quer ter a pobres como amigos.

CLITEMNESTRA

Eu irei, pois, e farei o sacrifício pela décima lua da criança; em seguida irei ao campo, onde meu marido realiza um holocausto em honra das Ninfas. Ó servos! deixai nas cocheiras os animais que estão atrelados. Quando os sacrifícios terminarem, voltai. Quero satisfazer os desejos de meu marido.

ELECTRA

Podes entrar em minha pobre casa; mas tem cuidado, para que a fuligem e as gorduras não maculem tuas vestes! Se vais prestar culto aos deuses, deves ir em condições condignas!

(Sai CLITEMNESTRA)

ELECTRA

A cesta sagrada já está pronta; a lâmina está afiada, a mesma que vitimou o touro, junto ao qual cairás ferida!... Tu te casarás na mansão sombria do Hades, com o mesmo com quem já vivias na terra. Eis a gratidão que te devo: hás-de sofrer o castigo que mereces, pelo assassínio de meu pai!

O CORO

Há sempre uma compensação nos grandes males! Mudam de rumo os ventos num solar... Meu chefe e senhor foi morto, outrora, num banho... e o teto, e as paredes vibraram com o grito que soltou: “Miserável! Por que me feres, ó mulher, quando eu volto, após dez anos de ausência, a minha cara pátria?”

* * *

Eis, porém, que a vingança do desonrado tálamo surge, enfim, e subjuga esta perversa mulher, que armada de um machado, ousou ferir seu marido, de regresso a seu lar, entre as altas montanhas Ciclopéias. Ó esposo infeliz, que desgraça foi, para ti, essa malvada esposa!

Ela cometeu o crime, acesa em ira, qual uma feroz leoa das montanhas!

Ouve-se a voz de CLITEMNESTRA

CLITEMNESTRA

Filhos meus! Pelos deuses! Não mateis vossa mãe!

O CORO

Ouves, por acaso, este clamor que de lá vem até nós?

CLITEMNESTRA

Ai de mim!

O CORO

Nós nos condoemos da sorte dessa mãe, imolada por seus próprios filhos! Quando uma calamidade deve ocorrer, um deus faz justiça! Tu sofres um cruel destino, ó infeliz... mas também cometeste um crime nefando contra teu marido! Ei-los que reaparecem, saindo de casa ainda manchados pelo sangue quente de sua mãe, prova de suas baldadas súplicas! Oh! Não haverá no mundo progênie mais desgraçada que a de Tântalo!

ORESTES, ELECTRA, O CORO

ORESTES

Ó Terra! Ó Júpiter, que conheceis todas as ações dos mortais! Vede estas coisas sangrentas e abomináveis! Estes dois cadáveres, que jazem por terra, feridos por minhas mãos, em paga dos males que tenho sofrido!

ELECTRA

Certamente, meu irmão, tudo isto é doloroso... E fui eu a causadora! Eu, caminhei por sobre o fogo, contra aquela que me deu à luz e criou, infeliz que sou! Ó desgraça, ó desgraça! Pobre mãe, que tombaste odiosamente, e ainda mais, ferida por teus filhos! Mas... tu sofreste, assim, a expiação devida pelo assassínio de nosso pai.

ORESTES

Ó Apolo! Tu ordenaste a vingança, tu causaste males tremendos e evidentes! Tu extirpaste para sempre este conúbio sangrento da terra helênica! Dize, agora: para onde irei? Que humana criatura quererá receber-me, ou sequer contemplar-me, a mim, que matei minha mãe?...

ELECTRA

E eu? E eu? Que núpcias poderei pretender? Que cônjuge quererá receber-me em seu leito nupcial?

ORESTES

Teu coração mudou, de novo, conforme o vento... Pensas, agora, com sentimentos de piedade, mas há bem pouco tempo não pensavas assim, e exigiste coisas terríveis, querida, contrariando as ponderações de teu irmão! Tu viste a infeliz rasgar sua veste, e mostrar-nos o seio em que nos amamentou, no momento em que a feríamos de morte! Pobre de mim! E ela ainda arrastou por terra aquele corpo em cujas entranhas fui gerado... e meu coração fraquejava!

ELECTRA

Sim... eu sei... tu sentiste uma angústia profunda, ao ouvir a voz la­men­tá­vel daquela que te criou!

ORESTES

... E ela gritava, acariciando com as mãos o meu rosto: “Ó filho meu... eu te suplico...” E apegou-se a meu pescoço de tal sorte que o punhal me caiu das mãos!

O CORO

Infeliz! Como pu­des­te con­tem­plar com teus olhos a agonia de tua mãe ao expirar?

ORESTES

Foi preciso que eu vedasse meus olhos com o manto, no momento em que enterrei a faca na garganta de minha mãe!

ELECTRA

E eu te impeli... e fiz força sobre a faca, tam­bém...

ORESTES

Oh! Eu cometi a mais abominável das ações! Vai... cobre o corpo de nossa mãe com o seu próprio manto... Fecha suas feridas... Tu deste a vida a teus as­sas­si­nos, pobre mãe!

ELECTRA

Eis-te coberta! Tu, a quem ao mesmo tempo amávamos e detestávamos, tu, causadora das tremendas desgraças de nossa família, eis-te coberta com o teu manto!

O CORO

Vede que, por sobre as casas, surgem espíritos malfazejos, ou deuses imortais, visto que semelhante caminho não é acessível a seres humanos. Por que se manifestam eles, assim, aos homens?

Os mesmos e OS DIÓSCUROS(2)

OS DIÓSCUROS

Filho de Agamêmnon, escuta! Os Gêmeos, irmãos de tua mãe, os Dióscuros, Castor e Pólux, te falam. Depois de haver acalmado os mares tão perigosos aos navios, viemos a Argos, e assistimos ao assassínio de nossa irmã, tua mãe. Ela sofreu um castigo justo... mas tu fizeste mal, Orestes; e Apolo... Apolo... oh! ele é nosso senhor, e nós nos calamos. Embora sábio, ele não te aconselhou a sabedoria: mas forçoso foi obedecer... Agora, urge que executes o que te ordena o Destino superior a Júpiter(3). Dá Electra como esposa a Pílades, que a levará consigo para sua casa; e tu deixarás Argos imediatamente. Não te é lícito viver nesta cidade, onde cometeste o assassínio de tua mãe. As Fúrias terríveis, deusas de olhos ferozes, perseguir-te-iam com seu furor, e terias que vaguear sem rumo. Vai para Atenas, e prosterna-te diante da imagem sagrada de Palas. Ela, com seus dragões possantes, porá em fuga as Fúrias, e proteger-te-á dos olhares terríficos da Medusa. Lá existe a colina de Marte, onde os deuses pela primeira vez se reuniram, para decidir, por seus sufrágios, sobre o sangue derramado quando o deus da guerra, encolerizado pelas núpcias de sua filha, matou Halirrócio, filho do rei do Mar. Desde então, esse tribunal é infalível, e consagrado pelos deuses. Ali é que deves ser julgado pelo crime que cometeste. Os sufrágios, pró e contra, serão iguais; e assim sendo, estarás salvo, evitando uma condenação à morte. Com efeito, Apolo, que te induziu à prática do matricídio, assumirá a responsabilidade desse crime; e, para o futuro, será lei que o réu seja beneficiado sempre que os votos se dividirem em grupos iguais(4). As deusas temíveis, con­tra­ria­das por isso, de­sa­pa­re­ce­rão pela terra a dentro, não longe dessa colina e aí surgirá um oráculo sagrado e venerado pelos vivos. Tu deverás habitar a terra da Arcádia, junto ao templo liqueano(5) nas margens do Alfeu; lá uma cidade surgirá com teu nome. Nós te anunciamos estas coisas, Orestes! Os cidadãos de Argos darão sepultura ao corpo de Egisto; e Menelau, quando aportar a Náuplia, de regresso das terras troianas, e Helena, inumarão o de tua mãe. Helena acaba de chegar ao solar de Proteu, tendo deixado o Egito; ela não esteve na terra de Ílion; Júpiter, desejoso de causar a discórdia e o morticínio entre os homens, enviou um fantasma de Helena a Tróia. Que Pílades conduza a sua casa, na terra da Acaia, a Electra, virgem e desposada; e que envie à cidade de Fócios aquele trabalhador que não foi teu parente senão de nome, e que lhe dê avultada recompensa em ouro.

Quanto a ti, transpõe o istmo, e alcança a colina de Cecropos. Quando tiveres cumprido o teu destino, no que se refere a este crime, tu serás feliz, e viverás liberto de remorsos e cuidados.

O CORO

Ó filhos de Júpiter, ser-nos-á permitido dirigir-vos a palavra?

OS DIÓSCUROS

Sim, visto que vós não estais maculadas pelo crime.

ORESTES

E eu poderei falar-vos, também, ó filhos de Tíndaro?

OS DIÓSCUROS

Tu também! Atiraremos a Apolo a culpa desta ação sangrenta.

O CORO

Por que razão, sendo vós deuses, e irmãos desta morta, não expulsastes as Fúrias para longe destes lares?

OS DIÓSCUROS

A fa­ta­li­da­de, e as palavras imprudentes de Apolo fizeram com que viessem.

ELECTRA

E co­mo Apo­lo in­fluiu sobre mim? Que orá­cu­lo me or­de­nou que ma­tas­se mi­nha mãe?

OS DIÓSCUROS

Vossos cri­mes, e vossos destinos, são comuns... As culpas de vossos pais vos arrastaram a esta situação.

ORESTES

Ó minha irmã, ape­nas te pude rever, ao cabo de tão longa ausência, e já me vou ver de novo privado de tua amizade... Vou te deixar... e tu me deixarás também!

OS DIÓSCUROS

Ela terá um esposo, e um lar; não há motivo para que a la­men­te­mos, a não ser o de se afastar da cidade de Argos.

ORESTES

E que pode haver de mais doloroso, do que deixar, para sempre, a terra da Pátria? Eu deixarei estes lares paternos, serei submetido a juizes estrangeiros, em con­se­qüên­cia da morte de minha mãe!

OS DIÓSCUROS

Tem co­ra­gem! Irás à cidade sagrada de Palas. Enfrenta tua sorte!

ELECTRA

Que eu te abrace pela última vez, irmão querido! As imprecações de nossa mãe nos separam, e nos levam para longe do torrão paterno!

ORESTES

Sim. es­ten­de-me os bra­ços... abra­ça teu ir­mão... e cho­ra por mim, como se eu fosse o túmulo de um morto!

OS DIÓSCUROS

Oh! Tu pro­fe­res quei­xu­mes co­mo­ven­tes, mesmo para os deuses. Realmente, tanto como nós, os numes urânios se compadecem pelas misérias a que estão sujeitos os mortais.

ORESTES

Não te verei mais!

ELECTRA

E eu, nunca mais comparecerei diante de ti!

ORESTES

Pela última vez ouço tua voz!

ELECTRA

Adeus, ó minha cidade! Adeus, minhas amigas e con­ter­râ­neas!

ORESTES

Minha querida, já vais partir?

ELECTRA

Assim é preciso... Tenho os olhos cheios de lá­gri­mas.

ORESTES

Vai, casa-te com Electra, e sê feliz, ó Pílades!...

OS DIÓSCUROS

Dos es­pon­sais, eles tratarão, como convém... Tu, porém, se queres escapar às Fúrias, segue já para Atenas, porque elas se preparam para perseguir-te, com as mãos cheias de serpentes, colhendo frutos causadores de sofrimentos horríveis! Nós vamos aos mares sicilianos, para salvar navios que lá navegam, sacudidos pelas ondas. Viajando pelo espaço etéreo, não prestamos socorro aos maus, mas livramos de atrozes perigos aqueles que, durante a vida, têm praticado a bondade e a justiça. Que ninguém cultive a iniqüidade, e ninguém ouse navegar com a perfídia no coração!

O CORO

Salve! Só é ditoso aquele que tem a consciência tranqüila, e não é ferido pelos golpes da desgraça!

 

FIM


Notas

* — A tradução, aqui, como no volume XXII da “Clássicos Jackson”, é atribuída a J.B. de Mello e Souza, autor do Prefácio e das notas introdutórias às tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides que figuram no volume. Não sei se, “por razões editoriais”, atribuiu-se ao emérito professor, por seu renome, a tradução de todo o volume, em vez de atribuir-lhe a organização do mesmo. É o que se depreende das palavras do próprio João Baptista de Mello e Souza no Prefácio:

“Tais considerações justificam, à saciedade, a preferência dada, na elaboração do presente volume, às traduções em prosa de algumas tragédias entre as mais famosas do teatro ateniense. Por exceção insere-se apenas uma em verso solto (o Hipólito, de Eurípides), completando-se destarte a série agora apresentada com um trabalho antigo, de tradutor português desconhecido, que venceu com certa galhardia as dificuldades do empreendimento.” [g.n.]

O professor João Baptista de Mello e Souza foi, por anos, professor de história no Colégio Mello e Souza e marcou gerações com seus ensinamentos. É de Afonso Arinos, em suas Memórias, este testemunho sobre a importância que teve em sua formação as aulas por ele dadas: “A matéria que mais me encantava era a História do Brasil, dada pelo mesmo (J.B. Mello e Souza).”; “Creio que toda a minha inclinação posterior pelos estudos históricos data desse fecundo aprendizado inicial.” (ap. Alberto Venancio Filho, A Historiografia Republicana: A contribuição de Afonso Arinos, in Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990, p.151-160.) [NE]

(1) — Pletro — medida grega antiga, equivalente a 30 metros aproximadamente.

(2) — “Dióscuros” significa “Filhos do Deus”; foi a designação dada a Castor e Pólux, que passavam ambos por filhos de Júpiter e Leda, esta esposa de Tíndaro, rei de Esparta. Castor e Pólux eram gêmeos com Helena (esposa de Menelau) e Clitenmestra.

(3) — Segundo a Mitologia, uma divindade suprema, o Destino, regia o universo; os próprios deuses olímpicos estavam sujeitos à sua vontade inexorável. As “moirai”, ou Parcas, transmitiam e executavam os decretos do Destino.

(4) — Do julgamento de Orestes, proferido pelo Areópago, no qual os votos dos juizes se dividiram em dois grupos iguais, um a favor, outro contra o réu, tendo a deusa Minerva resolvido em favor — resultou o chamado “voto de Minerva”, que favorece o réu em cir­cuns­tân­cias idênticas.

(5) — Liceu (em grego Lukeion, bosque de lobos) era o nome de uma montanha na Arcádia, local indicado pelos Dióscuros a Orestes. Foi, também, o nome de um passeio pitoresco, nos arredores de Atenas, onde o sábio Aristóteles ensinava a seus discípulos, como outrora Platão no famoso jardim Academus.


 

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