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Sônia Régis

efeitos do (in)significante


 

efeitos do (in)significante
Sônia Régis

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Documento da Autora

© 2000 Sônia Régis
sregis@terra.com.br


 

sônia régis

efeitos do (in)significante

poesia


 

“tua alma está salva
tua alma se lava nesse livro que se alva como a estrela mais d’alva”


Haroldo de Campos

Galáxias


vez primeira
o fruto recendia
da figueira persignada
e se fazia
o mistério do verbo
pela boca da poesia

uma palavra
entretanto (entre tantas)
resguarda-se na infância
transubstanciada


a escrita
(como nos estudos de Leonardo)
é corpo dissecado

os músculos saltam dos traços
marcando a delicada anatomia
do rosto que a vida grafa

no desenho tosco:
o engenho do pensamento
nudez de nervos na página


como Homero
resgatar mitos &
correr o lápis em linhas, círculos
apontando para Delfos
ou para mim mesma:


verbo sôfrego
aviva o lixo dos séculos:
signos bacantes
símbolos genuflexos
     enquanto as musas em febre lambem
     as tetas opulentas do poema


a palavra imprevista na mesa
entre a faca e o prato
               flor
à margem do rosto e da página
               fruto
onde um verme oculto
quem sabe
corrói o cerne
e a carne


guarda-chuvas crescem entre as pedras
e grassam no passo ervas daninhas
(o verso é um sapato apertado
ou fruto verde travando o lábio)


a tinta preta escorre
da pálida página
pelas pernas
manchando meias e olhos

por trás da rasura
a memória sonda as raízes
dos verbos irregulares

dever de casa: preencher
o espaço que as reticências abrem


entre pedras e penhascos
as patas pesadas
pisam a lua compacta
corcoveando as sombras

o signo magoado
brota dos cascos


aristotélica luta
no corpo a corpo da sintaxe
(sujeito cópula predicado)

     a erótica do texto
     no sentido imperfeito
     do objeto indizível

platoicônico conceito
da poesia: ad infinitum
exercício do organogozo


a lança me alcança
no peito
     e as três Parcas fiam
     uma trama interminável
     enredando letra & sonho


um verbo despenca
no verdor da manhã que se exila
entre coxas e axilas

pardas veias florescem por baixo do pano
pardais descuidados bicam as migalhas
do prato que abandonaste na mesa

     o olhar apascenta animais que às vezes
     roem as bordas da página


o pai guardava
     na casa
ideogramas sagrados
     — ORIENTE cifrado
     na grafia úmida
     marcando a carne
     em brasa para sempre
     (no caderno ordenado
     traços pincelados
     com gestos delicados)

a mãe desenhava
     na casa
letras profanas
     — vovó viu o ovo
     na despensa da fome
     decifrando enigmas
     vivos para sempre
     (no rio inchado
     os detritos lambuzavam
     grafitos nas paredes brancas)

meu olhar ilhado
contornava mapas
no açude da página


me vens pela manhã junto ao café
teus olhos puídos avançam
como pedras partindo vidros

sobre a mesa apodrecem
as frutas da estação

teu último livro, poeta,
é desejo (in)sensível

envelheces
e a terra busca palmo a palmo
o corpo daquela antiga Palavra


congelada sílaba
sim-não desde sempre
     para sempre
(amor plenilúnio
em pleno junho
nunca pensei que)
     entanto
     a palavra do Oráculo
     vigia a Escritura e a Sorte


palavra diáfana
pousa
na lousa verde da tarde
     a pena arranha o lombo da página
     e marca com tinta
     o corpo-tatuagem


descascando o ovo
no oco do corpo
adormecido
(membrana láctea
rubra entranha)
brota claro olho
no prato
quebrando a vasta
manhã endurecida
     a forma precária
     criando a ave
     que cisca a vida


     os degraus da escada
     em direção ao sótão:
     um cordão alongado
     para a eternidade
escuro teto
por cima do quarto
a proteger a entrada
do mistério e do nada
     a vida adornada
     com rendilhados recantos
     de teias e aldravas
     no mormaço das trevas


na mesa farta
o susto:
toalha suja da agonia
da carne


aranhas teciam ramagens
cercando janelas em redes voláteis
de prata lavrada na entranha
     a infância era amarga:
     salitre grosso nas paredes
     macerando o ventre da casa
morangos sugavam meninos de olhar doce
no beijo da tarde
     amanheciam
     cifras pesadas no canto da boca


3 horas
um galo bica o olho
e cisca o silêncio da casa

(letra e verso da vida
no sexo mediador da palavra)


a limusine negra
que a avó alugava
descia penhascos na madrugada
     o motorista insone
     desviava vacas na estrada
o leite coalhava a noite
vertendo estrelas e fantasmas
     viagens arcanas
     ornadas de sonho e alongadas
     no álbum de fotos
     onde a avó permanece
     perto da ponte (tão longe!)


um animal solto nos olhos
rabisca as paredes todas
da casa
     um par de meias no varal:
     escorpião que morde o
     calcanhar desta hora


meus olhos estão aqui, meu olhar em Paris
     os mapas de minha irmã
     guardavam viagens
     (no baú cheio de catálogos
     o mundo na ponta do lápis
     para mais tarde)


águas túmidas e revoltas
fungo nos cascos pardos
duras vantes cortando a carne
     caravelas lentas
     aportando potrancas prenhes
     e sedentas
a nave aderna - maduros frutos
no trajeto do corpo podrido
curtindo a poluta pele


tendões de cores
endurecem a vida na lente
(a hera cresce em meu ombro
e soluça como um pássaro inquieto)
     no avião
     o verniz do sapato reflete a asa
     — antiga vela, ave luzidia na tarde


beira vida da estrada
     na lanchonete
     (cheiro de sonho e urina)
     dividimos um sanduíche azedo
     enquanto a maçã morde a boca
súbito Grifo exalta o bico
asa que forceja vôo, Verbo
(saulo, saulo, por que me devoras?)
     do lado esquerdo
     a estranha estrangeira terra
     cuspindo seiva no beijo


o aço fere o rosto
e forceja significados
— fórceps que pinça
um sentido dilacerado

entre a vida e a morte
suspenso signo
parteja o verbo

fio de Ariadne
a escrita
embrulha o corpo
para viagem


se me perguntarem por
que trago esta cic
atriz no olho d
irei que o tempo me d
eu esta infanta triste
que tanto pesa e
canta na face
para ficar com
migo sempre a
penas por capricho sem m
ais intenção do que os
tentá-la entre o que
de mim persite
no caminho


a vida:
fera enjaulada no beco
onde sonhei ainda ontem
a glória de pisar os dados


beijo na boca esta noite
que arreganha os dentes
e uiva contra os sonhos

as coisas eternas
moram na lembrança
dos olhos internos


a urbe na órbita
do olho:
urbe insalubre
     patas duras
     ancas moles
     boca vermelha
     em pisca-pisca na esquina
     colete de aço contra o tempo
     impermeável


a chuva enrosca o rosto da estátua
no forro da vista e tece
lisa mão estendida

(o rosto umedece em limo
na estrutura da veste)

e o verdadeiro corpo apodrece
escorrendo exangue
na praça


fero ruído da vida
no crepúsculo

caminho de asfalto
na bruma da serra

uma pálida rotina marca a testa
de esquina em esquina


como maduro fruto
a lua
chega perto da mão na janela

(a morte se prende no cabelo
como uma flor de plástico!)


renda de espuma
borbulha nos olhos
dos peixes mortos

o salitre ácido
pouco a pouco
enferruja a tarde


a chuva aduba a hora tardia
     os dedos que deste ao tempo
     despertam em meu rosto
     uma solidão de praça
(sinto um par de chinelos
calçando teus passos)


sob tuas pálpebras douradas
algas se desfazem
     liquens fartos te cobrem
     como colcha de bilro
     ou teia de aranha


na exígua laje
o nome em brasa

a primavera exala um odor patético
do peito do mármore
: a lâmina fina de tua morte me transpassa

da pedra ignara
um cancro floresce


os frascos coloridos
guardavam no armário
pesadelos da infância
     o mistério da orfandade
     o colégio alemão
     o suicídio da prima
     a tuberculose do irmão
     a biblioteca do pai
     o noivado desfeito
     a lembrança da Ilha
     o futuro das filhas
     o futuro das filhas


uma rosa, dizia Gertrude Stein
é uma rosa é uma rosa é uma rosa, rosa
mas não terás parte entre as rosas de Piéria
tu, rosa aérea emudecida
pois nem rosa eras, Margarida
(cigarras roçam as asas do tempo
surpreendendo a História)

     teu nome
     graça apenas pousada
     na haste do sonho
     e mais nada


havia um porto
antes
ao alcance da vista

um ponto
onde as naus
suspendiam viagem

as velas arfavam
desenfunadas
e sonhavam

a lua sobre o mar
era um sabre
aparando a água

havia um porto
antes
ao alcance do corpo

(um ponto
onde hoje atraco a saudade
e mais nada)


como quem nada quer, disse:
"ele pirou, o poeta"
e repetiu de soslaio, "pirou!"

como um raio, me veio à cabeça
seu livro co(s)movido

rangi os dentes:
o poeta ensandecido
a rolar nu no esterco do próprio sonho


em casa, mas distante
como os elefantes
no zôo de Berlim
     fim de tarde
     baixam o lombo
     para que lhes varram o pó do dia
     e vão descuidados
     pisando ordenados os rastros do sonho


bulbo de prata
acima da noite

de longe vejo ver-te
alfazema na boca
à margem do Sena

não sou quem era
antes de ir-me


ao som de um shofar em Praga
te encontrei
(o toque no ombro
em forma de pássaro
a desgarrada gargalhada
no sotaque carregado de Berlim)

num escuro canal em Veneza
agora sei
foste acertar a longa viagem

se voltares
na prateleira, lado a lado
estão as sapatilhas chinesas
que te alojarão na passagem


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