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Correinha
o Caçador de Bandidos
Líder do Verdadeiro Esquadrão da Morte
Astorige Corrêa

Edição Supervirtual

Versão para eBook
eBooksbrasil

Fonte digital: digitalização da edição em papel
Edição do Autor
São Paulo 2005

ISBN 85-905174-1-1
1ª Edição — Volume I — Março de 2005
Copyright 2005 by Astorige Corrêa
Editor: Astorige Corrêa de Paula e Silva
Capa e Design Gráfico: Danillo Santos Aiosi
Digitação: Ana Carolina Valfogo
Revisão: Luciene Romano de Sá
Ficha catalográfica
Corrêa, Astorige
Correinha, O Caçador de Bandidos, Líder do Verdadeiro Esquadrão da Morte/Astorige Corrêa;
l. ed. São Paulo — SP — 2005
ISBN 85-905174-1-1
1. Policial. 2. Auto-biográfico. I.Título.
Contatos:
ARBO Graphic Design
11 5669 1803
cacadordebandídos@terra.com.br
www. arbodesign.com.br
2005 Impresso no Brasil
Foto da Capa:
Correinha, após a prisão de dois assaltantes de banco no antigo morro da Bela Vista, 1967

Copyright
©2006 Astorige Corrêa

 

A leitura deste livro é emocionante. Enaltece, com justiça, a bravura, a valentia e a honra. A vida de um homem, cujo espírito de luta, garra e determinação são notáveis. Aqui, você tomará conhecimento das lutas diárias contra o crime e os criminosos. Sentira também que um bom policial traz em sua alma ternura, sensibilidade e beleza no espírito. Esta narrativa põe a descoberto não só as mazelas e as virtudes da polícia e dos seus dirigentes. Revela, também, a arrogância de alguns magistrados e a grandeza de outros. Critica com veemência a atuação daqueles que acusam simplesmente por acusar e, para fazê-lo, o fazem sem critério algum. Esta obra, por certo, fará com que a coisa pública que trata sobre polícia e justiça seja vista e revista em sua dura e cruel realidade. Fará com que os legisladores, ao legislar sobre a matéria, estudem com mais atenção o assunto e busquem saber dos que realmente sabem, os policiais e as vítimas, subsídios para legislarem com sabedoria e conhecimento de causa.

O Autor


 

Índice

Epígrafe
Agradecimentos
Dedicatória
Prefácio por Afanasio Jazadji
Prólogo
Capítulo I
Saponga: O Facínora
Capítulo II
O Mutirão
Capítulo III
O Caso dos Irmãos Cardoso
Capítulo IV
O Milagre de Natal
Capítulo V
O Caso de Taquarituba (SP)
Capítulo VI
O Homem que Prendia é Preso entre Bandidos
Capítulo VII
Carta ao Juiz Corregedor
Capítulo VIII
Momentos de Reflexão
Epílogo


 

Astorige Corrêa

 

CORREINHA
O CAÇADOR DE BANDIDOS
LÍDER DO VERDADEIRO ESQUADRÃO DA MORTE

volume I

 

 

As flores que glorificam tua vida,
desabrocham em sua plenitude de doces
aromas, lindas cores e suaves perfumes.
Última homenagem da natureza ao teu
espírito de luz nunca compreendido.

O Autor


 

Agradecimentos:

Danillo Santos Aiosi e Alexandre Mena. Pessoas cuja colaboração foi determinante na feitura desta obra.
E ainda, a Marinês Campos do Jornal da Tarde.
Ao Deputado Afanasio Jazadji.
Ao Vereador Antônio Goulart.
Ao Dr. David Santos Araújo.
Ao Jornalista Percival de Souza.
Ao Jornalista Gil Gomes.
Ao Dr. Joseval Peixoto Guimarães.
Ao Dr. Abdala Aschcar.
Ao Dr. Ney Gonçalves Dias.
Homenagem póstuma ao Jornalista Hélio Ribeiro.

A eles minha eterna gratidão pelo apoio e a ajuda humanitária nos piores momentos da minha vida.


 

Dedicatória:

Ao meu filho Sinouhe a quem muito amo e
também por ter sugerido o título desta obra.
Ainda às minhas filhas Eliana e Semíramis.

A todos os policiais que perderam a vida
no cumprimento do dever, civis ou militares.

E aos seguintes policiais que estiveram ao meu lado em momentos cruciais:

Massaro Honda
Dr. Ernesto Milton Dias
Oscar Matsuo
W. Veneziano
Juliano
Geraldo Jorgino
Oscar Caser
Ciganinho
Geraldo Jacareí
Valdinir Vilela de Oliveira
Walkir Vilela de Oliveira
Salvio Fernandes do Monte


 


Correinha aos 27 anos de idade.


 

Prefácio

Por AFANASIO JAZADJI

 

Este livro é um marco na nossa história recente. É a primeira vez que alguém não só assume ter pertencido ao Esquadrão da Morte, como também declara ter sido o líder do verdadeiro EM que atuou em São Paulo nas décadas de 60 e 70.

Astorige Corrêa passou boa parte de sua vida preso. Dizem que “segurou” a situação de muitos policiais. Calado, com dignidade, sofrendo pelos outros, mantendo a postura de policial durão...

Correinha foi um caçador de bandidos. Invejado dentro e fora da Polícia Civil paulista, com ele toda missão tinha de ser cumprida. Na sua época, criminoso famoso ou não era procurado pelas “quebradas”, tinha seus “mocós” (esconderijos) invadidos e, irremediavelmente, “caía” (era preso ou morto).

Com sua têmpera de homem de sangue quente, nunca deixando de falar o que lhe vem à cabeça, e sempre se colocando como policial em favor do bem, não fazendo acordo com delinqüente, endinheirado ou não, agindo às vezes com extrema valentia, Correinha ajudou a promover na carreira inúmeros delegados.

Muitos foram guindados à condição de diretores de Departamentos e acabaram sentando-se no cobiçado Conselho da Polícia Civil, tornando-se “cardeais”. Astorige Corrêa nunca combateu idéias, razão pela qual sempre se recusou em trabalhar no DOPS, a polícia política. Sabe-se de gente “com culpa no cartório” que o abandonou temendo até mesmo ser visto ao seu lado...

Correinha, como se diz na gíria policial, “segurou todas as broncas sozinho”, assumindo o que fez, abominou denúncias descabidas, recebeu apenas uma condenação por um crime que não praticou. Passou pelo Presídio da Polícia Civil e Penitenciária do Estado, ainda que tivesse direito à prisão especial, correu risco de ser assassinado no cárcere, mas a tudo enfrentou, com honra, dignidade e principalmente de “bico calado”.

Conheci Correinha como repórter de polícia, iniciando na grande imprensa, no começo do ano de 1968. Por força do ofício, fiz dezenas de coberturas jornalísticas de casos policiais com a participação direta do Investigador Astorige Corrêa de Paula e Silva.

Com seu indefectível colete de couro preto e tendo à mão sua inseparável Winchester calibre 44, Correinha escreveu seu nome na galeria dos investigadores mais destemidos da Polícia Civil de São Paulo. Nunca se envolveu em corrupção e nem no consumo de tóxicos.

O ideal de Correinha era catar bandido. Estivesse aonde fosse. Quanto pior era o cara, mais Correinha vibrava e se lançava na sua captura. Foi assim, por exemplo, com Saponga, assassino do Investigador David Romeiro Pare, cuja vingança Correinha jurou na hora do sepultamento e cumpriu a palavra, não muito tempo depois, matando Saponga nas matas do Tremembé. Aliás, fui o primeiro repórter a chegar ao local e essa notícia foi a primeira que assinei no dia seguinte em matéria publicada pela “Folha da Tarde”.

Pela leitura deste livro teremos clara noção de que mesmo com o sofrimento, dele e principalmente da família, Correinha não perdeu sua convicção e nem teve sua moral arranhada. Continua sendo um homem de fibra. Fica aqui patente a coragem de assumir a condição de líder do verdadeiro Esquadrão da Morte. Por quê verdadeiro? O Correinha explica neste livro...

Alguns relatos feitos neste livro são inéditos. Nem seus amigos mais próximos, e aí eu me incluo, tinham conhecimento de certas passagens. Vale ressaltar que este não é um livro de ficção. Na ótica de um dos seus principais membros, a história do verdadeiro Esquadrão da Morte que existiu em São Paulo, e do qual muita gente do povo ainda tem saudades, começa a ser contada.

 

AFANASIO JAZADJI
* Jornalista * Radialista * Advogado *
* Publicitário * Deputado Estadual *
* Vice-Presidente da API — Associação Paulista de Imprensa *


 

Prólogo

POR QUE ESCREVER UM LIVRO?

 

Amigos, familiares, pessoas ligadas à mídia, me afirmam sempre que devo narrar minha história e fazer dela um livro. Nesses anos todos, tenho essa iniciativa evitado. De minha existência já longeva, avisto, não muito distante, o final do caminho se aproximando.

Gostaria que tivesse lá chegado, antes de tantas lutas e porfias.

Decidi agora escrevê-lo. São acontecimentos por demais penosos que vi e vivi com meus próprios olhos e sofri com meu corpo (um templo sagrado), por várias vezes ferido e meu sangue, em vão derramado. Aqueles que lerem este texto, tomarão conhecimento de uma história sem precedentes e nisso está seu valor e sua beleza. Minha alma, desde a juventude, sempre buscou a verdade e a sabedoria. Encontrei-as, não obstante a busca incessante, apenas em parte. Nem poderia ser diferente.

Muitos desejam conhecer a verdade em detalhes das lutas e das glórias passadas. Cálice amargo que me impôs o implacável destino. Gostariam também, acredito eu, de tomar conhecimento dos infortúnios que ainda agora me acompanham. Quero mostrar aos leitores minúcias e causas da suprema ruína que me atingiu através do maquiavelismo de homens pequenos, de baixa estatura moral, sem honra, e sem dignidade, que usaram seus cargos e a justiça a quem deveriam servir com imparcialidade, e assim não o fizeram, muito pelo contrário, a usaram para atingir seus objetivos torpes, e praticar uma das maiores injustiças contra um policial que apenas cumprira com o seu dever. Começarei a narrativa, não obstante meu espírito recue ante tanto luto, tristezas e humilhações que a vida e os homens me impuseram.

Entretanto, verão, nas linhas traçadas em meu limite, pois escritor não sou, que a valentia e a coragem não deixaram de habitar meu espírito, nem meu coração. Virtudes que nasceram comigo em longínquo sertão e haverão, com certeza, de acompanhar-me até a derradeira morada. Qualidades que terminam por gerar ódio nos corvos que se acovardam ao sentir a presença de uma águia em seus ninhos.

Quando terminarem de ler essa contemporânea odisséia, repleta de mil emoções humanas, não me nomeiem de mito ou lenda viva, como o fazem alguns órgãos da imprensa. Saberão que fui apenas um sertanejo, tolo e idealista que passou pela vida e pelas páginas da mídia, como um simples dente da engrenagem do poder público, que nunca foi corrompido, e que nunca se desviou dos seus valores e princípios. Aos meus filhos, deixo como única herança, a honra e a lealdade, valores maiores que sempre nortearam minha caminhada.

Os rastros que deixarei neste solo brasileiro, terra que amo e onde com orgulho nasci, serão com certeza, pelo implacável tempo, apagados. Mas minha história, escrita, viverá após a morte e me dará vida. Ides notar também, que nas linhas onde o meu pensamento tenta, através de palavras, levar ao seu conhecimento e ao seu espírito, emoções, ora de alegria, que foram poucas, ora de tristeza, que foram muitas, aventuras e desventuras, que em diversos pontos dessa narrativa escrevo, vezes várias, refiro-me a bravura e valentia. Entretanto não há nisso, jactância, orgulho, ou falta de modéstia, são apenas fatos que posso, com documentos, todos prová-los. Tangencio muito também, as palavras honra e dignidade. Assim, pergunto pois, qual dessas virtudes são vistas pelos olhos humanos, ou que sejam percebidas por qualquer um dos outros sentidos?

Afirmo serem todas elas coisas abstratas e invisíveis, por um motivo claro e lógico: Todas são parte integrantes de um homem tido como temerário, mas que na verdade tem a alma sensível e o caráter íntegro e brando, tolerante e paciente, que tem buscado sempre o saber e a cultura, para aprimorar em si essas virtudes. O homem que traz em seu ser, a coragem e a valentia, assim o é porque há muito aprendeu a dominar o medo, sentimento inerente a todos os seres humanos. Assim sendo, deixou de dar ao seu corpo material a importância que deveria dar ao colocá-lo em risco. Quando me recolho ao mais recôndito do meu ser, para, num momento prolongado de reflexão e auto-crítica, e assim buscar melhor me conhecer, de repente, não sinto mais o meu corpo. Sinto apenas meu espírito com quem consigo uma conexão única. Nesse momento, procuro de forma incessante, a sabedoria e a verdade. A primeira, sei, posso alcançar em parte, a segunda, com certeza, só tomarei conhecimento após a morte.

 

“Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes em vida”
Montaigne — Ensaios — I

 

Ao bravo, pouco lhe importa o destino do seu corpo, desde que esteja lutando por uma causa justa, Entretanto o destino da alma, se lhe é muito mais importante, pois sabe, que através dela virá, um dia, tomar conhecimento da verdade eterna, fato que nesta existência nos é vedado saber. Ao valente a morte não aborrece, ocorra como e quando ocorrer e com certeza, não sentirá nesse momento supremo da vida, qualquer temor.

Com a separação do corpo físico, a alma que é etérea, seguirá para sua morada em algum lugar no universo. Ali, presumo, a verdade que em vida tanto buscou, lhe será revelada.

Por isso tudo, que creio, ter bem explicado, que na valentia, na honra, na dignidade, e na coragem, mérito algum existe. Pois o homem que as possui, consciente do que acima foi dito, não anda pela vida em busca de lauréis ou glórias, dois impostores passageiros, que nada lhe acrescentarão à vida mais adiante e em breve estarão por todos esquecidos. Busca sim, o saber e a verdade, coisas reais que à nossa alma eterna, revela a paz, o amor verdadeiro a tudo o que existe no universo, e a sensação de que durante sua vida física fez o melhor que pôde e lutou até o último segundo em defesa de valores nobres, e por isso, lá no Hades, com certeza, terá alcançado a tão almejada felicidade eterna. Não desejo e nem posso tecer uma comparação entre a minha vida e a de Sidartha (BUDA), entretanto, temos algumas coisas em comum: ambos saímos do fausto e da riqueza para a miséria — não miséria moral e (nem intelectual — e sim, material. Encontramos nossos demônios e neutralizamos suas flechas de fogo. Ele encontrou sua árvore da iluminação espiritual, eu ainda a procuro. Ele atingiu o Nirvana, há tanto não espero chegar.

 

“Os homens, quaisquer que sejam os favores com que os acumule a sorte, não podem estimar-se felizes enquanto não vêem chegar o seu último dia”.
SOLON


 

Na foto, Correinha aparece momentos antes da invasão de um “barraco” onde se homiziavam perigosos assaltantes de banco.
DEIC 1968 — Setor de Assaltos a Banco
Fonte: Última Hora — Novembro/1967


 

Capítulo I

SAPONGA:
O FACÍNORA

Na foto, Saponga. Um facínora que não respeitava a vida humana

 

Não possuo, ao meu julgar, um belo estilo. Episódios que narro em minha escrita estão distantes de transmitir belas cenas, ou traduzir lindas e tocantes pinturas. Talvez não haja brilho nem erudição nesta composição. É em intuições espirituais que tento, e não consigo, psicologicamente o meu intento de vos transmitir emoção, o que desejo. Busco, então, na autenticidade dos fatos e na verdade, duas virtudes em que creio, honrar um homem, cujo destino não escolheu e ante o inevitável, com valentia e coragem essa vida viveu!

Durante anos trabalhando nas lides e nos meios policiais, nunca abandonei o hábito de estar sempre atento a tudo o que ocorria à minha volta. As pessoas nascidas no sertão aprendem logo, no limiar de suas vidas, a aguçar os sentidos, em virtude dos inúmeros perigos a que estão sempre expostos no ambiente rural. Uma planta venenosa que fere, (Urtiga), uma serpente que rasteja no solo ou nos galhos de uma árvore, uma aranha venenosa que se esconde sob folhas, escorpiões, ou ainda um ataque de animais de grande porte como uma onça, ou uma silenciosa e faminta sucuri. E muitas outras ameaças que se ocultam nas florestas. Por isso o sertanejo é um ser sempre alerta. Uma questão de sobrevivência.

Quando, além dos atributos acima se juntam um cérebro que analisa, olhos que observam, a perspicácia capaz de ler e interpretar um olhar, um gesto, uma expressão facial que se modifica e, após isso tudo, formar analiticamente um conceito ou um raciocínio, que tragam ao seu espírito um quadro claro da realidade que o cerca, fica mais fácil relacionar-se com as pessoas com as quais se convive no dia a dia e a se defender ou prevenir-se das que não se conhece muito bem. Convivi com policiais que traziam em si as mais diversas personalidades. Cada ser humano é um universo apartado de outro. Cada caso é um caso e como tal deve ser tratado de forma e conceito diferente. Não se cogita, com essa assertiva, qualquer tipo de discriminação. Mas, acima de tudo, de um método disciplinado, cuja prática, muito nos ajuda na arte de viver. E com o passar do tempo, esse método vai se tornando mais eficiente. Vi e acompanhei a trajetória de jovens que entravam para os quadros funcionais da Secretária de Segurança, e que traziam consigo educação de usos e costumes, a prática da religiosidade, o vocabulário limpo, sem gírias ou impropérios, o esmero no se vestir, etc.

Entretanto, o meio em que vieram militar os obrigava a tratar com o que de pior existe no seio da sociedade. A pressão a que eram submetidos para apresentar resultados, o medo e a apreensão causavam, às vezes, como resultado, serem acometidos por incontrolável tanatofobia ao enfrentar situações de violência, para as quais não estavam preparados, ou não tinham o espírito afeito para tal. Assim, iam, no dia a dia, modificando suas personalidades e sua maneira de ser, de falar, de pensar e de agir ou reagir diante de diferentes situações. Ficavam irreconhecíveis e, na maioria das vezes, levavam para seus lares esse comportamento, o que lhes causava sempre grandes infelicidades pessoais. Nisso se percebe claramente o descaso dos dirigentes e governantes, que preferem ignorar esses fatos tão prejudiciais que, aos poucos, vão destruindo a estrutura emocional de um policial, levando-o, não raras vezes ao vício das drogas ou do alcoolismo ou até mesmo à prática de crimes. Esses jovens não eram devidamente preparados para tão ingrata profissão. E hoje, menos ainda, pois passam cerca de 90 dias fazendo um curso na Academia de Polícia, que nada acrescenta de positivo, pois é falho e ineficiente. Não há um preparo psicológico especificamente dirigido ao jovem que vai para as ruas enfrentar a brutalidade e a violência.

Nem há, durante sua carreira, nenhum acompanhamento médico-psíquico que possa detectar o início dessa nefasta modificação de comportamento. Nada é feito nesse sentido. E o resultado é as mazelas que surgem a cada dia em maior número em Departamentos e Delegacias de Polícia e as vítimas são os policiais que ficam entregues à sua própria sorte, sofrendo a aplicação de medidas disciplinares, sem que alguém lhes aquilate a verdadeira causa de seu comportamento anômalo.

Ao invés de tratamento necessário, punições grosseiras e injustas. Esse é o quadro que se nos é apresentado. E os cegos que não querem ver continuam cada vez mais cegos. Lavar as mãos é mais fácil do que buscar soluções para proteger e salvar um profissional que exerce sua áspera função sem nenhum reconhecimento, e sem nenhum amparo. E na maioria das vezes, paga um alto preço, que termina por destruí-lo como policial e como ser humano. O Presídio da Polícia Civil está com super lotação. Nenhum dos policiais ali detidos foi submetido a qualquer tipo de exame médico, clínico ou psiquiátrico. Delegados Corregedores, Juízes e Promotores, jamais atentaram para esse detalhe, num flagrante desrespeito à figura humana do policial e às agruras por que passa no exercício de suas funções.

Até quando?

Faço essas considerações, para que o leitor possa melhor compreender o episódio de que trata esse capítulo.

Em 1968, uma gentil senhorita, estudante, com 16 anos de idade, ao voltar do Colégio, foi atacada por dois marginais na zona leste da cidade. Arrastada para um drive-in abandonado, foi brutalmente estuprada de todas as formas possíveis e imagináveis e em seguida assassinada com requintes de perversidade e crueldade tão vis, que seria atentar contra o espírito e à sensibilidade de qualquer pessoa normal descrever aqui os detalhes do crime. Estava de serviço na RUDI, e fui chamado para atender, juntamente com uma equipe da Delegacia Especializada de Homicídios, à ocorrência. A cena com que nos deparamos no local foi tão chocante, que ficamos todos, policiais experientes e afeitos à toda forma de violência, emocionalmente abalados. Convocamos a Polícia Técnica e os Peritos do Instituto Médico Legal, para as providências de praxe e posterior remoção do corpo para o IML, onde seria procedida a autópsia exigida por lei nesses casos. Durante essas providências, um dos Investigadores da Delegacia de Homicídios perdeu completamente o controle emocional e chorava alto. Tentei acalmá-lo. Só depois de muito conversar com ele, consegui que se controlasse e voltasse à normalidade. Era um jovem policial. Iniciante na carreira, era o que chamávamos de “Tira dente de leite”. Seu nome, fiquei sabendo posteriormente, era Davi Romero Pare. Antes de prosseguir a narrativa a que me proponho, abro um parêntesis, para informar ao leitor que trabalhei nesse caso dia e noite. Identifiquei os autores do hediondo crime, que o confessaram em detalhes, e assim, tiveram o que mereciam. Nos dias que se seguiram, nasceu entre mim e Davi uma amizade sólida e sincera. Nos identificávamos muito na maneira de ser. Não na de agir. Meu novo amigo procedia do Estado de Mato Grosso. Estudara em seminário e chegou mesmo quase a ser ordenado sacerdote, carreira da qual abdicou por achar que não tinha a necessária vocação. Seu pai era um Oficial de alta patente do Exército. Sua mãe vinha de humilde família de agricultores. Era casado e possuía um lindo casal de filhos ainda de tenra idade. Nesse meio tempo, fui transferido da RUDI, para voltar à Delegacia de Roubos, exatamente para o Setor de Assaltos Roubos e Extorsões, e voltar a chefiar o conhecido “Esquadrão da Morte”. Esse fato foi noticiado em todos os jornais da época, e essas manchetes serão todas apresentadas nos próximos capítulos. Almoçava com Davi, sempre que as circunstâncias o permitiam.

Nos finais de semana, freqüentávamos sempre um a casa do outro. Davi era um jovem brilhante, possuidor de grande cultura erudita. Gostávamos de ouvir óperas e músicas clássicas. Enfim. uma amizade que nos satisfazia a ambos, pois nos identificávamos nos gostos e na forma de pensar, filosófica e intelectualmente falando. E, durante nossas conversas, ele sempre me solicitava que usasse de minha influência pessoal, para que ele fosse transferido da Delegacia de Homicídios para a Delegacia de Roubos, onde achava que poderia ter mais ação e aprender a ser um policial mais eficiente, dado às limitações de competência administrativa do Departamento onde exercia suas funções. Eu desconversava sempre. Dizia a ele que a Delegacia de Roubos era um local que expunha todos os policiais a grandes riscos, e que achava que ele ainda muito jovem e inexperiente para trabalhar ali.

Transcorria o segundo semestre de ano de 1968. Davi sempre insistindo nas solicitações para ser transferido para a Delegacia de Roubos. Acabei cedendo. Pois, para um amigo, deve-se fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para fazê-lo feliz. Assim, conversei com o Diretor do DEIC, e no dia seguinte meu amigo assumia suas funções na nova Delegacia. Conversei com o Chefe Geral dos Investigadores, e pedi-lhe que o colocasse em uma equipe, que fosse tranqüila e mais amena em suas ações. Davi passou então a fazer parte da turma do Investigador Xavier. Um grande Policial, calmo e tranqüilo, que conduzia o seu pessoal com mais equilíbrio e cuidados. Com isso, fiquei despreocupado com a segurança de Davi. Eu, no comando de minha equipe, estávamos trabalhando dia e noite. Os períodos de descanso eram muito poucos, pois até mesmo nos finais de semana estávamos nas ruas. Investigando, prendendo, formalizando inquéritos. Não raras vezes, as prisões eram difíceis e perigosas com troca de tiros, correria pelas ruas do submundo do crime. Entretanto, estávamos todos vivos. Apresentávamos ferimentos leves que não nos impediam de continuar a busca do nosso objetivo de lutar sem tréguas contra bandidos e criminosos de alta periculosidade. Outras equipes da Delegacia estavam agindo da mesma forma. Como resultado desse árduo trabalho, e o esforço conjunto de todos, os índices de criminalidade já haviam caído 70%. Sua Excelência, o Desembargador Hely Lopes Meirelles, então Secretário de Segurança Pública, estava satisfeito com esses resultados. Sua ordem de combater a onda de violência, crimes e assaltos que assolavam a cidade de São Paulo, com ação enérgica e contínua estava sendo cumprida e obtendo os resultados desejados. Já podíamos, com isso, diminuir um pouco o ritmo. Descansar um pouco mais. Passar pelo ao menos um ou outro domingo com a família. Essas pausas traziam como conseqüência um melhor desempenho de todos. As férias, aos que tinham esse direito, haviam sido suspensas. Todo efetivo da Polícia Civil estava empenhado em pôr cobro à ação dos delinqüentes e dos traficantes de droga. Os entorpecentes sempre foram a mola propulsora do crime. Eu e minha equipe sabíamos desse fato. Isso é tão verdadeiro — nos dias de hoje a situação não é diferente — que a maioria das prisões de bandidos, os mais procurados e violentos, ocorreu nas “bocas” de venda de drogas e, como conseqüência, os traficantes também eram presos e autuados em flagrante por tráfico e venda de substâncias proibidas. Com a diminuição dos pontos de venda de entorpecentes, tivemos dois resultados:

a) Diminuição do volume de ocorrências e atos criminosos;

b) O surgimento de uma guerra interna das dependências do DEIC.

O primeiro item, por si só se explica. Entretanto, o segundo, merece uma explanação mais detalhada, para que o leitor possa entender com maior clareza os seus motivos. Corrupção sempre foi um mal presente nos meios policiais. Naquela época, o número de policiais corruptos era bem reduzido. Nos dias atuais, nada posso afirmar nesse sentido, por estar, há muitos anos afastado da Polícia e não manter, quase nenhum contato com policiais que hoje exercem suas funções e nem freqüentar qualquer dependência da Secretaria de Segurança. Nossa ação, firme e resoluta, foi eliminando pouco a pouco as “bocas” e os traficantes. Isso gerou grande revolta e animosidade em alguns policiais que exerciam suas funções na Delegacia especializada de combate às drogas. (Hoje, DENARC). Em virtude de receberem vultuosas quantias de dinheiro, semanalmente, dos traficantes. Com o fim dessa renda ilegal e vergonhosa, começaram a alardear ameaças, as mais variadas, inclusive de morte, contra mim principalmente e a outros policiais da Delegacia de Roubos. Ameaças vãs. Pois o homem que não possui coragem moral, por conseqüência, não possui coragem física. O confronto que pregavam jamais aconteceria. O corrupto traz consigo, como parte inerente de sua personalidade, a covardia. Por isso, nunca demos importância a tais desconchavos verbais, principalmente por partirem de quem partiam. Houve apenas um incidente no corredor da Delegacia de Roubos, situada no terceiro andar do edifício do DEIC. O Chefe dos Investigadores da Especializada de Entorpecentes, ao cruzar comigo, dirigiu-me um desaforo de passagem.

Em seguida, entramos em luta corporal. Obeso, viciado em drogas, embora armado, não teve tempo de fazer uso de sua arma. O despreparo físico, sem condições morais para dizer o que disse, perdeu a razão. E tomou uma surra bem dada. Não podendo evitar a derrota, correu rumo às escadas, para buscar ajuda e abrigo no oitavo andar, onde se encontrava seu local de trabalho, e talvez, quem sabe, a intervenção de um dos seus parceiros, canalhas como ele. De nada lhe adiantou correr. Persegui-o pelas escadas, dando-lhe tapas na orelha, e alguns pontapés no opulento traseiro.

Uma vez no oitavo andar, ele, já no limite de suas forças, entrou inadvertidamente na sala do seu Titular, indo se esconder atrás da cadeira do surpreso e espantado Delegado que, diga-se de passagem, tratava-se de autoridade honrada e moralmente inatacável, e por certo desconhecia as mazelas de seus subordinados. Uma vez ali, “Russinho”, essa era sua alcunha, pedia aos gritos, socorro ao Dr. Carlos, dizendo que eu pretendia matá-lo. Eu disse ao Delegado, que não tinha tal intenção. Pois aquele canalha, não valia uma bala de cal. 38. Dei-lhe mais uns tapas no rosto gordo e já avermelhado pelas pancadas recebidas. Em nenhum momento quis machucá-lo de verdade. Adversário tíbio, sem honra e sem nenhuma condição de me enfrentar em uma luta para valer. Desculpei-me com aquela Autoridade o lamentável fato, e disse a ele que poderia, se quisesse, tomar as providências disciplinares cabíveis, e retirei-me do local, indo em seguida, comunicar ao meu superior hierárquico o ocorrido. Ele me disse que poderia ficar tranqüilo. Que deveríamos esperar a outra parte mexer a primeira pedra no tabuleiro. Não houve nenhuma medida disciplinar. “Russinho” não quis que isso ocorresse, porque eu revelaria suas ações vergonhosas, e as poderia provar, e a verdade viria à tona com clareza. Ele não quis correr o risco e o incidente foi encerrado. Esses acontecimentos foram alvo dos mais variados comentários entre os policiais de todas as Delegacias, virando, no final, falácia de gozação e chacota. Nunca me preocupei com qualquer tipo de represália. Sabia, com que tipo de escória estava lidando. Como afirma a sabedoria popular, cães que muito ladram não mordem.

 

“DIÁRIO DA NOITE”
04/02/1969 — Número 13.334

“Pistoleiros contratados pelos traficantes.
GANG vai enfrentar Esquadrão”

 

Dois meses antes de todos os acontecimentos até aqui narrados, um marginal dos mais, ousados, atrevido e violento, havia sido personagem de um dos fatos mais incríveis da crônica policial. Havia fugido da Penitenciária do Estado, um presídio de segurança máxima, sem contar com a ajuda ou conivência de quem quer seja. Um feito fantástico, o que, por si só, demonstra a personalidade e o grau de periculosidade de tal indivíduo. Já estava condenado por dezenas de delitos graves. Latrocínios, assaltos e homicídios. E agora, nas ruas, por certo, voltaria a agir com mais virulência. Carlos Eduardo da Silva, vulgo “Saponga”, esse era o nome do facínora. Já nosso velho conhecido, pois praticava crimes desde a menor idade.

Oriundo de pequena cidade do interior, onde se iniciou em pequenos furtos, pressionado pela família e pela polícia local fugiu de casa, vindo para São Paulo, onde passou a agir com mais liberdade. Logo se juntou a marginais mais velhos e mais experientes, com quem aprendeu, com grande desenvoltura, os caminhos do crime e da violência desmedida. Era a ovelha negra da família, gente correta e ordeira, entretanto, como já afirmamos anteriormente, quem nasce com a tendência de delinqüir, vai delinqüir sempre, sem que haja qualquer terapia de recuperação. Fazia parte de nosso dia a dia examinar todos os boletins de ocorrência que versassem sobre assaltos, enviados pelos Distritos da Capital. E, entre eles, já havíamos notado que, em vários, a descrição do autor e seu “modus operandi” coincidiam com as características de Saponga.

Urgia, pois, detê-lo, antes que prosseguissem as barbáries que vinha cometendo. Deveríamos, então, dedicar nosso tempo e atenção em levantar o paradeiro dessa besta e devolvê-lo para trás das grades, local de onde nunca poderia ter saído, por ser uma terrível ameaça aos membros da sociedade. Estávamos no dia 18 de Novembro de 1968. No dia seguinte, ficou concertado entre mim e os membros de minha equipe, iniciaríamos os trabalhos de investigação e busca ao bandido. Comunicamos o fato aos nossos superiores, que determinaram prioridade absoluta para a captura de Saponga. O dia seguinte. Melhor mesmo, nunca ter existido. Um dia sem brilho. Um dia de sombras, de dor e desespero.

19/11/68. Mais ou menos 15 horas. Estávamos na zona leste, a procura de um informante, que ficamos sabendo, poderia nos indicar o paradeiro do marginal. O rádio da viatura, como sempre, permanecia o tempo todo ligado.

Até ali, só havia transmitido ocorrências de rotina. Nenhum fato mais grave. Entretanto, alguns minutos depois, o controlador entrou no ar e sua voz, transtornada, pedia prioridade para as viaturas que estivessem na zona sul da cidade, para que acorressem, a determinado endereço, em auxílio e apoio a uma equipe da Delegacia de Roubos, da qual, um dos policiais havia sido ferido a tiros por um marginal. Em seguida, já todos nós em alerta total, solicitamos maiores e melhores esclarecimentos do controle. Entretanto, ele também não possuía outras informações, a não ser as já comunicadas. Pediu que aguardássemos, pois estava empenhado em obter os nomes dos envolvidos e maiores detalhes e que, quando de posse dessas informações, passaria para toda a rede. Interrompemos nosso trabalho, e com a sirene aberta, nos deslocamos rumo ao DEIC, na esperança de ali tomar conhecimento de todo o ocorrido, bem como com qual equipe a tragédia havia ocorrido. Nesse ínterim, a primeira viatura do Departamento que chegou ao local, também pouco pode informar. Disse apenas que o policial ferido já havia sido levado por seus companheiros para algum Hospital da zona sul, até então, desconhecido. Chegamos ao DEIC. Uma vez na Delegacia, corremos até a Chefia Geral, onde o Chefe, consternado, em silêncio, em sua mesa, ao me ver, levantou-se, veio ao meu encontro e já chorando, me abraçou. E entre soluços, me disse que a equipe envolvida, era a do Investigador Xavier, e o policial, cuja morte já fora confirmada, era Davi, o meu amigo, quase um irmão.

 

Musa, lembra-me as causas:
Que divindade foi ofendida
Ou por que a rainha dos Deuses,
Ressentida, obrigou um varão
Insigne pela piedade
A correr tantas aventuras,
A sofrer tantos trabalhos?

Eneida de Virgílio


 

Momentos antes do sepultamento do investigador Davi, assassinado por Saponga, Correinha, após pronunciar o panegírico, jura vingança e aí começa a grande caçada


 

O que senti nesse momento, não há como descrever. Sei que chorei. Muitos choraram. Outros muitos, em silêncio as frontes baixaram. Cada um, teve sua forma e intensidade no sentir. Em comum, a revolta pela perda de mais um companheiro de lutas. A vingança, nunca fez parte do meu ser, e nunca habitou o meu espírito. Mas naquele instante, meu coração foi tomado por esse sentimento pequeno e vil, peculiar às almas tacanhas que o cultivam, na maioria das vezes, por motivos fúteis. Retirei-me do tumulto. Desci até a rua. Entrei em nossa viatura, e ali, em silêncio dei vazão à minha dor chorando em silêncio, até ao anoitecer. Ninguém me interrompeu. Uma demonstração de respeito ao meu estado de alma. Mais tarde, nos dirigimos ao IML, para apressar a liberação do corpo. O nosso Delegado Titular já havia ido à residência de Davi, comunicar à sua esposa o ocorrido e prestar-lhe todo o apoio necessário, deixando uma viatura com dois policiais à porta de sua residência, para atender-lhe no que fosse preciso.

E também a ambulância do Departamento ali permaneceu com uma equipe médica que prestou socorro àquela jovem senhora, que não suportando a dor da perda brutal, necessitou de cuidados médicos, até ser conduzida para o velório. Seu casal de filhos ainda era muito jovem para entender a extensão da tragédia que os atingira. Nunca antes, tantos policiais compareceram à guarda do corpo de um companheiro. O ambiente, repleto de tristeza e dor, coberto pelas trevas na noite, continha ainda em si o sentimento da revolta coletiva de toda uma classe de profissionais. As horas se arrastaram lentamente. Após o dilúculo, as Autoridades mais representativas da Polícia também compareceram e ali ficaram até a hora da inexorável despedida final.

Coube a mim, a honra e a tristeza de proferir o panegírico. O fiz entre lágrimas. Pois me sentia culpado pela morte de Davi, ao ter promovido, com minha interferência, sua remoção para a Delegacia de Roubos. E encerrei a minha fala, segurando suas mãos cruzadas sobre o peito, com as seguintes palavras: “Vai amigo querido, para os braços do Criador. Por certo, hoje à noite, haverá no firmamento um novo e fulgurante astro. Pois todo bravo que na luta perece, sem covardia, tem o espírito conduzido pelas Valkírias ao infinito e se transforma, de resplandecente brilho, numa estrela. E a sua luz, tenho certeza, será nosso guia. E te prometo, amigo meu, na frente de todos aqui presentes, à tua querida esposa e aos teus filhos, que só voltarei para casa, quando tua morte for vingada”. Após a urna funerária baixar à sepultura, e essa ser lacrada, me afastei alguns metros e disparei minha arma para cima, no que fui de imediato seguido por todos policiais ali presentes. Nesse dia nasceu a tradição que até hoje é repetida como parte do ritual de sepultamento de um policial morto em combate. A longa caçada, dali mesmo, teve início.

 

“DIÁRIO DA NOITE” — 20/11/1968

“Foi neste momento que o colega de Davi jurou vingar sua morte”.
(Legenda sob foto do momento em que toco as mãos de Davi e me encontro ladeado pelos policiais José Pedro e Xavier)

 

Até então, não sabíamos quem havia assassinado Davi. A equipe da Especializada de Homicídios encarregada do caso, pouco acrescentou nas primeiras horas de investigação. Naquela tarde, nos juntamos a ela, e no dia seguinte já tínhamos identificado o autor do crime: Saponga!. Os fatos: No dia 19/11/68, por volta das 14,00 horas, Xavier e Davi deixaram a Delegacia de roubos, levando na viatura três marginais, para que os mesmos os conduzissem até à residência de um contumaz receptador, para quem haviam vendido produto de roubo. A diligência, por não apresentar nenhum risco, pois iriam apenas entregar uma intimação ao acusado e, em sua residência, fazer uma rápida acareação entre as partes envolvidas, não carecia de um número maior de policiais para realizá-la.

Ao chegarem à casa indicada pelos ladrões, como sendo a do receptador, Davi desceu da viatura com o bloco de intimações nas mãos, e bateu à porta. Em seguida, de dentro do imóvel, uma voz se fez ouvir, indagando: “quem é?”. Davi, em sua inexperiência, respondeu em alto e bom som: “É a Polícia!”, Nesse momento, houve um grande rebuliço e barulhos estranhos, dando a entender, que havia pessoas em fuga pelos fundos. Davi, intrigado com tal reação, de imediato, deu a volta ao redor do prédio, para ver o que estava acontecendo. Ao chegar à parte de trás da residência, teve a infelicidade de dar de frente com Saponga, que vinha fugindo em desabalada carreira, estava já com seu revólver calibre 38 na mão esquerda, pois era canhoto.

Ao dar de cara com o policial, não titubeou, ergueu a arma e fez um disparo à queima-roupa que atingiu Davi no olho esquerdo. Davi cambaleou para a esquerda, onde passava um pequeno córrego de águas imundas, e caiu de bruços com o rosto dentro do infecto riacho. Já estava morto.

Saponga continuou sua fuga, deixando o local em companhia de seus comparsas. Xavier, ao ouvir o disparo, desceu imediatamente do veículo e acorreu em auxílio ao colega. Ao chegar ao local, de arma em punho, deparou com Davi caído, e seu sangue, manchando a água de vermelho. Olhou em volta e não viu mais ninguém. Entrou rapidamente na casa e a encontrou vazia e abandonada. Voltou rápido, pegou Davi nos braços, e o conduziu para o interior da viatura, a fim de proceder de forma mais rápida o socorro necessário. A Veraneio estava vazia; os marginais detidos e algemados uns aos outros, aproveitando-se da ausência dos policiais, também haviam empreendido fuga. Com a sirene aberta, dirigindo o mais depressa possível, Xavier passou via rádio a informação do ocorrido, da qual o controlador somente depreendeu o endereço do local e que havia um policial ferido, que estava sendo conduzido para um dos hospitais da região. Coisas do destino, das quais não podemos fugir.

A investigação: Após o sepultamento de Davi, em conjunto com o pessoal da Homicídios, voltamos ao sítio onde tudo ocorrera. Uma vez ali, nos dividimos e interrogamos um sem número de pessoas. Detivemos vários marginais da região. Um dos vizinhos nos informou que o receptador proprietário da residência, palco dos acontecimentos e que estava foragido, procedia de uma cidade do interior do estado, onde ainda residia sua família. Chegamos à conclusão de que o mesmo tentaria fugir para a cidade referida como Mirassol do Oeste. Passamos essa informação para toda a rede de rádio da Polícia Civil, por ser de suma importância. Em alguns minutos, uma equipe da nossa Delegacia esclareceu que conhecia muito bem a figura do receptador foragido, e que estava já se dirigindo à Estação Rodoviária, enquanto outras viaturas já estavam indo realizar barreiras nas estradas que davam acesso àquela cidade. A sorte estava do nosso lado; após o anoitecer, o homem que procurávamos foi preso tentando embarcar num ônibus que se destinava a uma cidade daquela região. Conduzido ao DEIC, e ali interrogado, revelou a identidade do assassino. E esclareceu que recebera Saponga e mais os membros de sua quadrilha, que ali foram para negociar a venda de jóias roubadas, provenientes de vários assaltos por eles praticados. E o mais importante: revelou também os nomes de todos os bandidos que faziam parte da quadrilha. Vale também informar, que os marginais que fugiram algemados, foram vistos por uma guarnição da radiopatrulha, que os prendeu, conduzindo-os ao Distrito da área. Foram interrogados pelos policiais do Distrito e confessaram ser foragidos de uma viatura da Delegacia de Roubos, mas que nada tinham a ver com a morte do policial. O que era verdade. Foram em seguida recambiados ao DEIC. De posse dos nomes dos bandidos, iniciou-se uma grande caçada. Sendo todos já conhecidos dos policiais da Delegacia de Roubos, cada equipe que conhecia este ou aquele delinqüente, saiu à procura de cada um.

Após um mês de intensas buscas, onze componentes do bando já haviam sido localizados e presos, alguns, tombaram ao enfrentar à bala os policiais. Entretanto, faltava Saponga, o nosso alvo principal e o mais perigoso de todos. Já o havíamos perdido em diversas ocasiões, às vezes por questão de minutos.

Pelo menos uma dessas oportunidades perdidas vale a pena ser citada. Através de um informante, levantamos um endereço na zona leste, onde o bandido se refugiava. Tratava-se da casa de uma de suas amantes. Algumas mulheres sentem forte atração por relacionar-se com marginais.

Isso, talvez, algum psiquiatra possa esclarecer o porquê desse estranho comportamento. Adentramos a casa por volta das 16,00 horas. Detivemos a mulher e a retiramos do local em nossa viatura que foi colocada bem distante, a fim de que não afugentasse o procurado. Não foi preciso esperar muito; por volta de 17,00 horas, no final da rua, onde havia na pequena praça, avistamos Saponga. Desceu de um veículo, provavelmente roubado, de japona escura, e com as duas mãos nos bolsos da mesma, onde sabíamos, estava de posse de dois revólveres, informação obtida de sua assustada amante. Do lado esquerdo da rua, havia uma escola municipal de primeiro grau. Loiro, alto, figura inconfundível, veio subindo a rua em direção à casa. De uma janela, eu já o tinha sob mira de minha Winchester. Estava aguardando que chegasse mais perto para feri-lo numa das pernas. Mas, nesse instante, as crianças saíram da escola. Todas de camisetinha branca e shorts vermelhos. Em meio às crianças, Saponga parou. Desconfiado, como se possuísse um sexto sentido, deu meia volta e retornou ao carro, saindo rapidamente do local. Não atirei, para preservar a integridade física das crianças. O bandido, ferido, poderia começar a disparar suas armas a esmo, com grande possibilidade de atingir um ou mais menores, que inadvertidamente estavam ao seu redor. Assim, tivemos que começar tudo da estaca zero. Libertamos sua amante. O local estava irremediavelmente queimado. Ele ali não mais retornaria. Cuidando do caso, com determinação, só ficamos eu e minha equipe. Esta se revezava. Mas eu prosseguia. Há mais de quarenta dias não ia à minha residência, fiel ao juramento que havia feito ao amigo morto. Cansado, abatido, me alimentando mal nas periferias, dormindo dentro da viatura e tomando banho nesses hotelecos de quinta categoria. A busca prosseguiu. Nesse ínterim, soubemos que Saponga, ao roubar o carro de um médico já idoso, o havia matado friamente e fugido em seguida com o veículo após ter jogado o corpo da vítima no asfalto. O filho do médico, que havia presenciado o crime, saiu em perseguição do mesmo e ao emparelhar o carro também havia sido baleado.

Socorrido por populares, foi salvo após cirurgia delicada. Ele havia reconhecido o bandido, cuja foto saía nos jornais todos os dias. Após muitas diligências sem resultado, nos chegou uma informação que prometia. No bairro do Jardim Tremembé, havia uma “boca de fumo”. O traficante, conhecido como Nelsão, havia sido assassinado por rivais do tráfico, numa disputa por pontos de venda de drogas. O seu único irmão, ainda jovem, havia timidamente assumido os negócios. Soubemos que Saponga havia sido amigo de Nelsão na prisão, e conhecia o irmão Carlinhos, quando este visitava o parente na cadeia.

O nosso informante nos confirmara ter estado com Saponga, e este, acuado e quase levado ao desespero total, havia dito a ele que iria procurar Carlinhos, para pegar algum dinheiro, e droga e em seguida fugir para o interior. A informação nos foi passada por volta do meio dia. Imediatamente nos dirigimos para o bairro do Jardim Tremembé. Uma vez ali, tivemos grande facilidade em descobrir a casa de Carlinhos. Batemos à porta, todos de armas em punho. Não sabíamos o que poderia vir lá de dentro. Entretanto, fomos atendidos por uma senhora já idosa, toda vestida de preto, sinal de luto pelo filho mais velho recentemente assassinado, parecia mais uma virago, que uma mulher. Identifiquei-me, e perguntei por seu filho. Respondeu-me que ele não se encontrava, mas que voltaria dentro de duas horas, pois fora à cidade tratar de algum negócio que ela desconhecia. Contei a ela sobre a informação que tinha, e que seu filho, se desse cobertura ao bandido, poderia sofrer graves conseqüências por isso. Ela me pediu que esperasse numa padaria distante, e que assim que o filho retornasse, iria se informar com ele a respeito do assunto e que viria ao meu encontro para conversarmos, e que não queria a viatura da polícia parada em frente à sua casa. Aceitei a proposta e nos retiramos para a padaria. Por volta de 16,00 horas, divisei seu vulto fantasmagórico. Sai da Padaria e fui ao seu encontro.

Paramos na calçada e ela me disse o seguinte: “Meu filho voltou da cidade. E segundo me disse, marcou um “aponto” com Saponga, às 17,00 horas, no meio de uma trilha que sai do Sítio dos Coqueiros, e vai até a Vila Amália. Ali há uma grande pedra, e nesse local, deverá ocorrer o encontro. Saponga está trajando uma camisa azul de gola olímpica, e portando a arma dentro da sunga. O senhor não pode falhar, senão, meu filho correrá grande risco de vida. O senhor sabe como são perigosas essas coisas”. Prometi-lhe que não haveria falhas. Disse-lhe ainda que deixaria seu único filho em paz. Agradeci-lhe a lealdade e firmeza com que havia se portado e dela me despedi com respeito. Agora, era comigo. Mais uma vez, o local estava a meu favor. Uma floresta.

Reuni o pessoal. Passei a informação pela metade. Pois queria me defrontar sozinho com o bandido. Deixamos a viatura longe, e nos dirigimos a pé ao Sítio dos Coqueiros. Atravessamos a propriedade, até atingirmos o sopé da colina. Ali, disse aos meus quatro companheiros que fossem fazendo uma busca cuidadosa dos dois lados da trilha, onde o mato espesso poderia servir de esconderijo e abrigo ao marginal que deveria estar por ali aguardando o traficante. Enquanto isso, disse-lhes que iria subir um pouco mais acima e iniciar a procura de cima para baixo.. Todos concordaram e deram início ao trabalho. Já passavam cinco minutos das 17h. Andei rápido trilha acima. E numa das curvas do caminho divisei a grande pedra indicada. Sentado sobre ela, um homem de camisa azul de gola olímpica. Ele deve ter ouvido o ruído dos meus passos. Por isso estava de costas. Pois, por essa trilha transitavam muitas pessoas. E ele não esperava um policial naquele local ermo. Em situações análogas já passadas, meu coração acelerava os batimentos cardíacos. Sentia a adrenalina fluir em minha corrente sangüínea. E agora, após 50 dias de buscas, sofrimentos e privações de toda a espécie, com o bandido à minha mercê, estava calmo, relaxado e tranqüilo. Aproximei-me um pouco mais. Não quis, e nem é do meu feitio, atirar em quem quer que seja, pelas costas, por isso, chamei-o pelo nome: “SAPONGA!”.

 

“Recusa-se a golpear Horode, lançar-lhe um dardo que fira por trás, corre a ele e é de frente, homem a homem que o ataca. Quer vencer, mas não pela surpresa e sim e unicamente pela força das armas”.
Virgílio

 

De um salto, ele virou-se para mim com a arma na mão. Nossos olhares se fitaram por segundos, diretamente. Ele ergueu a arma e fez três disparos. O curioso e que eu não ouvia os estampidos de seu revólver. Ouvia somente o barulho dos projéteis, passando pelas folhas dos arbustos às minhas costas: vrrruuum! vrrruuum! vrrruuum!. Em seguida, apenas com uma mão, manobrei a Winchester 44 e disparei. O projétil o atingiu no peito. Com a violência do impacto da arma de grosso calibre, ele bateu na pedra e caiu de costas atrás dela.

Corri em sua direção e notei que suas pernas faziam um movimento. Um movimento reflexo de quem pretendesse correr, ou estar mesmo correndo. Isso fazia com que seu corpo girasse em direção aos ponteiros do relógio. Nesse instante, perdi total e absolutamente o controle emocional. Não havia mais raciocínio, não havia mais pensamento, não havia mais bom senso, na verdade, senso de mais nada. Só queria matá-lo de vez. Descarreguei a 44 em seu corpo que ainda se mexia. Quando acabaram as balas, saquei minha 9,0 mm. E atirei nele até acabar a munição. Nesse instante, um colega meu chegou correndo, pois ouvira os tiros. Me pegou pela cintura, me ergueu do solo, e me retirou do local. Entrei em crise nervosa incontrolável. Chorava e ria ao mesmo tempo. Não sentia o meu ser. Positivamente, não era mais eu. Não tinha mais consciência de minha personalidade. Meu amigo me deu alguns safanões, e me abraçou, chorando comigo. Aos poucos, fui voltando ao natural. Minha promessa fora cumprida. Lembrei-me de Davi, de sua esposa e do seu casal de filhos tão bonitos. Deixamos o corpo no local e nos retiramos. De um telefone público, liguei para a Delegacia de Homicídios e, anonimamente, comuniquei o fato e o local, para que tomassem as providências de praxe. Em seguida, voltamos para o DEIC. No trajeto, um dos componentes de minha equipe nos contou que examinou o corpo mais detidamente, e que no pescoço do marginal havia uma corrente, com um crucifixo, e que a bala que o atingira no peito havia atingido também a figura sagrada do Cristo crucificado. Uma casualidade que eu gostaria que não tivesse acontecido.

Quando chegamos na Delegacia de Roubos, a notícia já havia se espalhado e havia grande euforia entre todos. Fui até minha sala, peguei alguns pertences que havia deixado ali.

E sai rumo à minha casa para, finalmente, poder repousar por alguns dias. Estávamos no dia 08 de janeiro de 1969. 50 dias haviam se passado desde a morte do meu estimado amigo. Não tenho explicação que justifique o excesso cometido por mim naquele momento crucial. Entretanto, agi em legítima defesa e no estrito cumprimento do dever legal. O meu comportamento naquele instante, espero que Deus o julgue e possa entender o que se passou dentro de mim.

E aos leitores deste livro, que formem seu juízo livremente e qualquer que seja o veredicto, eu o aceitarei com humildade e sem censuras. Às vezes, a vida nos apresenta circunstâncias, nas quais não podemos manter em nossos corações o sentimento do que é nobre, belo, grande e generoso e nem sempre nos acompanha “Virtus — Justitia — Pietas”. Valores e princípios de vida cultivados desde a infância, desaparecem.

A seguir a transcrição de jornais da época:

 

“DIÁRIO DA NOITE”

“Última fuga de Saponga. Houve guerra na Cantareira para matar o bandido”

 

“Ele chegou a ser cercado duas vezes, mas sempre encontrava uma maneira de escapar.

Entretanto, o fugitivo acabou sendo encontrado pelo Esquadrão da Morte. Que justificou o seu nome. Houve cerrado tiroteio, conforme depoimento de moradores do “Sítio dos Coqueiros”, no Jardim Tremembé.

Depois do pipocar dos tiros, o silêncio total... Agora todo mundo sabe que Saponga parou de fugir”.

“Saponga já havia abatido três policiais, entre outras inúmeras vítimas. Dentre estas, encontrava-se o Investigador Davi Romero Pare. Ele foi assassinado em 19 de novembro do ano passado, abatido a traição por esse bandido. Desde então, vinha se escondendo da Polícia que lhe movia intensa caçada. Sabia que era um homem marcado e que fatalmente viria a encontrar a morte. Todos os jornalistas que acompanhavam a ação dos vingadores tinham também certeza de que esse marginal estava condenado”.

P.S.: Dos três policiais mortos por Saponga, dois eram policiais militares.

 

“REVISTA FATOS & FOTOS”
Número 411 — Ano VIII
Dezembro de 1968

“A História do homem que mata frente a frente”

 

“Quem dá as ordens no Esquadrão da Morte, Astorige Corrêa é um rapaz paranaense, de 27 anos, nascido em Londrina, criado em Arapongas... Pequeno 1.68 m. de altura, franzino, a pele morena, cabelos precocemente esbranquiçados, já respondeu a vários processos. Todos por crime de morte. Absolvido em 3, inocentado por legítima defesa. Os 2 processos restantes ainda correm em Juízo, mas Astorige acredita que sairá limpo, pois sempre mata em duelo frente a frente deixando o bandido atirar primeiro...”.


H O M E N A G E M

 

Caro amigo David:

 

Beijo à distância, tuas mãos inertes, mãos de herói, agora cruzadas sobre o coração guerreiro que já não bate. Vendo-te adormecido, com o azul do céu velando teu cadáver insepulto, admiramos todos a grandeza e o valor do teu último gesto. Sacrificaste tua vida, na prática do trabalho que tanto amava. Salve triunfador! Vossa morte gloriosa e honrada, jamais será esquecida. E você, jamais será esquecido pelos teus amigos e por aqueles que mais de perto te amam. Não morreste em vão. A justiça será feita com certeza!.

 

O AUTOR


Foto: Folha da Tarde — Abril de 1968

 

...e a vida continua!


 

Capítulo II

O MUTIRÃO

 

Fazenda do Embaú, década de 1930.
Em destaque, os pais de Correinha

 

Já lá se vão muitos sóis e muitos luares desde o dia em que, sob os céus do Estado do Paraná, eu despontei para a vida. Pessoas existem que vêm ao mundo para viver uma grande e tumultuada aventura; outras, para uma vida sossegada entre o limiar dos acontecimentos e outras ainda somente para vivenciar o sofrimento e a dor.

Sou um privilegiado. Passei por todas essas circunstâncias e sobrevivi. Verdade que tomarão conhecimento nas páginas seguintes deste relato, escrito com a mesma emoção com que tudo foi vivido. Estou trilhando, quem sabe, os últimos quilômetros de uma épica caminhada. Caminhada repleta de alegrias e tristezas, venturas e desventuras, vitórias gloriosas e derrotas honrosas. Não obstante isso tudo, sempre estive revestido com a armadura da coragem, da honra e da valentia. Estou descrente da maioria dos homens. Busquei, vezes muitas, em meus sonhos utópicos, me transportar em pensamento, para uma ilha paradisíaca, onde reinasse a paz, a alegria, a sinceridade e a verdade. E nesses momentos de introspecção encontrei instantes de rara paz e felicidade. Pequenas gotas perfumadas de amor, ternura e carinho. Entretanto, a realidade dura e cruel da vida fez com que meus sonhos mais bonitos, minhas esperanças mais acalentadas, fossem morrendo ao longo do caminho e às suas margens ficaram sepultos para sempre. Apesar de tudo, nunca perdi a garra e o élan que fazem parte de minha personalidade e, graças a isso, pude superar todas as vicissitudes que a vida me colocou à frente, em forma de grandes desafios.

 

“Nós sabemos quem somos, de onde viemos e para onde vamos”.
Assertiva milenar do povo Xavante de quem, com orgulho, descendo.

 

Naquele início de outono, quando os dias em quentes e ensolarados iam se transformando em dias chuvosos, frios e úmidos, o bucolismo da paisagem das terras da Fazenda do Embaú era o mesmo. Apenas a roupagem da natureza ia tomando cores cinzas e tristes em substituição ao verde tropical e luxuriante. O crepúsculo estava prestes a ocorrer. A natureza começava a silenciar. Hora mágica em que tudo parece reverenciar e agradecer ao Criador por mais um dia de vida. Havia no ar, nas plantas, animais e pessoas, um certo recolhimento. Uma necessidade de aconchego e proteção. Até os insetos se calavam à espera das chuvas e do frio que, inevitavelmente, haveriam de chegar.

O pequeno e plácido Ribeirão do Engano que serpenteava as terras da fazenda e que nos dias ensolarados se encontrava eivado de sons, aromas e cores, parecia agora, uma lenta e triste procissão, como aquelas que acompanham os sepultamentos nos longínquos rincões de nosso Brasil. A noite chegou. O céu se adornou, miríades de cintilantes estrelas e planetas avermelhados se espalharam pela abóbada celeste. A lua em plenilúnio, lentamente foi se erguendo por sobre a mata e esparramando sua luz argêntea sobre a terra. Foi uma noite de paz. As pessoas da casa grande e mais uma dezena de empregados se empenharam até bem tarde na azáfama de adiantar os preparativos para o grande acontecimento do dia seguinte: O mutirão!

Acontecimento aguardado por todos na fazenda e pelos vizinhos, e também por várias famílias amigas que residiam mais distantes.

O dia amanheceu sorrindo, a natureza parecia em festa. O céu cinzento que ofuscava a luz do sol e que posteriormente se transformou em nuvens negras e conseqüente chuva torrencial, no dia anterior, havia desaparecido. O sol brilhava emoldurado por um azul profundo, como se soubesse de sua importância naquele momento, para pessoas humildes e ingênuas que haviam aguardado esse acontecimento com grande entusiasmo e a melhor das expectativas. Iriam divertir-se e alegrar-se. Encontrar amigos e pessoas queridas. Iriam também trabalhar muito, entretanto, a recompensa viria com certeza, à noite, quando aconteceria o grande baile, a grande festa e que seria o ponto culminante daquele dia de mutirão. Fugindo da rotina, naquela manhã, na Fazenda do Embaú, todos levantaram de madrugada. A escuridão ainda reinava. Lampiões e lamparinas foram acesas. A casa grande fervilhava com a atividade de dezenas de pessoas. Muito havia a ser feito. Muito havia que ser organizado.

Abro aqui uma pequena dicotomia nessa narrativa, para alertar aqueles que se interessam por antigos usos e costumes e que tomarão conhecimento de um retrato antropológico de uma comunidade cabocla, ao tempo da colonização do Norte do Paraná.

Aos quatro anos de idade, gozava eu ainda do privilegio de ficar na cama até que o café estivesse, pronto. Do meu quarto da casa grande, podia ouvir com clareza os ruídos que me eram familiares: o grasnar dos gansos sendo alimentados, os galos cantando para demarcar seus territórios, os pássaros em sua algaravia matinal saudando a vida, o crepitar da lenha queimando no velho fogão de taipa, o cheiro da fumaça se misturando com aroma do café que estava sendo coado, o ruído do sarilho e do balde sendo movimentados para tirar água do poço e ainda o diálogo mugido entre os pequenos bezerros e suas mães, separados desde a noite anterior para que a ordenha fosse preparada.

A ordenha já estava sendo realizada no grande mangueirão, serviço feito com maestria pelo preto Lachico. Na fazenda, ninguém sabia o seu nome verdadeiro. Nem mesmo ele, que até sua idade e local de nascimento ignorava. Muito jovem ainda, quando nas matas que viriam a ser a Fazenda do Embaú, com apenas um casebre e alguns barracos à guisa de acampamento, ele se apresentou ao meu pai solicitando serviço. Informado dos riscos que por certo haveria de correr em tão perigosa empreitada, mesmo assim aceitou, sendo contratado para exercer o mister de ajudante geral. Entretanto, com o passar do tempo, revelou-se um trabalhador de respeito. Tal sua força e disposição para executar bem e com rapidez qualquer tarefa que lhe fosse determinada. Poucos igualavam sua resistência e destreza na lida diária. Humilde, bom, calmo e tranqüilo. Não me lembro nunca de vê-lo exaltado por qualquer que fosse o motivo. Alguns anos depois, nas noites de inverno, quando a conversa se prolongava muito após o jantar, ouvi dizer que quando a Fazenda quase foi invadida por uma malta de facínoras dada ao crime de invadir e grilar terras alheias, a luta que se seguiu, foi uma refrega brutal e sangrenta. Meu pai recebeu dois balaços, ferimentos graves, mas não mortais. E quando caiu ferido, quem o pegou nos braços e o levou para um lugar seguro foi o velho Lachico que em seguida voltou ao combate, sendo o mais valente e aguerrido dos combatentes, até que os invasores fossem expulsos. Com este fato, dali em diante, ninguém mais tentou tomar a Fazenda do Embaú. A valentia do proprietário e de seus empregados se tomou lendária naquelas plagas. E em muitas rodas a história era contada com entusiasmo pelos narradores, muitos dos quais juravam ter participado da luta. Depois disso tudo Lachico passou a ser um homem de confiança. Seu serviço foi amenizado. Seu ganho foi consideravelmente melhorado. Assim, onde quer que meu pai fosse, Lachico estava sempre por perto como um fiel cão de guarda e sempre fumando seu velho cachimbo, acessório que já fazia parte da sua personalidade. O dia estava lindo. Sentindo o cheiro aromático do café, gritei por minha mãe. Entretanto, quem apareceu para me vestir e calçar, foi nossa empregada Alvarina. Alvarina, sertaneja de porte esguio, fronte sempre erguida pelo orgulho da beleza e do corpo saudável e escultural que possuía. Sua disposição para o trabalho era incansável. Fui levado por ela até a bacia de esmalte branco colocada sobre uma armação metálica num canto da grande cozinha. Ali, meu rosto foi ensaboado por mãos rudes e fortes e senti na pele a água naturalmente morna, saída há pouco da cisterna. Os olhos arderam um pouco como todos os dias acontecia.

O sabão de pedra feito em casa à base de vísceras de porco e soda cáustica, não se compara com os sabonetes neutros hoje à venda em farmácias e supermercados, entretanto no mister de desinfetar e limpar continuam imbatíveis. Escovei os dentes o mais rápido que pude. Após o que, corri em direção ao grande fogão de lenha, encostei-me em sua taipa e fiquei ali, sentindo a deliciosa sensação de calor que me aquecia o corpo e acariciava minha alma infantil.

Minha mãe entrou agitada. Deixou no chão da cozinha os dois baldes de leite recém ordenhado e após me beijar e acariciar os cabelos, ordenou à menina Francisca, caboclinha de 12 anos de idade que levasse o leite para a despensa grande, onde seria colocado em latas de vinte litros e em seguida seria adicionado o coalho, o que possibilitaria sua transformação em delicioso queijo. O café foi servido, O pão, feito em casa e assado no forno de lenha, foi retirado dos cobertores onde se encontrava envolto, (para não endurecer a casca) e colocado à mesa A manteiga, o queijo fresco, o mel, o café, tudo enfim surgia em nossa casa como as flores e as araucárias do campo, naturalmente. O negrinho Irineu entrou na cozinha para tomar o seu café. Francisca com sarcasmo na voz, e um pouco de inveja das regalias que o menino gozava na fazenda por ser meu pajem, logo o criticou, mandando-o lavar as mãos e chamando-o de guloso, virou bruscamente as costas num gesto de suposto desprezo. Meu pai (Osório Silva), nome pelo qual todos o conheciam, entrou em seguida.

Ambos iriam mais tarde ser personagens de uma das mais lindas e místicas histórias que aconteceram em minha vida. História cujo primeiro capítulo já tinha sido vivida e escrita e que será contada em um ponto mais adiante nas páginas deste volume. Um fato repleto de beleza, de fé e de ternura, como se a provar aos seres humanos que o destino é uma certeza em nossas vidas. E pela conversa que aconteceu à mesa, lembrei-me entusiasmado de que neste dia (um Sábado), já estava acontecendo o tão aguardado mutirão. A tarefa, (uma derrubada) deveria ser executada em apenas um dia. E a batalha já havia começado nas frentes de trabalho. Quase uma centena de trabalhadores convidados já se encontrava nos domínios da fazenda. Vieram acompanhados de suas famílias. Chegaram todos dispostos a trabalhar e a ajudar, pondo em prática suas habilidades para lidar com uma gama variada de serviços. Pessoas, outras, que residiam muito distante, ainda estavam chegando. Homens, mulheres, velhos e jovens, meninos e meninas, crianças de todas as idades se faziam presentes e todos ostentavam um largo sorriso em seus rostos. E vieram para viver um dia de festa e alegria. Todos teriam muito que fazer. A união faz a força. Esse refrão seria provado neste dia. Do alto dos meus 60 anos de idade e muita experiência acumulada, conhecendo como conheço o espírito dos homens de hoje, lamento afirmar, com tristeza no coração e no espírito, que nunca mais vi nada parecido em matéria de unidade e solidariedade espontânea. Gesto grandioso. Já que tudo era feito por livre vontade, não havia obrigação, não havia vaidade pessoal.

Um mutirão é coisa de um dia. Mas sua preparação é demorada. Ao tomar a decisão de realizar esse evento, o dono da propriedade deve, antes de mais nada, mandar um mensageiro a cavalo fazer o convite a todos os vizinhos da zona rural. Eram convidados também amigos e conhecidos residentes no povoado que é a sede do município. Como em todo acontecimento festivo, apareciam invariavelmente os “penetras”, que não deixavam de ser bem-vindos. Necessário se fazia receber dos convidados a confirmação de presença, para que se pudesse calcular a quantidade da vitualha a ser preparada para o consumo. O mensageiro, ao entrar em contato com os convivas, tinha por obrigação deixar bem clara a natureza do trabalho a ser executado, com o objetivo de que todos pudessem trazer consigo as ferramentas adequadas para sua realização. Pois um mutirão pode acontecer para se executar uma variedade de tarefas tais como: derrubada de mato, terminar uma colheita que esteja atrasada ou ainda a construção de uma casa ou celeiro entre outras. Um dia antes do mutirão, chegam os “lidadores”. Os lidadores são pessoas altamente especializadas no trato de sacrificar os animais. Sabem a forma correta de cortá-los para que sejam melhor aproveitados. Trazem ainda consigo as mais variadas receitas de preparo que culminam por dar um sabor especial a cada prato. Esses especialistas, quando chegam, já se fazem acompanhar de suas respectivas famílias. Ao dono da propriedade compete providenciar alojamento e alimentação para todos. As esposas desses personagens, em sua maioria, são ótimas cozinheiras. À minha mãe competia comandar esse pequeno exército a quem se juntavam mulheres e moças residentes na fazenda para exercerem as funções de ajudantes de cozinha. As refeições a serem servidas nesse dia, obedeciam a seguinte ordem: café da manhã, almoço, merenda da tarde, e finalmente, com os pratos mais requintados, o grande jantar. Engoli o café o mais rápido que pude. Em seguida sai correndo até a grande varanda que circundava a casa grande. Desci a pequena escada de um salto e já me encontrei em meio à grande balbúrdia que ali se formara. Nosso capataz, o preto Lachico orientava as pessoas que iam chegando Fazia-se uma rápida verificação nas ferramentas que cada um trazia às mãos, para aquilatar a condição de uso de cada uma. Se o machado, foice ou facão não se encontrassem em seu melhor estado de uso, o seu proprietário era encaminhado incontinenti ao afiador para proceder ao complicado ritual de bem afiar a ferramenta. Só então o convidado era conduzido à frente de trabalho por um dos meninos que ficavam por ali para essa finalidade. Um fato que vale a pena ser referido é que os homens possuidores de ferramentas de boa qualidade, geralmente importadas como as da marca “Sollingem”, se orgulhavam disso. E em tom de brincadeira, enalteciam a qualidade de seus equipamentos e depreciavam as dos outros. Até apelidos eram dados a essas raridades, tais como: “corta tudo”, “engole mato”, etc. E nesse clima de alegria e descontração os próprios sertanejos, em sua simplicidade, faziam, inconscientes, um jogo psicológico que resultava em maior e melhor aproveitamento e desempenho de todos no trabalho a ser levado a cabo. Esse jogo consistia do seguinte: O capão de mato a ser derrubado era dividido em eitos, (faixas de floresta com iguais medidas em comprimento e largura). Em cada eito, um igual número de homens.

As equipes assim distribuídas competiam entre si e o repto era lançado: “Vamos ver quem vara lá em cima primeiro!.” Dado o comando de início, o som das ferramentas contra a floresta, os gritos de incentivo e de desafio se misturavam no espaço, formando uma sinfonia rude, alegre e franca, que dentro de sua pureza tocava a alma de todos, como uma marcha heróica de Wagner, concitando à luta. Oito horas da manhã. Todas as crianças capazes de carregar um corote de água estavam enchendo os pequenos recipientes de madeira com água pura da mina, e dali, em fila, qual formigas, caminhavam até ao sopé do serrado onde a derrubada já ia adiantada. Não obstante ser outono, a manhã que se apresentara fria se transformara em manhã de sol aberto, nuvens brancas, ligeiras corriam em festa pelo céu azul. Corriam rumo ao horizonte, como se tivessem, ali, um encontro marcado. E em seu passeio, se olhassem para baixo, e vislumbrassem a atividade que no solo se desenrolava, por certo, repetiriam a frase de Sócrates: “Em festim de bravos, bravos vão livremente”. Pois todo sertanejo é um bravo!.

Os aromas, os mais variados, enchiam o ar no terreiro à frente da casa grande. O vozerio, o colorido das chitas e dos brins, os sorrisos e a movimentação quase coreografia de todos, trazem hoje ao meu espírito a comparação com um grande palco, onde a peça mais singela e terna estaria sendo representada por um sem número de atores de todas as idades. Nós, crianças, já tentávamos sem muito sucesso nos apoderar de algumas guloseimas. Entretanto, nossos pedidos e súplicas não encontravam o eco de um sim como resposta. Apenas o invariável: “esperem até ficar tudo pronto!”.

Assim, só nos restava ficar à espreita e aguardar um momento de distração de guardiãs tão implacáveis, e então surrupiar um pedaço de bolo de fubá ou de milho, ou qualquer outro petisco que estavam dispostos sobre as longas mesas ali armadas com tábuas e cavaletes. Quando conseguíamos êxito, saíamos correndo o mais rápido possível para saborear o quitute em local seguro. Em meio a esse turbilhão de acontecimentos, fomos convocados para nossa primeira tarefa do dia: levar o café da manhã até a frente de trabalho. Essa refeição consistia em café puro, que era conduzido em bules e chaleiras, pedaços de bolo dos mais variados sabores, virado de frango e de carne desfiada ao que se misturava ainda farinha de milho e ovos. As colheres e canecas de alumínio iam acondicionadas em grandes embornais. O virado, os pedaços de mandioca frita, as batatas doce cozidas eram transportados em travessas de cerâmica, bacias de alumínio e gamelas de madeira. Às nove horas daquela manhã, o café já havia sido servido e os homens voltado ao trabalho. Satisfeita a fome e renovado o ânimo, a competição ficou mais acirrada. Os representantes da fazenda sede se desdobravam para manter a hegemonia. Quando o preto Lachico juntou-se à turma, o nosso Narciso, outro funcionário dotado de muita força e habilidade no manejo do machado, sua ferramenta predileta, deu o grito de guerra: Eia! Rapaziada, o negão chegou!, vamos pra frente!, vamos ganhar de novo!. De imediato, como se um acelerador fosse acionado, o ruído das ferramentas contra a floresta multiplicou seu ritmo e o pessoal foi avançando morro acima. A nós, restou concluir a próxima etapa de nossa tarefa, ou seja, levar todos os utensílios de volta para a casa grande. Contávamos agora com a ajuda das mocinhas casadoiras, cujos eleitos ou pretendentes se encontravam na frente de trabalho Durante a refeição já finda, acontecia entre eles, (acanhados namorados ou pretensos candidatos), trocas de olhares repletos de promessas de amor. Só as mais atrevidas dirigiam um cumprimento ou algumas breves palavras aos seus preferidos. Tudo com muito recato e alguns rostos ficando corados de ingênuo pudor.

 

Sem amor, nem cidades, nações ou indivíduos serão capazes de produzir grandes e belas obras em qualquer tipo de atividade humana”.
(Fedro)

 

Tantos outonos já se foram. Lembranças, muitas, já quase perdidas nas dobras do tempo. Entretanto, apesar desse passado tão distante, essas recordações ainda se encontram vivas e coloridas em minha memória. Fecho os olhos e me transporto em pensamento para o terreiro da casa grande, onde me encontro sorrindo, brincando ouvindo os mesmos sons. sentindo os mesmos aromas e a mesma alegria dos meus folguedos infantis. Que coisa maravilhosa é ser humano e gozar de tantos recursos que nossa constituição biológica é capaz de realizar. Proezas que nem os mais sofisticados engenhos cibernéticos poderão sequer tangenciar mesmo num futuro distante. Naqueles tempos, o amor que fazia pulsar os corações muito se assemelhava ao nascimento de uma flor, sem pressa e desabrochando aos poucos até mostrar-se em todo seu esplendor e perfume. Nos dias tumultuosos de hoje, as pessoas já não trazem mais consigo a paciência, virtude dos sábios e nem têm tempo para o romance, moldura dourada de qualquer união entre dois seres que verdadeiramente se amam. O amor verdadeiro vai — com o recrudescer da luta pela sobrevivência — estiolando-se a cada dia, a cada hora, a cada minuto, até desaparecer dos corações e dos espíritos e será quem sabe, no futuro, apenas una lenda, uma lenda bonita que há de comprazer as almas, que apesar de tudo, ainda estarão sensíveis à beleza, à ternura e à felicidade que só tão nobre e quase divino sentimento pode trazer em si. Nosso retorno para a sede da fazenda foi muito animado. Cada um de nós levando consigo aquilo que sua capacidade física permitia. Os meninos maiores, além dos utensílios, davam um jeito de ainda levar arrastadas serpentes de vários tamanhos, amarradas em cipós. Ali iam cascavéis, urutus, e até uma Jararaca do rabo branco, esta última muito temida pelo terrível efeito de sua peçonha.

Todos esses répteis haviam sido mortos pelos homens que trabalhavam na derrubada. O objetivo dessa mórbida atitude era, não outro, senão o de unicamente, pregar enormes sustos em mulheres, senhoritas e crianças no terreiro, o que causava grande alvoroço e muita diversão a todos os presentes.

Após nos desfazer de nossas incomodas cargas, tivemos, até a hora do almoço, algum tempo para brincar no grande pomar localizado nos fundos da casa grande, contínuo à horta que minha mãe cuidava todos os dias com muito desvelo. A folga foi breve. Logo fomos chamados para o almoço. Pois, em seguida, deveríamos voltar até a frente de trabalho levando água e o almoço para os heróis da grande jornada. A quantidade de coisas a ser agora transportadas era bem maior. Isso exigiu um reforço de pessoal. Cozinheiras, ajudantes e até alguns lidadores foram convocados para levar a bom termo a tarefa. Quando lá chegamos, notamos o grande avanço realizado pelos trabalhadores. Mais da metade do serviço já estava concluído. Por isso, encontramos grande dificuldade para alcançar o ponto onde o pessoal se encontrava trabalhando. O mato derrubado formava uma barreira difícil de ser transposta. Quando estávamos nos aproximando, alguns homens pararam o trabalho e abriram, com facões e foices uma pequena picada por onde pudemos passar com certa facilidade. Na clareira aberta, o almoço foi servido. Foi um momento bonito. Todos brincavam entre si e elogiavam o sabor da refeição. O grupo da fazenda sede, que estava à frente dos demais, dirigia gozações e desafios aos componentes das outras equipes. Estes, por sua vez, prometiam melhorar o rendimento e afirmavam que o dia ainda não havia acabado e haveriam de alcançar e vencer os ponteiros. O almoço foi rápido. Em seguida todos se apresaram na volta ao trabalho. A competição estava cada vez mais acirrada. Eu estava sentado sobre um tronco caído. Não possuía ainda o saber da importância da preservação do meio ambiente. Não tinha consciência de que aquelas árvores, ali derrubadas, eram seres vivos. Que sentiam também dor e medo. Meu pai sim; estava à frente da maioria das pessoas do seu tempo. Era o único fazendeiro da região que preservava mais de um terço das matas e, à beira do rio Laranjinha que fazia parte das divisas de nossa fazenda, deixou um quilômetro de floresta nas margens do rio para proteger a fauna e as barrancas contra a erosão fluvial. Em nossas terras, podia-se ver dezenas de capões de mato de cinco e de dez alqueires preservados entre as áreas de plantio. Muitos o criticavam pela perda inútil (segundo pensavam) de tanto terreno arável. O cheiro do mato derrubado composto de diferentes e variadas espécies produz aromas e fragrâncias diversificados e seu perfume é indescritível. Só mesmo quem já o sentiu pode saber com exatidão sobre o que estou falando. É tão marcante esse aroma, que até hoje, tantos lustros já passados, posso, sem muito esforço, reviver aquele instante repleto de magia e sentir aquele exótico perfume, que ainda agora me fascina. Poucas horas depois, tivemos que repetir tudo. A merenda da tarde foi servida. Os homens demonstravam um grande cansaço. E após o breve repasto, voltaram ao trabalho. As horas seguintes, que precederam o crepúsculo, foram ocupadas por grande parte das crianças com a tarefa de levar água para os trabalhadores. Essa ocupação deixou a todos extenuados porque o calor forte e a grande distância percorrida cobraram o seu preço. Muitos adormeceram sob a sombra das árvores frutíferas no pomar, inclusive eu. Enquanto isso, nas frentes de trabalho, os sertanejos não esmoreciam em sua labuta. Empenhados em terminar o serviço antes do anoitecer, e procurando vencer a disputa a qualquer preço, (havia um prêmio para a equipe vencedora). Os caboclos davam o máximo de si, buscando forças que já quase não mais existiam. Apenas a garra e o espírito de luta os compelia a continuar com tanta determinação. Quando acordei do meu sono reparador, me dei conta que estava em minha cama, levado que fui, por mãos que até hoje desconheço. “Como são belos os dias do despontar da existência, respira a alma inocência, como perfumes à flor”.

Que doce saudade em meu coração. Casemiro de Abreu deve, com certeza, ter tido uma infância feliz, como foi feliz ao escrever os seus tocantes versos. O sol estava se pondo. Todas as aves já estavam ávidas em busca dos seus ninhos aconchegantes. Bandos de pombas do ar, de papagaios, araras, baitacas e tantos outros, passavam em vôos velozes rumo às florestas adjacentes. O cheiro dos assados recendia forte e gostoso nas dependências da casa grande e no espaçoso terreiro à sua frente. Ali, homens trabalhavam terminando de erguer um enorme empaliçado de lona, sob o qual seria servido o grande banquete, festim que deveria durar a noite inteira.

O dia, assim vivido, passou célere. Por trás da serra verde escuro, silenciosa em seu poder, majestade e grandeza, o astro rei já havia desaparecido. A noite se aproximava lenta e sorrateira. Não era um crepúsculo triste como quase todos o são. Somente a natureza seguiu sua imutável liturgia de silêncio e respeito, como se grata, por mais um dia de vida. A natureza não transgride as suas leis, porque não possui livre arbítrio. Houve também, naquele momento bonito, um rápido instante, instintivo quase, de meditação e reverência. Era como se a terra parasse por uma fração de segundo. À frente do empaliçado nossa atenção foi desperta pela enorme fogueira que ali estava sendo erguida. Lembrava muito a forma de uma torre medieval de observação, tal a sua altura. Sua armação era composta de troncos dispostos de forma quadrada em sua base e assim sucessivamente, colocados uns sobre os outros, diminuindo seu comprimento o que lhe dava uma aparência piramidal. Quando estivesse acesa, forneceria luz e calor ao ambiente onde aconteceria a grande festa. Nesse momento, ouvimos um vozerio vindo dos lados da pequena elevação topográfica que bruscamente decaía em direção ao terreiro da casa grande. O primeiro grupo de trabalhadores, os vencedores do grande desafio, que já haviam terminado o seu “eito” e voltavam alegres, como só os ganhadores sabem ser, e traziam em seu entusiasmo o ingrediente principal para a noite festiva que iria começar: a alegria!. Os louros da vitória ficaram com a equipe da Fazenda Bela Manhã. O Dr. Natel, seu proprietário, exultou com o feito dos seus peões. O nosso pessoal foi derrotado nos últimos metros do seu eito, pois que era composto de grandes árvores de peroba e cedros gigantescos, uma fatalidade da sorte. Isso lhes tirou a vitória e tiveram que se contentar com um modesto terceiro lugar. Entretanto não se lhes foi tirado o mérito de haver lutado muito. Com élan e garra. Mas logo tudo foi deixado para trás. O que importava mesmo, era o divertimento, o jantar, os namoricos e ainda os dois casamentos que seriam celebrados pelo velho padre Júlio que já havia chegado. Meus pais seriam os padrinhos de ambos os casais. Os noivos eram residentes em nossa colônia. A Fazenda do Embaú orgulhava-se de possuir em seus domínios uma Escola Municipal e uma farmácia. O Sr. Oswaldo e Da. Hilda eram, respectivamente, ele farmacêutico e ela professora, formados em universidade o que não deixava de ser um fato surpreendente naquelas paragens. Percebiam um salário generoso, mas isso não explicava o fato de terem vindo exercer suas profissões em ambiente tão agreste e inóspito. Só muito mais tarde, pude entender o porquê. Encontrei ocasionalmente esse casal mais de quarenta anos depois residindo na cidade de Quinta do Sol, localizada no norte do Estado do Paraná. Com os filhos já criados, muitos netos, idosos, ainda tocando uma moderna farmácia. Fui levado até eles por um amigo de infância que ali residia. Fui apresentado e, quando me identifiquei, houve uma grande alegria. Conversamos muito, fiquei para o jantar. Rememoramos os velhos tempos. Revivemos fatos e histórias. E nesse clima de cordial amizade agora revivida, fui informado que quando receberam a proposta de trabalho feita pelo meu pai, proposta que foi intermediada pelo pai de Da. Hilda que era um amigo, não foi de imediato aceita. Somente resolveram aceitar depois de alguns dias após sopesar os prós e os contras que tal decisão naturalmente envolvia. E o que mais pesou, para que aceitassem, foram as informações sobre o caráter e a correção do futuro empregador. Em entrevista posterior, segundo me informaram, meu pai lhes transmitiu tanta honestidade, bondade e firmeza de propósitos, que eles se sentiram seguros e atraídos pelo grande desafio, pois ambos eram dotados de espírito aventureiro. Fiquei muito orgulhoso, quando me disseram ainda que sempre tiveram meu pai como um grande homem, e que sempre o recordaram com carinho e saudade. Esse encontro me deixou muito feliz. Nunca mais os vi. Espero que ainda estejam com saúde e felizes como sempre.

Os homens continuavam chegando. O trabalho estava concluído. As ferramentas eram depositadas em um galpão que fora para isso destinado, além do que servia também de vestiário masculino. Ali, cada homem ou rapaz apanhava sua roupa de festa e dirigia-se rapidamente para as margens do ribeirão de águas límpidas e cristalinas, para o banho restaurador das energias gastas em dia tão extenuante de trabalho pesado. Para melhorar as condições do local, tábuas de pinho já estavam ali dispostas para que os homens pudessem, após o banho, calçar seus sapatos, sem sujar os pés de lama ou areia. As senhoras, meninas e senhoritas, começavam bem antes o seu ritual de beleza. A espaçosa cozinha da casa grande, agora já limpa com esmero e capricho, onde apenas o velho fogão continuava aceso, transformava-se, como num passe de mágica, em um grande salão de beleza. Local para onde senhoras, senhoritas e meninas se dirigiam após o banho, já vestidas, começavam a pentear seus longos cabelos. Umas ajudavam as outras nesse ritual. Amarrar as fitas nos cabelos se transformava, às vezes, em complicadas operações que exigia o concurso de até duas auxiliares. Fitas de cores as mais variadas. Os vestidos de chita estavam impecáveis, bem passados e limpos. Havia também algumas mulheres ou moças cujas famílias ostentavam uma melhor condição econômica, que se vestiam com roupas mais refinadas de linho ou seda. O doce aroma das águas de cheiro volatilizavam o ar. Na ausência do rouge, eram usados pedaços de papel de seda vermelhos ou cor de rosa, para dar um colorido bonito e vistoso naqueles rostos trigueiros. No espaçoso terreiro, a grande fogueira já estava sendo acesa. Acender aqueles troncos de grande diâmetro, exigia o uso de galhos secos de araucária com as respectivas folhas, muita palha de milho e muitos gravetos. Isso tudo era embebido por querosene e só então se ateava fogo. A molecada, entre os quais eu me encontrava, ficava ali ao redor observando o preto Lachico em sua tarefa e tentávamos em vão ajudá-lo. Ajuda que ele repelia pacientemente, em virtude do risco de alguém mais desavisado sofrer algum tipo de queimadura. Foi nesse momento que ouvimos o espoucar dos primeiros rojões de vareta. Outros rojões foram subindo deixando para trás um rastro de faíscas brilhantes e seu estrondo ecoava pelo espaço daquelas terras sem fim. Entre as pessoas ali reunidas, que já eram muitas, houve um grande alvoroço. A causa de tanta agitação era a chegada do sanfoneiro, personagem de vital importância, pois sem ele não poderia haver o tão esperado baile. Chegou com sua charrete leve e bonita, roupas coloridas, e um ar altaneiro que só os artistas famosos sabem ostentar em seu rosto. Fazia-se acompanhar de sua esposa e de seu filho, ambos músicos, ela tocava o pandeiro e o mocinho uma viola sertaneja. Parou seu veículo à frente da casa grande. O cavalo que puxava a charrete estava muito agitado. O estouro dos rojões e a agitação faziam o pobre animal ficar muito irrequieto. O Sr. Arlindo, Da. Nair e seu filho Luizinho desceram sorridentes e alegres com a forma carinhosa como foram recebidos pelas pessoas ali presentes, em seguida, dirigiram-se à comissão de recepção. Ali estavam meu pai, minha mãe e outros casais de fazendeiros da região. Foram recebidos com alegres e respeitosos cumprimentos, sorrisos e abraços, pois todos se conheciam de longa data e de outras festas.

Nesse clima foram conduzidos ao grande salão da residência, já todo iluminado pelos lampiões petromax e decorado a caráter para a festa. A grande sanfona de oito baixos e os outros instrumentos foram trazidos pelos peões e colocados na mesa postada sobre estrados que formavam o palco improvisado.

Antes do trabalho, os artistas precisavam alimentar-se, uma vez que haviam viajado mais de dez léguas, desde São Jerônimo da Serra, cidade paranaense onde residiam. Todos se dirigiram para a cozinha. Ali, sobre a grande mesa, já estavam os melhores quitutes destinados aos convidados mais importantes. Os outros fariam sua refeição sob o empaliçado armado no terreiro. Assim, entre “causos” e casos, muitos sorrisos e muita cordialidade, foram servidos aos artistas frangos, cabritos, leitões e farofas. Por sobremesa, toda uma variedade de doces caseiros feitos de abóbora, moranga, batata doce, banana e outros. As bebidas mais finas foram também ali servidas. Lá fora, sob o gigantesco empaliçado, o jantar já estava sendo servido. Moças e senhoras traziam os pratos que eram colocados sobre as grandes mesas feitas de tábuas e cavaletes de madeira; os bancos ao redor já estavam todos ocupados. Os sertanejos que não puderam sentar comiam em pé. A animação e a alegria galvanizavam a todos. Os cães latiam, a criançada corria pelo terreiro e pelo pasto, os rojões subiam rumo ao céu ativados com maestria pelo o Sr. João fogueteiro, (ele mesmo os fabricava e vendia), o firmamento agora já bordado de estrelas, a lua cheia começava a despontar majestosa por detrás da serra ao mesmo tempo que alguns violeiros cantavam suas mágoas e alegrias em modas eivadas de sentimento caboclo e poesia sertaneja.

A fogueira, já incandescida, iluminava todo o ambiente. As caboclinhas faceiras andavam pra lá e pra cá, num vai e vem incessante ante os olhares da rapaziada impaciente. Os meninos, em disparada, corriam ora para o pasto, ora para o mangueirão e até a horta para se apoderar dos rojões de vareta que caíam acolá. Hoje, recordando este momento, penso que os homens são assim mesmo, como os rojões de vareta, em sua trajetória pela vida: Ambos têm o seu instante de ascensão, apogeu e queda. E àqueles que caem, só lhes resta a ternura das crianças. No galpão, um pouco distante, alguns homens e rapazes se divertiam ao som ritmado da viola, sapateando um catira forte e viril. Foi nesse clima, que o som bonito e romântico da sanfona chegou a todos. Em seguida, as damas acorreram ao salão e, em feminina expectativa, tomaram seus lugares em dezenas de cadeiras dispostas junto às paredes, pois dali seriam tiradas para dançar pelos rapazes, que foram chegando meio acanhados, uns se postavam à esquerda e outros à direita. Dali, tinham uma visão ampla do lugar onde se encontrava a cabocla de sua preferência.

A primeira música, uma valsa, seguindo a tradição, seria para o casal anfitrião dançar enquanto todos deveriam ficar assistindo. Relembrando esse momento, posso ver ainda meu pai. Alto, porte elegante, rodopiando com minha mãe, morena, bonita, ambos felizes sorrindo para todos. Saudades do Matão foi a valsa escolhida para homenagear os donos da festa. Essa valsa trazia em si romantismo e tristeza e emocionava a todos que a ouviam. Ainda hoje, quando a ouço, lágrimas de saudade e sentimento afloram aos meus olhos. Lágrimas por um passado que não mais há de voltar, dias maravilhosos cuja lembrança espero me acompanhem até ao meu derradeiro instante nessa vida. Brincamos muito. Comemos todas as guloseimas que podíamos. Assim, embalado por tantos sons, sentindo os aromas dessa noite de festa, recordando as aventuras do dia vivido com tanta intensidade e alegria, fui mergulhando num sono profundo nos braços de minha mãe. Meu espírito criança deixava os companheirinhos da terra, para, quem sabe, ir brincar com os pequenos anjos no céu.

Deus, em sua sabedoria, proporcionou a mim uma infância maravilhosa e feliz. Prevendo já, quem sabe, as asperezas do meu destino no futuro. Não poderia encerrar este capítulo, sem prestar uma homenagem de amor e ternura ao meu pai.

Pai, você foi um daqueles homens cuja trajetória pela vida muito se assemelhou a uma estrela. Pois, muito após tua partida, tua luz continua iluminando a terra, o meu caminho e a eternidade. Fui testemunha viva de tua luta colossal e heróica. Você segue sendo para mim o ponto de referência e orientação, tua honradez e correção, tua bondade e valentia, são atributos repletos de magia que forjaram o meu caráter íntegro e determinado. Observo e sigo sempre tua luz, luz que ilumina minha trilha, e me abençoa com certeza, todos os dias, até o fim dos tempos. Tenho feito o melhor que posso para honrar teu nome, dignificando-o, e assim, sob a influência do teu nobre exemplo, merecer essa bênção. Obrigado por tudo.

 

O amor que honra a verdade do amor, ama antes de tudo a alma que é eterna e então o amor funde-se entre as pessoas e torna-se apenas um e vive para a vida e para além dela, até após a morte e continua pela eternidade do espírito”. (Pausanias)


 

Correinha aos 3 anos de idade em companhia de sua mãe Djanyra Corrêa


 

Capítulo III

O CASO DOS IRMÃOS CARDOSO

 

Capa da revista Manchete N° 791, Rio de Janeiro, 17 de Junho de 1967

 

Decorria o mês de junho de 1967. Inverno brasileiro. Véspera do início da guerra dos seis dias entre a RAU e Israel. Nessa manhã, teria início, para a Polícia Civil de São Paulo, um dos casos de maior repercussão de sua história. Em primeiro lugar por ser um fato inédito, e em segundo por estar em jogo a vida de duas crianças.

O dia havia amanhecido frio, o céu nublado e o sol aparecendo entre nuvens cinzentas.

Qualquer policial que leve a sério sua função, que desempenhe sua atividade profissional com dedicação e responsabilidade, agradece, naturalmente, o fato de estar vivo a cada dia que tudo recomeça. Nessa manhã, comigo não foi diferente. Após o banho desci para o café. A noite anterior havia sido tensa e desgastante. Terminada a refeição matinal, caminhei até a sala onde se encontrava o aparelho de som, coloquei um LP de música clássica e fiquei ouvindo “La Traviatta”, de Verdi, para acalmar o espírito. Em seguida, retirei o carro da garagem e me dirigi ao Departamento de Investigações, onde trabalhava no Setor de Assaltos, Roubos e Extorsões. Abro aqui uma dicotomia, para explicar ao leitor o porquê do meu estilo de vida de classe média alta, sendo um funcionário do Estado cujo salário não permitiria viver nesse nível. Entre outros bens deixados pelo meu pai como herança, estava uma fazenda de café, com mais de setenta mil pés plantados, o que nos proporcionava, anualmente, ganhos elevados e, conseqüentemente, uma vida financeira muito folgada. Não há esnobismo nessa citação. Nunca abandonei a simplicidade que acompanha as pessoas que são criadas na zona rural. O meu lado caipira nunca foi deixado de lado, não obstante ter tido uma educação de alto nível em colégio de irmãos Maristas, mestres pelos quais até hoje nutro a mais profunda e respeitosa gratidão. A vida e as circunstâncias, anos mais tarde, tiraram de mim todos os bens materiais. Mas o pouco saber e cultura apreendidos, esses ficaram comigo e foram de grande valia nos momentos difíceis pelos quais tive que passar. Àqueles que promoveram as injustiças que me foram impostas, quero deixar uma mensagem: Não os odeio, não guardo mágoas e nem rancores, porque nunca os temi. E quem nada teme, nada odeia. Deixo tudo nas mãos da lei universal de causa e efeito que, por ser justa e imparcial, fatalmente colocará coisas e pessoas em seus lugares devidos, a seu tempo.

Cheguei ao edifício do Departamento de Investigações no número 527 da Rua Brigadeiro Tobias. Uma vez no terceiro andar, dirigi-me à minha sala de trabalho. Ali estavam os membros de minha equipe, nomes que faço questão de citar, por terem sido policiais de primeira linha no combate ao crime e a criminosos da mais alta periculosidade: Juliano, Ciganinho, Geraldo Jorgino, Geraldo Jacareí e Oscar Caser. Chefiei essa equipe em centenas de missões do mais alto risco. Jornais da época comprovam esses fatos. Eram todos veteranos nas lides policiais; entretanto, aceitavam minha liderança com satisfação e respeito. Durante minha carreira, não conheci homens mais valentes, por isso minha homenagem a eles, já que a instituição jamais reconheceu o seu valor e os relevantes serviços prestados à sociedade. Seus nomes, até hoje, são lembrados como uma lenda de coragem e honradez nos meios da Polícia Civil deste Estado. Cumprimentei a todos e ficamos examinando os boletins de ocorrência lavrados na noite anterior. Não havia nada fora da rotina. Entre os papéis sobre minha mesa, havia uma solicitação do Cartório Central para que fôssemos até a Penitenciária do Estado buscar um sentenciado para ser ouvido em um processo, atendendo a uma cota do Ministério Público. Anexa, uma ordem judicial que autorizava a operação. Solicitei que eles fossem cumprir a ordem. Fiquei para atender o público. Mas naquele dia frio e úmido, nem isso estava ocorrendo. Por volta das 13:00 horas, o Encarregado Geral da Delegacia adentrou minha sala; era o Sr. Rogério da Cruz Jorge; estava muito agitado. Era também um grande policial. Um grande líder. Eu o cumprimentei com respeito. Ele respondeu ao cumprimento e não disse nada. Ficou em silêncio me fitando por longos instantes e deve ter pensado consigo mesmo: “Esse menino não serve, é muito jovem e com pouca experiência”. Em seguida, perguntou pelos homens de minha equipe. Expliquei que haviam ido cumprir a uma ordem de remoção da Penitenciária para o Departamento. “Isso é um problema”, disse ele, “terei que escalar outros investigadores; não há tempo para esperar que eles voltem.” Em seguida saiu apressado. Necessário se faz registrar, nesse relato, que o Sr. Rogério foi vítima, poucos anos depois, de uma grande e desumana injustiça. Já nessa época, ele contava com tempo para se aposentar, só não o fazendo porque a polícia era sua vida. Por motivos nebulosos, ele foi exonerado do cargo. Perdeu direito à aposentadoria a que fazia jus com todos os méritos. O desgosto e a amargura fizeram com que falecesse prematuramente, na mais negra e cruel miséria, cercado ainda do mais desprezível e glacial abandono.

Chorei sua morte. Beijei sua fronte respeitável e encanecida durante o seu velório, onde estive presente em circunstâncias insólitas que mais adiante tratarei de esclarecer.

Com a espada de Dâmocles sobre a cabeça: assim vive um policial. Terminei de examinar a grade (relação de presos) de minha equipe e saí em seguida até a Chefia para me inteirar do que devia estar ocorrendo. Ali não havia ninguém. Percorri as equipes e fui informado que vários encarregados foram convocados para irem com urgência para a Diretoria do D.I.(Departamento de Investigações). Entretanto, numa das salas da equipe sul, ainda encontrei o Cataldo e o Godoy, a quem chamávamos carinhosamente de detetive Zé Pedro, pois seu nome completo era José Pedro Marcondes de Godoy. Estavam fechando as gavetas de suas mesas, e apanhando armas de grosso calibre. Indaguei o motivo de tanta pressa e agitação. Me responderam gentilmente que não sabiam do que se tratava, mas que deveria ser algo de muita importância e que estavam se dirigindo para o gabinete do Dr. Nemr Jorge para uma reunião de emergência, para a qual foram convocados.

Deixei as dependências da Delegacia de Roubos e subi até ao quinto andar onde se localizava a Diretoria do Departamento.

Portas trancadas. Corredores vazios. Silêncio e mistério. Minha auto-estima estava abalada. Me senti o pior dos policiais. Entretanto, a curiosidade em mim aumentava. Ainda restava uma esperança: a sala de imprensa no oitavo andar. Subi correndo. A sala estava aberta, mas no seu interior não havia sequer um único jornalista. Desanimado, sentei-me numa das poltronas ali existentes e fiquei em silêncio, com mil conjecturas se passando no bestunto, pois era como eu me sentia: uma besta!.

Nesse instante, adentrou a sala, apressado, o repórter fotográfico Armando Vieira, que trabalhava para uma cadeia de jornais. Enquanto abria seu armário para apanhar material de fotografia, câmeras e filmes, dirigiu-me a palavra: “Fala Correinha!, a coisa está fervendo.” “Armando — disse eu — por favor, o que é que está acontecendo? Tanto mistério, é um golpe de estado?” “Não menino, é muito pior. Isso nunca aconteceu no Brasil”. “Isso o quê?”, perguntei ao agitado repórter. “Correinha, jurei pros majuras lá no quinto andar sigilo absoluto e colaboração total. E só por ser quem sou fui autorizado a sair da sala e vir buscar o meu material de trabalho e em minutos devo voltar para lá e ficar em “cana” até que o caso se resolva. O resto do pessoal já está lá detido e não podemos passar nada para as redações. O Criscuolo, o Cascolac, o Percival de Souza, o Ramão, o Furquim, o Pegoraro, o Elias turco, e outros jornalistas. Nós todos aceitamos e fizemos um pacto de permanecer incomunicáveis, até segunda ordem. Vou te dizer, porque boto fé em você: está em andamento o seqüestro de duas crianças, filhos de um grande milionário, e a quadrilha está pedindo alto pelo resgate e pela vida dos pivetes, mas vê lá hein? “Boca de siri”, eu não disse nada!. Tchau!, meu tempo está acabando”. E saiu, em seguida, rapidamente.

 

A FORÇA DO SILÊNCIO
Texto transcrito do jornal O GLOBO de 02/06/1967

 

“Desde o dia do seqüestro o industrial Manuel Cardoso (pai dos menores) vinha recebendo numerosos telefonemas, ameaçando-o caso o ocorrido fosse comunicado à polícia. Em virtude da ameaça de morte que pairava sobre os meninos, a imprensa concordou em manter-se afastada das atividades policiais, recebendo informações com o compromisso de nada ser publicado até que os seqüestradores fossem detidos e os menores postos a salvo. Durante a noite e a madrugada de ontem, os jornalistas credenciados na Secretaria de Segurança Pública permaneceram nas salas da Diretoria do D.I., a par de toda a movimentação, porém sem qualquer possibilidade de comunicação com o exterior.”

 

Surpreso, e sem saber o que pensar ou fazer, permaneci naquela sala em silêncio, nem sei por quanto tempo. Daria minha vida para estar naquele caso. Mas isso parecia impossível. Mergulhado em profunda frustração e tristeza, voltei para minha sala de trabalho. As horas se escoavam lentamente. Às 18:15 horas, as dependências da Delegacia foram interditadas como era de praxe nesse horário. Portas de aço e grades foram trancadas a cadeado. Uma outra espécie de trabalho iria começar. Os homens de minha equipe, já acima referidos, tinham ido levar de volta o sentenciado e, de lá, estavam dispensados.

Desci para a rua. Fazia frio e garoava forte. Ali, sob a grande marquise, conversei com muitos colegas policiais. E nessas conversas percebi que ninguém sabia nada sobre os acontecimentos que estavam rolando, sob absoluto sigilo, na sala da Diretoria. Não comentei o que sabia com ninguém, pois havia empenhado minha palavra com o Armando e a cumpri.

O plantão noturno do Departamento já estava prestes a iniciar o seu expediente. A porta da outra extremidade do prédio se encontrava aberta, sinal evidente que os policiais da equipe escalada para aquela noite já estavam chegando para o trabalho.

Foi nesse instante que passou pela rua à minha frente uma viatura da RUDI, (Rondas Unificadas do Departamento de Investigações) e estacionou diante das dependências do plantão. Majestosa, bonita e imponente, só a sigla estampada em sua porta já impunha respeito a todos. Respeito adquirido pelas proezas, pelos atos de bravura e heroísmo dos seus componentes. Fatos que ficaram pirografados na memória de policiais, jornalistas e nas páginas da história da Polícia Civil de São Paulo.

Ao ver aquela viatura, vislumbrei uma possibilidade de ainda participar dos acontecimentos que naquele instante, sob sigilo, se desenrolavam nos bastidores. Andei rápido, passei pelo plantão, cumprimentei os policiais ali presentes, e subi para a sobreloja rumo às dependências da RUDI. No início de minha carreira, fui designado para exercer minhas funções naquele organismo. Ser escolhido para fazer parte daquela corporação, por si só, já era motivo de orgulho. Tratava-se da elite da Secretaria de Segurança e seus policiais eram selecionados por rigorosos critérios físicos e morais. Éramos treinados para operações de alto risco, dávamos apoio e cobertura para todas as delegacias do Departamento e para todas as autoridades dos Distritos Policiais de toda a Capital. Quando as ocorrências se complicavam, uma viatura da RUDI era chamada e seus homens tomavam a frente da ação para resolvê-la de maneira satisfatória. Éramos instruídos a tratar todos do povo com lhaneza e respeito, entretanto, com marginais, podíamos empregar a força necessária para dominá-los e detê-los. Por isso a fama de melhor polícia do Brasil. O que identificava um policial da RUDI era o uso de um colete de couro preto com a sigla bordada em branco do lado esquerdo. Ali estavam todos os meus amigos. Cumprimentos, sorrisos, abraços e recordações. Estávamos conversando, quando chegou o Dr. José Carlos Baptista, Delegado titular. Nos cumprimentamos com satisfação e cordialidade. Dr. José Carlos vinha de uma família tradicional. Filho único, educação refinada, amante do esporte. Residia em uma mansão no bairro do Pacaembú com sua mãe, já que havia perdido seu pai há alguns anos. Em seguida, me dirigi a ele, dizendo que precisava falar-lhe em particular. Fui convidado a entrar em sua a sala. A porta foi fechada. Ele sentou-se em sua cadeira, mandou-me sentar à frente de sua mesa e me perguntou: “E então menino, quer voltar para cá?”. Respondi que não. E expliquei a ele que minha presença ali era motivada por um assunto relativo aos acontecimentos já citados. Expus a ele os fatos, sem entretanto revelar a natureza dos mesmos. Expliquei minha vontade de obter sua autorização para, naquela noite, fazer parte de uma das guarnições que iriam rondar. Disse ainda que alguma coisa muito séria e importante deveria acontecer nas próximas horas e com certeza, se algo saísse errado, a RUDI seria chamada para dar apoio e eu poderia participar da ocorrência. Ele me ouviu com atenção e disse: “Por isso que o Dr. Nemr não me recebeu hoje na Diretoria, alegando uma reunião importante. Tudo bem, Correinha, também estou curioso, vou chamar o Campos para lhe passar instruções. Ficarei com o H.T. ligado, se você precisar de alguma coisa é só me chamar pelo rádio. Só não vou rondar essa noite por ter um compromisso social ao qual não posso faltar”. Em seguida, chamou o Sr. Washington Gomes de Campos, o “Campinho”, apelido pelo qual nós todos o chamávamos. Campinho entrou. Elegantemente vestido como sempre. Andar gingado, subserviente, “pois não meu chefe, às suas ordens”. “Campos, o Correinha vai rodar hoje com o nosso pessoal. Ele vai escolher a guarnição que quiser e você dê-lhe zona livre de patrulhamento. Se ele quiser, forneça-lhe também uma Wichester calibre 44 e munição. Vou sair agora; qualquer eventualidade, me chame através do Cepol.” Despediu-se e saiu, não sem antes nos desejar boa sorte. Campinho me abraçou, nos cumprimentamos, ele deixou clara sua satisfação de me reencontrar. Disse a ele que gostaria de sair com a RUDI-3, com cuja guarnição já havia trabalhado. Fomos até ao armeiro e ele deu ordens para que o mesmo me fornecesse a arma anteriormente referida e devidamente municiada. Campos convocou os componentes da RUDI 3 e participou-lhes que iriam trabalhar comigo e sob as minhas ordens. O Renatinho, motorista, e os Investigadores Valdinir (Bolinha) e o Roberto Cavalcante. Todos ficaram muito contentes, dizendo com verdadeira euforia: “Que legal, o Chefe voltou!”. Apanhamos armas e munições, a prancheta com os impressos onde deveriam ser anotadas as ocorrências e escritos, os relatórios de cada uma e saímos rumo a viatura postada à frente do D.I..

Pedi pelo rádio o número do talão e o horário do início dos trabalhos. Isso feito, começamos a rodar pela zona centro. Pois dali, em qualquer parte da cidade que viesse a ocorrer um pedido de apoio, teríamos a possibilidade de chegar ao local com maior rapidez.

Atendemos algumas ocorrências de rotina. Nada digno de nota. As horas foram passando. Minha expectativa aumentava. Estava impaciente. Após a meia-noite, o rádio permaneceu em silêncio absoluto. Em noites de baixa temperatura, pouca coisa ocorre no âmbito policial. O número de pessoas nas ruas havia diminuído.

Sugeri que fizéssemos uma parada para tomar um lanche. Ao adentrar a padaria alguém gritou para o balconista: “Sai a mamadeira do chefe! e bem geladinha hein?”. Alusão ao meu hábito de só tomar leite e todos se divertiram muito com a saudosa lembrança. Voltamos para a viatura. Nesse momento, passou por nós um carro em velocidade não compatível para aquela via. Saímos em sua perseguição, mandamos que parasse com as cautelas devidas, pedimos aos seus ocupantes que descessem. Foram todos cuidadosamente revistados como também o interior do veículo. Verificados os documentos, nada foi encontrado de irregular. Adverti o motorista para ser mais cuidadoso e os dispensei. Voltamos à nossa monótona ronda. De repente, a voz do controlador do Cepol se fez ouvir alta e nervosa:

“Atenção todas as viaturas da RUDI!, prioridade absoluta, dirijam-se imediatamente à Rodovia Fernão Dias, mais ao menos entre os quilômetros nove e vinte, próximo ao Jardim Brasil!. Velocidade liberada!, no local, auxílio e apoio à equipe da Diretoria do D.I.. Desconhecemos a natureza da ocorrência!. O canal de comunicação a partir de agora, está vedado a outras viaturas em ronda; prioridade única para a RUDI!.”

Acusei o recebimento da mensagem: “RUDI 3 entendido e a caminho!”.

As outras três viaturas fizeram o mesmo. Finalmente!, meu espírito estava exultante.

Ao passar pela Avenida Tiradentes a mais de 140 quilômetros por hora, olhei de soslaio para o grande relógio da Estação da Luz, e ele marcava 1:36 hs. do dia 1 de junho de 1967.

Atingimos a Rodovia Presidente Dutra. Renato Radamés era um piloto como poucos. Em minutos já estávamos na Rodovia Fernão Dias. Contávamos ainda com o favorecimento da quase ausência total de tráfego, dado ao avançado da hora. Após alguns quilômetros, divisamos um Ford Galaxie estacionado no acostamento da estrada à esquerda da direção em que seguíamos e, à nossa direita, um Willys Itamarati pendurado no barranco e vários policiais portando armas de grosso calibre, sinalizando com os braços erguidos. Nos desviamos para o acostamento e a viatura parou bruscamente com a violenta freada.

 

“O ÚLTIMO TELEFONEMA”
Fonte : O Globo de 02\06\1967

 

“Meia noite. O seqüestrador telefonou ao comerciante dando as últimas instruções: “Saia de sua casa dentro de quarenta minutos, em seu carro, mantendo apenas as lanternas e a luz interna acesas. Siga para a Rua Maria Cândida até a avenida Júlio Buono. No final desta, entre a direita e dirija-se até o primeiro posto de gasolina. Pare ali e encontrará quem lhe dê novas instruções. Faça essa pessoa embarcar no veículo e cumpra suas ordens. Traga o dinheiro e terá seus filhos de volta.” O complexo policial se movimentou.

Manuel Cardoso deixou sua residência e no local indicado, teve seu carro invadido por dois indivíduos que lhe determinaram seguir para a Rodovia Fernão Dias. Nesse momento a viatura S-5 (um Galaxie) acercou-se do veículo e os agentes intimaram-nos a parar, dando-lhes voz de prisão. Os meliantes, que já haviam obrigado o proprietário a passar para o banco de trás, sacaram suas armas e dispararam contra a polícia. Teve então início o tiroteio com os dois carros em alta velocidade. Depois de seis quilômetros de perseguição, o carro de Manuel teve seu pneu traseiro furado por um projétil. Nessa ocasião os seqüestradores, para distrair a atenção dos perseguidores, atiraram Manuel para fora do veículo. Mas em virtude dos disparos de metralhadora, o condutor do veículo descontrolou-se e lançou o carro sobre um barranco que margeia a estrada. Ali embrenharam-se no matagal levando consigo o dinheiro do resgate”.

Foi nesse momento que as viaturas da RUDI. foram acionadas via rádio. Dera tudo errado. Os seqüestradores não haviam sido identificados. O dinheiro estava praticamente perdido. O pai dos meninos, único contato com os bandidos, estava fora de ação, uma vez que seus ferimentos, incluindo um grave traumatismo craniano, o haviam deixado em coma e a vida das crianças ameaçadas mais do que antes pela interferência da polícia. Uma grande tragédia e um fracasso rotundo das autoridades estava para ser concretizado. A falta de planejamento e o despreparo dos policiais envolvidos diretamente na operação levaram os acontecimentos a um ponto em que os responsáveis se desesperaram. Seus cargos e carreiras ficaram no fio da navalha.

Entretanto, nem tudo estava perdido. Restava o sentimento abstrato da esperança.

Para piorar tudo, não havia sequer um indício ou informação do local do cativeiro dos meninos. O Sr. Rogério estava muito nervoso e agitado; o seu superior, Delegado Titular da Delegacia de Roubos, não sabia que atitude tomar. As viaturas da polícia civil continuavam a chegar. O grande número de policiais que foi se juntando tumultuava ainda mais o ambiente com os palpites que se multiplicavam, cada um querendo aparecer ou ser o dono da verdade. Finalmente, resolveu-se por um grande cerco por toda imediação. A maior parte das viaturas e dos policiais se deslocou do local para cumprir a determinação.

Antes de sair com a viatura da RUDI para participar do cerco, resolvi dar uma olhada no local por onde os seqüestradores haviam fugido. A região, além de pantanosa, era coberta por densa vegetação, o que aumentava em muito as dificuldades das tentativas de busca por ali. Notei, entretanto, do lado esquerdo do terreno, uma abertura na vegetação, o que me levou a crer que por ali alguém havia passado em desabalada carreira. Guardei a informação comigo. Acostumado desde a infância a rastrear animais desgarrados em matagais, aquele sinal para mim significava muito. Parti para a tarefa determinada pelos superiores. Do outro lado do pântano, já no Município de Guarulhos, pedindo informação para poucos transeuntes que ainda circulavam por aquela periferia fui informado por um rapazote que num barraco, situado a poucos metros dali, residia um bandido, ex-presidiário, assaltante e perigoso que vivia pondo a população do lugar em sobressalto. Invadimos o barraco. Encontramos o bandido e o mesmo estava com dois revólveres sob o travesseiro e um pé de meia repleto de balas. Detivemos o mesmo e o interrogamos durante alguns minutos. O suficiente para saber que não estava envolvido no seqüestro. Entretanto, o detive para investigações posteriores.

Retornamos para o local dos fatos, às margens da Rodovia. Ali já se encontravam algumas unidades da Polícia Militar. O Corpo de Bombeiros havia trazido, em um caminhão, gigantes holofotes para iluminar o ambiente, onde policiais militares com cães pastores faziam uma busca até aquele momento inútil. O dia já se prenunciava no horizonte. O Delegado que comandava a operação já estava convocando todos os policiais presentes para que se reunissem às margens da Rodovia. Deveriam voltar todos para o D.I., para rearticular uma nova linha de investigação. O frio aumentara. A densa neblina que saía das águas do pântano dificultava ainda mais a visibilidade. A aura do fracasso envolvia a todos.

 

A PRISÃO
Interrompo minha narrativa e passo a palavra a um jornalista da Revista Manchete, em cujas páginas, no número 791, de 17 de junho de 1967, escreveu o seguinte:

 

“O carro, desgovernando-se, foi bater num barranco, onde permaneceu parado. Os raptores correram para o mato, conduzindo a pasta com o dinheiro. A estrada corta a esta altura, uma região quase deserta e pantanosa. Era através desses alagadiços que os dois bandidos esperavam fugir à polícia. Tudo isso aconteceu em plena madrugada. Mas os homens da lei não descansam. Novos elementos são chamados. Chega um batalhão de choque da Polícia Militar, trazendo cães pastores amestrados, para farejar os fugitivos. O Corpo de Bombeiros empresta seus holofotes. E a busca recomeça, às 3 horas da madrugada, na área pantanosa.

 

Local onde o carro usado pelos seqüestradores parou na beira do barranco.
Revista Manchete, N° 791, Rio de Janeiro, 17 de Junho de 1967

 

Os cães, levados ao lugar onde o Itamarati parara, começaram logo a procurar o rastro dos bandidos. De armas em punho, a polícia ia se internando cada vez mais no mato, varrido pelos holofotes. Os cães soltavam latidos. A atmosfera se tornava tensa. Todos estavam convencidos de que os seqüestradores não conseguiriam escapar ao cerco. TODAS AS BUSCAS PARECEM, NO ENTANTO, INÚTEIS. Surgem as primeiras luzes da manhã, ainda vacilantes. QUANDO TUDO PARECIA PERDIDO, O INVESTIGADOR CORRÊA, DA DELEGACIA DE ROUBOS, DESCOBRE RASTROS QUE SE PERDEM NA ÁGUA. Aprofunda suas pesquisas nessa área e, já às 6 horas da manhã, encontra alguém dentro do riacho tendo na mão a maleta com o dinheiro. Dá-lhe voz de prisão, sem encontrar resistência. E leva o prisioneiro para a estrada”.

 

Sob o título: A PRISÃO DO PRIMEIRO, o Jornal o Globo de 02/06/67 escreveu:

 

“Mas somente ao clarear do dia foi que o Investigador CORRÊA conseguiu prender Mário dos Santos. Tinha em seu poder uma maleta de plástico com fecho “zip”. Dentro dela o dinheiro. Foi algemado e conduzido a uma viatura da RUDI”.

 

Manchete do Jornal da Tarde de 01/06/67:
“CÃES ERRAM A PISTA. MAS AGENTE ACERTA.”

E ainda:
“O AGENTE SOLITÁRIO CONTRA O BANDIDO ATOLADO”

 

Sobre a prisão do primeiro seqüestrador, o grande e respeitável jornalista Percival de Souza escreveu o seguinte, na edição de 01/06/67 do Jornal da Tarde:

“São 3 horas da manhã, muito frio e neblina na Fernão Dias. É preciso andar com cuidado no terreno, de vez em quando um cachorro afunda latindo. À distância soldados indicam aos gritos, onde os holofotes devem iluminar. Vários grupos de Investigadores dão uma volta bem grande, cercando todo o terreno, que vai dar num pequeno morro com alguns barracos de madeira. Corrêa, um investigador da Delegacia de Roubos, descobre uma picada no matagal. Pede auxílio. Ninguém ouve o que ele diz.

Corrêa está parado, sozinho, olhando a picada que ele viu. Vai entrando por ela, andando com cuidado. Às 6 horas encontra alguém no riacho. Está desarmado. Corrêa põe algemas em suas mãos, segura a maleta com o dinheiro, ao chegar com o prisioneiro à beira da estrada desabafa: Eu não disse? Eu não falei?”.

 

Retomo agora a minha narrativa desses fatos. Procurarei fazê-lo da melhor e da mais verdadeira forma, como eles ocorreram. Após termos retornado do cerco, com um marginal detido na viatura, ouvi as ordens do desorientado Delegado chamando aos gritos todos os policiais para irem para o D.I.. Foi nesse momento que chamei o Investigador da RUDI, Valdinir Vilela de Oliveira, o “Bolinha”, e lhe disse: “Fique aqui à beira do barranco, vou descer para o pântano e fazer uma vistoria na picada que vi logo que aqui chegamos. Caso precise de auxílio, chamarei você”. Desci até ao terreno alagadiço, e fui andando pela trilha que ainda estava visível. Enquanto andava pelo terreno de difícil acesso, me veio à lembrança que estava em jogo a vida de duas crianças. Caso eu obtivesse sucesso, a minha vida também estaria em grande risco. Não sentia medo. Entretanto, a perspectiva de fracasso me atormentava o espírito. A picada terminava num pequeno riacho, fundo o bastante para que suas águas chegassem à minha cintura e, à medida que prosseguia, às vezes aumentava sua profundidade. Depois dos primeiros metros percorridos pelo leito do pequeno rio, havia uma curva. A densa neblina não me permitia enxergar mais do que dois metros à frente. O frio era cortante. Houve um momento em que ouvia, ao longe, vozes exasperadas. Latidos de cães. Sirenes. Mas tudo distante. Sabia que, naquele momento, o que quer que viesse a acontecer só dependeria de mim mesmo. Estava completamente só. Depois de uma segunda curva, avistei algo que me pareceu um sapato. Não dei muita importância e prossegui em frente. Estava encontrando grande dificuldade em me locomover. A correnteza do riacho, que naquele ponto se alargara consideravelmente, acrescida ainda pelo fundo lodoso, tornava cada passo adiante muito difícil. Ao chegar mais perto, divisei por entre a neblina um outro pé de sapato e duas pernas. Era o seqüestrador. Ele não havia percebido, ainda, a minha presença. Meu coração aumentou o ritmo de batidas; a adrenalina despejada instantaneamente em minha corrente sangüínea já estava fazendo o seu efeito. A boca secou. O cansaço desapareceu. Não ouvia mais os sons vindos da estrada. Ouvia somente o meu coração e um leve arrulho na água que corria em sentido contrário. Saquei minha arma. E em seguida, com maior cuidado, fui procurando uma posição que me permitisse abordá-lo com alguma segurança. Segurança relativa, pois de um marginal de tal periculosidade, que teve a audácia de realizar um seqüestro, trocar tiros com policiais experimentados e fugir quase ileso, poder-se-ia esperar qualquer coisa. Caso ele optasse por uma reação, fazendo uso de sua arma, eu levaria nítida vantagem, não só pelas posições em que nos encontrávamos, como também por minha habilidade e precisão de tiro ao usar arma curta. Se estivesse desarmado e tentasse enfrentar-me em luta corporal, aí sim, minha vantagem seria ainda maior, por anos de prática de artes marciais. Encurtei a distância. E como um animal selvagem, dei o bote e o agarrei pela blusa, levantando-o em seguida e dando-lhe voz de prisão. Não houve reação. Entretanto, em sua mão direita estava um revólver calibre 38 com três cápsulas deflagradas. Tomei-lhe a arma, coloquei-a em meu bolso. Em seguida, o algemei. Não levantou a cabeça. Permaneceu em absoluto silêncio. Não trocamos sequer um olhar, não obstante eu procurasse ver seus olhos e mais claramente o seu rosto. Pretendia com isso, no primeiro caso, sentir o seu estado de espírito, para em seguida tentar identificá-lo como um marginal já conhecido. Não foi possível. Eu estava num estado psicológico indescritível. Entre a euforia do sucesso, e o grande risco que acabara de correr. Após tê-lo algemado, senti-me melhor. A tensão, a apreensão e o batimento cardíaco estavam os dois primeiros desaparecendo e o último voltando ao normal. No lugar disso tudo, estava surgindo uma grande alegria, que em seguida se transformou em euforia quase incontida. Uma vontade louca de gritar e dizer ao mundo e a todos que estavam longe, à beira da estrada, que o bandido estava preso. Quando fui empurrá-lo na direção rio abaixo, percebi que na água flutuava a maleta com o dinheiro. Apanhei-a e o conduzi para a beira do barranco. Durante esse trajeto, não trocamos uma palavra. Ele vencido. Eu que ainda não acreditava no meu feito. Ao chegarmos, uma centena de policiais ávidos por aparecer, me tomaram o prisioneiro e o levaram para as margens da estrada para interrogá-lo.

O delinqüente foi levado para uma viatura da RUDI, que não a minha. Enquanto o tumulto se instalava à beira da estrada, fui-me dirigindo em direção ao veículo que estávamos usando. De repente, fui cercado por um sem número de jornalistas e repórteres fotográficos. Todos queriam me entrevistar e fotografar. Atendi a todos. O mais eufórico era o Cascolac dos Diários Associados. Ele me abraçou e me ergueu do chão várias vezes. Era um crioulo forte e alto. Usava óculos. E gritava: “Correinha, você é o maior tira que eu já vi!, você é demais menino!” Em seguida todos foram em busca do seqüestrador. Segui até a viatura da RUDI; estava todo molhado, com frio, mas muito feliz. Sentei-me no assento dianteiro, e o rádio da viatura estava transmitindo para o Secretário de Segurança as informações do sucesso alcançado. Sucesso parcial, ainda faltava muita coisa. E nesse momento me veio uma vontade irresistível de chorar. E chorei muito, até me refazer emocionalmente e juntar-me aos outros policiais, para dar andamento ao serviço em sua parte principal que seria o resgate com vida das crianças. O assaltante, detido na viatura policial horas antes, assistiu a tudo, calado.

Alguns dias depois, durante interrogatório, ele me confessou, respeitosamente, “não ter entendido nada. Pois um homem como o senhor, que me prendeu sem me dar qualquer oportunidade de reação, “cana” dura e sem indecisão, como poderia, horas depois, estar chorando como uma criança!?.” Não lhe dei resposta. Como explicar-lhe tudo?. Apenas, em pensamento, me veio à lembrança a conhecida frase de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. E isso eu ainda não havia conseguido, pois aquilo que é vivo nunca se deixa racionalizar completamente.

O seqüestrador Mário dos Santos foi interrogado no interior de uma das viaturas da RUDI, para onde havia sido levado. O interrogatório foi rude e rápido. Mário indicou o local do cativeiro: era em sua própria residência, situada no bairro do Jardim Brasil, periferia da zona norte da cidade. Foram escolhidos poucos policiais para a missão. Dessa vez, fui escalado para fazer parte de tão delicada operação. Não foi, entretanto, possível afastar a presença dos jornalistas. Mas efetuou-se, mais uma vez, um pacto: que os mesmos se mantivessem distantes do local do cativeiro, uma vez que o seqüestrador detido recusou-se terminantemente a informar o número de marginais envolvidos no crime. Isso criara uma expectativa tensa e repleta de apreensão. Não sabíamos se no local havia outros bandidos; em caso positivo, qual seria o seu número?. Poderiam oferecer resistência. Nesse caso os meninos poderiam ser vitimados num eventual tiroteio que viesse a ocorrer. Treinado anteriormente na RUDI para cuidar desse tipo de ação, com a moral em alta, exigi do Sr. Rogério e do Delegado da Delegacia de Roubos que apenas eu e mais um policial nos acercássemos do cativeiro, invadindo-o com rapidez e precisão, e os outros fariam um cerco completo do local para evitar possíveis tentativas de fuga. A sugestão foi aprovada. Em seguida, nos dirigimos para as proximidades do endereço indicado. Paramos as viaturas bem longe e seguimos a pé. A uns cinqüenta metros do domicílio, eu e o Investigador Cristófaro nos adiantamos. Os outros policiais ficaram parados rente aos muros das casas circunvizinhas. Todos de armas em punho. O momento culminante havia chegado. Entrei pelo portão, passei correndo pelo jardim, com um violento pontapé derrubei a porta, isso para que o fator surpresa me garantisse alguma vantagem. Adentrei o domicílio; em rápida verificação, não encontrei ninguém. Havia apenas um quarto com a porta trancada, porta que também foi imediatamente derrubada como a primeira. Não havia bandidos. Mas a cena à minha frente me paralisou. Numa cama de casal, as crianças!. Amarradas estavam suas pernas entrepostas, as mãos também amarradas às armações da cabeceira de um dos meninos e nas armações dos pés do móvel as mãos do outro e para piorar o desconforto de ambos, os seqüestradores haviam-nos também amordaçado. Nesse instante, a casa foi invadida por um sem número de policiais. Todos queriam desamarrar os meninos. Para demovê-los de tal atitude, dei um grito para que parassem. Em seguida solicitei a um policial que chamasse alguns repórteres fotográficos a fim de que fotografassem as vítimas naquela posição, pois precisaríamos das fotos como prova, para bem instruir o processo posterior. Todos entenderam minha posição. Alguns minutos a mais, para as crianças, não lhes causaria mais danos do que aqueles que já haviam sofrido. E assim foi feito. Fotografados os meninos, de imediato os soltamos da incômoda posição e os conduzimos para uma das viaturas que se encontrava na rua, a fim de que fossem imediatamente conduzidos a um pronto socorro para os cuidados médicos que fossem necessários. Mais comemorações. Alguns policiais choravam, todos se abraçavam, outros disparavam suas armas para o ar. O sucesso da operação havia sido total e absoluto. O principal objetivo havia sido alcançado: salvar a vida dos meninos. E eles estavam salvos. As sirenes foram ligadas. Uma multidão saiu às ruas, sem saber o que estava acontecendo. As viaturas da Polícia e os carros de vários jornais saíram em desabalada velocidade rumo ao D.I.. Todos partiram para tirar fotos e dar entrevistas.

 

À esquerda, Correinha. Ao centro, os menores saindo do cativeiro.

 

Fiquei sozinho no local. Para mim, o caso não estava encerrado. Dos dois bandidos que haviam trocado tiros com os policiais durante a perseguição, um ainda estava foragido. Era preciso encontrá-lo. Seu comparsa havia silenciado quanto à sua identidade. Competia à Polícia fazê-lo. Fiquei a pé no local. Por incrível que pareça, nenhuma viatura ficara para que eu pudesse prosseguir na investigação. Sabia, por experiência anterior, que não se deve dar tempo a um fugitivo. Se isso ocorresse, num país como o nosso, naquele tempo sem nenhuma estrutura técnica, as coisas se tornariam infinitamente mais difíceis. Ali no local, conversei com várias pessoas. Entre elas, uma senhora me informou que a esposa de Mário dos Santos, seqüestrador já preso, se encontrava na casa dos seus sogros que possuíam uma pequena mercearia nas proximidades, e em seguida me indicou o local. Para lá me dirigi. Encontrei um senhor no balcão do acanhado estabelecimento comercial. Cumprimentei-o, o que foi retribuído com educação e humildade. Perguntei por Da. Luzia; fui informado que ela se encontrava na cozinha. Disse-lhe que precisava conversar com ela. Ele foi até a porta, e chamou-a pelo nome. Em seguida, apareceu uma jovem senhora em adiantado estado de gravidez. Essa circunstância deixou-me constrangido. Cumprimentei-a e identifiquei-me como policial. Apesar da situação, não havia como fugir do assunto. Contei-lhe todo o ocorrido. Temendo por seu estado emocional, usei as palavras com sutileza e com um tom de voz calmo e tranqüilo.

Ela ouviu tudo com ar de espanto e, ao final, a tristeza tomou conta da expressão do seu rosto. Lágrimas rolaram pela sua face. Ela se refez; agora seu semblante era de raiva. Em seguida ela me disse: “Eu sabia que alguma coisa errada estava acontecendo desde que o Mário pediu-me para ficar aqui por alguns dias e que só voltasse para casa quando ele mandasse. Desde que ele começou a andar com aquele sargento, muita coisa esquisita vem acontecendo!”. As coisas começavam a ficar claras. Os pais de Mário, seqüestrador já detido, se desesperaram. Tratei de acalmá-los, e lhes disse que o filho estava bem. Apesar da grande encrenca em que havia se metido, não corria nenhum risco. Isso os acalmou um pouco. Perguntei-lhe em seguida à Da. Luzia, sem demonstrar qualquer avidez, se ela conhecia o sargento. Ela respondeu que sim. Voltei a inquiri-la se sabia onde residia o sargento. Mais uma vez a resposta foi positiva. Perguntei-lhe da possibilidade de que ela pudesse me levar ao domicílio do mesmo. Prontamente, ela se dispôs a fazê-lo. Assim, pedi-lhe que me aguardasse, enquanto iria sair para providenciar uma condução que nos levasse até lá, ao que ela aquiesceu.

Naquelas paragens periféricas da zona norte da cidade, tive que andar muito até encontrar um táxi. Finalmente encontrei um táxi-mirim, um pequeno Volkswagen cujo motorista, muito gentil, consentiu em fazer a corrida. Nos dirigimos ao pequeno estabelecimento comercial. Da. Luzia já havia trocado de roupa. Uma vez no interior do veículo, ela foi indicando ao motorista o caminho a seguir. Quando chegamos à rua onde se localizava o domicílio do sargento, de passagem, ela indicou-me a casa com segurança. Pedi ao taxista que virasse na primeira esquina e parasse. Ali, despedi-me de Da. Luzia, agradeci-lhe a gentileza, (ela não sabia da importância do seu gesto de boa vontade), dei-lhe dinheiro mais que suficiente para pagar ao motorista, não sem antes deixá-la ciente do local onde seu marido estava detido e que se lá fosse, que me procurasse, que seria tratada com a mesma educação com que me tratou.

Meu corpo já acusava o desgaste de tanta tensão. Fome, frio, sono. Entretanto, o espírito estava lúcido e com muita energia. De novo, estava sozinho. Não havia ninguém da polícia por perto, caso necessitasse de ajuda. Passei de volta e examinei detidamente a casa do fugitivo. Era uma residência de porte médio. Não pude perceber qualquer movimento, tanto na área externa, quanto em seu interior. Havia uma garagem no grande quintal. Ali, percebia-se um carro de cor branca, um fusca. Mais tarde, viemos a saber que se tratava de um veículo roubado, o mesmo usado no seqüestro e que foi posteriormente apreendido para ser devolvido ao seu legítimo dono. Andei até a esquina, virei o quarteirão, para sair da visão de qualquer um que entrasse ou saísse do imóvel. Entretanto, me posicionei de forma a poder ver a entrada. Após muito refletir, analisei as seguintes variantes:

a) Invadir a casa e tentar prender o seqüestrador;

b) Chamar apoio.

A primeira premissa me pareceu falha, tecnicamente falando. Não basta coragem e valentia. Havia que prevalecer o bom senso, pois, se lá estivessem outros marginais envolvidos no delito, a operação poderia terminar em violência. Estando só, esta circunstância, animaria a malta a me enfrentar, eu não iria recuar. Assim, o final poderia ser trágico e sem nenhuma utilidade para a instituição e nem para mim.

Optei pela segunda. Precisava pedir apoio. Procurei um telefone. Encontrei uma farmácia que possuía um. Identifiquei-me ao Farmacêutico e pedi permissão para usá-lo, no que fui prontamente atendido. A área em que me encontrava pertencia ao Município de Guarulhos, poderia ligar para o D.I., mas o tempo era precioso e a distância muito longa. Pedi informação ao profissional da farmácia e ele me forneceu o número da Rádio Patrulha daquele Município. Falei com o controlador. Expliquei-lhe resumidamente a situação, e pedi-lhe que mandasse uma viatura para me dar apoio e que pedisse urgência no atendimento. Passei-lhe o endereço da farmácia e fiquei aguardando. O atendimento foi rápido. Em questão de minutos encostou um carro patrulha com dois componentes: um cabo e um soldado. Ambos muito jovens. Expliquei-lhes a natureza da operação a ser realizada e, como todo jovem policial, ficaram vibrando com a perspectiva da ação. Pedi que parassem a viatura a uns cinqüenta metros da residência. Pedi ao soldado para cobrir o fundo e ao cabo que ficasse do outro lado da rua, onde teria visão mais ampla para avistar as duas laterais da casa, podendo assim perceber qualquer tentativa de fuga pelas janelas.

Entrei pela frente, bati na porta. Cometi um erro que poderia ser fatal. Em casa ou barraco onde, com certeza, estejam homiziados bandidos, não se bate à porta. É preciso derrubá-la, pois a única chance do policial se sair bem é surpreendê-los. Entretanto, eu não estava de posse da informação que formaria em meu espírito a convicção da presença ali de algum delinqüente. Sabia somente que ali residia um. Por isso corri o risco. Foi um gesto consciente. Assim, estava preparado para que a situação não se invertesse. Fui atendido por uma senhora ainda jovem. Parecia assustada. Perguntei por seu marido após me identificar. Respondeu que ele não se encontrava. Entretanto, estava claro que mentia. O seu nervosismo aparente e a forma com que, a cada segundo, olhava para dentro da casa, não deixavam nenhuma dúvida de que a pessoa procurada, só, ou em companhia de terceiros, ali se encontrava.

Saquei a arma, dei um sinal ao cabo do outro lado da rua para que ficasse atento. Não perdi tempo, pedi licença e entrei. Revistei a residência e nada encontrei. Ao adentrar o banheiro, percebi na parede sinais evidentes de que alguém havia subido por ali em direção à clarabóia. Ciente da não presença do marginal ou marginais no piso térreo, uma vez que a revista que fiz, além de cautelosa, fora minuciosa, decidi blefar: “Sei que você esta aí em cima, a casa está cercada!. Não tente reagir!, não há como fugir!”. Incontinenti, peguei uma cadeira na cozinha, e alcancei a tampa de acesso ao forro. Fui tentar remover a tampa com cuidado. Engatilhei o revólver. Novamente as mesmas sensações vividas no dilúculo. Não obstante as circunstâncias fossem absolutamente diferentes, agora o risco era bem maior. Estava indo rumo a um perigo não visível. Além do que, imprevisível. Estava colocando minha vida nas mãos da sorte e do destino. Para piorar tudo, estava encontrando dificuldade em remover a tampa. Como se uma força física lhe aumentasse muito o peso que aparentava. Diante de tal obstáculo, desci da cadeira e na cozinha encontrei um pequeno caixote de madeira. Com esse objeto em mãos, voltei rapidamente ao banheiro, coloquei-o de forma a bem distribuir o seu peso, o que me daria um apoio mais firme e mais seguro. Nesse momento, os policiais militares que se encontravam do lado de fora adentraram a residência para me prestar ajuda. Em sussurro, falei ao cabo, que me pareceu mais experiente, que voltasse para a rua, pois alguém poderia fugir pelo telhado, ao que ele prontamente atendeu. Ao outro, pedi que ali permanecesse e que sacasse sua arma, posicionando-se de forma a me dar cobertura. Com alguma dificuldade, subi sobre o caixote. O espaço entre mim e o forro diminuiu muito. Isso me proporcionou um apoio com efeito alavanca. Com a arma engatilhada na mão esquerda, usei todo o meu poder de concentração, e meu corpo disparou como se uma mola fora. Não havia mais o peso anterior. Isso quase me fez perder o equilíbrio. A tampa, empurrada com tanta força, sumiu dentro do forro. Nesse instante, fiquei cara a cara com um assustado homem de cuecas e com um revólver apontado para meu rosto. E eu com a arma apontada para sua cabeça. Estava criado um impasse. Impasse que poderia se resolver em fração de segundo. Um ou outro poderia ser morto, ou até mesmo ambos. Ele não atirou, eu me controlei e também não fiz uso da arma. Tomei a iniciativa do diálogo: “Você está sozinho?” A resposta veio rápida: “Estou!” Fiquei na dúvida quanto à afirmação. Notei, entretanto, naquele momento, que sua mão, a que portava a arma, começou a tremer. Eu já havia passado por situação idêntica em duas vezes anteriores. Por isso sabia que ele estava cedendo. Pedi a ele que me entregasse o revólver. A resposta: “Não!”. Ao mesmo tempo, afastou a arma do meu rosto e a apontou para a própria cabeça: “Não vou me entregar!, vou-me matar!”. Falei duro: “Não faça isso!. Podemos solucionar de outra maneira!. Você tem mulher e filhos, cadeia não é para sempre, vamos, me entregue a arma!”. Percebi que ele começava a chorar. Isso mudava tudo. Um homem assim acuado, é capaz de qualquer coisa. Procurei acalmá-lo: “Empenho minha palavra de honra, que se você me entregar a arma e se render, ninguém lhe fará nenhum mal, e nem o agredirá fisicamente, tudo bem?”. Ele respondeu: “Só entrego o revólver e me rendo se vier um Delegado de Polícia que me garanta a vida”. Respondi-lhe que essa alternativa não seria aceita como condição para que ele se entregasse, pois eu era um policial de São Paulo, e não havia como atender àquela solicitação. Aproveitando que a conversa estava mais aberta, continuei: “Só para seu conhecimento, o seu comparsa Mário já está preso”. Nesse ínterim, sua esposa e seus filhos se acercaram da porta. A mulher chorava e em lamentos pedia que ele se entregasse. Os filhos choravam, gritando: “Papai! Papai!”. Momento dramático!. Estendi a mão esquerda em sua direção, e pedi que me entregasse a arma. Ele ficou imóvel e em silêncio. Continuava chorando. E, pela primeira vez, me olhou nos olhos. Não sei o que sentiu. Mas, com um gesto lento, passou-me o revólver. Segurei a arma. Coloquei-a em minha cintura. As emoções que se desencadeavam dentro de mim são indescritíveis. Não houve a mesma euforia anterior. Havia, sim, um sentimento de ternura por aquela senhora e seus filhos. Ali na porta, desesperados, transformando esse desespero em lamentos arrancados do fundo da alma. Dizem que um policial ao sair de casa deve sempre deixar o coração pendurado atrás da porta. Eu nunca consegui fazer isso. Sempre me sensibilizei com essas situações, pois elas ocorriam quotidianamente em minha profissão, àquela época. Ajudei-o a descer. Nesse momento, me disse que era um policial. Pertencia aos quadros da Guarda Civil, que naquele tempo era estadual. Naquela corporação ocupava o cargo de Classe Distinta. Algo correspondente a Sargento entre os Militares. Com calma e tranqüilidade, acompanhei-o até o seu quarto. Ali, ele se vestiu, e me ofereceu os pulsos para colocar a algema. Eu não o fiz em presença de sua família. Somente as coloquei quando já estávamos próximos ao D.I., por ser uma medida regulamentar de segurança e se eu não a cumprisse poderia até ser punido. Ao sairmos da casa com o prisioneiro, solicitei ao cabo que entrasse em contato com o controle de sua corporação, no sentido de que passassem a mensagem ao CEPOL da Polícia Civil, para tornar cientes as autoridades do D.I., que o segundo seqüestrador já se encontrava preso e que estava sendo conduzido por mim rumo a São Paulo, sem maiores problemas. Soube mais tarde que mais uma vez todos demonstraram grande e eufórica alegria. O caso estava, em sua fase operacional, encerrado!.

Quando chegamos no edifício da Secretaria de Segurança Pública, uma multidão de policiais, jornalistas e curiosos estava a postos nos aguardando. Desci da viatura. Agradeci aos dois policiais militares, anotei seus nomes para posterior comunicação ao seu comando recomendando um elogio em suas folhas de serviço e subi com o preso para a sala do Cartório Central da Delegacia de Roubos, onde seria lavrado o flagrante. Havia um grande tumulto em todas as dependências, policiais e jornalistas disputavam espaço para ver os seqüestradores. As entrevistas naquele momento foram proibidas pelo próprio Diretor do D.I., Dr. Nemr Jorge, que prometeu liberar o trabalho dos jornalistas após o término do Auto de Prisão. Fiquei sabendo pelo pessoal da imprensa que os meninos estavam bem de saúde e que seu pai, embora gravemente ferido, estava fora de perigo. O Classe Distinta da Guarda Civil, um dos seqüestradores, foi identificado como sendo José Pereira da Silva.

Depois de muito esforço, conseguiu-se isolar numa sala os presos, o escrivão que lavraria o termo, o Delegado que presidiria e então, uma surpresa: Fui procurado pelo Delegado Titular da Delegacia de Roubos, que me pediu para deixar um Investigador já em fim de carreira ser um dos condutores, o que seria uma forma de homenageá-lo por tantos anos de serviço. Disse a ele que não me importaria com isso, embora não fosse justo. E assim foi feito. Caso encerrado, em sua fase legal. Antes de terminar este capítulo, gostaria de tecer alguns comentários a respeito dos acontecimentos. Não sei onde vivem, nem onde se encontram Antônio Carlos Cardoso e seu irmão Manuel Cardoso Filho. Se por acaso lerem este livro, não se esqueçam dos policiais que atuaram nesse caso direta ou indiretamente, pois todos tiveram igual importância no desfecho feliz que ocorreu. E que, durante suas vidas, tenham feito jus ao heroísmo, bravura e dedicação com que todos se comportaram, e tenham, para com esses homens, sempre, um preito de gratidão. Quanto a mim, pude acreditar que o que está escrito nas estrelas, ninguém muda, se a isso forem acrescidas vontade, coragem e determinação!.

 

O emocionante momento em que a mãe reencontra os filhos seqüestrados

 

“Nada resiste ao trabalho profissional feito com amor.
O seu resultado será sempre a felicidade.”


O Autor


 

Capítulo IV

O MILAGRE DE NATAL

 

Osório Silva, proprietário da Fazenda do Embaú e pai de Correinha (Foto de 1947)

 

A Fazenda do Embaú, situada no Município de Congonhinhas, Estado do Paraná, já era uma realidade. O rio Laranjinha, cujo leito servia como divisa da propriedade, continuava com o caminhar de suas águas, serenamente. Testemunha muda de tantas histórias e dramas humanos. A criação de gado progredia a olhos vistos. O rebanho já era um dos maiores da região. Os suínos, criados em dependência separada, também aumentavam em progressão geométrica. Eram aplicados os meios mais modernos da época para manter a saúde dos animais. Vacinas e rações com sais minerais eram ministradas obedecendo a um cronograma específico e rigorosamente cumprido sob a supervisão pessoal de meu pai. O cultivo no solo arável ocorria o ano todo. E, graças à sua diversificação, transformava-se também em fonte de bons lucros. A solidez financeira do empreendimento, um fato. A Fazenda transformara-se em modelo a ser seguido por fazendeiros e agricultores daquela região longínqua. Para nos posicionar no tempo, estávamos em meados dos anos trinta. O Sr. Osório, meu pai, cujo nome escrevo com orgulho, ternura e saudade, era espírita convicto. Seguia os ensinamentos de Rivail Denisard, o Allan Kardec, não obstante, pertencer à Sociedade Secreta Maçônica onde ocupava grau elevado. Generoso, desapegado de bens materiais, quanto mais ajudava os necessitados, mais a vida lhe retribuía em riquezas e bem estar pessoal. A Lei Universal de Causa e Efeito funcionando, justa e imparcial.

Duas vezes por ano, infalivelmente, meu pai viajava a São Paulo, para proceder compras de insumos e maquinário agrícola, necessários para tocar o negócio. Aproveitava a viagem para adquirir também enormes quantidades de remédios, produtos veterinários, material escolar, produtos químicos e instrumentos farmacêuticos. Sr. Osvaldo e Da. Hilda, personagens já citados em capítulo anterior, eram, respectivamente, ele formado em farmacologia e ela professora. A simpatia do casal os tornava pessoas queridas por todos aqueles que os conheciam. O Sr. Oswaldo dirigia a farmácia e Da. Hilda a Escola instaladas na Fazenda. Um grande avanço de cunho social para aquela época.

Roupas, calçados e presentes não eram esquecidos. Antes de cada viagem, minha mãe consultava os funcionários da colônia e organizava uma longa e detalhada lista desses objetos. Nenhum colono pagava um tostão do custo das coisas que pediam. Máquinas, ferramentas e os volumes maiores chegavam a Congonhinhas, conduzidos por transportadoras, de onde eram retirados em carroções e carros de boi. As outras compras eram trazidas pessoalmente pelo meu pai no trem Ouro Verde e desembarcadas em Cornélio Procópio. Dali, o transporte se efetuava em “jardineira” (ônibus) até a cidade sede do Município, onde o Capataz Lachico já aguardava meu pai com o carroção de quatro rodas e tracionada por seis cavalos, para conduzir tudo para a Fazenda. Isso exigia um grande sacrifício pessoal. Nunca soube que meu pai proferisse qualquer imprecação, impropério ou desconchavo verbal pelo trabalho. Pelo contrário. Alegrava-se em fazê-lo e sempre afirmava para todos que a Fazenda do Embaú não era a terra, as máquinas, insumos ou animais. Ela existia e dava lucro porque as pessoas, essas sim, eram as responsáveis por tudo. Por isso, tratar bem e com humanidade os seus funcionários era a coisa mais importante e tinha prioridade absoluta sobre outras medidas administrativas.

Mês de junho. A primeira viagem do ano. A segunda aconteceria nos primeiros dias de Dezembro. O Sr. Osório já estava de volta, em dia qualquer do inverno brasileiro. 4:00 horas. Frio glacial. Temperatura baixíssima. O Ouro Verde encosta na plataforma em Cornélio. Meu pai arregimenta um sem número de carregadores para auxiliá-lo no desembarque de tantas coisas. O trem não se fazia esperar. Tinha um horário a cumprir. Dali, o material foi levado pelos carregadores até a Estação Rodoviária. Não era longe. Isso feito e tudo acomodado no ponto de embarque, de onde a “jardineira” partiria, os homens que executaram o trabalho receberam um generoso pagamento. Eles conheciam muito bem meu pai. Sua chegada era motivo de alegria. Em seguida, ele dirigiu-se ao único bar aberto àquela hora. Precisava de uma bebida quente (nada alcoólico); era avesso a qualquer bebida dessa natureza, O apito da Maria Fumaça, locomotiva inglesa que nesse momento conduzia a composição rumo à Serra Morena, se fez ouvir já distante. Ao adentrar o estabelecimento, notou um negrinho sentado num dos degraus da escada de madeira. Encolhido, pelo sentir do frio intenso, descalço, vestido com maltrapilhas roupas, sujo, cabelos e unhas por cortar. Desnutrido e sem agasalho apropriado, o menino tremia de frio. Um espectro humano. Visão capaz de condoer uma estátua. Dirigindo-se ao balcão, antes de pedir o café, meu pai inquiriu o dono do bar a respeito da criança que ali estava em tão deplorável situação de abandono. Foi informado que o menino havia sido deixado pela família. Os pais tinham prole numerosa. E, pela situação de miséria em que se encontravam, resolveram abandonar o mais velho à própria sorte. Disse, ainda, que o pai antes de partir com o restante da família para rumo desconhecido, deixara com ele o Registro de Nascimento da criança. E que o menino sobrevivia, precariamente, às custas de esmolas e doações de lanches que pessoas bondosas lhe ofereciam. Meu pai ouviu a história em silêncio.

Hoje, eu sei o que se passou naquele instante de reflexão, no coração magnânimo que trazia no peito. De imediato, a ternura tomou conta de todo o seu ser. Saiu do balcão, foi até a porta e falou, dirigindo-se à criança: “Como é seu nome menino?.” O negrinho levantou a cabeça assustado, olhou para o interlocutor e de imediato, baixou novamente a cabeça. E com voz quase inaudível, respondeu: “Irineu”. Os miseráveis e os abandonados pela sorte, são mesmo assim. À exacerbada humildade, acresce-se sempre a perda da auto-estima. É como se devessem algo ao mundo ou às pessoas. Quando, em realidade, são as pessoas e a sociedade quem muito lhes devem. Meu pai tocou-lhe suavemente o ombro, estendeu a mão, segurou a mão da criança e a conduziu até ao balcão, dizendo-lhe: “Irineu, peça o que quiser”. O menino ficou em silêncio. Cabeça baixa, sentindo, quem sabe, uma vergonha inconsciente por ter que sobreviver de favores e da caridade alheia. Foi pedido, então, um copo de café com leite, um pão com manteiga e um pedaço de bolo, Quando lhe foi posto à frente o alimento, a criança, com humildade e recato, levantou os braços longos e emagrecidos, resultado de longa subnutrição, e começou a comer e a tomar o café, com avidez. Enquanto tomava o seu café, meu pai não tirava os olhos do menino. Olhava-o com curiosidade e carinho. Quando Irineu terminou, meu pai, com ternura na voz perguntou-lhe se queria mais. Dessa vez, um pouco mais à vontade, o menino fez que sim com a cabeça. Foi-lhe servida uma nova rodada, igual à primeira. Enquanto a criança se alimentava, agora com mais vagar, meu pai conversava com o dono do bar. Em certo ponto do diálogo, meu pai afirmou que já havia decidido levar a criança para a Fazenda, caso o menino aquiescesse em ir. O dono do bar, ao ouvir essa afirmação, disse comovido: “Se o ‘seu’ Osório fizer isso, estará fazendo uma grande caridade!”. Em seguida, voltou-se para o menino e perguntou: “E então Irineu, não quer ir morar numa Fazenda bonita?.” O negrinho fez que sim com a cabeça. Era difícil arrancar-lhe qualquer palavra. Os miseráveis têm até receio de falar. É como se algo, no fundo da alma, lhes ordenasse a quietude. Ante a perspectiva de um acontecimento bom, optava pelo silêncio para não estragar tudo. “Se a palavra é prata, o silêncio é ouro”, ditou-lhe naquele instante, o coração. Por certo, ele sonhava já com o fim de suas agruras. Não sentiria mais fome e frio. Não seria mais mal tratado. Não viveria mais a incerteza da hora seguinte. “Então, está feito!”, exclamou o comerciante. Em seguida, dirigiu-se aos fundos do bar, onde também residia. Em minutos, voltou com um papel nas mãos, entregando-o ao meu pai e dizendo: “Este aqui, ‘seo’ Osório, é o Registro do menino”, o documento foi examinado rapidamente e guardado no bolso interno do paletó. Foi um momento decisivo para o futuro daquela criança. Em nossas vidas, nos momentos cruciais, quando o caminho se torna áspero e inclemente, surge, como se por encanto, ou enviado por Deus, um anjo bom. Um ser de luz, um espírito iluminado, para nos mitigar o sofrimento e a dor e, cumprindo sua missão, nos transporta para estradas mais amenas, onde encontraremos a paz e, quem sabe, até a felicidade. Você mesmo, leitor, quantas vezes em sua existência foi beneficiado por seres dessa natureza? Faça um retrospecto de sua vida, e certamente os identificará.

Ainda faltavam algumas horas para que a “jardineira” partisse. Nesse ínterim, meu pai resolveu tomar algumas providências. Nas proximidades — naquele tempo longínquo, a cidade de Cornélio Procópio, era ainda muito pequena — residia um casal de compadres do meu pai. Esse laço de amizade e confiança, coisa séria nessa época, fora criado, por terem, meu pai e minha mãe, batizado, a convite aceito, um dos filhos do casal. A escuridão da noite ainda se fazia presente. Era preciso esperar o raiar do dia para pô-las em prática. Amanheceu. Os primeiros raios de sol iluminaram o horizonte, clareando a terra. Irineu foi chamado, e ambos se dirigiram à residência do casal amigo. Foram recebidos com simpatia e satisfação. A Comadre ainda estava coando o café. O afilhado ainda estava dormindo. O compadre quis acordá-lo para tomar a bênção do Padrinho, no que foi impedido pelo meu pai, sob a alegação de ser ainda muito cedo e que ele iria permanecer mais algumas horas na cidade.

O casal quis saber da insólita companhia. A situação foi explicada. A dona da casa, compadecida, abraçou o menino e o levou para a cozinha para aquecer-se junto ao fogão a lenha. Quando retornou, deixando lá o visitante, meu pai pediu ao casal que ficasse com Irineu por algum tempo, pois iria sair para comprar roupas, sapatos, agasalho e produtos de higiene pessoal, solicitando ainda que, nesse espaço de tempo, dessem um banho nele e se possível, cortassem suas unhas. Pedido que foi aceito com boa vontade e solicitude. Meu pai agradeceu-lhes e, antes de sair, com um pedaço de barbante, mediu o pé de Irineu, pois os calçados teriam que ser do tamanho certo, e em seguida retirou-se para fazer as compras. Uma vez na rua principal, onde algumas lojas já estavam abrindo suas portas, não foi difícil adquirir as coisas necessárias. Na volta, encontrou o menino limpo e com as unhas cortadas. O Compadre, em tom de blague, disse ao meu pai que não foi fácil tirar as cracas da pele, sendo preciso usar uma bucha nova. Todos riram. Menos Irineu. Foi impossível recusar o convite para tomar, em companhia do casal, a refeição matinal. O afilhado adentrou a sala, um pouco tímido e dirigindo-se ao meu pai, pediu-lhe à bênção com os joelhos semigenuflexos. Foi abençoado de acordo com os costumes e ganhou um presente. Terminado o café, Irineu foi conduzido ao quarto do casal e vestido com novas roupas e agasalho apropriado. Calçou as meias e o sapato, o que, de inicio, causou-lhe algum desconforto. O restante das coisas foram acomodadas em uma mala novinha. O próximo passo, levá-lo ao barbeiro. O Compadre foi junto. Na volta, meu pai despediu-se de todos, agradecendo-os uma vez mais e retirou-se rumo ao ponto da “jardineira”. Irineu parecia outro.

A viagem ocorreu sem nenhum fato digno de nota a não ser a curiosidade de Irineu que reparava em tudo, como se não quisera acordar daquele sonho maravilhoso, à medida que se afastava cada vez mais de um horrível pesadelo. Ao chegar em Congonhinhas, o preto Lachico já estava à espera. Meu pai o cumprimentou, deu-lhe um abraço e apresentou-lhe o novo membro do clã. Lachico deu-lhe boas vindas e brincou: “Vou ensinar este negrinho a domar burro bravo e a tocar a comitiva quando a gente for levar gado para o Frigorífico na cidade!”. Os volumes foram então retirados da “Jardineira” e colocados no carroção e a viagem, em sua fase final, teve início. Durante o trajeto a conversa girou em torno de fatos ocorridos na Fazenda enquanto meu pai esteve ausente. Às vezes, Irineu era concitado a dizer alguma coisa; entretanto, permanecia quieto.

Ao chegar à Fazenda, meu pai foi recebido com a ternura de sempre por minha mãe e alegria pelos funcionários que se encontravam nas proximidades. Todos vieram cumprimentar o patrão e, juntos, descarregaram os volumes, colocando-os na grande varanda da casa grande. Dali, seriam entregues aos destinatários. Enquanto o trabalho era executado, minha mãe perguntou logo quem era o menino. Meu pai explicou-lhe, em detalhes, tudo o que havia acontecido. Ao término da narrativa, de imediato minha mãe abraçou Irineu com carinho. Em seguida o conduziu à cozinha para que comesse alguma coisa. A tarde já ia avançada. Alvarina já havia iniciado o trabalho para a feitura do jantar. O anoitecer na zona rural, traz em si uma lição de vida. Os animais de hábitos diurnos iam se recolhendo. A noite os chamava para o repouso natural. Durante essa rápida transição, dia noite, percebia-se, em determinado instante, um silêncio absoluto.

Creio que é nesse momento de quietude que Deus abre o espaço para que as orações de seus filhos lhe cheguem aos ouvidos com maior clareza.

Após, os insetos, aves e animais que vivem na escuridão da noite iniciam sua algaravia de sons, com as mensagens que trocam entre si.

Se seguissem essa ordem de disciplina que a natureza dita, os humanos não se envolveriam em tantos problemas. Teriam melhor saúde e seriam mais felizes.

O jantar transcorreu em clima alegre e festivo. As novidades foram o centro da conversa. Tanto as que vinham de S. Paulo, trazidas pelo meu pai, quanto as ocorrências da Fazenda durante sua viagem.

Quanto ao Irineu, ficou decidido que ele não iria trabalhar na roça. Segundo minha mãe, um serviço pesado e não apropriado para uma criança. Seria matriculado na Escola da Fazenda; iria ficar na casa grande para ajudar em pequenas tarefas domésticas, até que crescesse mais. Havia um pequeno quarto nos fundos da casa localizado ao lado da despensa. Esse quarto, outrora, pertencera a Alvarina. Entretanto, após ter-se casado, o deixou vago, indo residir em uma das casas da colônia junto ao marido. Apesar disso, continuou com seus afazeres na casa grande, onde era tratada como uma filha. Esse cômodo passou a ser do menino. Alvarina, personagem já citada em capítulo anterior, foi, desde menina, companheira e testemunha da história da família em bons e maus momentos. E a partir desse dia, teve uma ocupação a mais: ensinar o serviço a Irineu e dotá-lo de hábitos disciplinares, de modo que pudesse cuidar sozinho de sua higiene pessoal e de como se comportar convenientemente junto à família. Da. Hilda recebeu o novo aluno, como sempre fazia com outras crianças, com ternura e respeito. Irineu, com certa facilidade, adaptou-se surpreendentemente bem ao novo ritmo de vida. Na escola era aluno aplicado. Nos serviços, idem. Humilde e educado, despertava em todos simpatia.

Com tudo em seus lugares, a vida seguiu em frente. O tempo, adversário imbatível, correu rumo ao futuro. Em 1941, meu pai planejou uma viagem até Londrina, cidade mais ao norte do Estado. Nessa região, a Cia. Melhoramentos começava a colonização do Norte Novo. As terras colocadas à venda eram de cor roxa e, segundo os entendidos, de muito boa qualidade para o plantio de qualquer tipo de cultura. Todo projeto que dá certo e obtém sucesso deve se expandir e crescer. Assim pensava o meu pai. Por isso a ida até Londrina, para adquirir mais terras e fundar a Embaú II. Minha mãe quis acompanhá-lo. Embora estivesse em estado de gestação já adiantado (oitavo mês), concordaram que não haveria problema, pois a viagem seria por poucos dias e a distância a percorrer curta. Ao desembarcarem do trem, depararam com uma estrutura monumental. A estação ferroviária, construída com os requintes clássicos da arquitetura inglesa, os deixou encantados. Entretanto, Londrina era ainda um pequeno povoado. Um embrião do que é hoje. Poucas casas, todas em madeira, inclusive a pequena igreja. O comércio, ainda claudicante. Procuraram hospedagem. E ficaram com um quarto em um modesto hotel. Era o que de melhor havia. No dia seguinte, bem cedo, meu pai dirigiu-se à sede da Cia. Melhoramentos. Uma vez ali, manifestou o desejo de adquirir alguns alqueires da terra posta à venda. Foram então designados dois corretores para acompanhá-lo até a região escolhida. Não havia estradas. A viagem para vistoriar a área teria que ser feita a cavalo. Essa operação toda seria feita em dois ou três dias. As picadas feitas, por onde deveriam passar, eram precárias. A densidade da floresta, ainda virgem, era um fato que comprovava a garridez da terra. Viajaram o dia todo. Somente ao cair da noite, alcançaram o acampamento avançado da Cia. Melhoramentos. O jantar foi servido. Compunha-se de arroz, feijão e carne assada de animais silvestres abatidos pelos funcionários da Companhia. Dormiram em barracas de lona ali instaladas. No dia seguinte, partiram rumo aos lotes a serem vistos e anteriormente escolhidos na planta do projeto de colonização da área. Meu pai gostou do que viu. Entretanto, era preciso ponderar bem. A aquisição envolveria uma quantidade de valor considerável. A segunda guerra mundial se expandia na Europa. O momento era de apreensão e crise. Por isso tudo, resolveu esperar um melhor momento para uma decisão definitiva. Retornaram ao fim do terceiro dia.

Ao chegar ao hotel, meu pai deparou-se com uma circunstância inesperada. Minha mãe havia, prematuramente, entrado em trabalho de parto. O casal, proprietários do estabelecimento o informaram que tudo começara desde o dia anterior, que já haviam providenciado um médico (único na cidade) e uma parteira para dar assistência. Fato que ele os agradeceu, e dirigiu-se ao quarto. Acompanhou tudo de perto. Apesar de todo carinho e amor demonstrado por ele à minha mãe, o sofrimento e a dor prolongaram-se até a noite. Por volta de 11 horas do dia 7 de março de 1941, eu vim ao mundo. Durante o dia, em determinado momento, as dores diminuíram e meu pai, para aliviar um pouco tanta tensão, disse à minha mãe: “Se nascer um menino, você vai ganhar aquele relógio que vimos na vitrine da relojoaria e que você gostou muito”. Ela sorriu, apesar dos pesares, e disse ao meu pai que com certeza seria menino. Independente do sexo da criança, o relógio já estava com meu pai. E logo após o nascimento, ele com ternura colocou-o no pulso de minha mãe, beijando-lhe o rosto. Esse relógio de ouro acompanhou-a sempre, desde aquele momento, até ao túmulo. Uma prova da lealdade que o amor gera entre aqueles que só conhecem um único amor na vida. Hoje, quem sabe, devem estar juntos, passeando felizes entre as estrelas. É assim que os vejo em meus momentos de silêncio e reflexão.

No dia seguinte pela manhã, o médico voltou. Examinou mãe e filho. Seu diagnóstico não foi dos melhores. A mãe precisaria de um repouso de no mínimo, oito dias. Além do que, seria necessário tomar uma série de medicamentos que foram prescritos em receita. Quanto ao bebê, o seu estado geral não era bom. O médico alertou meu pai: “Sr. Osório, a criança, além de prematura, está muito debilitada e suas chances de sobreviver são quase nulas: Virei durante a semana para ministrar remédios e fazer o que for possível para mantê-la viva”. Despediu-se, colocando-se à disposição para ser chamado, caso houvesse alguma mudança no quadro clinico de momento. Meu pai o agradeceu. Em seu rosto, a tristeza estava visível. Saiu, andou pelas ruas até que pudesse dissimular o seu estado de espírito, pois não queria causar qualquer tipo de choque emocional à minha mãe. Foi à farmácia, adquiriu os medicamentos e voltou. Nada disse quanto à opinião do profissional. Dentro dele, a lembrança dolorosa da perda de sete filhos, nascidos anteriormente, A falta de recursos naqueles sertões era uma realidade. O dinheiro pouco adiantava. Não havia tratamento pré-natal, coisa desconhecida naqueles tempos, o que fazia crescer a taxa de mortalidade infantil. Desde o começo da vida em comum, ambos já haviam contraído malária. Embora tratados com os cuidados necessários, a doença deixava seqüelas que acabavam por refletir nos filhos. Quanto a mim, haveria de lutar pela sobrevivência desde o início da vida. Após uma semana, o médico comunicou ao meu pai que já poderia empreender a viagem de volta. Entretanto, mantinha o seu pessimismo quanto ao futuro do bebê.

Meu pai disse a ele: “Tudo bem, se tiver que morrer, morrerá em nossas terras e será sepultado junto aos seus irmãos!”. Não obstante a frase machista, por dentro a dor corroia-lhe a alma. Não queria perder este filho, última esperança de ter um herdeiro do seu nome e de suas realizações.

Assim, com os cuidados necessários, retornamos à fazenda. Ao chegarmos, minha mãe foi informada que entre os colonos recém-contratados, todos vindos do Estado de São Paulo, havia uma senhora, conhecida pelo nome de Inhá Dita, que se dizia curandeira e benzedeira. O Sr. Osvaldo e Da. Hilda, chegaram para cumprimentar a todos e dar as boas vindas. O Farmacêutico foi informado pelo meu pai do veredicto médico. Também me examinou cuidadosamente e reafirmou a opinião, dizendo ainda que viria todos os dias para ministrar os medicamentos prescritos. Não foi um retorno alegre como tantos outros. Minha mãe, sem saber a verdade, pressentia que algo não estava bem. Assim, mandou Irineu ir à colônia e chamar a benzedeira. Para uma mãe, a vida de um filho vale qualquer providência que possa ser tomada. Inhá Dita chegou. Lenço amarrado à cabeça. Proteção nas pernas para evitar picadas de insetos e serpentes. Seu vestido de chita barata estava sujo. Estava suada, pois viera da roça, apressada, para atender ao chamado da patroa. Em seu rosto arredondado, o rubor se fazia notar. Resultado do calor do sol e da caminhada rápida que empreendera. Seus olhos verdes e brilhantes eram rápidos. Sinal de uma inteligência acima da média. Assim apresentou-se à minha mãe. Demonstrava grande humildade, sem perder, entretanto, a postura de quem trazia consigo o dom de curar. Ao ser informada do problema, pediu para lavar as mãos na cozinha, o que lhe foi concedido. Ao retornar, pediu para olhar a criança. Foi conduzida até ao quarto. Ali, minha mãe me retirou do berço e passou-me às suas mãos. Fui então colocado na cama e inteiramente despido. Após minucioso exame, Inhá Dita proferiu seu diagnóstico: “Esse menino é perfeitinho!, não vai morrer não!. Oceis tem aí nas terra arguma égua parida de pouco?” Minha mãe, entre a surpresa da solicitação, e a firmeza do pedido, saiu do quarto, e mandou Irineu perguntar ao Lachico se havia, ou não, algum animal naquelas condições. O negrinho saiu correndo. Após alguns minutos, voltou esbaforido: “Da. Nina, o Lachico disse que a égua tordilha deu cria há três dias!”. Ao ouvirem a notícia, Inhá Dita falou do alto de sua sabedoria: “Da. Nina, o menino tá salvo! Manda tirá leite da égua. Di agora em diante, esse mulequinho só vai tomá leite de égua. Além disso, vamô precisá de gordura de capivara. Si a Sra. não tivé aí, eu tenho lá em casa e já vou buscá!. Têmo que pingá treis gota em cada mamadeira. Daqui uns dia esse minininho tá curado”. Despediu-se, dizendo que logo voltaria com o precioso óleo. Os eqüinos amamentam suas crias durante, no máximo, noventa dias. Minha saúde foi melhorando aos poucos. A partir de então, meu pai passou a enviar emissários por toda a redondeza. A missão: encontrar éguas com cria recente e pedi-las emprestado. Os vizinhos que possuíam animais nesse estado sentiam prazer em emprestá-los ao saber a que se destinavam.

Para resumir esta passagem, após seis ou sete meses do tratamento recomendado por Inhá Dita, me transformei no bebê mais forte e saudável da região. A fama de minha salvadora atravessou as divisas da Fazenda do Embaú. Ficou conhecida em toda a região. E quanto a mim, até hoje, não fiquei mais doente, ou sofri por qualquer patologia mais séria que uma gripe ou resfriado. Irineu foi nomeado meu pajem oficial. Inhá Dita recebia todas as honras de meus pais. Sr. Osvaldo ficou besta de presenciar o ocorrido. Não tinha uma explicação racional para tal fato. Assim, a felicidade voltou a reinar na Fazenda. O tempo passou. Após alguns anos, meu pai, após acirrada campanha política, com direito a tiroteios e outras brutalidades, foi eleito Prefeito do Município de Congonhinhas. Mais um antigo sonho realizado. Irineu ficou moço. Diplomado na Escola Primária da Fazenda, queria ganhar o mundo. A previsão do preto Lachico confirmou-se in totum. Irineu ficou famoso como peão; valente e atrevido, não havia cavalo ou burro bravo que o jogasse ao chão. E nas comitivas era sempre o ponteiro, com o berrante que tocava com maestria. Naquele tempo, quem sabia ler, escrever e fazer contas podia sonhar mais alto do que a maioria. Meus pais não concordaram de início, pois o amavam muito. Entretanto, não eram senhores de sua vida ou de sua vontade. Reconhecendo isso, meu pai escreveu de próprio punho uma carta dirigida ao Diretor da Rede Ferroviária em Curitiba, solicitando que o mesmo arranjasse uma colocação para o portador, uma vez que estava qualificado para exercer funções ao nível do seu preparo. Irineu partiu. Houve muitas lágrimas e conselhos. Deixou um vazio. Senti muito a falta de seus cuidados e de sua companhia sempre paciente e tolerante. Entretanto, nada dura para sempre. Após alguns meses da eleição, meu pai foi empossado no cargo para o qual fora eleito. Não chegou a completar o segundo ano de mandato. Após prolongada enfermidade e uma longa peregrinação por hospitais, até em São Paulo, o seu sofrimento teve fim em um hospital de Santo Antônio da Platina, cidade onde hoje está sepultado e na qual, quando jovem, havia exercido, por muito tempo, as funções de Delegado de Polícia. O sonho acabou!. Aquela morte inesperada viria a transtornar e transformar a vida de centenas de pessoas. O ninho que abrigava tanta gente feliz foi se desfazendo aos poucos, e dispersando seus ocupantes para lugares onde jamais iriam receber tratamento igual.

Iniciou-se, a partir daí, um longo processo de Inventário. O Juiz, a quem competiu a realização do feito, amigo da família que era, liberou, para minha mãe, a venda de algumas cabeças de eqüinos e de gado que levavam a minha marca “A”. Com o dinheiro havido, teríamos que viver até a conclusão do processo, quando, só então, poderíamos voltar a ter uma vida financeira com a qual estávamos acostumados. Deixamos a Fazenda do Embaú; para ela foi nomeado um Interventor. Ficava para trás, um pedaço de nossas vidas. O clima festivo dos mutirões, as fogueiras e as festas de São João. As noites enluaradas, quando minha mãe reunia mulheres, moças e crianças para brincar de roda. Um passado lindo, repleto de alegria e felicidade e que não mais haveria de se repetir no futuro incerto que nos aguardava. Mudamos para a Fazenda do meu avô materno em Arapongas, no mesmo Estado. Levamos conosco, eu e minha mãe, a dor inconsolável da perda e uma saudade imensa, tão imensa quanto o sonho que findara. Ao escrever estas linhas, me vem clara a lembrança dos últimos instantes de vida de meu pai. Ele pediu que me levassem até à beira do seu leito de morte. Me aproximei assustado; não sabia a extensão do que estava ocorrendo. Para mim, ele era imortal. Então, fez sinal para que aproximasse mais, e me disse mais ou menos as seguintes palavras: “Filho querido, seja sempre honrado e correto. Não permita injustiças em sua presença. Não tenha medo de nada e nem de ninguém!. Você é um homem!. Estarei olhando por vocês lá do céu”. Fez um esforço, beijou meu rosto, acariciou meus cabelos, esboçou um sorriso e deitou-se novamente. Havia lágrimas em seu rosto. Fui retirado do quarto. Foi a última vez que o veria com vida. Horas depois, exalou seu último suspiro. Estava morto. Deixou atrás de si um rastro de luz, por sua bondade. Um rastro de honra, por sua valentia e coragem. Atributos que, até hoje, são lembrados por todos aqueles que o conheceram. Para mim, a herança maior foi sua forma de proceder em vida, lição que aprendi, ditada pelo mais insigne dos mestres: o exemplo!.

As cenas de dor e desespero que se seguiram, as deixo de relatar. Seria para mim muito doloroso. Ainda criança não pude, àquela altura da vida, dimensionar a enormidade da perda. Só muito mais tarde compreendi a falta que faz um grande pai. Em Arapongas, ficamos pouco tempo com meu avô em sua fazenda. Minha mãe, orgulhosa e independente, houve por bem ter seu próprio canto, como dizia. Uma casa foi alugada na cidade e nos mudamos para lá. E ali passamos a viver um para o outro. O final do ano foi se aproximando. Seria o primeiro natal sem a presença física do meu querido pai. Foi um período difícil para todos os agricultores daquela região. Durante o rigoroso inverno, havia geado. A maioria das culturas havia sido perdida, os cafezais, atingidos pelo frio intenso, nada produziriam nos próximos anos. Uma recessão econômica muito acentuada atingiu a ricos e pobres. Entretanto, crianças não tomam conhecimento desses problemas.

Assim, em Dezembro, escrevi minha cartinha a Papai Noel. Pedia nela, como presente, uma bicicleta azul, com farolete e bagageiro. Bicicletas, no Brasil daquele tempo, só importadas. Não tínhamos um parque industrial capaz de produzi-las no País, o que tornava o meu pedido inviável naquelas circunstâncias. As coisas importadas eram vendidas a preços astronômicos. Minha mãe sabia que o presente não viria. Assim mesmo, tentou vender algumas jóias valiosas que possuía. Os valores oferecidos eram aviltantes. Tentou, ainda, vender seu casaco de mink vindo da França. As prováveis compradoras nem sabiam o que era aquilo e muito menos o seu valor. Todas as esperanças feneceram. Era preciso encarar a dura realidade. Por mais algum tempo, os dias de fausto, conforto e riqueza estavam suspensos. Voltariam mais tarde. Bem mais tarde. Seu filho, pedaço vivo do único amor que conheceu nesta vida, e por isso duplamente amado, seria também, atingido pela situação de modo brutal. Às escondidas, chorava todos os dias em silêncio. Buscava, em orações e promessas, a realização de um milagre e nessa crença mantinha-se de pé. Dezembro escoou-se rapidamente. Chegamos ao dia 24, véspera de natal. Minha expectativa aumentava a cada hora. Minha mãe, nos dias antecedentes, tentava já preparar o meu espírito para a triste decepção que viria. Às vezes, conversando comigo, ela dizia: “Filho, às vezes Papai Noel não consegue atender o pedido de todas as crianças. Quando muitas pedem um só brinquedo, a fábrica do céu não dá conta de fabricá-los em quantidade suficiente. Assim, ele troca por um outro brinquedo”. E eu respondia que não. Pois, para mim, ele nunca tinha deixado de trazer o brinquedo pedido. E que desta vez não seria diferente. Esse diálogo repetiu-se muitas vezes durante o mês. Nesse dia, depois do almoço, minha mãe me chamou: “Venha tomar banho e trocar de roupa. Nós vamos passar o Natal com a vózinha (minha bisavó, índia xavante), em Sabaudia. (pequeno povoado situado a poucos quilômetros). Ela está sozinha e não podemos deixá-la passar o Natal assim”. Protestei com veemência. Queria ficar em casa, para esperar a visita encantada que haveria de vir nesta noite, trazendo o meu sonhado brinquedo. De nada adiantaram minhas lamúrias. Saímos de casa e rumamos para o ponto de ônibus colocado em frente à Igreja Matriz. Uma vez ali, minha mãe consultou o relógio (aquele que ganhou quando nasci), e disse que o ônibus ainda iria demorar.

“Vamos até a Igreja ao invés de ficar aqui sob esse sol quente”. Adentramos o Templo. Fiquei correndo entre os bancos de madeira ali existentes. Estava conformado com a viagem inevitável. Após alguns minutos, ouvi soluços e o choro de minha mãe. Corri até ela para ver o que estava acontecendo. E a vi ajoelhada aos pés do Cristo crucificado, com o seu véu preto sobre a cabeça. Ao recordar, ainda hoje, aquela cena, não posso deixar de me comover até às lágrimas.

Os raios de luz vindos do sol, filtrados através de coloridos vitrais, iluminavam parte do seu rosto moreno, de finos traços e bonito. As lágrimas que lhe escorriam pela face refletiam um brilho etéreo. Foi um momento divino. E só hoje percebo sua beleza. A mãe, de joelhos, em profunda e enternecida oração, pedindo ao Senhor um milagre de natal para o filho querido. As últimas coisas que lhe restavam naquele momento eram a crença e a fé inabalável nos desígnios de Deus. Por isso, comovida, deixava escorrer pelo rosto o pranto de sua dor e de sua esperança. Em seguida, ela se levantou, fez o nome do Pai e estendeu-me a mão para sairmos Perguntei porque chorava. Ela me respondeu que estava com saudades do meu pai — Anos mais tarde, ela me confessou que, naquele momento, havia também dirigido um pedido de socorro ao espírito do companheiro amado. — Tirou o lenço da bolsa, enxugou os olhos e saímos.

O nome Xavante de minha bisavó era de difícil pronúncia. Então, para facilitar, a chamávamos de Dinha. Um apelido carinhoso. Fato que ela nunca contestou. Ela residia em uma chácara. A casa, sempre impecavelmente limpa. Para entrar, quem quer que fosse visitá-la era obrigado a deixar os sapatos à porta. Não havia nenhuma exceção. Ali, cultivava frutas, verduras e legumes e também ervas medicinais, as mais conhecidas e outras que só ela conhecia. Resultado da sabedoria indígena, cujos segredos ela reservava para si. Não vendia esses produtos na rua. Quem os quisesse adquirir era obrigado a ir até sua casa. Nunca lhe faltou nada. As pessoas da família não se recordam de tê-la visto doente em nenhuma oportunidade. Ao falecer, com 115 anos de idade, o médico que a atendeu afirmou que a morte não ocorreu por doença, mas sim porque as células não mais se reproduziram. Além dessa renda, recebia também uma pensão mensal, que começou a ser paga após a morte do meu bisavô. O velho Jorge Corrêa era português de Trás-os-Montes. Homem alto, cabelo ruivo carapinho, rosto sardento, onde sobressaíam seus bonitos olhos azuis. Viveram juntos por 57 anos. A história de ambos, a começar pelo contraste do biótipo de cada um, daria com certeza um bom livro. Ao chegarmos à sua casa, fomos recebidos com muita alegria e satisfação. Dinha cobriu-me de beijos e deu-me um longo e afetuoso abraço. Comentou com minha mãe o quanto eu havia crescido desde a última vez que havia me visto durante uma visita que fizera à nossa fazenda, época em que eu era ainda um bebê. Após tomarmos água, eu sai para brincar na propriedade, enquanto as duas deram inicio ao preparo da ceia de Natal. A noite chegou. Antes do jantar, oferecemos à Dinha uma pequena lembrança e recebemos dela artesanatos indígenas que ela mesma confeccionava em suas poucas horas de folga. Hábitos do seu povo, cuja cultura ela nunca esqueceu. Foi uma noite de Natal sem pompa, sem luxo e sem festa. Apesar do clima de paz e amor, pairava no ar uma ponta de tristeza que a ausência do meu pai assim fazia. Fizemos uma oração por sua alma, ao mesmo tempo em que nos vinha à lembrança Natais passados, lautos e festivos. Essas recordações criavam em nossos corações um vazio repleto de saudade. Assim passamos o Natal naquela casa simples, situada naqueles sertões longínquos.

Na manhã seguinte, desde cedo, comecei a externar meu desejo de voltar para casa o mais rápido possível. Tinha certeza de que lá estava minha tão esperada bicicleta. Entretanto, minha mãe declinou o pedido, afirmando que somente após o almoço é que retornaríamos. De minha parte, mais protestos inúteis. Com o coração envolto pela névoa da dor, ela estava protelando o momento ruim pelo qual teria que, inevitavelmente, passar. Talvez, querendo adiar mais um sofrimento entre tantos outros já vivenciados nesse ano fatídico. Com certeza já imaginava meu rosto marcado pela decepção e pela tristeza, quando, uma vez em casa, não encontrasse o brinquedo sonhado. Após o almoço, nos despedimos de Dinha, com atenção e carinho. Tomamos o ônibus e voltamos para Arapongas. Viagem curta, mas, para mim, pareceu a mais longa que já fizera. Finalmente, desembarcamos diante da Igreja Matriz. Ao nos dirigirmos à nossa casa, eu puxava minha mãe pela mão, no intento de fazê-la andar mais depressa. Quando entramos na rua onde residíamos, a filha da vizinha, garota de uns 15 anos, veio correndo nos encontrar. E ao se aproximar, gritou para minha mãe: “Da. Nina, a bicicleta do Astorige está lá em casa!”. Ao ouvir essas palavras, saí correndo junto com a menina, também entusiasmada com a novidade. Não olhei para trás. Se o tivesse feito, teria visto minha mãe genuflexa sobre aquela terra vermelha. Olhos voltados para o céu e as mãos postas. Ali, entre lágrimas, agradecia a Deus e aos céus pelo milagre realizado, não sabia como. Na pequena varanda da casa, encontrei a bicicleta tão almejada. Minha alegria incontida contagiou a todos.

O brinquedo, estava envolto em um papel ruguso que servia de proteção à pintura. Seu guidom estava todo dobrado junto à armação principal e os pneus murchos. Por sorte, o filho mais velho da vizinha era mecânico. Ele chegou, acalmou todo mundo, olhou a bicicleta e foi buscar algumas ferramentas. Quando voltou, a primeira providência foi retirar a proteção de papel. Nesse momento, O MILAGRE DE NATAL concretizou-se em seu todo. Era uma bicicleta da marca PHILIPS, azul metálica, com bagageiro preto e farolete, além de uma bomba de plástico branco para encher os pneus. Minha mãe chegou, ainda enxugando as lágrimas, só que dessa vez as lágrimas eram de alegria. Sorria e me abraçava. Suas orações foram ouvidas. Enquanto a bicicleta era montada, minha mãe foi chamada pela dona da casa que lhe entregou um bilhete. Papel fino, provavelmente arrancado de uma folha de agenda, caligrafia bonita, e dizia o seguinte:

“Mãe querida, soube da morte do pai. Chorei muitos dias. Não pude ir ao enterro, porque a notícia chegou muito tarde. Sei de sua dor e compartilho com ela. Por isso, resolvi comprar esta bicicleta para o meu querido irmãozinho a quem também amo muito. Não posso esperá-los. Troquei de linha para poder vir. Volto no trem noturno do qual sou o Chefe. Espero que o Astorige fique feliz. Um abraço e beijos carinhosos em vocês dois, desejo-lhes um feliz Natal, apesar de tudo. Do seu filho que nunca a esquecerá. Irineu 24/12/”.

 

III

E, quando no futuro incerto,
No passado, buscares refúgio para tua dor,
Encontrarás, paz, doçura e amor.
É a semente outrora lançada,
Que hoje, em esperança realizada,
É bálsamo que te consola,
Em forma de uma flor!.


Verso extraído de um poema de minha autoria, “A Semeadura”


 

Capítulo V

O CASO DE TAQUARITUBA(SP)

 

Na foto, Correinha, o segundo da direita para a esquerda, junto aos componentes da RUDI

 

Considerações preliminares

 

O serviço policial não vive de glórias passadas. A dinâmica policial avança a par e passo com o tempo. Todo dia é uma sucessão de fatos, uns com iguais antecedentes, outros, sem precedentes. Tudo evolui. Os delitos ganham sofisticação, os criminosos se aperfeiçoam. Ao organismo policial resta, para acompanhar o mesmo ritmo e ter sucesso no combate ao crime, seguir a mesma trilha desse constante evoluir. Entretanto, a instituição está, gradativamente, perdendo essa corrida. E perde principalmente por falta de investimentos necessários no setor e, mais ainda, ao não investir em seus recursos humanos. Ser um policial no passado era motivo de honra e orgulho. Hoje, é motivo de humilhação e desrespeito. Humilhado, pelo ínfimo salário que recebe. Desrespeitado pelos delinqüentes, que sabem da falta de estrutura material e, muito pior, o policial é um desamparado também por aqueles a quem cabe dirigir e administrar os organismos policiais em todo o Brasil. Qualquer denúncia, verdadeira ou não, o niilismo contra o policial é um míssil disparado com o combustível do desmando, do abuso do poder, da prepotência e da arrogância E em sua ogiva leva o pior dos explosivos de destruição: A INJUSTIÇA! Armas dos covardes Corregedores e Ouvidores, que não dotados da coragem necessária para ir às ruas cumprir sua verdadeira missão de prender bandidos, se escondem em seus gabinetes, predispostos a deter aqueles que sabem que não irão reagir. Useiros e vezeiros em torturar psicologicamente e promover festins de humilhação, como se tudo pudessem, acobertados pela impunidade, agasalhados que são por superiores do mesmo jaez moral. Não sou contra a existência de um organismo para disciplinar a conduta dos policiais. Mas que o façam com justiça e imparcialidade, dando aos mesmos, ao menos, o sagrado direito de defesa consagrado em nossos códigos e em nossa Constituição.

Que falta fazem Adriano Marrey, Dalmo do Valle Nogueira, Hélio Dal Porto e Rafael Quadros, juízes cuja passagem pelos corredores do Palácio da Justiça deste Estado deixou atrás de si um rastro de luz, iluminados e glorificados por seus notáveis conhecimentos jurídicos e pela independência de promover e elevar a justiça mais pura ao altar Consagrado ao Direito, matéria na qual eram mestres insignes, probos e honrados. Homens que nunca se intimidaram com pressões de poderosos, ou por falsos clamores públicos, artificialmente criados por aqueles interessados em relegar o verdadeiro direito a um segundo plano. Esses semideuses da justiça diante dos quais me ajoelho, sem que esse gesto signifique um ato de submissão, mas, sim, um preito de gratidão do qual me orgulho, por eles terem existido e pelos seus feitos, cujo brilho ofuscante pirografou nas páginas da história dos nossos Tribunais lições que deverão ser eternamente lembradas e seguidas por aqueles que, um dia, vierem a trilhar os mesmos caminhos.

Assim, enquanto um lado cresce — o crime —, o outro — polícia —, se recolhe, intimidado pelos motivos acima expostos. Dizem que nosso país é o rei da improvisação, com o tal “jeitinho” brasileiro. Mas o fato residual é que em atividade policial não cabe a palavra improvisação. Isso porque, com vidas humanas, não se improvisa. Apenas em tese, pois o quadro que a realidade se nos apresenta mostra-se sombrio e alarmante. A insegurança é o sentimento reinante no espírito de cada cidadão deste país. Apesar da situação, não se vislumbra nenhuma luz no fim do túnel. Só escuridão.

Na Década de 60, o Congresso Americano, aprovou vultuosa verba, destinada ao MIT (Instituto de Tecnologia de Massachussets), a fim de que procedesse ao mais completo estudo visando esclarecer as causas do crescente índice de criminalidade que, naquele momento, assolava o país. O trabalho levou mais de dez anos para ser concluído. Isso porque analisou minúcias nunca dantes imaginadas em pesquisas dessa natureza. Toda a população carcerária dos Estados Unidos passou pelo crivo dos estudiosos. Cientistas de diversas áreas participaram ativa e praticamente até sua conclusão. E o resultado, publicado no mundo todo, foi surpreendente. Apontou, como causa principal, a TENDÊNCIA para delinqüir. Ou seja, 79% dos entrevistados estavam enquadrados nesse item. O restante, nos motivos avocados pelos defensores dos direitos humanos aqui no Brasil: miséria, desagregação familiar, maus tratos, abandono, desemprego e crimes ocasionais. Podemos afirmar que o ser humano, independente do país onde nasce, da cultura e dos costumes, em sua essência, não muda. Assim, o resultado desse estudo é válido para todos os povos da Terra; inclui-se aí o Brasil. A conclusão desse projeto revelou cristalinamente que a recuperação de um marginal, QUE JÁ TRAZ EM SI a tendência para delinqüir, é fato utópico.

Entretanto, os oportunistas de plantão, à guisa de proteger e recuperar bandidos da pior espécie, vivem apregoando aos quatro ventos — com a cartilha de direitos humanos de Jimmy Carter às mãos — sua proteção e recuperação. Reles fracassados, que na realidade não crêem no que fazem, por saberem inútil; não obstante o fazem, simplesmente para aparecer na mídia. Entendo que direito humano deva ser respeitado e direcionado para aqueles que cumprem os seus deveres e obrigações e respeitam as leis. Porém estes não são defendidos pelos que se auto proclamam defensores de tais direitos. Irrisão!

E assim, frente às câmeras e microfones, assacam aleivosias contra os que arriscam suas vidas para tentar proteger a sociedade da ação daqueles que, verdadeiramente, não respeitam nenhum direito. Os pseudodefensores dos direitos humanos de facínoras, megalomaníacos que são, procuram, a qualquer preço, sair do seu anonimato maltrapilho e rastejante em busca da fama, que por outros caminhos não alcançariam, incapazes que são de qualquer realização para beneficiar verdadeiramente os do povo. No fundo, são hienas da mesma família, unidos geneticamente pelo DNA da covardia e da incapacidade. É como diziam os sábios da antiguidade:

 

“Na física, as coisas iguais se repelem.
No comportamento humano, as coisas iguais se atraem”.

 

Se tais defensores atuassem com o mesmo entusiasmo a favor das vítimas, então sim, estariam agindo com imparcialidade e sua conduta seria digna de aplausos. Mas isso não acontece. Não obstante sejam todos vítimas de alguma forma, o tratamento dispensado a um e outro, caso ocorresse, deveria ser diferenciado, de acordo com o comportamento de cada um no seio da sociedade. Essa atitude seria, então, um gesto de verdadeira justiça social. Vamos aos fatos, objetivo deste relato.

 

05 de Dezembro, primavera de 1.969. A polícia paulista havia passado por grandes modificações administrativas. O Dr. Rubens A. Liberatori havia assumido a Diretoria do Departamento de Investigações (D.I.). A rotina do setor de Roubo a Bancos estava me desgastando, física e emocionalmente. Assim, solicitei, por escrito, minha transferência para a RUDI, setor pelo qual nutri sempre um carinho especial, em virtude da filosofia moderna de fazer polícia que ali sempre foi praticada. Meu requerimento foi deferido. Assumi meu cargo em meados de Novembro de 1969, na equipe A, para chefiar a RUDI-3. O delegado chefe, Dr. Cláudio Gobetti, havia vindo do interior e demonstrou seu amor pela carreira, desempenhando suas funções com competência, coragem e, sobretudo, com a correção que sempre pautou sua vida e sua carreira. Um amigo até hoje. As canções e o espírito no Natal já estavam no ar, tocando com ternura o coração das pessoas. No rosto da maioria podia-se notar expressões mais amenas, um ar de alegre expectativa nos semblantes, como se quase todos aguardassem os dias festivos e felizes que estavam por vir. Entretanto, na distante Taquarituba, cidade localizada na divisa do Estado do Paraná, o Delegado de Polícia, Dr. José Vieira das Neves e sua esposa, Sra. Maria Pierre Vieira e a criança que trazia em seu ventre, não estariam vivos para festejar a noite sagrada Foram assassinados na manhã do dia 05/12/69. Um tiro. Três vidas brutalmente interrompidas pelas mãos de um bandido frio e covarde, que já havia assassinado o próprio pai. Nesse dia, uma sexta-feira, me encontrava em casa. Havia trabalhado à noite. Estava dormindo, quando fui acordado. Alguém à porta estava à minha procura. Levantei-me, abri a janela e pude ver um Opala preto e seu motorista. Chamei-lhe a atenção e pedi que aguardasse. Tomei um banho rápido, me vesti e fui saber do que se tratava. O funcionário do Gabinete do Secretário não pôde me adiantar nada. Fora incumbido apenas de ir até minha residência e levar-me, o mais rápido possível, até ao prédio da Secretaria, a mando do Sr. Secretário. Entrei para apanhar uma blusa e olhei para o relógio na parede, marcava 9:30 h. Chegamos ao prédio da Rua Brigadeiro Tobias, por volta das 10:00 h. No 10° andar do edifício, uma vez no Gabinete, fui anunciado. Após alguns minutos a porta se abriu e quem surgiu foi o Dr. Rubens Liberatori. Sorrindo, me cumprimentou e juntos nos dirigimos à mesa onde estava o Sr. Secretário. Ele foi incisivo: “Como está Correinha? Tudo bem?”. Respondi que sim. Em seguida ele foi ao ponto: “O problema que temos hoje é de suma gravidade. O Delegado de Taquarituba e sua esposa, grávida, foram assassinados hoje de manhã, por volta das 7:00 horas. Mandei buscá-lo por recomendação do Dr. Rubens. Quero que você e sua equipe da RUDI se dirijam a Taquarituba e tragam esse bandido vivo ou morto!”. Respondi-lhe que faria o melhor que pudesse.

Em seguida, os inquiri sobre os recursos que tal operação exigia. O Dr. Rubens respondeu: “Correinha, já tomei todas as providências. O pessoal de sua equipe já está sendo trazido para cá. Sua viatura já está abastecida e revisada, um motorista da garagem já a esta conduzindo até a porta do Departamento. Vamos descer e lhe darei o dinheiro necessário e o armeiro de plantão lhe fornecerá as armas. Despedi-me do Sr. Secretário que desejou-me boa sorte. Desci para o 5° andar em companhia do Dr. Liberatori. Ali concluímos os últimos ajustes, após o que, com minha equipe, encetamos viagem. Ao entardecer, quando já nos encontrávamos a mais ou menos 40 quilômetros de Taquarituba, cruzamos com o cortejo fúnebre; dois carros conduziam as vítimas para Santos, de onde eram oriundos, para ali serem sepultados. Um mal estar tomou conta de todos nós ante aquela visão funesta. Entretanto, serviu para nos despertar o espírito de luta de que deveríamos estar imbuídos para levar a bom termo a missão que nos fora confiada Sabíamos dos riscos que iríamos correr, pois estaríamos lidando com um indivíduo da pior espécie e conhecedor do terreno. Já levava, por isso, alguma vantagem. O tempo decorrido também o favorecia, caso optasse por fugir para longe.

Ao chegarmos à cidade, inquirimos alguns transeuntes sobre a localização da Delegacia de Polícia. Informados, para lá nos dirigimos. Fiquei espantado com a quantidade de pessoas que se aglomerava diante do prédio. Em sua maioria, jovens. Alunos do Colégio Estadual onde a professora Maria Pierre Vieira lecionava. Com alguma dificuldade, conseguimos encostar a viatura à porta. À nossa chegada, a multidão nos aplaudiu, fomos cumprimentados por um grande número de pessoas que, em uníssono, clamavam por justiça. Pedi aos membros de minha equipe que aguardassem na entrada do edifício. Entrei na Delegacia. Havia poucos policiais. Perguntei a um deles sobre a presença ou não de alguma autoridade que estivesse respondendo pelo expediente. A pessoa à minha frente identificou-se como sendo o Escrivão de Polícia. Cumprimentou-me com cortesia e, em seguida, conduziu-me à sala onde se encontrava o Delegado substituto, recém chegado de uma cidade vizinha. Não costumo julgar ninguém pela aparência, entretanto a figura que me foi apresentada podia parecer qualquer coisa, menos um policial de carreira. Enfiado meio corpo dentro da mesa, sem postura, quase deitado na cadeira, óculos de grau com armação preta, obeso. Era a própria expressão do desânimo. Percebi de pronto, que não poderia contar com ele para nada. Além de tudo, estava assustado, como se Zé da Nória fosse entrar pela porta a qualquer momento e fuzilá-lo, como fizera com seu colega. Nos cumprimentamos friamente. Perguntei sobre o andamento das investigações. Respondeu-me que nada sabia a respeito, por haver chegado à cidade instantes antes. Perguntei, ainda, se tinha algum plano de trabalho. Informou-me que não, uma vez que os policiais daquela Delegacia estavam empenhados na busca do assassino, e que não tivera oportunidade de conversar com nenhum deles. Insisti, indagando ainda se havia disponível alguma foto do bandido. A resposta foi também negativa. Não havia mais nada a fazer ali.

A partir daquele momento, senti que o serviço teria que começar da estaca zero. A situação não era nova. Já havia passado por isso antes. Despedi-me do Delegado, não sem antes deixá-lo ciente de que estaríamos fazendo nosso trabalho em sua jurisdição. Ao sair em companhia do Escrivão, este me pediu alguns minutos de atenção e narrou-me a seguinte história:

“Correinha, o Dr. José morreu por culpa dele mesmo!”. Não entendi inicialmente a colocação do velho escriba. Pedi que continuasse para melhor esclarecer sua assertiva. Ele prosseguiu: “Há uns oito ou nove meses passados, o Zé da Nória estava em um parque de diversões, aqui temporariamente instalado. E na barraca de tiro ao alvo, tentava, sem sucesso, ganhar algum dos muitos prêmios oferecidos aos que conseguissem acertar o alvo um determinado número de vezes. A arma usada era uma espingarda de ar comprimido. Após inúmeras tentativas inúteis, irritado, ele sacou sua arma, um revólver de cano longo, e o descarregou em direção ao alvo. Houve pânico e correria no parque. Nesse momento, os dois policiais militares que haviam sido destacados para proceder ali o policiamento preventivo foram avisados pelos freqüentadores aterrorizados. Incontinenti acorreram ao local para deter e desarmar o transgressor. Este, por sua vez, estava tentando municiar sua arma para um confronto armado. Não teve tempo. Impossibilitado de usar o revólver, partiu como um animal selvagem para cima dos agentes da lei, com os quais entrou em violenta luta corporal. Feriu e foi ferido. Nada grave, escoriações de ambos os lados. Finalmente dominado, foi desarmado, algemado e conduzido à Delegacia para ser autuado em flagrante delito, por periclitação de vida, lesões corporais, desacato e resistência. Como você sabe, em Delegacias do interior não há plantão. Eu fui avisado em minha casa pelo comandante do destacamento e, em seguida, dirigi-me à casa do Dr. José e juntos fomos tomar conhecimento dos fatos e dar andamento às providências cabíveis. Após ouvir os soldados e algumas testemunhas, o Dr. José mandou que tirassem as algemas do suposto indiciado, e o conduziu à sua sala, cuja porta foi fechada. Permaneceram lá por alguns minutos. Ao saírem, a surpresa: o Delegado mandou-me confeccionar uma requisição de exame de corpo de delito para Zé da Nória, dispensou as testemunhas e mandou-me, ainda, lavrar uma portaria para início de um Inquérito Policial, no qual os policiais militares seriam os indiciados por agressão e abuso de poder. Entretanto, a surpresa maior ainda estaria por vir. Na volta do exame, Zé da Nória teve seu revólver devolvido, (o mesmo revólver com o qual o Dr. José foi assassinado), e em seguida foi dispensado, como se nada tivesse praticado de errado. Como se tudo não bastasse, ao sair, o delinqüente ainda escarneceu os dois policiais, com descarado cinismo. Todos ali presentes ficaram tomados de enorme revolta pela flagrante injustiça praticada pelo Dr. José, um ferrenho defensor dos direitos humanos. No momento em que ocorreu o crime, o assassino estava em frente à casa do Juiz de Direito, com o objetivo de matá-lo. O motivo de tal atitude foi a negativa da autoridade de permitir o namoro entre Zé da Nória com sua filha, que também já havia rejeitado as investidas amorosas do bandido. S. Excelência, ao perceber a presença daquele indivíduo, sentiu-se ameaçado e ligou para o Delegado solicitando providências. O Dr. José estava de saída para levar a esposa ao Colégio onde a mesma lecionava, e ao telefone tranqüilizou o Juiz, dizendo que chegaria em minutos ao local para resolver o problema. Ciente de que seu protegido, para o qual havia sido paternal em nome dos “direitos humanos”, o atenderia sem maiores problemas, quando encostou o carro chamou o marginal para que se aproximasse e, em seguida, disse ao mesmo para sair dali e ir para casa. A resposta foi imediata: “quem vai sair daqui é você!” Incontinenti, atirou, ceifando três vidas inocentes, fugindo em seguida. Achei que você devia saber disso, concluiu o escrivão”.

Ouvi tudo em silêncio. Não externei minha opinião pessoal em respeito ao que, de qualquer forma, havia perdido seus dois bens mais preciosos: a vida e a família. Mas confesso que perdi bastante do entusiasmo inicial. Não obstante tais fatos, um profissional não pode deixar-se envolver por sentimentos pessoais que possam prejudicar seu desempenho. O trabalho deveria ser levado a bom termo. Para isso estava ali. Independente das circunstâncias, um crime hediondo e covarde havia sido cometido e cabia a mim efetuar a cobrança em nome da sociedade local, que lá fora bradava por justiça, e da instituição que fora flagrantemente desrespeitada.

Atônito com tal informação, e com as emoções se atropelando dentro de mim, dirigi-me para frente do prédio, subi no muro, solicitei a atenção de todos, e pedi ajuda: “Se houver alguém dentre vocês que conheça o assassino, que saiba onde residem todos os seus parentes na zona rural, peço que se apresente. Sei que não é um pedido simples, mas sem essa colaboração o meu trabalho ficará muito mais difícil”. A multidão quedou-se em absoluto silêncio, até que um jovem de uns 16 anos de idade adiantou-se, com o braço erguido, e falou: “Eu conheço tudo! E vou ajudar o senhor”. Foi aplaudido por todos. A grande busca enfim teria início. Parabenizei o rapaz por sua coragem, disposição e desprendimento. Pedi para que entrasse na viatura e, quando já íamos partir, um carro do jornal “O Estado de São Paulo”, estacionou nas proximidades. Dele saltou o jornalista Percival de Souza. Desci da viatura, nos cumprimentamos, e ele externou o desejo de fazer parte da diligência. Concordei com o seu pedido, entretanto o seu fotógrafo não poderia vir junto; não havia mais lugar. Percival solicitou ao fotógrafo que lhe passasse a mochila com o material fotográfico. Ele mesmo documentaria os fatos que viessem a ocorrer. Assim, partimos rumo ao desconhecido. Naquele momento, meu espírito recolheu-se para uma prece sublime. Pedi a Deus a proteção necessária para que tudo terminasse bem, para que os que se encontravam dentro daquela viatura tivessem sua integridade física preservada, e ainda para que a justiça fosse feita, justa e imparcial, para o lado que a merecesse. Em seguida, passei mentalmente, os rostos das pessoas que amo. Despedi-me de cada uma com pensamentos de ternura e enviei-lhes beijos de carinho. Por me conhecer muito bem. sabia que, o que quer que viesse a ocorrer, eu não recuaria um passo sequer. Pelo contrário, caminharia sempre para frente!

 

“Eu e você iremos nos encontrar. E então a justiça, a verdadeira justiça, será feita”.

 

Discutimos um plano de trabalho. Chegamos à conclusão de que precisávamos de uma foto do criminoso. Era preciso conhecer seu rosto, sem o que o nosso objetivo ficaria mais difícil de ser alcançado. O nosso jovem voluntário manifestou-se dizendo que nos levaria à residência de “Zé da Nória”, onde por certo encontraríamos uma fotografia do mesmo.

Abro aqui uma dicotomia. Presto assim uma homenagem e um preito de gratidão a esse rapaz, um pequeno herói que colocava sua vida em risco sem nada receber em troca. Não sei seu nome. Mas onde estiver, quero que saiba que nunca foi esquecido.

Chegamos à residência procurada. Bati à porta e fui atendido por uma senhora já idosa. Em seu rosto, as marcas da dor e da tragédia eram visíveis. Ao ver a viatura policial, ela foi logo dizendo que seu filho não se encontrava. Diante daquela mãe, abatida pelo sofrimento, fiquei constrangido. Entretanto, cumprimentei-a com o respeito devido, identifiquei-me como policial e esclareci-lhe o motivo de estar ali. Ela me pediu que aguardasse um momento, dirigiu-se ao interior da casa, e após alguns minutos retomou com uma foto 3x4 do filho e, ao me entregar, disse: “Essa é a mais recente que eu tenho”. Como adjetivar o gesto dessa mãe? Cito a seguir, um pensamento de J. M. Vargas Villa, que quem sabe, possa nos esclarecer:

 

“Solo en la vida espiritual hay grandeza...
Porque solo en la vida espiritual
hay consciência;
Consciência del próprio dolor... y del dolor de los otros”.

 

Ao despedir-me dessa senhora envolta pela tristeza, agradeci-lhe pelo ato de grandeza. Entretanto, ao retirar-me, veio a pergunta que, embora esperada, eu não gostaria de responder: “Senhor, vocês vão matar o meu filho?”.

O que responder a uma mãe naquelas circunstâncias? Pensei antes de responder-lhe. Não poderia me valer de eufemismos. A realidade era sabida por mim e por ela. Com cuidado, disse-lhe que nosso objetivo era prendê-lo vivo. Se ele se entregasse sem resistência, seria preso como qualquer outro delinqüente para ser legalmente julgado por um Tribunal; caso contrário, não sabia o que poderia acontecer. Ela ouviu sem dizer nada. Ao me retirar, notei grossas lágrimas a escorrer-lhe pela face, retrato vivo da dor e do desespero. Nunca mais esqueci aquela expressão de angústia e medo. Lamentei em silêncio e com respeito aquele momento vivido por um coração materno, despedaçado pela incerteza do destino do filho querido, apesar de tudo.

Saímos dali. Na viatura, todos emudeceram. Por vários minutos ninguém disse uma palavra. Aquele encontro comoveu nossos espíritos e mexeu profundamente com os nossos sentimentos.

 

“Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás” — E. G.

 

Por ser a foto muito pequena, procuramos um fotógrafo local, para que nos fizesse uma ampliação. Encontramos uma loja, cujo dono, um nissei, prontificou-se em atender nossa solicitação. Demorou uma eternidade até que as ampliações ficassem prontas. As fotos ainda estavam úmidas. Paguei pelo serviço, apanhei a nota fiscal e nos retiramos rumo à Delegacia onde deixei a maior parte das cópias, para que outras equipes, que estavam vindo de São Paulo, as pudessem utilizar.

Finalmente saímos em busca do nosso objetivo: encontrar o assassino. Foi nesse momento, que não sei exatamente porque, veio à minha mente a lembrança da leitura de um livro, de autoria do cientista russo Pavlov. Essa obra versava sobre o comportamento de cães submetidos a um experimento que os condicionava a reagir a determinados estímulos. E num dos parágrafos, onde se descrevia também o comportamento de ratos com os quais a mesma experiência foi realizada com algumas variantes, ele afirmava que o ser humano, em determinadas circunstâncias, reagia, instintivamente, da mesma forma que os roedores quando ameaçados por algum perigo eminente. Ou seja, buscavam se esconder na toca que estivesse mais próxima. Com esse raciocínio, perguntei ao nosso jovem guia qual o parente do bandido residente mais perto da cidade, Ele nos disse que a mais ou menos três quilômetros, já na zona rural, em uma pequena chácara, residia um tio de Zé da Nória. Pedi, então, que nos indicasse o caminho e para lá nos dirigimos. Durante o trajeto, fomos conversando sobre amenidades, para desfazer um pouco a tensão natural existente. A estrada de terra se encontrava em péssimo estado de conservação. Chegamos ao sítio. Pedi ao nosso condutor, o Ticão, que parasse longe da residência, de forma que quem lá estivesse não pudesse avistar a viatura policial. Determinei à minha equipe que apanhassem as armas e em leque, por dentro da plantação de milho, seguissem até as proximidades da casa e efetuassem um cerco para evitar uma fuga, caso o marginal ali se encontrasse. Enquanto isso dirigi-me ao domicílio. A porta estava fechada. O crepúsculo já se fazia presente e o lusco-fusco dificultava uma melhor visão. Bati à porta, e fui atendido por um senhor já em idade avançada. Identifiquei-me como policial e perguntei sobre o seu sobrinho. Respondeu-me que não sabia e que não o havia visto naquele dia, não obstante tivesse sabido dos atos que o mesmo havia praticado. Barbárie para a qual nem mesmo uma critica ou reprovação proferiu. Entretanto, observei sua expressão facial e sua forma de olhar e também o seu comportamento de forma geral. Não notei qualquer emoção que identificasse surpresa, ou desaprovação das façanhas do sobrinho assassino. Havia, sim, uma certa ansiedade em livrar-se de nossa presença o mais rápido possível, quando notou que a casa já estava cercada. Pedi-lhe licença e fiz uma detida revista no imóvel. Nada foi encontrado. Não nos restou outra alternativa senão nos retirarmos e prosseguir com a busca em outras paragens.

Nos retiramos do local com um sentimento de frustração. Apesar da noite já ter ocupado seu espaço concedido pelo tempo, o nosso entusiasmo não arrefeceu. Prosseguimos envoltos pela escuridão. Onde há trevas, por certo, em algum momento, surgirá a luz. Assertiva válida para os retos de espírito. Enquanto a viatura da RUDI rodava velozmente rumo a outro local indicado pelo nosso “cicerone”, dentro de mim um sentimento estranho incomodava. O comportamento daquele senhor, cuja casa acabávamos de deixar, seu nervosismo, sua ansiedade, ocultavam alguma coisa. Não fiquei convencido de sua sinceridade e nem da veracidade das poucas respostas que dera. Não disse nada a ninguém. Guardei comigo essas impressões. A teoria da ciência teria falhado na prática?

Visitamos mais de uma dezena de propriedades na zona rural daquele Município. Sem sucesso. A madrugada ia já avançada. O frio era cortante. A fome, o frio e a sede já se faziam sentir em todos nós. Nosso jovem guia nos informou que faltava apenas uma propriedade de um tio do assassino para ser visitada. Era a maior de todas e o proprietário era o mais rico entre os parentes já visitados. Além do que tinha a fama de valentão, fama alcançada por brigas e bravatas, fatos que eram contados pelos habitantes daquele Município, onde a figura do mesmo se tomara folclórica. Passamos por uma grande porteira e divisamos a silhueta de uma grande casa. Deveria ser a sede da fazenda. Mandei que parasse a viatura e pedi a todos que me aguardassem. Caminhei em direção àquela enorme residência, que naquelas circunstâncias apresentava um aspecto fantasmagórico. O silêncio, absoluto. Nem insetos ou animais de hábitos noturnos eram ouvidos. A baixa temperatura os fez calar. Após andar quase um quilômetro, ouvi vozes abafadas vindas de um galpão anexo à casa. Ao chegar mais perto, com as cautelas devidas, notei que pelas frestas daquela construção de madeira passavam tênues feixes de luz. Acerquei-me mais; movimentava-me como uma sombra; as caçadas noturnas realizadas nas florestas durante a já longínqua infância, mais os anos de prática de artes marciais, naquele momento foram de grande valia e utilidade. Encostei nas tábuas de madeira e olhei por uma das pequenas aberturas horizontais existentes entre uma e outra. A visão foi surpreendente. Havia mais ou menos quinze homens à volta de uma grande bacia em cujo interior ardia uma fogueira que aquecia e iluminava o ambiente. O fato insólito, àquela hora avançada da madrugada acrescido ainda ao tipo de trajes que usavam, botas, goiacas, blusas de couro, chapéus de aba larga e, na cintura de dois deles, revólveres, enquanto outros portavam grandes facões, me deram ao espírito a certeza quase absoluta de que Zé da Nória ali se encontrava, sob a proteção de parentes, prontos para qualquer natureza de ação que visasse proteger o sobrinho assassino. Não conseguia ver seus rostos com nitidez suficiente que permitisse uma identificação segura. Assim, retirei-me da mesma forma que havia me aproximado: em silêncio.

Durante o trajeto até a viatura, levava comigo a convicção de que o grande momento havia chegado. A parada iria ser decidida naquele local. E as expectativas eram as mais sombrias. Um fato que me chamou a atenção e que achei estranho, foi a ausência de cães no local. Pois em todas as outras propriedades tivemos problemas com esses animais. Essa circunstância seria mais tarde esclarecida Ao chegar junto aos meus companheiros, fiz um rápido relato do que havia visto e, rapidamente, formulei um plano de ação, deixando bem clara a forma de aproximação e o que cada um deveria fazer. Sugeri que o nosso guia e o jornalista Percival aguardassem no veículo, já que as probabilidades de um acirrado combate eram de 90%. O jovem concordou. O jornalista não. Queria ver de perto o que iria ocorrer. Adverti-o que não poderia, naquelas circunstâncias, dar-lhe a proteção devida e que a responsabilidade da decisão era inteiramente sua. Ele reafirmou sua posição. Orientei-o para que, em caso de tiroteio, imediatamente se deitasse rente ao chão, o que diminuiria, em muito, a possibilidade de ser atingido por uma bala perdida. Assim, iniciamos a operação. A porta seria derrubada por mim, numa ação rápida e decidida. Ticão viria logo atrás, para me dar a cobertura necessária. Os outros dois membros da equipe se postariam um à esquerda e o outro à direita, numa posição que lhes permitisse atirar para dentro do galpão, num ângulo em que nem eu e nem Ticão pudéssemos ser atingidos no fogo cruzado que se estabeleceria em caso de reação.

 

“A morte é muito incômoda de madrugada.
Sei que teve medo, mas sei que não foi covarde”.

Texto extraído de um poema em homenagem a Garcia Lorca

 

Nessa disposição fomos nos aproximando da edificação. Quando cheguei a uns dez metros da porta, iniciei uma arremetida; nas mãos, duas armas curtas. Um revólver calibre 38 na direita e uma colt, calibre 45, na esquerda. Um pontapé dado com violência e a porta caiu. Em seguida, disparei a colt para o alto e gritei: “Polícia, a casa está cercada! Mãos para cima! Vão encostando na parede!” Ato contínuo, desarmei os dois homens que portavam armas de fogo. Os outros policiais entraram. Desarmamos todos. Não houve reação. A situação estava sob controle. Perguntei se Zé da Nória estava entre eles. Alguns responderam que não. Indaguei quem era o dono da propriedade. Um dos homens se adiantou e identificou-se como tal. Iniciei com ele um diálogo. Minha primeira pergunta foi no sentido de saber se algum deles conhecia o paradeiro do assassino. A resposta foi negativa. Explicou-me então o fazendeiro que aquela reunião estava acontecendo porque a família, assim que o dia amanhecesse, iria sair à procura do sobrinho, para, se possível, encontrá-lo e entregá-lo vivo à Polícia. Eram todos agricultores. Gente que trabalhava duro sol a sol. Não eram pessoas de mau caráter. Passado o susto inicial de ambos os lados, pudemos manter uma conversa amigável de esclarecimentos. Foi-nos oferecido café e pão feito em casa, o que foi muito bem vindo. Quanto às armas de fogo apreendidas, seus portadores exibiram os respectivos portes, dentro da data de validade. As armas foram desmuniciadas e devolvidas aos seus donos. Devolvemos também as armas brancas que, segundo explicaram, eram usadas apenas nas lidas diárias.

Antes de sair perguntei qual o valor da porta danificada e informei-os que poderiam reclamar na Delegacia local que seriam ressarcidos. O proprietário respondeu que o conserto seria simples de ser feito e que não seria necessário pagar, pois entendeu o caráter da operação. Nos despedimos em clima amistoso. O pior havia passado. A sombria expectativa não se realizara, felizmente. De volta à viatura, mais relaxados, discutimos o próximo passo. Nosso bem informado guia nos disse que, na vizinha cidade de Pedro de Toledo, havia uma zona de meretrício, e que, segundo boatos correntes na cidade, Zé da Nória mantinha ali uma amante de nome Rita, que poderia, naquela situação, acoitar o bandido.

Isso dito, nos dirigimos para lá. Não era distante. Chegamos ao aglomerado de prostíbulos ainda escuro. Deixei um homem postado no início da rua (única), e descemos rapidamente até o seu final, onde deixei outro membro da equipe, para evitar uma possível fuga. Iniciamos uma minuciosa revista, casa a casa, quarto a quarto. As cenas vividas durante esse trabalho foram, em alguns momentos, hilariantes. Entretanto, por seu caráter de moral duvidoso, deixo que cada leitor as imagine da forma que melhor lhe convier. Não conseguimos identificar Rita e nem encontrar seu amante. Nesses ambientes, impera a lei do silêncio.

Tínhamos exaurido todas as nossas possibilidades; mas o bem e a justiça traçam seus desígnios por caminhos iluminados por divina luz. Lembrei-me de Pavlov e do comportamento do idoso na primeira visita que tínhamos feito. Decidi que deveríamos voltar para lá o mais rápido possível. Era minha última esperança e, se falhasse, deveríamos iniciar uma nova linha de investigação. Chegamos ao sítio e nos dirigimos diretamente à casa. Instrui um dos membros da equipe a falar com as crianças em separado. Criança não mente. Enquanto isso, eu interrogaria o tio do assassino de forma mais dura. Eram 8:00 horas da manhã. A estratégia funcionou. O velho, ameaçado de ser preso por esconder um criminoso, confessou assustado que o sobrinho estava dormindo no paiol, e que se encontrava na propriedade desde o dia anterior. Outros policiais já haviam passado por ali e ele os ludibriara. Corri para o local indicado. A porta estava somente encostada, adentrei o celeiro de arma em punho. Não havia ninguém em seu interior. Mas, uma reentrância no milho ali depositado, ainda em casca, indicava com certeza que alguém havia dormido no local. Coloquei uma das mãos nas espigas, e elas ainda estavam quentes, calor gerado pelo corpo do delinqüente, que havia fugido quando percebeu nossa chegada. Havíamos perdido o bandido por minutos. Sai e sobre a relva onde ainda estava depositado o sereno da noite percebia-se claramente as pegadas do fugitivo que se dirigia para um riacho existente na divisa do sítio. As crianças também haviam confirmado a presença do primo. A caçada agora se processaria a pé e por dentro de uma floresta. Seguimos a pista até ao rio. Ele o havia atravessado. Fizemos o mesmo. Prosseguindo pelos seus rastros, saímos do mato e atravessamos um pasto até chegar na moradia dos proprietários daquele imóvel rural. Uma mulher que fazia a ordenha, quando nos avistou, veio correndo, assustada, nos informando que o marginal a ameaçara com uma arma e exigiu que ela lhe desse leite para beber. Após tomar o leite, o bandido havia, apressadamente, se embrenhado num matagal existente nas proximidades. E nos indicou a direção tomada pelo mesmo. Seus rastros eram claros e fáceis de seguir. Eu estava em meu habitat natural. Criado em zona rural, aprendera, desde muito cedo, a seguir qualquer tipo de marca em qualquer terreno. O capão de floresta, por ser pequeno, foi logo ultrapassado e saímos novamente num pasto. Havia uma cerca de arame farpado à direita, após a qual a vegetação era composta por um cerrado (uma capoeira). E a pista nos conduzia naquela direção. Ao me preparar para atravessar a cerca, a surpresa: Zé da Nória saiu de trás de um arbusto, de arma em punho, me encarando ferozmente e me disse: “Atira bem, senão eu te janto”!. E, incontinenti, disparou três tiros. O meu companheiro, que estava à minha esquerda, se jogou dentro de uma vala junto à cerca para se proteger dos disparos. Após os três estampidos, fiz uso de minha Winchester 44. O tiro o atingiu no lado esquerdo do rosto. Entretanto, devido ao ângulo da trajetória do projétil, a bala bateu em seu osso facial malar e desviou-se. Mas o impacto violento da 44 o jogou de costas. Pensei que estava gravemente ferido. Ledo engano. Ato contínuo, o bandido se levantou com a arma em punho. Não teve tempo de usá-la novamente. De dentro da vala meu companheiro disparou uma calibre 12, mas, por ser um cartucho carregado com chumbo 30, que se espalha muito em tiros dados à distância, derrubou mais uma vez o marginal, mas não o feriu gravemente. Ele tornou a levantar-se. Dessa vez, Ticão, que estava à minha direita, disparou sua calibre 12, municiada com balote, e o projétil o atingiu na garganta, abaixo do maxilar, mas só rasgou a pele, um ferimento superficial e ele caiu novamente.

Enquanto ocorria essa ação, eu atravessei a cerca e me aproximei do bandido que, atordoado, engatinhava com avidez rumo à sua arma que estava no chão, já ao alcance de sua mão. Não tive alternativa. Saquei a Colt 45 e fiz apenas um disparo que o atingiu no alto da cabeça. Dessa vez, caiu para não mais se levantar. Estava morto! Cessado o tiroteio, fez-se um silêncio sepulcral. A morte de um ser humano é sempre um fato anômalo. Apesar do sucesso da missão, não havia o que comemorar naquele momento. Apenas a satisfação de estarmos todos vivos e sem nenhum ferimento. Uma outra viatura da RUDI havia chegado de São Paulo durante a noite. Nela, o Delegado Cláudio Gobetti se encontrava. Chamei-o pelo rádio, dei conta de nossa localização e do ocorrido. Solicitei que trouxesse um Escrivão de Polícia e um perito para as providências de praxe, e posterior remoção do corpo. Providências que foram imediatamente tomadas. Quando retomamos a Taquarituba uma multidão, muito maior, se aglomerara em frente à Delegacia. Fui aplaudido e cumprimentado. Chegaram até, alguns estudantes, a me pedir autógrafo. Uma vez na Delegacia, foram tomadas todas as outras providências legais, com a presença do Juiz de Direito da Comarca e este, após as formalidades de praxe, despachou naqueles autos, no sentido de que fossem ali mesmo arquivados. Entretanto, insurgi-me contra tal decisão, pois, sem a aquiescência do representante do Ministério Público, aquele r. Despacho não teria o poder legal de impedir um processo posterior. Isso dito por mim, trouxe todos de volta à realidade. A euforia reinante deu lugar à razão. Trouxeram para a Delegacia o jovem Promotor da cidade que, a pedido do Juiz, apôs o seu “de acordo” e assinou o termo. Eu disse aos presentes: “agora, podemos comemorar!”.

Para encerrar este episódio, transcrevo algumas manchetes publicadas nos jornais da capital no dia seguinte:

 

“DIÁRIO DA NOITE” 06/12/1969

“MORTO O ASSASSINO DO DELEGADO”

 

“Zézinho da Nória, o matador do Delegado de Taquarituba, José Vieira das Neves e de sua esposa, Maria Pierre Vieira, foi morto ontem em rápido entrevero com a polícia, depois de uma caçada que mobilizou grandes efetivos. Zézinho ainda fez fogo com seu 32 cano longo, reagindo à voz de prisão antes de morrer. Assim acabou sua carreira criminosa iniciada com a morte do próprio pai”.

 

“A GAZETA” 06/12/1969

“FUZILADO O ASSASSINO DO DELEGADO”

 

“Está vingada a morte do Delegado de Taquarituba e de sua esposa, assassinados friamente pelo bandido José Aleixo da Silva, o “Zé da Nória”. Agentes da RUDI, durante intensa caçada ao criminoso, conseguiram localizá-lo num sítio daquela cidade, de propriedade do seu tio. “Zé da Nória” ainda chegou a fazer uso de seu revólver disparando contra os policiais. Tombou morto com vários tiros”.

 

“JORNAL DA TARDE” 06/12/1969

 

“Na mão do bandido, um revólver. Na cinta, um punhal e um chaveiro em forma de revólver”. “Quem não vai ficar aqui é você e atirou”. (Palavras de Zé da Nória, para o policial assassinado antes de atirar, segundo testemunhas).

 

“JORNAL DA TARDE” 06/12/1969

 

“CUMPRO O DEVER DE COMUNICAR QUE ACABA DE SER MORTO PELA RUDI EM TIROTEIO NAS MATAS DE TAQUARITUBA, A 420 QUILÔMETROS DE SÃO PAULO, O INDIVÍDUO JOSÉ ALEIXO DA SILVA, VULGO ZÉZINHO DA NÓRIA, QUE ONTEM ASSASSINOU NOSSO COLEGA JOSÉ VIEIRA DAS NEVES E SUA ESPOSA. O CRIMINOSO SE HOMIZIARA NAS MATAS ONDE ESTAVA CERCADO DESDE AS PRIMEIRAS HORAS DE HOJE. DEPOIS DE MANTER CERRADO TIROTEIO COM OS COMPONENTES DA RUDI-3, FOI ATINGIDO POR VÁRIOS DISPAROS.”

Mensagem enviada pelo Diretor do DEIC, Dr. Rubens Liberatori a todas as Delegacias da Capital e do Interior.

 

Considerações Finais

 

As manchetes dos órgãos de comunicação mostram apenas o resultado final de uma operação dessa natureza. Poucos contam a história completa de nossas dificuldades, medos, sustos, suor e cansaço. Este foi mais um episódio em minha atribulada existência. Mais um drama violento em minha carreira que foi, por motivos pessoais e políticos, brutal e injustamente interrompida. Nos anos 60, existiam mais de 4.000 Investigadores de polícia nos quadros da Secretária de Segurança Pública. Inesperadamente, ocorre um fato delituoso em pequena cidade do interior, distante da capital mais de 400 quilômetros e eu me pergunto: Porque eu? Fui convocado por ordens superiores, sem levar em conta a noite de trabalho extenuante pela qual havia passado. Estava no limite de minhas forças física e psicológica. Ainda assim, não podia deixar de atender a uma ordem superior. Nunca recebi um centavo à guisa de horas extras. Dentro da estrutura organizacional da Polícia, a RUDI e seus componentes nada tinham a ver com o fato delituoso (homicídio), ocorrido em local tão distante. Cabia à Delegacia Especializada de Homicídios do DEIC, por ser um caso especial, proceder ao trabalho de investigação e prisão do assassino. Sou humano. Estava física e emocionalmente esgotado. Tive que haurir as forças do espírito para me animar e dar andamento àquela difícil missão que me foi honrosamente confiada E o fiz, pensando na Instituição desrespeitada, na figura de um Delegado a ela pertencente, covardemente eliminado. Não importando se tratar de uma autoridade sem muitos méritos profissionais. Havia, como já foi narrado, prevaricado no exercício de suas funções. E quanto a mérito pessoal, também deixava muito a desejar, quando praticou a injustiça de indiciar dois profissionais de Polícia que haviam simplesmente cumprido seus deveres, agindo dentro da lei e colocado em risco suas próprias vidas. Se tivesse tomado as providências legais cabíveis no episódio do parque de diversões, usando o bom senso, a lei, o direito e a justiça, talvez, quem sabe, não teria sido morto da forma que foi e por quem foi.

Um policial é, antes de mais nada, uma pessoa comum, como tantas outras. Assim sendo, ao tirar a vida de um ser humano, não importando quem seja, ou o que tenha praticado, mesmo agindo em legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal, abre-se em seu coração uma ferida dolorosa que irá sangrar para sempre. E, em seu espírito, passa a residir uma ponta de tristeza, que creio será eterna. É um preço muito alto que se paga para cumprir uma obrigação profissional. Hoje, eu sinto que fui usado pelo sistema. Sistema que se aproveita de sua coragem, do seu preparo, de sua valentia e espírito de luta, acrescendo ainda o alto risco de vida a que se é exposto, sem nada lhe oferecer em troca, a não ser um mísero salário. Vitórias dessa natureza podem dar ao policial uma sensação de sucesso e realização profissional. Entretanto, não há nenhuma alegria nisso. E as glórias que se lhe auferem, com elogios e outras badalações, são efêmeras e não levam a nada, não acrescentam nada de útil ao seu aprendizado ou à sua ascensão espiritual. Não obstante isso tudo, o estrago feito em sua alma é seqüela que jamais será sanada. Seu espírito levará consigo, para onde for, esse estigma de dor e de sofrimento. E nada é reconhecido por ninguém, a não ser naquele passageiro e rápido momento. Quando o infortúnio e o abandono vierem bater à sua porta, como aconteceu comigo, nenhuma mão se estendeu para uma ajuda, nenhuma palavra de consolo ou de ternura na verdade. Você foi apenas mais um dente da engrenagem do sistema que se quebrou e foi substituído, pura e simplesmente. Seu passado, o sangue derramado, os serviços prestados, nada conta. E seu futuro incerto a ninguém interessa: não há justiça, não há direito, não há reconhecimento. Você fica só e entregue à própria sorte. Direitos humanos!. Ora, os direitos humanos! E os meus direitos, quem os respeitou?. Quem os defendeu? Tenho passado, já sexagenário, agruras pelas quais nunca esperava. A herança havida de meu pai, foi toda ela gasta com defensores, advogados que fizeram jus ao que receberam por seu trabalho e muitos outros que me defenderam sem nada receber, porque eu já não tinha posses para fazê-lo. Nesse ponto, não posso deixar de registrar minha gratidão a dois profissionais que fizeram minha defesa sem receber remuneração: Dr. Joseval Peixoto Guimarães e Dr. Abdalla Achcar. O primeiro, amigo de infância desde o Estado do Paraná, e o segundo ex-colega das lides policiais. Tudo isso, por crimes que não cometi. Deixo nas mãos de Deus meu julgamento justo, reto e imparcial, sem nenhum temor. Estou errante pelas ruas, procurando meus direitos humanos. Nunca os encontrei em nenhuma porta em que bati.

 

Nossa maior segurança está na preservação de nossa liberdade. Nós não somos livres porque somos fortes; ao contrário, somos fortes porque somos livres.


Manchete principal do “Diário da Noite” da época


 

Capítulo VI

O HOMEM QUE PRENDIA É PRESO ENTRE BANDIDOS


Na foto, Correinha na sala da diretoria da Penitenciária do Estado de São Paulo, na noite de sua transferência do Presídio da Polícia Civil.


 

Os intermináveis dias de cárcere medieval e desumano já se faziam sentir em meu espírito. Não havia sofrimento físico ou mental. Dentro do mais intimo do meu ser, apenas uma profunda tristeza, cuja causa já identificada tinha um nome: Injustiça!. Quando sua liberdade individual é cerceada por um motivo justo, acredito que a própria alma imortal aceita a pena imposta pela sociedade, com o sentimento de que a culpa real ameniza o castigo quando ele é devido e merecido. Mas, quando se é vítima de uma injustiça, o que era o meu caso, o fardo se torna mais pesado pelo inconformismo e pela impossibilidade de lutar contra uma crueldade imposta por um sistema falho e por uma justiça totalmente cega no sentido literal do termo. O crime de que fui acusado não foi cometido por mim. Sequer conheci a vítima. Nos meios policiais fica-se sabendo de muita coisa, por isso eu sabia quem tinham sido os autores. Mas calei-me a esse respeito. Não sou delator. Tenho honra. E não competia a mim esclarecer este fato. Apesar de tudo o que passei e apesar de tudo o que perdi, mantive sempre o silêncio. Uma questão de valores e de princípios de vida. Não me arrependo de nada. Sempre acreditei que se faria justiça. Sempre acreditei que a falta absoluta de provas contidas nos autos, que indicassem a minha participação de qualquer forma, seria o suficiente para que minha inocência fosse declarada. Ledo engano. Pois a máquina formada para acusar-me foi implacável. Não bastou a ausência de provas e indícios. Um nome de projeção na polícia teria que ser condenado a qualquer preço para simplesmente servir de exemplo e dar uma satisfação à sociedade, não importando que fosse ou não culpado. Ainda assim, apesar de toda pressão e de todo o clamor criado pela imprensa, acrescentando-se ainda a falha e tíbia defesa feita por um advogado sem nenhuma experiência em júri, a contagem dos votos dos senhores jurados foi 4 a 3 pela condenação. Fato que, por si só, coloca em dúvida a culpabilidade do réu. Recorri até a última instância. Entretanto, pareceu-me que esses autos levavam uma mensagem em seu bojo, de que qualquer recurso deveria ser negado, não levando em conta a barbárie da injustiça neles contida e cometida. A jurisprudência firmada, de que em qualquer júri popular, cuja contagem apresente um voto de diferença pela absolvição ou pela condenação, aponta como clássico e legal que o réu seja submetido a um novo julgamento. No meu caso, nada disso foi levado em consideração. A lei, ora a lei. O Direito, que direito? A Justiça, que justiça?

Escrevo hoje estas linhas para que um mal, até agora irreparável, não fique sem registro e que o meu inconformismo e o meu veemente protesto possa chegar ao conhecimento do nosso povo e alertá-lo de que ninguém está livre de passar por isso. Meu único crime foi ficar famoso por combater o crime. Processaram-me por 97 homicídios. Fui condenado em um único processo, no qual não conhecia a vítima e os outros réus, também inocentes, vim vê-los pessoalmente nas audiências inerentes ao processo. Não lhes parece isso tudo muito estranho, sem lógica e sem razão? Fica clara e cristalinamente comprovada a violência praticada contra um jovem policial que apenas procurava cumprir o seu dever da melhor forma possível. Fui baleado quatro vezes em meu trabalho, por bandidos dos mais violentos e perigosos. Respondi por tudo isso dentro da lei, uma vez que os que me atingiram foram mortos na troca de tiros. Rotularam-me de CHEFE DO ESQUADRÃO DA MORTE. Não sem motivo, uma vez que, na antiga Delegacia de Roubos do D.I., sempre existiu um grupo de policiais de elite, que a imprensa resolveu nomear de Esquadrão da Morte. Os componentes desse grupo eram conhecidos por todos. Eram sete policiais chamados pelos jornalistas da época, de “os sete homens de ouro da Polícia Civil”.

É preciso ainda esclarecer, aqui e agora, que a maioria das diligências efetuadas por esse grupo, na procura e prisão dos piores marginais, era sempre acompanhada por jornalistas, fotógrafos de jornais e até mesmo por repórteres de rádio e televisão. Não havia nada a esconder. Não havia identidades secretas.

Para comprovar a veracidade dessas afirmações, basta pesquisar os jornais da década de 60, ou consultar jornalistas que militaram no D.I. nessa época. Tenho certeza de que se lembrarão dos nomes de Ciganinho, Geraldo Jacareí, Juliano, Geraldo Jorgino, Oscar Caser, José Pedro e Correinha. Eu tive a honra de chefiar esse grupo e disso me orgulho até hoje. Nos processos a que respondi, nenhum desses nomes aparece como indiciado ao meu lado. Não há realmente algo de podre no reino da Dinamarca?

Transcrevo a seguir manchetes e trechos de reportagens de jornais daquele tempo, para que as minhas afirmações sejam acompanhadas de provas concretas e verdadeiras de minhas assertivas:

 

“Jornal ÚLTIMA HORA de 14/11/1967 — Pag. 07”
“Guerra Entre Bandidos”

 

“Em conseqüência da queixa, o Agente Deodato, Chefe do Setor de assaltos do D.I., reuniu os homens do Esquadrão da Morte, pois sabia que se tratava de briga de quadrilhas e destacou ASTORIGE CORRÊA, para chefiar a turma. Armados de Winchester e outras armas de grosso calibre, os homens maus foram até ao bairro de Vila Espanhola na zona norte, onde prenderam Zimo dos Anjos, o Chefe da quadrilha que não ofereceu resistência, sendo conduzido ao D.I. para as providências cabíveis”.

 

Do mesmo jornal, na mesma data, página 08: “O Esquadrão da Morte caçando os bandidos”.

 

“JORNAL DA TARDE — número 757 — Ano 03”
18/06/1968
“Crimes em Toda a Cidade”

 

“O Secretário de Segurança Heli Lopes Meirelles não quer saber de conversas e não aceita desculpas. Ele esta exigindo rigor de todo mundo na repressão aos assaltos. No DEIC, já se pensa em rondas especializadas no Setor de Assaltos que já tem o nome de Esquadrão da Morte”.

 

“FOLHA DA TARDE — 21/06/1968 — Sexta — Pag.07”
“VOLTA O ESQUADRÃO DA MORTE”

 

“Também a RUDI e a polícia bancária, nos planos contra a onda de assaltos na cidade”.

“A polícia pensa em acabar com os assaltos na cidade, através de medidas drásticas. Reorganização da RUDI, intensificação das rondas policiais com o Esquadrão da Morte... E Astorige Corrêa, já foi convocado para voltar a chefiar a equipe”.

 

Entretanto, tudo tem uma razão de ser. O motivo que me levou a ser perseguido dessa forma ocorreu em uma das audiências em que o representante do Ministério Público, indevidamente, e num ato alvar e nada condizente com a conduta serena que deveria manter, ávido por publicidade, comunista fanático, lobo matreiro, revestido com pele de cordeiro — forma na qual até hoje se apresenta em público — resolveu, num ímpeto irado, muito comum aos incompetentes, altear o tom de voz ao dirigir-se a mim.

Sou um homem em cujo espírito a dignidade fala mais alto. Não tolero, até hoje, esse tipo de tratamento, venha de quem vier e onde quer que eu esteja. Respeito as Instituições, não os homens que me tratem com falta de respeito, pois nunca desrespeitei ninguém.

Assim, ele ouviu a resposta que lhe cabia no mesmo tom de voz. Criou-se ali, como é comum aos homens pequenos, física e espiritualmente, ódio e animosidade contra mim. Sentimentos que não são recíprocos, pois entre mim e ele, há uma grande distância. A mesma distância que separa a coragem da covardia, a grandeza da pequenez de espírito, a honra da ausência da honra, a valentia da tibiez moral.

Assim, passou o “ilustre” senhor, cujo nome me recuso a grafar nestas linhas, para que não se conspurque o texto, a citar meu nome como réu em todos os processos formalizados — se Maquiavel os lesse, por certo o rubor se estamparia em sua face, ao sentir-se tão largamente superado em maquinar maldades e aleivosias — que traziam em si, como principal e único sustentáculo da acusação, o depoimento dos mais execráveis marginais e bandidos de toda espécie que, para citar meu nome como acusado, recebiam promessas de benesses em suas penas e liberdade a curto prazo. E isso foi feito.

Cite-se o caso do bandido Marco Antônio Ligabó.

Condenado a dezenas de anos de reclusão pelos mais cruéis e variados delitos, foi posto em liberdade prematuramente, sem que a lei e nem as penas impostas fossem cumpridas, simplesmente porque citou meu nome, a pedido do homúnculo acima mencionado. Acoitado e protegido por uma atriz de quinta categoria, terminou por praticar vários assaltos, culminando por balear, com cinco tiros, o policial Urano de Carvalho, durante um assalto a uma casa de câmbio, situada na Av. São Luiz, no centro de São Paulo. Realmente, as coisas iguais se atraem!.

Estes esclarecimentos se fizeram necessários, a fim de que o leitor possa de forma clara, num esforço de empatia, imaginar como estava me sentindo encarcerado em plena Penitenciária do Estado, local para onde fui mandado, na certeza de que não sairia de lá com vida.

Enganaram-se burocratas e autoridades. Ali, fui tratado pelos reclusos com o mesmo respeito com que os tratei quando estiveram detidos em minha Delegacia. Nunca recebi uma palavra ou um olhar insultuoso de nenhum deles. Os funcionários daquele presídio podem atestar o que digo se forem consultados.

Foi-me negado até o direito de cumprir a pena no Presídio da Polícia Civil, instituição que foi criada por minha causa, ao ganhar o direito a prisão especial, em memorável “habeas corpus” concedido pelo Supremo Tribunal Federal, na sua 2a. Turma, em 2-10-72, sob número 50.262, e pelo empenho pessoal do Dr. Rubens Liberatori, Diretor do DEIC naquela ocasião, a quem muito devo pela amizade sincera que sempre me devotou, pois me conhecia muito bem como policial e como ser humano.

Ao Dr. Rubens, minha gratidão, sempre! Em menos de um mês, ele tornou funcional o Presídio da Polícia Civil.

A sanha dos meus perseguidores não estava aplacada. Quiseram me impor, ainda, uma transferência humilhante, operação engendrada por um triunvirato de inimigos gratuitos, cuja inveja do meu sucesso foi maior que o reconhecimento que deveriam ter pelos serviços que prestei à sociedade e à Instituição policial.

Um Secretário de Segurança, que era Coronel do Exército, dado a excessos etílicos e que posteriormente se transformou em político, um ex-Diretor do DOPS, líder da repressão política no País e o terceiro, já acima descrito, eminência parda que agia à sorrelfa pelos desvãos sombrios dos bastidores, onde se homiziam os sicofantas, mobilizaram 400 homens da Polícia Militar, cavalaria, cães pastores e dois carros de combate, para transferir um homem de 1,68 m. de altura e 60 quilos de peso, de um presídio para outro, cometendo mais uma injusta arbitrariedade.

Pelos efetivos enviados para a Avenida Zaki Narchi naquela noite, 04 de abril de 1974, para proceder à operação de uma simples transferência de um único preso, me parece que o homem a ser transferido causava aos conspiradores muito respeito e temor. Tanto, que, para comandar a nefanda transferência, ficaram a quilômetros do local, transmitindo suas ordens pelo rádio. Temerosos, inventaram, na zona sul, no outro extremo da cidade, uma gigantesca “blitz” a ser levada a efeito por todos os policiais civis de serviço naquela noite.Tal medida afastaria a possibilidade de um grande confronto entre as duas corporações.

Era sabido por todos que a grande maioria dos policiais civis nutria por mim uma grande amizade, simpatia e admiração.

A despeito da monumental força que se postava à frente do Presídio da Polícia Civil, não cedi sequer um milímetro de minha firme decisão de só sair dali escoltado por policiais da minha corporação.

Nada tenho contra a Polícia Militar onde, aliás, tinha na época, e até hoje ainda tenho, grandes amigos. Minha firme atitude, se embasava em princípios e valores cultivados durante toda a minha vida. E se assim não fosse, só sairia dali morto!

Depois de cinco horas de impasse, os conspiradores cederam. Não fui escoltado por policiais militares. Sai dali no carro oficial do Diretor do DEIC, Dr. Mário Perez Fernandes; nos acompanhavam também o Sr. Dr. René Motta, Delegado Geral de Polícia, e ainda o Diretor do Presídio, Dr. Fábio Lessa. Uma escolta do mais alto nível.

Naquela noite, os traidores conheceram a fibra de um pequeno grande homem e souberam que, em nenhum momento, a possibilidade de ser morto causou-me qualquer temor. A minha honra, acima de minha vida. É assim que me posiciono diante da vida, ontem, hoje e sempre.

No curto trajeto até os portões da Penitenciária do Estado, aqueles Delegados, todos ocupantes de elevados cargos, derramaram lágrimas de sentimento e, principalmente, pela impotência de nada poderem fazer contra uma determinação judicial injusta e desumana.

E eu lhes disse — embora já deveriam saber —, “que, naquele momento, a Polícia Civil iniciaria um processo sem volta, de perda de poder, respeito e prestígio”.

PALAVRAS PROFÉTICAS! Aquele ato foi, sem dúvida, o começo do fim. Os anos dourados da corporação terminaram naquela fatídica noite. Daí em diante, com o passar do tempo, fui vendo e sentindo o enfraquecimento moral e administrativo da instituição que tanto amei e que por ela, em várias ocasiões, meu sangue derramei.

Venho de uma família de agricultores. Todos os meus antepassados dos quais ouvi falar, meus bisavós e avós, pai e mãe, que conheci, viveram todos na rude lida e trabalho no campo. Gente humilde, mas não inculta. Valentes, intransigentes na legítima defesa dos seus direitos e interesses.

No dia seguinte, já sendo um reeducando da Penitenciária, solicitei ao meu advogado que entrasse em contato com meus familiares, e lhes comunicasse que era de minha vontade que não viessem me visitar. Não permitiria que passassem pelas humilhações impostas pelo regulamento degradante que se pratica em tais estabelecimentos penais, mesmo que fosse para visitar um ente querido. Ainda e principalmente não deixassem minha mãe adentrar aquele local, pois não sabia o que poderia acontecer com seu coração já cansado e tão sofrido. Sempre acreditei que um homem solitário, cuja companhia lhe basta, fica cada vez mais forte, mesmo nas mais duras provações.

Entretanto os meus pedidos não puderam ser atendidos. Infelizmente, minha mãe soube do ocorrido, ouvindo o rádio em nossa fazenda no município de Arapongas, Estado do Paraná. Consumida pela dor e pelo desespero, incontinenti apanhou o Jeep e viajou para São Paulo sem avisar ninguém. Veio direto para a Penitenciária do Estado. Uma vez ali, foi recebida pelo Diretor Geral, o Dr, Luiz Gonzaga dos Santos Barbosa, e entre lágrimas, pranto que comoveu profundamente aquele homem bondoso, justo e honrado, explicou-lhe quem era e pediu para ver o filho querido. Solicitação que foi prontamente atendida, não obstante estivesse fora do regulamento.

Naquele dia de abril de 1974, estava sendo mantido em absoluta e total reclusão em minha cela individual, cumprindo o tal do período de adaptação. Não podia sair para nada. Nem banho de sol, nem visitas. Poderia somente ser levado até a enfermaria em caso de emergência.

Dadas as circunstâncias, fiquei surpreso quando a porta de minha cela, a de número 207 do primeiro pavilhão, foi repentinamente aberta.

Quem ali estava era o guarda de presídio Hércules, que desde o início tornou-se para mim um amigo fiel; posteriormente, passou para os quadros da Polícia Civil, onde se aposentou merecidamente. Sai da cela em companhia de Hércules, nos dirigimos à galeria superior, onde deveria receber a inesperada visita.

Em minha vida passei por momentos muito difíceis e superei a todos. Mas, não estava e nunca estive preparado para o que viria a seguir.

Ao transpor o último portão de aço e adentrar a galeria, reconheci, na recepção, a figura de minha mãezinha querida. As emoções, em turbilhão, se atropelaram dentro de mim. Não consigo descrever o que senti. Mas o pior ainda estava por vir.

Ela estava em companhia do Dr. Luiz e, ao me verem, ambos caminharam em minha direção. Àquela distância, e pela minha aparência, minha mãe não me reconheceu. Mas, ao se aproximar e me olhar no rosto, sua expressão foi de horror, dor e desespero. A surpresa da visão fantasmagórica do filho amado a paralisou completamente e num grito de penoso lamento e amargura disse uma única frase: “Meu filho!”. Em seguida desmaiou.

Num gesto rápido, a amparei antes que caísse ao chão. E em meus braços, com a aquiescência do Diretor, a conduzi à sua sala, onde com cuidado e carinho a coloquei deitada num grande sofá ali existente.

Imediatamente, o Diretor ligou pelo telefone interno para o médico de plantão no Hospital daquele Estabelecimento, explicou-lhe, nervosa e rapidamente, do que se tratava e solicitou que viesse o mais rápido possível para prestar o necessário atendimento à minha mãe. Seus lábios e seu rosto começaram a tomar uma coloração arroxeada. Temi por sua vida.

Me aproximei da janela da sala, ergui meu olhar para o céu, e implorei a Deus que me privasse de tão cruel desgraça! Fiz ainda uma fervorosa oração em silêncio.

O médico chegou em poucos minutos. Fez-lhe um rápido exame e, em seguida, aplicou-lhe duas injeções e ficou aguardando sua reação durante algum tempo. Ato contínuo, mediu-lhe a pressão arterial e auscultou-lhe os batimentos cardíacos com seu estetoscópio. Percebi que estava preocupado.

Foram minutos que me pareceram séculos. Aos poucos, na presença do médico, do Dr. Luiz, além de mim, ela foi lentamente abrindo os olhos e recobrando os sentidos. Os medicamentos ministrados causaram o efeito desejado.

Em silêncio, agradeci a Deus por ter atendido minha súplica e minha prece. Disse, creio eu, o mais comovido “Obrigado, Doutor” que alguém já pronunciou, pelo seu pronto e eficiente atendimento. Agradeci também ao Diretor por tudo que fez.

Ela se refez aos poucos. Tomou um copo com água e açúcar que lhe foi trazido pelo garçom da Diretoria a pedido do Dr. Luiz. Em seguida, ambos se retiraram da sala, deixando-me a sós com minha mãe. Uma atitude humana, bonita e que demonstrou a grandeza de caráter e de alma daquele homem, em cujos ombros repousava o enorme peso da responsabilidade de dirigir um Estabelecimento Penal dos mais problemáticos, pois ali se concentravam reclusos os mais perigosos facínoras do Estado, em cumprimento de suas longas penas.

Conversei com minha mãe por longas horas sem ser interrompido por ninguém. Consegui acalmar-lhe o espírito e o coração. Depois, nos despedimos entre lágrimas. Ela saiu mais forte, confiando na coragem e valentia do filho que conhecia tão bem. E eu ali permaneci, também mais fortalecido, pois contava com o grande e incondicional amor de minha mãe.

Este episódio, eu gostaria de apagar para sempre de minhas lembranças. Mas foi tão forte e marcante, que esquecer é impossível. Foi o momento em que minha alma e meu coração, durante toda minha vida, foram mais dura e cruelmente atingidos, e esta ferida até hoje sangra; toda vez que este fato, imposto pelo destino insidioso me vem à lembrança, não posso evitar que grossas lágrimas saiam dos meus olhos e escorram pela face, agora já marcada pelas dobras do tempo.

Minha mãe querida já ultrapassou os umbrais deste mundo rumo à eternidade. E, por tudo que sofreu por minha causa, deve, por certo, ter-lhe sido reservado um lugar de honra junto ao Criador lá no céu. Sua ausência criou um vazio em meu coração, que sente uma imensurável saudade e uma dor que não tem cura. À sua lembrança, sempre acompanha aquele fatídico dia. O pior de minha vida.

Nunca vou olvidar aqueles momentos de desespero e amargura, além da culpa que ainda sinto por ter causado a ela aqueles minutos eivados de tanta aflição e sofrimento. Resta-me o consolo de saber, com certeza, de que aqueles que mexeram as pedras que causaram tudo isso deverão, fatalmente, acertar seus débitos com o julgamento infalível de Deus, aqui, ou acolá.

Não se trata de um desejo de vingança, mas sim, de um desejo de que se faça a mais pura e cristalina justiça!.

Dias e noites, sóis e luares iam se sucedendo. Pareciam intermináveis. Marcos de tempo que passavam lentamente, como que se arrastando rumo ao nada. Me comprazia olhar, por horas a fio, a copa de uma grande árvore que eu podia divisar ao longe. Sua grandeza, seu verde exuberante, sua beleza majestosa, me transmitiam um sentimento de calma. Era como se quisesse me dizer que, para chegar àquele ponto, teve que lutar para sobreviver, superar longos períodos de seca e enfrentar as mais inclementes intempéries, raios e rajadas de vento sob as quais vergou, mas não cedeu. E muito esperar até se tornar aquele gigante vegetal que, ali postado, enfeitava a terra e parecia buscar o céu. Com isso, renovava minhas esperanças, e voltava a acalentar meus sonhos mais bonitos.

Na prisão, perde-se a noção de tempo.

Naquela semana, não sei de que mês, final dos anos 70, correu a notícia de que Chico Xavier viria fazer uma palestra para um grupo de sentenciados, que faziam parte de um movimento espírita recém criado naquela casa de penitência. Seria no sábado. Justamente num dia em que não havia nenhuma atividade. Não se recebia visita, não havia saída para os pátios para tomar sol e o trabalho em diversos setores, com exceção da cozinha e hospital, ficava suspenso.

Ao tomar conhecimento que o famoso médium de Uberaba ali estaria, senti uma vontade imensa de poder encontrá-lo e trocar com ele mesmo que fossem breves e rápidas palavras e, com isso, obter alívio e consolo para a dor que está sempre presente no espírito dos que perdem o seu bem mais precioso em vida: a liberdade!.

Um desejo utópico. Não fazia parte do grupo espírita que foi formado e orientado pelo Sr. Gilberto Aiello, uma grande alma, um espírito iluminado pela bondade, pela ternura e pelo grande amor que sentia pelo próximo.

Não importava para ele o passado de cada um ou os atos praticados. Para todos, tinha sempre uma palavra construtiva embasada na fé inabalável de que éramos todos irmãos. E que as provações nada mais eram do que uma lição a ser aprendida, para que todos pudessem, num determinado instante de suas vidas, caminhar rumo à luz e à redenção dos seus pecados. Como afirmava sempre, Jesus não abandona nenhum dos seus filhos.

O Sr. Gilberto foi quem oficiou a cerimônia religiosa do meu casamento, anos depois, fato ocorrido nas dependências do Presídio da Polícia Civil há mais de 20 anos.

Vivo até hoje com minha esposa e meu único filho deste casamento, que é para mim motivo de orgulho por sua retidão de caráter e pela ternura que sente por todos os que dele, de alguma forma, se aproximem.

Assim, minha única esperança era de que algum policial viesse me fazer uma visita e que fosse num horário coincidente com a chegada do médium.

Com a passagem dos anos, os presos, assim como os mortos, vão sendo por todos esquecidos. Portanto, essa possibilidade parecia ainda mais remota.

Nos dias de sábado, por uma concessão especial da Diretoria, eu poderia receber visita, desde que o visitante fosse uma autoridade, ou um policial amigo.

O dia foi passando.

No horário aprazado, fiquei na janela de minha cela, de onde podia divisar a galeria central superior, por onde o ilustre visitante teria, forçosamente, que passar. Ao menos, poderia ver à distância sua figura quase sagrada.

Alguns minutos depois, notei uma grande movimentação. Diretores e funcionários graduados da Penitenciária se aglomeravam no saguão de entrada. Em seguida, o médium chegou. Foi cumprimentado efusiva e respeitosamente por todos. A seguir, passaram pela galeria, e rumaram ao auditório, onde deveria acontecer a palestra e as preces proferidas por aquele missionário de Deus.

Frustrado, entristecido, deitei em minha cama, e conversei com Deus. Pedi a ele que, de alguma forma, me permitisse, ao menos, cumprimentar tão querida figura, por quem sempre nutri grande respeito e admiração.

Em realidade e pelas circunstâncias do momento, sabia que. para o meu pedido ser atendido, seria somente se ocorresse um milagre.

Mal acabara de me dirigir ao Pai glorioso, a porta de minha cela se abriu, e o guarda do choque, o Pirelli, também um amigo, me disse sorrindo: “Correinha, tem visita para você!”.

Não sabia quem era. Mas não pude conter minha alegria e minhas lágrimas. Abracei o funcionário e contei a ele, enquanto caminhávamos rumo à galeria superior, o que acabara de acontecer. Ele também se comoveu. Ficou com os olhos rasos d'água. Solicitei ainda a ele que, quando o pessoal voltasse do auditório, pedisse ao Diretor Geral que me autorizasse, ao menos, cumprimentar o famoso médium de Uberaba. Ao que ele aquiesceu com firme promessa de que o faria. Agradeci sua gentileza. Ao adentrarmos a galeria central, lobriguei ao longe a pessoa que viera me visitar, que estava ainda na recepção.

Não a reconheci. Sentei-me à mesa destinada às visitas especiais, aguardei até que o mesmo fosse liberado e meu amigo Pirelli foi buscá-lo.

Ao chegar, reconheci o Investigador a quem chamávamos de Cabo Lima, isso porque, antes de passar para a Polícia Civil, serviu na P.M. com a graduação acima citada.

Achei estranha tal visita. Lima nunca trabalhara comigo. Não era um amigo, na acepção da palavra. Tratava-se de um colega, que conhecia do DEIC e que quando nos cruzávamos nos corredores do Departamento, apenas nos cumprimentávamos formalmente. Entretanto, ao chegar até mim, abraçou-me de forma amiga e chorou ao ver-me naquela situação. Fiquei comovido com aquela demonstração de afeto e carinho.

Inicialmente, conversamos sobre trivialidades. Em seguida, ele já refeito da emoção inicial, me disse, com a franqueza que deveria lhe ser peculiar, o seguinte: “Correinha, vou ser sincero com você. Não sei por que estou aqui. Não tinha nenhuma intenção de vir visitá-lo. Estava com minha esposa e meus dois filhos no carro, nos dirigindo ao restaurante Frango Assado, na estrada de Campinas, quando de repente, num retorno da estrada, entrei por ele, e voltei para casa. Você veio à minha mente de uma forma tão forte, que acabei discutindo com meus familiares, deixei-os em casa e vim para cá sem nem mesmo almoçar. Em verdade, fui trazido até aqui, de forma coercitiva e nem sei porquê ou por quem. Não tive como explicar o que estava ocorrendo à minha esposa e aos meus filhos, simplesmente porque nem eu estava entendendo o que estava se passando”.

Ao ouvir essa narrativa, franca, quase rude, entendi o que se passara. Fiquei emocionado com o fato. Contei a ele tudo o que acontecera e o que ainda estava ocorrendo, e o meu objetivo de conversar com Chico Xavier.

Ao ouvir tudo com atenção, ele me disse: “Meu Deus!, estou arrepiado! Ficarei aqui com você até que o pessoal volte lá de dentro.”

Apesar de tantos acontecimentos insólitos, o mais sensacional ainda estava por ocorrer.

Conversei com Lima por mais de uma hora, até que a porta de aço da galeria se abriu... E Chico Xavier e seus acompanhantes passaram pela porta.

Pirelli, o guarda, começou a andar em direção ao grupo, para pedir autorização ao Diretor para que eu pudesse cumprimentar o famoso médium.

Mas, antes que o Guarda chegasse até ao grupo de pessoas, Francisco Cândido Xavier se adiantou a todos e veio direto em minha direção.

Eu já estava de pé no corredor central. E mais uma vez, em minha sofrida existência, o milagre veio de imediato e de forma surpreendente. Ao se aproximar, com seus óculos escuros, notei grossas lágrimas escorrendo por sua face. Ao chegar até mim, ergueu os braços, com os quais me envolveu em forte, terno, longo e carinhoso abraço. Beijou-me com ternura e suas lágrimas molharam meu rosto. Enquanto me abraçava, disse ao meu ouvido o seguinte: “Meu filho querido!, Tenha toda a paciência e resignação que puder ter. Somente assim sua provação será abreviada. Você está na terra para cumprir não só dolorosa missão de resgate de vidas passadas, como também cumprir desígnios de Deus, escritos em seu destino. Mas os espíritos, teus protetores, não haverão de abandoná-lo nas horas mais difíceis. Estarei orando por você. E na semana que vem, mandarei duas pessoas do meu grupo de Uberaba, para que o esclareçam sobre coisas muito importantes, das quais você precisa ter conhecimento e, assim, ficar mais fortalecido em Deus, para vencer sua luta”.

Em seguida, beijou-me a outra face ao abraçar-me no mesmo tempo em que se despedia de mim com uma bênção. Todos os presentes ficaram emocionados com o ocorrido.

Me disseram, depois, que aquele foi o único momento em que ele chorou durante todo o tempo em que ali esteve.

Depois de sua saída, senti uma grande paz de espírito. E até o fim de minha estada naquela casa de sofrimentos, não senti mais tristeza e nem desânimo.

Na semana seguinte, Chico cumpriu sua palavra. Mandou duas senhoras idosas, componentes do seu grupo espírita de Uberaba, virem me visitar em seu nome.

Recebi Dona Ermides e vovó Mafalda, a primeira jornalista aposentada, a segunda socióloga, também aposentada, que dedicavam seus últimos dias na terra a levar alívio e carinho a todos os que disso necessitavam. Vieram várias vezes visitar-me. Ambas já septuagenárias. Viajando desde a distante Uberaba, de ônibus, viagem dura e cansativa, apenas para trazer-me palavras de conforto e estímulo, e fazer revelações, as quais não citarei neste capítulo, resguardando-me o direito de fazê-lo em um outro livro que pretendo escrever.

E, assim, vivenciei mais um milagre.

Sem falsa modéstia, analisando todos os fatos de minha vida, me acho um missionário a serviço do Altíssimo, pois acontecimentos assim, insólitos, misteriosos, não acontecem com as pessoas com tanta freqüência. Me pergunto sempre porquê Francisco Cândido Xavier teve comigo tanta deferência. Tanta atenção. Tantos cuidados? Que os senhores leitores tirem suas próprias conclusões.

Não devo encerrar este capítulo sem deixar registrada uma homenagem de gratidão eterna a Chico Xavier, a Da. Ermides e a vovó Mafalda; as duas últimas já não mais se encontram entre nós neste planeta de provações mas, onde quer que estejam, sei que meus agradecimentos, meu amor e minha ternura haverão de chegar até elas. Com certeza, no céu, ao lado de Deus, por puro merecimento, por tudo que fizeram por tantos sofredores aqui na terra. Amém!.

 

Querido Chico:

 

A trajetória dos teus passos, a história de tua vida, são fatos que devem permanecer gravados num criptograma pirografado e emoldurado em ouro. Nós, que aqui ainda permanecemos, devemos cravá-lo em uma pedra de cristal, cujo silêncio seja o teu silêncio. Tua marca registrada ante a imbecil mediocridade dos homens que nunca te compreenderam. Teu silêncio será o grito mais eloqüente de tua imortalidade.
Sobre o teu túmulo, com certeza, vicejaram as mais lindas flores. Flores que glorificaram tua nobre e humilde existência e haverão de desabrochar em toda sua plenitude, com as mais lindas cores, eivadas de doce aroma e os mais suaves perfumes. Última homenagem da natureza ao teu espírito de amor, ternura e caridade.

 

O AUTOR


 

Capítulo VII

CARTA AO JUIZ CORREGEDOR


Correinha durante a prisão preventiva, injusta, no pátio do Presídio da Polícia Civil de São Paulo.


 

Decorria o mês de fevereiro de 1.982.

Desde novembro de 1979, quando sai do Presídio da Polícia Civil, transferido da Penitenciária do Estado, alguns meses antes, passei a viver sob o regime de prisão albergue domiciliar.

Quatro dias após a minha saída, já estava trabalhando na empresa Plásticos POLYFILM, ocupando o cargo de Auditor Chefe de Segurança Industrial e Patrimonial.

Concorri ao cargo, anunciado no Jornal “O Estado de São Paulo”, com quase uma centena de pretendentes. Na última entrevista com o único proprietário da Empresa e seu Diretor Presidente, cujo escritório situava-se em grandiosa e bela mansão, na Av. Europa, fui o escolhido. E em nenhum momento fiz segredo de quem era e narrei a ele tudo o que havia passado. Isso não impediu o Sr. Nelson Wajsbrot de contratar-me. Inclusive me afirmou que sempre seguira minha trajetória, desde os tempos de glórias, e também nos de infortúnio. E que sempre me admirou pela retidão de caráter; por isso, não via ninguém, entre os interessados a assumir a função anunciada, apesar dos títulos universitários que muitos apresentaram, melhor que eu. Após quase duas horas de agradável conversa, e minha contratação decidida, fez de próprio punho um “memorandum” ao seu Diretor Superintendente, a quem na verdade, competia administrar a empresa. Ali, estavam a ordem de admissão e o cargo de que seria investido. Nesse momento, ele fez uma pausa e perguntou-me quanto eu queria perceber de salário. Respondi que isso ficava a seu critério. Em seguida, ele me disse o valor. Ao ouvi-lo quase caí da cadeira. Aquele homem bom e justo queria, de verdade, me ajudar. Pude sentir a admiração e simpatia que me devotava. Um anjo enviado por Deus. Ao término de nossa entrevista, desejou-me boa sorte e sucesso, declinando o dia seguinte, às 10:00 horas da manhã, para que me apresentasse ao Diretor acima aludido, na Rua Júlio de Castilho, no bairro do Belenzinho.

A empresa contava à época com 8.000 funcionários, trabalhando em três turnos, inclusive sábados e domingos. Antes de completar 1 ano de trabalho, fui promovido, por mérito, à função de Gerente de Relações Industriais; entretanto, acumulando os dois cargos, tive meu salário dobrado.

Logo após minha promoção, o que me causou enorme satisfação, recebi uma comunicação do meu advogado de que deveria me apresentar ao Presídio da Polícia Civil para, preso, aguardar um novo julgamento, que deveria ocorrer em 40 dias.

Me apresentei, aguardei o julgamento no qual fui absolvido e em seguida, voltei a ocupar os cargos acima nomeados, pois o Diretor Superintendente, Dr. Leônidas Alperowitch, não contratou ninguém para ocupá-los. Justamente ele, que fora totalmente contra a minha contratação. Disse-me isso pessoalmente, quando de minha apresentação na empresa. Afirmou ainda, que teria que “engolir o sapo”, porquê não era o dono da Companhia. E por ocasião de minha promoção, atitude que dele partiu, confessou-me que dava as mãos à palmatória, e que por isso o Sr. Nelson era o proprietário da empresa pois tinha uma visão mais aberta, e um conhecimento para avaliar pessoas, o que ele não possuía. E, ao me promover, me parabenizou pelo tanto que havia realizado, em tão pouco tempo, em benefício da empresa e dos que ali trabalhavam.

Durante os 40 dias que permaneci preso, recebi dos colegas de trabalho manifestações de carinho e amizade, que jamais esquecerei. Visitas, cartas, mensagens, de todos os funcionários. Desde os mais graduados, até os mais humildes.

Vale ressaltar, nesse preâmbulo, que nunca em minha vida fui preso por quem quer que fosse. Sempre me apresentei voluntariamente para enfrentar os gigantescos problemas com os quais, injustamente, me defrontava. Isso muito me orgulha até os dias de hoje.

Voltei ao trabalho com entusiasmo e alegria. Além de gostar do que fazia, o apoio demonstrado por todos despertou em mim uma vontade e uma energia que, emolduradas por minhas responsabilidades, que eram tantas, fez com que, por mais que eu trabalhasse, o cansaço nunca se fizesse presente em meu corpo e nem em meu espírito. Trabalhei mais alguns meses em ritmo alucinante.

Entretanto, a sanha dos meus perseguidores não estava aplacada. O fato de ter saído com vida da Penitenciária do Estado e, ali, não ter tido sequer o menor problema, era algo com que não se conformavam.

Assim, novamente, meu advogado, Dr. Abdalla, revoltado, comunicou-me, nova ordem de prisão, para aguardar outro júri a ser realizado dentro de 40 ou 60 dias.

Apresentei-me ao Presídio da Polícia Civil. Depois de alguns dias, foi comunicado pelo Dr. Abdalla que um Promotor Público de São Paulo havia entrado com um pedido junto ao MM. Juiz Corregedor dos Presídios e da Polícia Judiciária do Estado, no sentido de que eu fosse transferido para a Penitenciária do Estado, por achar que o Estabelecimento Penal onde me encontrava preso não oferecia a segurança necessária para assegurar minha presença ao júri enunciado.

Os Diretores da POLYFILM também estavam inconformados. Me ofereceram a contratação do melhor criminalista à época, o saudoso Dr. Waldir Troncoso. Agradeci a generosa atitude; entretanto, jamais poderia preterir o concurso do meu amigo e irmão Dr. Abdalla que, em verdade, em um Plenário de júri, não estava muito distante do profissional que meus patrões me ofereceram para fazer a minha defesa.

Entretanto, o MM. Juiz Corregedor indeferiu o pedido, em memorável sentença que veio a ser confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado.

Fizemos o júri e novamente fui absolvido.

Transcrevo, a seguir, a carta que enviei ao então Juiz Corregedor, e não me perdôo por não me lembrar seu nome, pessoa por quem, até hoje, tenho grande admiração e respeito.

Antes, entretanto, tenho mais algumas considerações a fazer, por serem de vital importância, para que o relato possa ficar mais claro e minhas opiniões pessoais, na verdade um desabafo contido desde há muito, possam ser conhecidas e avaliadas pelo leitor.

Após 60 dias na prisão, e ser novamente absolvido, mais uma vez voltei ao trabalho.

Entretanto, após alguns meses, tudo voltou a se repetir.

Só que, desta vez, o Sr. Nelson, Diretor Presidente da POLYFILM, agastado com tão persistente perseguição, não permitiu que eu me apresentasse.

Assim, começou minha vida, por quase vinte anos, na clandestinidade. A imprensa me apoiou. E fez silêncio até hoje.

Conheciam a verdade de todos os fatos, pois todos os meios de comunicação haviam acompanhado minha odisséia e a odiosa e vergonhosa perseguição que me movia o pequeno comunista fanático, vingativo e tíbio.

Não era mais o lobo em pele de ovelha, mas sim, uma execrável hiena.

E se arvora, hoje, como o mais vigoroso defensor dos direitos humanos do Brasil. Enganador, mestre em artes cênicas, espírito alvar, personalidade deformada pela maldade, filha da covardia, coisas desprezíveis e nocivas que são sua marca registrada.

Montaigne em seus Ensaios — II, no capítulo XXVII, afirma o seguinte: Ouvi dizer muitas vezes que a covardia é mãe da maldade e observei por experiência como uma falsa e perversa coragem, impregnada de maus sentimentos e de inumanidade se une a certa fraqueza de alma bem feminina.

Sua inveja o faz irreconciliável com aqueles que se tornam vencedores de fato e por méritos próprios. E investe, cego por esse sentimento vil, contra todos os que têm coragem e valentia, qualidades que monsieur quer fazer crer que possui; entretanto, deixa claro em suas atitudes que esses nobres e honrosos atributos jamais farão parte de sua personalidade fraca e doentia. Doentia pelo ódio, sentimento comum aos canastrões. Fraca, pela inveja, que enfraquece sob a sombra do fracasso. Monsieur é velho como as pestes que há séculos assolam a humanidade. Em verdade, és a própria peste, que prossegue, inconsciente, causando seus estragos. Monsieur, ora vejam só, chegou a ser eleito Deputado Federal. De seus feitos, ao passar por aquela respeitável Instituição, nada de bom ou de útil ouvi dizer que realizou. E lá chegou, não por seus méritos pessoais, já que nenhum possui.

Lá chegou pelo classismo do partido a que, matreiramente, filiou-se, sabendo que no futuro poderia auferir dividendos como esse. Em seu partido, os militantes não usam seu livre arbítrio com muita clareza ou liberdade. Se lhe indicam o “José” ou a “Maria” como candidatos em quem votar, eles simplesmente votam. Não na pessoa ou em suas qualidades, mas, sim, sufragam o voto na ideologia que defendem. Por isso, monsieur sabe porquê lá chegou. De outra forma jamais alcançaria “status” tal.

Não deveria estar perdendo meu tempo com essa diatribe, pois nem isso monsieur merece. Gasto, inutilmente, o pouco saber que possuo ao escrevê-la. Jesus afirmou, categoricamente, que “não se deve jogar pérolas aos porcos”.

Mas é necessário que alguém retire o manto dourado que, indevidamente, colocaste sobre seus frágeis ombros, querendo fazer crer ao mundo ser o maior defensor de Direitos, que nunca respeitaste. E, ao desnudar-te, a visão nada agradável que estará vindo à luz surpreenderá a muitos, menos aos que de perto o conhecem e desconfortavelmente convivem com monsieur. Ficará visível a cavalgadura que de cavaleiro se reveste. Com o manto e à distância, a muitos esganaste. Retirado este, como agora faço, quase nada resta a ser olhado, a não ser a figura escabrosa da calúnia, arte em que és mestre.

Todo pequeno vegetal parasitário, como o líquen, que rouba os nutrientes de fungos e algas para viver, inveja a sequóia gigante, cujo porte e beleza jamais irão atingir. Pequeno por fora, menor ainda por dentro.

Suas denúncias contra mim, monsieur, se hoje fossem apresentadas, sem pressão política e sem o apoio administrativo que, na época, tiveste, seriam lidas até a metade, por qualquer honrado magistrado que, com certeza com irônico sorriso, ao lixo, seu trabalho inepto teria atirado.

Recorda, monsieur, da denúncia que em Mogi das Cruzes (SP), apresentaste? Após ouvidas as partes, o MM. Juiz daquela Comarca manifestou-se pela minha impronúncia.

Eminência parda que sempre foste, inconformado, “mexeu os pauzinhos”, e pasmem leitores!, o MM. Juiz foi de imediato substituído, para que seu substituto, já previamente orientado, a denúncia do monsieur, inepta, tivesse aceitado. Entretanto, o povo é sábio e, após os Júris ali realizados, nenhum réu foi condenado.

Em sua prima obra literária, “Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte”, coisa escrita sem beleza, sem estilo e sem conteúdo, cópias — que muitas horas deve ter demorado a copiar de suas denúncias vazias — naquele volume, atingiste ao máximo teu hábito de caluniar.

Mandaste meu nome, para a lista de torturadores. E eu desafio monsieur a indicar qualquer preso político que tenha sequer me visto, ou alguma palavra comigo, àquela época, viesse a trocar.

DEIC não é DOPS, monsieur.

Passei minha vida policial no primeiro. No segundo, não cheguei, felizmente, a pisar.

Basta! A lembrança de sua figura hedionda me enoja, pois não passas de reles sicofanta! Deixo de citar seu nome, não por temer qualquer represália, pois os que não têm honra são incapazes de um confronto honroso.

Não o cito, para não enlamear estas páginas com dejeto escatológico, matéria de que ele, por seus atos e atitudes, com certeza é constituído.

Enquanto isso, o povo brasileiro continua sendo enganado por esse tipo rastejante de batráquio asqueroso, hoje transformado em político, arte em que é um fracasso, como foi em tudo o que tentou realizar. Não fosse o cargo público, por certo estaria em plena miséria material, pois na miséria moral vive desde que, desgraçadamente, veio ao mundo, para torná-lo mais feio.

Tenho 64 anos de idade; durante minha juventude tinha a certeza de que, se atingisse esse ponto da vida, veria um Brasil cujo nível de vida de sua população estivesse já comparado a países como o Canadá e outros da Europa.

Lamentavelmente, olho hoje este país e vislumbro a fome, a miséria, a saúde falida, o ensino de baixíssimo nível e velhos e crianças morrendo em filas de hospitais públicos. Acrescento ainda a tortura tormentosa por que passam os nossos idosos nas intermináveis filas do INSS.

O Brasil, reatou relações diplomáticas com Cuba. Isso é um fato!

Os corruptos brasileiros estariam enviando dinheiro público desviado e ainda as propinas recebidas para aquele país. E uma parte desse dinheiro segue em malotes diplomáticos — que são invioláveis, de acordo com tratados internacionais fechados entre as nações —, o que inviabiliza qualquer interferência ou investigação de autoridades brasileiras, caso quisessem fazê-las. Isso é um boato; ouvi isso numa roda de amigos, entre os quais alguns ligados aos órgãos de informações de nosso país.

Foi aprovada, segundo a imprensa, a construção de um grande prédio que servirá de Embaixada Brasileira em Havana. Isso é um fato!

Há muitos anos, a Petrobrás alega que ainda não somos auto-suficientes na produção de petróleo, será verdade?.

Escreveu William Shakespeare: “para a vida, tantas coisas positivas, materiais e espirituais se misturaram para me constituir, que ao partir deste mundo, a natureza se levantará e dirá ao mundo “Este foi um bravo. Este foi um homem!”

Minha vida clandestina para não continuar a ser vítima da ignominiosa perseguição já aludida, tratarei de descrevê-la em outro volume que pretendo, em breve, escrever. Pois muito falta a ser contado.

Vamos à carta, título deste capítulo:

 

São Paulo, 25 de fevereiro de 1.982

À S. O Sr. Dr. MM. Juiz Corregedor dos Presídios do Estado.

São Paulo — Capital.

MM. Juiz:

 

Em minhas mãos, sua r. sentença de 12 do corrente, motivo dessa minha carta.

Há mais de dez anos, luto pela liberdade a que tenho direito e para reparar a injustiça de que fui vítima. Dez anos de amargura e indizíveis sofrimentos. Compraz-me pois, o espírito, tomar conhecimento de sua atitude firme e independente, retratada na sentença acima aludida.

Excelência, não sou homem que se ajoelhe diante de outro homem, para pedir clemência ou comiseração. Nem sou homem que levante o olhar ao céu para pedir perdão. Não sou Jesus. Nem sou Barrabás. E, salvo raras e honrosas exceções, tenho sido acusado por Judas e colocado, às vezes, diante de Herodes, para ser julgado. Não sou perfeito. Entretanto, tenho procurado pautar minha vida e minha conduta pelas linhas traçadas pela dignidade e pela honra. E isso me tem custado um alto preço. Aos que não me conhecem, nunca tentei provar meu valor moral. Aos que mais de perto me conhecem, também não. Estes, sabem de mim. Àqueles, não me interessa nada provar.

Sou um brasileiro nascido nos confins do sertão Paranaense. Tirado do meu “habitat” natural pelas mãos do destino, fui trazido para o esplendor da cidade grande e tumultuosa, sem, creio, estar preparado para isso. Vim com o espírito eivado de ideais puros e relevantes, ingênuas pretensões de um jovem que, promissoramente, despontava para a vida.

Essas virtudes que trouxe comigo gravadas em meu espírito, por espartana educação, quer no lar paterno, quer na rígida disciplina de um Colégio Arquidiocesano, não provaram e nem foram o bastante, para me proporcionar a paz para bem viver aqui. Às vezes, o destino faz o homem, tirando deste, por circunstâncias que não se explica pela lógica, o livre arbítrio da escolha do caminho a seguir. Ingressei na carreira policial e apesar de percorrer seus desvãos sombrios, nunca abandonei meus valores e nem meus princípios e nem me desviei de suas trilhas. Não abandonarei, jamais, meus ideais da juventude e nem a lealdade que há de acompanhar-me até ao túmulo.

Entretanto, muitos, aproveitando-se dos cargos nos quais estavam investidos, tripudiaram sobre mim. Mas, não tripudiaram sobre um homem vencido, e sim, sobre um homem impotente para fazer valer os seus direitos. A fama granjeada às duras penas e minha firme e destemida atuação como policial íntegro e correto foram as causas dos problemas, cuja magnitude Vossa Excelência bem conhece e com os quais, ainda hoje, me defronto. Confesso, Excelência, que após este último e injusto revés, senti-me, já, no último arcar da esperança. Descrente de tudo. Das Instituições e de que algum dia se faça justiça. E foi nesse estado de espírito que tomei conhecimento de sua r. sentença.

Este fato devolveu-me o ânimo e fortaleceu meu firme objetivo de prosseguir na luta. Voltei a acreditar na justiça do meu País e em alguns homens encarregados de ministrá-la.

Excelência, apesar de tudo, das humilhações, das dores e desventuras pelas quais passei, com honra e dignidade, nada e nem ninguém odeio, porque nada temo. Sempre apresentei-me voluntariamente para enfrentar os obstáculos que me cercam. Isso prova a retidão de minhas intenções. Depois de tudo o que, injustamente, me foi imposto, posso ainda olhar meus amigos de cabeça erguida. Posso ainda olhar nos olhos dos meus filhos, com ternura e firmeza. Nunca cometi um ato que pudesse conspurcar o meu espírito, atormentar minha consciência ou manchar o nome honrado de minha família, herança maior deixada pelo meu pai, ou ainda a Instituição Policial, a qual pertenci. Vivi quase cinco anos encarcerado na mais dura prova a que um policial pode ser submetido. Na Penitenciária do Estado, entre os mais perigosos bandidos, consegui sobreviver com dignidade e altivez. Neste ano e alguns meses em que passei a viver sob o regime de prisão albergue domiciliar, provei a quem interessar possa, quem sou.

Quer na prisão, no ambiente de trabalho ou em meio à sociedade, sou o mesmo. Sempre pautando minha conduta pela decência, pelo trabalho e pela honra. Minha conduta nos presídios é atestada por seus Diretores, sempre como ótima. Minha conduta no trabalho e em sociedade é atestada pelas promoções e pelos cargos importantes que ocupei e que ainda ocupo na empresa Plásticos Polyfilm Ltda., cujos registros constam em meu processo de execução criminal sob sua guarda e responsabilidade.

Ao encerrar, apresento à V. Excia. minha eterna gratidão e minha inabalável fé de que, ao final, se fará justiça!

 

Ita Speratur.

Saudações respeitosas.

Ass. Astorige C.P Silva.


 

Todos têm um propósito de vida. Um dom singular ou um talento único para dar aos outros. E quando misturamos esse talento singular com benefícios aos outros, experimentamos o êxtase da exultação do nosso próprio espírito e sucesso caminhará ao nosso lado, tanto na luz, quanto nas trevas.

 

Extraído do livro “Os Sete Segredos Espirituais do Sucesso”


 

Capítulo VIII

MOMENTOS DE REFLEXÃO

 

A FLOR FENECIDA

I

Já pisaste em uma flor
Que do galho desprendida
Rolou no chão, morta, vencida?
A missão de embelezar já cumprida,
Sem admiradores, jaz no solo esquecida,
Esperando, quem sabe, renascer em outra vida.

II
Se já o fizeste,
Maldade inominável cometeste!
Uma flor é sempre uma flor,
Dádiva de Deus à natureza,
Prenúncio de amor e de beleza,
Triunvirato que é a razão da vida!

III
Pisaste em uma flor,
Mas não pisaste em seu perfume.
A matéria mais bela, também fenece.
O espírito, entretanto, prevalece.
E o doce aroma da flor,
Num momento de magia sentido,
O acompanhará por toda a vida,
E nunca mais será esquecido!

IV
Por isso tudo,
Não pise nas flores caídas!

* * * * * * *


CONTEÚDO

Sou um.
Um que contém mais que um.
Sou dois.
Mas posso ser muitos,
Dentro de um.
Quando o um tem uma dor,
Busca o dois para discutir.
Se ambos não chegam à solução,
Outros, de dentro do um, são convocados.
Após todos ouvidos, dois buscam decisão.
Decidido, o um que contém todos, executa, ou não!
Isso é ser humano, com corpo, espírito,
alma e coração!

* * * * * * *


Para você, alma querida, como homenagem ao sentimento do único e verdadeiro amor que senti e vivi nesta vida.

Poema escrito com saudade e ternura, num dia qualquer de primavera. Com a mesma mão que um dia acariciou teu rosto, esteve entre os teus cabelos e tocou, com reverência e carinho, as partes mais íntimas do teu corpo!

 

TARDIO REGRESSO

I
Vivi estes anos todos
Com a força da tua lembrança.
Sonhei sonhos, cultivei esperança.
Contei horas, minutos e segundos.
O mais alto preço pagando,
Por este regresso, um dia esperando

II
Triste sina a de quem ama,
E que de amar, impedido, é!
Por teu vulto amado, permaneci de pé.
Esperei este momento,
Como Deus dá o milagre a quem tem fé!

III
Rever-te e abraçar-te alma querida.
Amar-te sobre o leito
Da saudade morta,
E sepulta para sempre!

IV
Fechar para o mundo nossa porta,
Viver com alegria e suavidade
O amor contido, o amor desejado
E sentir ausente tua ausência
E quem sabe, eternamente!

V
E nesse momento,
Libertar o sentir reprimido
Em plena primavera,
Não importando que seja,
No outono dos sentidos!

VI
Estou de volta!
É noite alta, é madrugada.
Por saudade atroz,
Minha alma invadida.
Passei pela tua rua
Que deserta estava.
Parei frente à tua casa,
Velei por ti, alma querida,
Supondo-te, com certeza, adormecida!

VII
Outro dia, expectativa.
Mas que vejo? Tua sala vazia!
Expressões de espanto e de tristeza.
No olhar de todos a surpresa
Que minha volta não esperada,
Assim fazia!
Pergunto por ti, com tanta ânsia.
Alguém do grupo se adianta:
“Ela se foi.
Morreu amando, como uma santa!”.

VIII
“Em seu derradeiro instante,
Pediu a pasta com os escritos seus,
Apertou-os de encontro ao peito,
E um brilho de esperança,
Seus olhos verdes invadiu.
Um suspiro profundo,
Pronunciou seu nome com ternura,
E depois, morreu!”

* * * * * * *


PRECE AO UNIVERSO

I
Inspira-me, Senhor e Deus,
A escrever um poema de amor divino.
Poema que possa ser declamado no céu.
Anunciando na terra,
A era da paz que já vem vindo!

II
Deus e Senhor,
Um poema que cante a almejada paz.
Um poema que não cante a execrada guerra,
Um poema eivado de ternura,
Um poema que traga fé, esperança e doçura!.

III
Senhor e Deus,
Que este canto se espalhe pelo universo.
Que chegue aos mais remotos recantos.
Que mostre aos homens todos os encantos.
E toda a magia destes versos!.

IV
Deus e Senhor,
Sou um simples, um humilde, pecador e mortal,
Mas, a ti, dedico este canto, esta poesia.
Mensagem sagrada do teu amor celestial,
Dedicada às almas do mundo,
Que choram todos os dias!.

* * * * * * *


VOCÊ

I
Ocupas um lugar no espaço,
E outro em meu coração.
Projeta teu amor na imensidão.
Por toda a terra e pelo universo
E no brilho do teu rastro,
Deixa tua ternura em minha mão!

II
Teus olhos verdes fascinantes,
Em cujo brilho se vê,
Ora tristeza, ora alegria, ora dor.
Existem momentos até,
Que eles mudam de cor!
Mas, lindos, ficam mesmo,
Quando brilham de amor!

III
Teu corpo esbelto e delicado,
Quando com ternura tocado,
Vibra inteiro, como harpa celestial.
E este, que te dedica estes versos,
Agradece aos céus, sentindo ser imortal!

IV
Tua postura elegante,
Teu porte ideal,
Lembra as mulheres da Gália,
Lembra a francesa, amante ideal!

V
Te amo! E isso é tudo.
Quando te abraço, fico mudo,
Minha alma vai pro céu!
Momento de magia e de felicidade,
no instante seguinte se chama saudade.
É chama que aquece e arde,
É prazer, felicidade e dor,
Presente divino, que se chama amor!.

* * * * * * *


ERA NOITE QUANDO
MORREU A ALEGRIA


I
Ainda ontem, ao passar pela
calçada da rua,
Ia alta a madrugada,
só havia a luz da lua.
Rente ao muro,
vi dormindo um idoso,
Envolto por solidão,
nos braços da desventura.

II
De repente,
Veio à minha mente,
Clara e cristalina,
A lembrança:
Aquele rosto sofrido,
Meu Deus!
Era o palhaço do circo,
Dos meus doces e felizes
tempos de criança.

III
Voltei!
Ligeiro, andei.
Ali, hirto, caído,
O palhaço dos meus sonhos de infância.
Das tardes alegres de função no picadeiro.
Felizes tempos de alegria e de esperança,
Que a vida e o mundo, acabou por destruir!

IV
Enquanto andava,
Esqueci minhas desventuras,
Voltei no tempo, revi travessuras.
E vi-me novamente criança,
Sorrindo no esplendor encantado do circo.

V
Sorria, sorria, com ingenuidade inocente,
Sem prever as lágrimas por vir no futuro.
Ali, o mundo, aos meus pés, inteiro!
Uma cambalhota, uma bofetada,
E um chute no traseiro.
A pipoca e o pirulito,
E quando o palhaço desajeitado caía,
Dava uma gargalhada e chorava de alegria!

VI
Acerquei-me do local onde o havia visto.
Coberto de andrajos,
Sem amor e sem ternura,
Jogado na noite escura,
Sem as luzes do picadeiro.

VII
Ajoelhei-me e apertei-o de encontro ao peito.
E já chorando, gritei:
Palhaço! Palhaço!
Volta à vida, não me deixe!
Não respirava mais.
O palhaço estava morto.

VIII
Recostei-me no muro frio e desnudo.
Último abrigo do palhaço neste mundo.
Não conseguia mais chorar,
Ao sentir um pesar tão profundo.

IX
Apagaram-se as luzes do circo.
Fez-se silêncio no picadeiro.
Adeus palhaço, adeus!.
Vá sorrindo para os braços do Criador.
Deixa comigo tua amada lembrança,
Tua amargura, tua verdade e tua dor!.

X
Obrigado palhaço!.
Teu último e dramático número,
Fez-me de novo criança,
Grato sou por tudo o que me deu.
Vai palhaço!.
Entra em triunfo nos picadeiros da eternidade.
E ali, faça sorrir, como na terra,
Todos os anjinhos do céu!.

XI
Porque era noite, quando a alegria morreu!

* * * * * * *


O CREPÚSCULO DO SILÊNCIO

I
Cala-te Poeta!
O teu canto silencia.
Sem musa não há versos,
Sem amor, não há poesia!

II
Deixa tua pena hirta,
Sepulta sonhos e esperanças.
O que passou é lembrança,
Hoje, destino vil, vida maldita!

III
Amanhã é outro dia.
Hora inútil, fim da vida.
Tiveste existência áspera e sofrida,
Assim... Cala-te poeta!
O teu canto silencia.
Tua hora é de pranto,
Pois há muito, está sepulta a alegria!

* * * * * * *


OCASO DOS SONHOS

I
Já no ocaso dos sonhos,
Se aproximando o fim da existência,
Sem mais perspectiva de felicidade,
Eis o que me dita a experiência:
Transferir minhas esperanças, para a eternidade!

II
Ao transpor os umbrais desta vida,
Haverá ou não continuidade?
Rever-te e abraçar-te, alma querida,
Ou, quem sabe, mergulhar em negra obscuridade?

III
Ao ver, ainda pulsante a natureza,
Lembrar de nosso amor, a beleza.
Sons e canções que ninaram nossos momentos,
Tudo tão distante, quase perdidos nas dobras do tempo!.

IV
Voltar, impossível!
Recordar, sim!
Juntando, da ternura os fragmentos.
Teus olhos, teu olhar, tua voz, você!
Nossos doces e inesquecíveis momentos.
POR ONDE ANDARÃO, NESSE MUNDO DE ESCARCÉUS?
E A LUA? PRESENTE QUE ME DESTE UM DIA,
Olhando apaixonada para o céu!

* * * * * * *


A ESPERA DA ESPERANÇA

I
Esperamos para nascer,
Esperamos para morrer.
A esperança começa,
Por um sonho a realizar.
Acalentemos, sempre, um maravilhoso sonhar.
Não importa o sonho, se pecador ou virtuoso,
O importante é sonhar!

II
Não importa o teu esperar,
Um dia, a porta se abrirá,
E então, deixaremos de sonhar,
Para em seguida, outro sonho acalentar.

III
Esperança que se realiza,
É esperança morta,
Urge, outra esperança aguardar.
Todos os anos revivem as flores,
Todos os anos renascem as esperanças.

IV
Fragmentos do passado distante,
Que às vezes, com ternura,
Precisamos juntar.
Ou as incertezas do futuro adiante,
Que não podemos desvendar.

V
Ter esperança é seguir em frente.
Pois o que é a vida,
Senão um contínuo esperar?
Entretanto, é na esperança que esperamos
Um momento de magia e paz.
Esperança de ser amado,
Esperança de amar!

* * * * * * *


A ULTIMA DÁDIVA

I
A vida correu célere
Através do túnel do tempo,
Tudo se passou como um relâmpago.
Em momento determinado,
Olhei pela janela do passado,
E vi quão longo o caminho percorrido.
Pela janela do futuro, ao olhar,
Fiquei surpreso e espantado,
Poucos anos para findar,
E eu, sem saber o que era amar!

II
Faltava, já na reta final,
Uma luz, um alerta, um sinal.
Faltava você,
Pequeno anjo de grande beleza,
Teu rosto querido, teu sorriso angelical.

III
O destino, tem seus desígnios,
Fiquei feliz com teus beijos,
Soube enfim, o que era amar,
Soube o que era existir.
Teus encantos, quase divinos,
Meu Deus! não pude resistir!

IV
Já no ocaso da vida,
Caso me procure a morte,
Não lamento minha sorte,
Como o pequeno príncipe,
Encontrei a minha flor!
Vou-me embora sorrindo,
Com a dádiva do teu amor!.
* * * * * * *


VALENTIA

I
Porque baixas tua fronte,
Longe, longe a cismar?
Sonhas com as águas serenas da fonte,
Ou, temes as águas bravias do mar?

II
Não importa teu cismar,
Teus medos, teu sonhar.
Nasceste com a esperança,
Teu destino é amar!

III
Amar, amor único e indivisível,
Amor, que a graça de Deus te deu,
Não julgue ser ele impossível,
Na terra, se realiza a vontade do céu!

IV
Sóis e luares, o tempo,
Um dia, hão de te levar.
E do outro lado da vida,
Sentirá tua missão cumprida,
Porque tiveste a valentia de amar,
Sentiste, do amor, a espada fria,
Teu coração trespassar!

*******


DOIS ESPÍRITOS

Encontrei a morte, por amor, amando!

Em seguida, por instantes,
senti meu ser flutuando.

Entretanto, mais acima, outro espírito,
também estava chorando!

Morreste de que? Perguntei aflito!

Morri, por nunca ter amado...
Morri, por nunca ter sido amado!.

Chorei por ele. Ele chorou por mim.

Qual dos dois saiu da vida mais magoado?

Eu que morri por amor, amando?

Ou ele que nunca amou, nem foi amado?

Uma coisa é certa:

Nós ambos, passamos pela vida,
por amor, atormentados!

* * * * * * *


CANTO POÉTICO
DE PRIMAVERA


I
A natureza transborda de alegria,
A primavera vai chegar!
É tempo de vida e magia,
É tempo de nascer, é tempo de amar.

II
Querer sem fim, de ser e de estar.
Sou parte natural da natureza,
Assim, me ajoelho ante tua beleza,
Como o crente aos pés do altar!

III
Sinto-me diante de ti, um demiurgo,
Estou entre Deus e o amor.
Ao teu lado, de repente, sou taumaturgo,
No milagre do Senhor!

IV
Nos dias cinzentos de tristeza,
De abandono e amargura
Invoco, do teu olhar a luz, de
tuas mãos a ternura.
Invoco teu perfume, invoco tua doçura!

V
Sentindo teu suave e doce aroma,
Tua alma está presente,
Iluminado o teu espírito!
Volto ao Nilo, rio dourado,
Onde um dia a conheci.
E graças à tua presença,
No longínquo passado,
Renasce em mim a esperança
Hei de reencontrar-te no presente,
E ser feliz até ao fim!

VI
Para você, alma querida,
Assim,
Aceite um beijo
Onde quer que possa estar.
Com ternura e respeito,
Num momento de saudade,
Em teu rosto querido e lindo,
Que só a ausência sabe impor,
Em teu olhar sempre sorrindo,
Deste, que só sabe te adorar.

* * * * * * *


ENCONTRO

I
Um louco que passa,
Falando a entidades ou seres
Que só existem em sua confusa mentalidade.
Caminha, assim, a sobressalto das crianças,
Só, com seus fantasmas, pelas ruas da cidade.

II
O nordestino anêmico e desgastado,
Campeia, nos meandros de concreto,
A moeda ou a migalha, para si
E para sua prole numerosa
Que ansiosa,
Aguarda sua volta,
Ao vão do viaduto, de miséria já repleto!

III
O sertanejo, que deixou longe a natureza,
Tem, sem saber, o que, procurado.
Sonhou sonhos de grandeza,
Entretanto, está perdido, está assustado!
Cercado pela indiferença e pela frieza,
Sem trabalho, a esperança que fenece,
O sonho que se apaga, o pesadelo que aparece.

IV
Ninguém se importa com nada!
O destino os conduz a um ponto de parada.
Cobertos de andrajos, de dor e de tristeza,
Se cruzam na noite fria, é madrugada!

* * * * * * *


A MENINA TRISTE

 

Já nem sei ao certo se era agosto, junho ou setembro. Sei que naquele dia, naquela manhã, a natureza se apresentava fria e distante. Um quê de abandono no ar. O vento forte açoitava inclemente os vegetais e enregelava até a alma daqueles que, por necessidade, ou por ousadia, se dispunham a enfrentá-lo. A chuva, fina e intermitente, vinha do céu azul que não se podia divisar. Melancolia, eis o perfil daquele dia.

Nessa época de minha existência eram rotina minhas idas ao Serviço de Ortopedia do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Tratamento pós-operatório de lesão gravíssima, segundo afirmava o ilustre e conhecido catedrático Dr. Marco Amatuzzi, que havia realizado, com sucesso absoluto, contando com o auxílio de sua brilhante equipe, delicada intervenção cirúrgica em meu joelho, suturando uma ruptura de patela, ocorrida durante um treinamento de arte marcial. Estava, agora, fazendo apenas fisioterapia, para recuperar a musculatura perdida.

Naquela manhã, em meu âmago, havia um imenso vazio. Estava triste, como triste estava a natureza. Sentia falta do lar aconchegante. Sentia falta da ternura e do calor humano daqueles que me eram tão queridos. Indiferente ao meu estado de espírito, a velha e barulhenta rural Ford-Willys, da Penitenciária do Estado, rodava com alguma dificuldade rumo ao seu destino. Não obstante estar acompanhado por amigos, funcionários que me tratavam com respeito e amizade, eu me sentia completamente só. O encarceramento injusto, rude, quase medieval, já se fazia sentir em meu espírito. Seus efeitos negativos, não sei o porquê, se acentuaram de forma tal, naquela manhã gris, que só podia sentir amargura e abandono. Nem mesmo estando vendo as ruas, as pessoas, enfim, o mundo, o que naturalmente proporciona alegria a um recluso, eu conseguia me sentir melhor. A marca pirografada em mim pela injustiça, era dor muito maior do que qualquer ferimento físico. Estava quase me sufocando ao engolir o conteúdo amargo do cálice que o destino, sem justa causa, me oferecia sem a opção de recusar. Um nó na garganta, que o choro contido fazia sentir, aumentando a cada instante, uma vontade imensa de chorar. Enquanto isso, o sicofanta causador disso tudo devia estar exultante com o resultado de sua obra, percorrendo os corredores do edifício do Ministério Público, como o super-herói vencedor de sua pseudo-épica batalha. Entretanto, ele nunca passou de um reles soldado do exército de Brancaleone, no sentido moral e ético. E sua vitória momentânea foi apenas, e tão somente, uma vitória de Pirro. O seu desafeto não foi vencido como imaginava. Perdeu uma batalha onde imperou a conspiração, a mentira e a covardia. Entretanto, não perdeu a guerra, o jogo ainda não acabou apesar do longo tempo decorrido. Até as pedras se encontram!

Sentia falta de amor, falta de ternura, falta de reconhecimento por tudo o que fiz. Os feitos, que tanto me custaram realizar, foram, de repente, esquecidos? De nada valeram suor, cansaço, lágrimas e sangue derramados? Nada disso serviu de atenuante, levando-se em conta, principalmente, isso tudo, por algo que não cometi?. Não odeio a ninguém pois a ninguém temo. Por que então tanto rigor? Não podia compreender e, creio, nunca compreenderei. Enquanto esses pensamentos tomavam conta da minha alma, naquele momento de reflexão, houve uma parada no trânsito, já nas cercanias do Hospital. Olhei para o frio lá fora. Para a chuva que não cessava. Movendo-se à meia distância, um vulto chamou-me a atenção. Intuitivamente, por sua maneira de andar, por sua postura, pude perceber o sofrimento personificado.

Aquela figura feminina, delicada, em cujo rosto sofrido se acentuava a palidez, era uma criança. Menina moça, ostentando em sua face o sorriso amargo, muito próprio do infante, que mesmo envolto pelo sofrimento e pela miséria, ainda sorri, como se simplesmente viver lhe causasse alegria. Havia naquele olhar ingenuidade e também amargura, que sua alma, inconsciente, não conseguia esconder. Parecia perdida a pobre menina, buscava alhures, com seu olhar triste, respostas para suas incertezas do amanhã.

Estava só aquela menina. Não poderia ter mais do que 14 ou 15 anos de idade. Na verdade uma criança ainda. Só, não é o termo apropriado para retratar com fidelidade aquela circunstância. O vento frio e cortante fazia com que seu vestidinho de tecido fino e barato, já encharcado pela chuva que caía, se colasse ao seu corpo famélico e mal tratado, projetando, assim, o seu ventre protuberante, sinal inconfundível de uma gravidez em estado já adiantado, fase final de gestação.

Brevemente, aquela esquálida menina, seria mãe! Diante daquele quadro dantesco e cruel, ocorreu-me ao espírito, talvez, quem sabe, para atenuar o meu já desgraçado sentir, a certeza plena de que o Senhor do Universo, em sua onisciência e onipresença, ao seu lado ali se encontrava para guiar seus passos, ampará-la e protegê-la das agruras do mundo e do seu desalmado destino. Com o filho no ventre e Deus por companhia, positivamente ela não estava tão só. Entretanto, isso, ela não compreendia. Tão criança, esse entendimento, em seu jovem coração, não existia. Sabia, com certeza, que, dentro em breve, seria mãe. Mãe de um ser que, ao vir ao mundo, teria a separá-lo da mãe, em termos de tempo, apenas um pouco mais de uma década. Cresceriam juntos.

Com a viatura ainda parada, ela foi se aproximando. E, por um instante, por um segundo, não mais, nossos olhares se cruzaram naquela manhã de frio, de interrogações e de incertezas. Pude ver e sentir no olhar daquela menina, quase mãe, um brilho infantil de quem, apesar de tudo, sentia que algo divino estava por acontecer. E ela queria, com alegria, contar ao mundo, para que todos soubessem, o milagre por ocorrer. Havia naquele olhar a esperança de poder brincar com o bebê que em breve nasceria. Aquela menina miserável, triste e paupérrima, esperava, com ânsia desmedida, o filho. O filho que seria para ela uma boneca viva com que brincar. A boneca desejada e sonhada que nunca viera em passados e frustrados Natais. Noites santas de tantas esperanças, de espera e a decepção do Papai Noel que nunca viera. Havia naquele olhar a certeza de que em breve teria entre seus braços uma boneca viva para ninar e acalentar com canções enternecidas e tornar, assim, realidade seus sonhos de menina.

Por isso, apesar do frio, da fome e do abandono, apesar das incertezas do seu amanhã, e da solidão em que se encontrava, havia naqueles olhos tristes um raio de luz repleto de esperança e ternura. Eivado de pura ingenuidade e referto de muito amor. Em seus sonhos não estavam presentes as dificuldades que viriam, fatalmente, somar-se à sua já tão sofrida e amarga existência. Ela esperava e sonhava. Estava feliz. Nada importava. Nem a fome, nem o frio, nem a solidão. E naquele segundo em que nos miramos, um nos olhos do outro, como num passe de estranha magia, nos entendemos plenamente e trocamos nossas tristezas e nossas desventuras. Foi apenas um instante. Mas tivemos absoluta certeza de que nossas dores e nossas amarguras eram de naturezas diferentes. Nossas esperanças e sonhos, também. Mas tínhamos algo em comum: ambos gostaríamos de, naquela manhã fria e chuvosa, encontrar um peito amigo em que pudéssemos confiar, e chorar... chorar muito!

A viatura foi em frente. Ela atravessou a rua. Seguimos nossos caminhos sem saber, qual dos dois, mais adiante, encontraria mais espinhos.

 

* * * * * * *


“IN MEMORIAM”
A AYRTON SENNA DA SILVA
1960 + 1994

“AS VALKÍRIAS
VOLTAM À TERRA”

 

PRIMEIRO DIA. MÊS DE MAIO. OUTONO BRASILEIRO. 1994. AS FOLHAS MORTAS, E JÁ AMARELECIDAS, ROLAM TOCADAS PELA BRISA, SOBRE O CHÃO DE NOSSA PÁTRIA. JÁ FORAM VERDES E BONITAS, NO ALTO DOS GALHOS DE MAJESTOSAS ÁRVORES. DALI, PENDIAM ALTIVAS, DANDO BELEZA E SOMBRA PROTETORA AOS QUE, DO SOL ARDENTE, BUSCAVAM REFÚGIO. JÁ SERVIRAM DE GRACIOSAS E DELICADAS MOLDURAS PARA LINDAS E PERFUMADAS FLORES. PRESENCIARAM, DO ALTO, TROCA DE BEIJOS, TROCA DE JURAS, CENAS DE AMOR. TIVERAM SEUS MOMENTOS DE ALTIVEZ E GLÓRIA. ENTRETANTO, HOJE, ROLAM FENECIDAS, MORTAS E ESQUECIDAS EM SUA DERRADEIRA CAMINHADA, SUA MISSÃO JÁ CUMPRIDA.

 

Enquanto isso, lá longe, muito distante, em terras históricas da veneranda Itália, da secular Roma, do rio Tigre, testemunhas da história e de tantas tradições, um dos berços da civilização humana, as VALKÍRIAS, entristecidas, retornavam à terra para mais uma épica e divina cavalgada. Ao final dessa manhã de domingo, que deveria ser alegre e festiva, cobriu-se de luto e de tristeza, o Brasil, país coração do mundo, e seu povo simples e humilde; juntos, choraram pela tragédia que chega, de repente, de surpresa, sem aviso. As VALKÍRIAS, também inconformadas, chegaram a San Marino. E, com carinho e ternura, conduziram um espírito de luz, de alma iluminada, como só os heróis, valentes e bravos podem possuir, pois buscam no Hades o verdadeiro saber. Elevaram-no aos páramos celestes onde em fulgurante estrela se transformou, e seu ofuscante brilho agora ilumina o Brasil. O valoroso e indômito guerreiro tombou sem vida no campo de batalha como sempre viveu: com ousadia, altivez e uma existência que, sempre, o próprio nome honrou. AYRTON SENNA DA SILVA. Para todos nós brasileiros AYRTON era apenas um menino. O nosso SENNA, das manhãs vitoriosas de quase todos os domingos. Guerreiro que depositava toda sua crença em Deus, acima de sua habilidade e perícia ao conduzir um bólido veloz pelas pistas do mundo. Vontade determinada de vencer sempre. Vitórias que buscava com garra e espírito de luta, arriscando tudo, inclusive, a própria vida. Teus feitos vitoriosos, não eram apenas para ti. Tu os dividias e dedicava aos brasileiros e também à tua pátria, berço do teu nascer.

Entretanto, o mesmo Deus que despertou em ti inabalável fé, e em cujas mãos entregou seu destino, por razões que a própria razão desconhece, do nosso convívio te retirou. Mas o Senhor, em seus desígnios, deve ter tido seus motivos. Talvez, quem sabe, quisesse de volta, ao seu lado, esse seu filho querido e amado. Morte brutal e prematura que deixou para nós, brasileiros, um enorme vazio e muita tristeza, amargura e dor; estamos todos meio perdidos, estamos todos chorando. Nossos espíritos, irremediavelmente magoados, perderam a paz com tua inesperada partida. Perguntamo-nos perplexos, Por que você? Você, que deste sofrido, miserável e humilhado povo, era uma das poucas alegrias coletivas. Esquecíamos, com tuas façanhas, nossas miséria. Estas, eram substituídas por um orgulho contagiante e tu nos devolvias, com tua coragem, a nossa coragem para prosseguir na vida, sempre lutando.

Quantas vezes, em pistas do mundo inteiro, fizestes homens e mulheres de todas as nações se perfilarem para ouvir o Hino Nacional Brasileiro! Pistas nas quais a todos encantou, com tua magia na arte de pilotar.

Conduzias um carro de corrida acima dos limites, superando, muitas vezes, os teus próprios limites. Estamos todos enlutados. Perdemos, em ti, um ente querido, como se fosse alguém de nossa família, perdemos em ti, neste momento da nossa história, o único ídolo, por todos venerado.

Mas nem mesmo o tempo inclemente haverá de apagar de nossa lembrança teu vulto querido, teu sorriso de ternura, teu olhar sempre triste. Teu rosto de menino estará para todo o sempre em nossos corações e jamais será esquecido. Te recordaremos com carinho e gratidão, sentimentos emoldurados pela perda sentida e por imensa saudade. No instante em que iniciei para ti esta singela homenagem, estava ouvindo a “Cavalgada das Valkírias”, de Richard Wagner. Agora, ao encerrar, ouço a “Ave Maria”, de Schubert. Para que nesse instante, pudesse dedicar a ti, em silêncio, o meu silêncio, uma sentida prece aos céus, uma sublime oração por teu espírito, e também para tua mãe, a quem a dor feriu muito mais que a todos nós. Dona Neide, que este meu sincero gesto amenize seu sofrimento, e a ajude buscar o consolo que possa aliviar, em parte, a dor que agora oprime e fere profundamente seu coração materno.

Nosso menino brasileiro, agora hirto, encontra-se em alguma dependência do Hospital Magiore de Bologna. Aguarda o momento de retornar à pátria. Dorme AYRTON!

Que o Pai o acolha em seus braços para sempre!. Estamos todos de prontidão, com a tristeza e o espanto estampados em nossos rostos, aguardando o teu esperado regresso. Descansa em paz, ídolo de um povo, ídolo do mundo. Estamos envoltos pelo manto da agrura que fere, e da dor que não tem cura. Em breve, teu espírito acordará desse sono. E quando isso acontecer, corre então nas pistas do céu. E que fiquem pasmos, Deuses, Anjos, e almas que, fascinados, hão de admirar e aplaudir a beleza de tua técnica, a magia do teu arrojo e a grandeza da tua fé. Não és um Deus, mas merecias sê-lo. Por isso, mostra lá, do que somos capazes aqui, apesar de tudo. E, em espírito, tome consciência do quanto foi e do quanto será amado por todos nós, até o fim dos tempos. Em vida, por certo, não tinhas consciência disso. E agora, diante da tua perda irreparável, nós também descobrimos que te amávamos muito mais do que supúnhamos.

Descansa, bravo! Neste triste Domingo de primeiro de maio, ao final da corrida que não terminaste, havia na multidão, em Ímola, alguém, por certo um brasileiro, portando o auriverde pendão da nossa pátria. Uma bandeira brasileira que teimava em permanecer inerte apesar da brisa que soprava. E seu portador parecia perdido em terras tão distantes, levando também consigo o peso esmagador da tristeza causada pela tragédia que acabara de assistir. A bandeira que certamente, neste momento, estaria em tuas mãos, acenando para nós, em mais uma volta triunfante, permanecia imóvel. Parecia ter morrido com você.

E com certeza, se tivesse olhos, estaria chorando como todos nós, somando suas lágrimas à nossa dor e seu abandono à nossa tristeza!. Silêncio agora! Em respeito e homenagem pela morte de um bravo! Isso é tudo. Valeu Ayrton!Ayrton Senna do Brasil!.

 

São Paulo, 1° de Maio de 1994
Outono Brasileiro


* * * * * * *


 

CARTA ABERTA
PARA MINHA MÃE

 

Hoje, posso afirmar, com absoluta certeza, ser talvez o dia mais triste de minha vida. Isso porque não sei ainda o que me reserva as incertezas do futuro. Por telefone, minha filha e sua neta Eliana deu-me conta de que os médicos que a assistem a informaram que você está vivendo seus últimos dias nessa existência.

Dizer o que me vai na alma, após tão brutal notícia, torna-se praticamente impossível.

Pois a dor é um sentimento abstrato que quando nos atinge, dependendo de sua origem, torna-se quase insuportável e só dizem respeito a quem a está sentindo.

Entretanto, mãe querida, nestes dias que antecedem o Natal, não quero pedir a entidades divinas, Deuses ou Anjos, que me presenteiem com mais um milagre. Pois entendo que você está cansada, e não merece mais conviver com o doloroso mal que a aflige, e o descanso eterno será para você o alívio final de tanto sofrimento. Eu sei e você sabe que, com grandes méritos, já cumpriu sua missão. Sei que você teve dezenas de momentos de felicidade e alegria. E sei também que muitos foram os seus infortúnios.

E eu, acredito, tenha sido o pior de todos, pois num determinado momento de minha vida, por sofrer perseguição de um alvar homúnculo, lhe causei, involuntariamente, e sem nada dever à sociedade, a maior de todas as dores: a de ver um filho querido confinado num presídio de segurança máxima. A sua amargura foi de tal monta, que em nosso primeiro encontro naquele local lúgubre, a vi desmaiar pela primeira vez; não fosse o imediato socorro dos médicos daquela malfadada instituição, por certo eu a teria perdido ali, e então, nunca poderia me perdoar por isso. Apesar dos duros golpes que se nos impôs o implacável destino, os vivemos ora juntos, ora separados, não foram fortes o bastante para quebrar os vínculos de amor e ternura que sempre nos uniu.

Sempre tivemos o ombro amigo, um do outro, para nos consolarmos mutuamente, quando algum fato surgisse, inesperadamente, para nos causar tristeza ou decepção.

Entretanto, tudo agora faz parte de um passado eivado de boas e más recordações. Coisas que ocorrem à revelia de nossa vontade (as más) e outras que planejamos e executamos em busca de um objetivo ou de uma realização para procurar os momentos felizes com que a vida nos premia, resultado do nosso desempenho ao percorrer esses caminhos.

O momento agora é outro. É chegada a hora do inevitável. É o instante em que os poderes abstratos de que tanto ouvimos falar durante a vida, venham agora nos impor sua vontade. Ou simplesmente um fato de vida que se cumpre em seu derradeiro ato. Nascer, crescer, morrer. E o que mais lamento e me culpo, é não poder estar ao seu lado. Circunstâncias materiais e desumanas, que premiam uns com tanto, e a outros com tão pouco, fazem com que eu não possa realizar esse tão sentido desejo. Estarei longe de você. Não pedirei ajuda a filhos, amigos, ou patrão. Sei que entenderá essa minha postura, produto do orgulho e da dignidade pessoal que tanto você me pediu para cultivar. Apesar da amargura por que passo, me colocarei ao lado do seu leito de morte em espírito e sei que, ali, você sentirá minha presença, minha ternura e minha imensa tristeza, na hora do último e derradeiro adeus.

Não depositarei em sua veneranda fronte, e em seu rosto inesquecível e amado, o beijo de amor que a deixaria feliz e que, com certeza, me serviria de consolo. Seria o último gesto de quem não ouvirá mais sua voz suave e inesquecível, nem o brilho do seu olhar ao me encontrar. Não sentirei mais o suave toque de suas mãos que, com carinho, me tocavam a face. Estarei aqui aguardando, quem sabe, o momento de nos reencontrarmos com saudosa expectativa.

Mãe, lhe sou grato por ter-me dado a vida. Vida através da qual pude conhecer o caráter e o espírito dos homens e, assim, levar muito poucos a sério e, quanto ao resto, muito me fizeram rir e sentir pena de suas imbecilidades, de sua hipocrisia e dos papéis ridículos que representam no palco da vida, pensando ser importantes, espertos ou poderosos, mas não passam de fétidos farrapos humanos no que tange à moral e à honra, termos de que, aliás, tenho certeza, mal sabem o significado.

O progresso espiritual e intelectual que esperei de nossa sociedade não veio. Não há interesse político para que isso aconteça. Por isso, também estou cansado desta peregrinação terrena e não vejo a hora de unir-me a você num lugar mais ameno, onde impere os valores pelos quais tanto lutamos.

 

Um beijo com respeito em teu rosto amado

Teu único filho,
Astorige

 

*******


 

GRUPO RAGAZZO
LIMEIRA — SP
GABINETE DA DIRETORIA

 

São Paulo, 29 de março de 1993

 

“Nós amamos tão apaixonadamente as estrelas que não temos medo da noite”
(Escrito na lápide dos heróis da Challenger)

 

Caro Amigo Corrêa,

 

A Amizade é Heróica. Sua estrada desde do início do Mundo pertence exclusivamente aos Homens Gigantes. No mosaico de minha lembrança estará insculpida sua carta, que mostra seu espírito, sua bondade, seu caráter e principalmente sua LEALDADE.

Deixe-me agradecer ainda mais, sua carta traz um reconhecimento tão forte, que considero-o “O DIAMANTE DA HONRA”, por lhe conhecer há anos, sempre com um comportamento reto, probo, trazendo em sua lapela uma comenda invisível, de um Brasileiro forte.

Ser Leal para você, meu caro Corrêa é mais que uma qualidade é uma VIRTUDE. Continue sempre assim, cultuando todos os valores que dignificam o gênero humano, a liberdade, a justiça e a verdade.

Com o seu exemplo de vida, que conheço de há muito, você continuara vivo dentro do coração de todos os seus amigos e admiradores como um predestinado do pensamento e da inteligência.

Considero-o um grande amigo, não só porque você dedica sua amizade, mas porque ao realizar seu eterno destino, você mantém suas lanternas abertas sobre tudo ao que dignifica a humanidade.

Finalmente, do alto da Tribuna da Lealdade, quero agradecer-lhe a manifestação de reconhecimento, oferecendo-lhe uma longa vida, saúde e felicidades, extensivo ao seu filho SINOUHE e toda sua família. Um forte abraço, ex toto corde, do amigo de sempre.

 

Dácio Egysto Ragazzo
Diretor-Presidente


 

Epílogo

O GESTO QUE ENSINA E QUE NOS FAZ PENSAR

 

As voltas que o mundo dá, às vezes, são tão ofuscantes, nos tocam tão profundamente a alma, que a emoção resultante nos faz chorar.

Vivendo entre os mais perigosos marginais, durante o longo período em que estive recluso na Penitenciária do Estado, não deixava, um só dia, após o nascer do sol, de agradecer aos céus por continuar vivo, além de não ter tido, em nenhum momento, qualquer tipo de problema com aqueles com quem partilhava o dia a dia, submetidos às mesmas condições, no cárcere que embrutece e avilta. De qualquer forma, sabia que não poderia, em nenhum instante, me descuidar. Assim, para salvaguardar minha integridade física e a vida, todos os dias, durante as 2 horas em que nos dirigíamos ao pátio do Pavilhão para tomar sol, eu não perdia um segundo sequer. Iniciava de imediato um forte aquecimento, em seguida corria uma hora e, para encerrar, praticava os katís, do Kung-Fú, Hun Gar (garra de tigre). Além do efeito psicológico que causava em todos, ainda me mantinha em condições de defesa de qualquer tipo de ataque que porventura viesse a ocorrer, por parte de um ou mais adversários. Coisa que nunca aconteceu.

Durante um desses treinamentos, já em sua fase final, inadvertidamente, o meu pé de apoio, ao pisar sobre uma fina camada de lama formada por forte chuva que caíra durante a noite, causou-me uma perda de equilíbrio. Entretanto, adestrado e em plena forma física, girei o corpo no ar com rapidez, para que a queda se tornasse natural e ocorresse sem me causar qualquer contusão. Durante o rápido movimento giratório, e por encontrar-me muito próximo à junção de duas paredes, meu joelho direito chocou-se violentamente contra a quina de concreto. A violência do choque foi de tal intensidade, que seccionou totalmente a patela, nervo grosso que passa sob a rótula do joelho e responsável pelo movimento de flexão da perna. Em caso de um arranque rápido, a patela é a parte da perna que sofre a tensão maior. Após a queda, tentei me levantar. Não consegui. Parecia que a perna havia sido separada da coxa. A dor, quase insuportável. De pronto, fui socorrido pelos outros presos que, nos braços, me conduziram até ao Hospital daquele estabelecimento penal, para receber tratamento médico. Após a queda, estava absolutamente indefeso e à mercê de qualquer ataque. Mas o que mais me surpreendeu foi o gesto imediato de solidariedade e a solicitude de todos que estavam mais próximos.

Bandidos, os mais perigosos, não hesitaram, um segundo sequer, para me socorrer prontamente. Esse fato fez com que eu refletisse muito sobre meu passado recente e sentisse, por todos eles, uma sincera gratidão. Meu ponto de vista como policial ficou abalado e modificado, na forma como eu os enxergava. Entre os que me ajudaram, alguns tinham sido presos por mim.

Marquinhos, um assaltante de bancos, estava entre eles e foi o que maior preocupação demonstrou. Durante o trajeto até ao hospital, foi proferindo palavras de ânimo e encorajamento. Por ocasião de sua prisão, eu estava na RUDI, fizemos um cerco no local onde ele e sua quadrilha se escondiam. Eles nos enfrentaram à bala. Houve um cerrado tiroteio. Um dos bandidos foi morto. Marquinhos, em sua tentativa de romper o cerco à bala, defrontou-se comigo que lhe dei voz de prisão. Não se rendeu. Descarregou seu revólver em minha direção. Fiz um disparo com uma Winchester calibre 44, não para matá-lo, e sim para desarmá-lo. O projétil atingiu-lhe o braço esquerdo e por ser de grosso calibre, estilhaçou os ossos rádio e cúbito. Isso causou-lhe uma deficiência física permanente. Mas, não ficou só nisso. Mesmo ferido, ele tentou empreender fuga correndo. Novo disparo. E foi novamente atingido, só que, desta vez, na perna esquerda.

Seu fêmur foi quebrado. Mesmo socorrido e submetido a cirurgia, o violento trauma fez com que andasse claudicante para sempre. E apesar disso tudo, teve para comigo um gesto de grandeza naquele momento. Creio que em seu espírito podia sentir que, no dia em que foi preso, eu poderia tê-lo matado, pois estaria agindo em legítima defesa e no estrito cumprimento do dever legal. Não o fiz, por achar desnecessário. Narro estes fatos, apenas para ilustrar a história e para dizer que até as pedras se encontram. A mim, ainda resta encontrar algumas delas.

Atendido prontamente pelo médico de plantão naquele nosocômio, fui detidamente examinado. Foi feita uma radiografia do joelho e, depois de verificada, constatou-se uma grave lesão. O diagnóstico feito com segurança indicava como tratamento único, imprescindível e urgente, uma cirurgia de difícil e delicada execução. Naquele tempo, com os meios disponíveis à medicina, as possibilidades de recuperação de um trauma daquela natureza eram remotas. Assim, poderia vir a ficar com uma deficiência física, que me obrigaria ao uso de aparelhos ortopédicos para a locomoção. Fiquei apreensivo com essas observações do médico.

Como se já não bastassem tantas agruras, agora, mais essa possibilidade terrível se me apresentava como mais um difícil obstáculo a ser vencido. O fato foi logo comunicado ao Diretor Geral. Este, numa atitude gentil e atenciosa, deixou seus afazeres, que eram tantos, para fazer-me uma rápida visita, e conversar com o médico para saber do meu estado. Comunicou-me que já havia avisado a minha família do ocorrido, e que as visitas para mim estavam liberadas.

Com a recomendação médica da cirurgia imediata, o Diretor, na mesma hora, oficiou ao MM. Juiz Corregedor, solicitando autorização para minha urgente remoção ao Hospital das Clínicas. A autorização chegou após dois dias. E, segundo o médico que me assistia, cada hora que se protelasse a operação, mais distantes ficavam as chances de realizá-la com sucesso. Durante essa angustiante espera, recebi todos meus familiares e alguns amigos, o que me aliviou um pouco o espírito. Entretanto, a dor era intensa e contínua. Tomava sedativos várias vezes ao dia. Fora dos muros, minha família tomou as providências necessárias. Tínhamos um médico amigo da família, que ocupava cargo de direção no H.C. Ele foi procurado e prontamente se dispôs a ajudar, o que efetivamente fez. Devemos muito ao Dr. Vingnola, já falecido. Quando, finalmente, dei entrada no H.C., fui atendido, a pedido do nosso amigo, pelo médico considerado como a maior autoridade em tratamento e cirurgia de joelhos da América Latina e conhecido mundialmente por seu notável saber no ramo da medicina em que se especializara, Dr. Marco Amatuzzi e sua equipe. Novos exames, novas radiografias e o diagnóstico do mestre foi o mesmo já dado anteriormente: Cirurgia o mais breve possível. Não obstante a necessidade de urgência na operação, ela foi marcada para 48 horas mais adiante. Não havia como alterar a agenda de ocupação das salas cirúrgicas. Fui levado de volta para a Penitenciária. Na noite anterior à cirurgia, fui internado, ficando em apartamento e não na enfermaria geral, graças à influência do Dr. Vingnola. Fui submetido a vários exames pré-operatórios. No dia seguinte, às 7:00 horas da manhã, dei entrada numa das salas do Centro Cirúrgico do Departamento de Ortopedia do H.C..

Momentos antes do início da intervenção, o Dr. Amatuzzi me alertou que, no meu caso, o sucesso da operação não iria depender apenas de sua perícia e equipe, mas também de como meu organismo reagiria após o feito. E invocou Deus, para que tudo corresse bem. Foram mais de três horas de trabalho do Dr. Dante e seu competente pessoal. Ao final, fui conduzido à sala de gesso. Ali, minha perna foi engessada por inteiro, do pé até ao alto da coxa. E assim deveria permanecer durante os próximos 40 dias.

No decorrer desse prazo, voltei ao H.C. várias vezes para ser examinado e fazer novas radiografias do joelho e trocar o gesso que já apresentava sinais de deterioração. Nesse dia, o médico que examinou o último raio-X deu-me uma ótima notícia. Disse-me que o local onde ocorrera a ruptura estava já, praticamente, com a cicatrização consolidada e com os cuidados recomendados, após a retirada do gesso e um longo tratamento de fisioterapia, eu poderia voltar a andar e até correr normalmente e, ainda, praticar meu esporte favorito, as artes marciais. E tudo o que foi previsto aconteceu.

Recuperei-me completamente e até hoje não sinto nada no joelho. Agradeço aos médicos que me atenderam e trataram; a eles quero deixar registrado, neste epílogo, meus mais sinceros agradecimentos por tudo o que, com carinho e indiscutível competência, fizeram por mim.

Foi num Sábado qualquer de primavera. Dia lindo. Céu azul. Os pássaros cantavam em sua algaravia matinal. Podia ver e ouvir essas singelas, mas tão bonitas, manifestações da natureza. Via isso tudo, das janelas gradeadas da cela individual onde me encontrava, ainda com a perna engessada. Faltava pouco para retirar o gesso que tanto incomodava. Estava me sentindo bem. Estava animado e contente com os prognósticos de cura total. De repente, adentrou à minha cela o Sr. Cyrano, Chefe de disciplina daquele Estabelecimento Penal, acompanhado por dois guardas do choque. Todos meus amigos. Pensei tratar-se de mais uma visita que rotineiramente faziam. Trocamos cumprimentos, perguntaram sobre meu estado de saúde, disse-lhes que estava tudo bem, contei a eles as boas novas, o que os deixou contentes. Após isso o Sr. Cyrano dirigiu-se a mim, nos seguintes termos: “Correinha, hoje não vim aqui só para visitá-lo. Temos um problema para resolver com você. O Pastor Protestante e o grupo de adeptos por ele formado quer vir aqui, em sua cela, para realizar um culto por sua recuperação. E todos os reclusos membros do grupo, entre os quais a maioria é composta de marginais da mais alta periculosidade, alguns inclusive que você prendeu, manifestaram o desejo de participar desse ato litúrgico. O Diretor Geral está muito preocupado e apreensivo. Ele não quer impedir, para não criar um problema político interno com o pessoal da Igreja, já que isso faz parte de um trabalho de recuperação dos delinqüentes, entretanto, deixa a decisão a seu critério. Você, mais do que ninguém, conhece como são esses “vagabundos”. Estamos preocupados com sua segurança, pois você está imobilizado e sem condições de se defender e essa é nossa maior preocupação. Eles podem estar tramando alguma “casa de caboclo” para atentar contra a sua vida. O que você acha?”.

Respondi a ele que não haveria nenhum problema ou qualquer tipo de exigência ou restrição de minha parte e que nem precisaria mandar guardas do choque, para não inibir a realização do culto. E que assumia, naquele momento, perante duas testemunhas (os guardas que o acompanhavam) a responsabilidade total, eximindo, assim, a Diretoria por qualquer fato que viesse a ocorrer. Ao que ele me respondeu: “Tudo bem então. Vou levar sua decisão ao conhecimento do Diretor, e daqui a meia hora, mais ou menos, o pessoal estará aqui. Te cuida menino!” A seguir, retirou-se com os guardas.

Antes de decorrida meia hora, um Pastor, ainda jovem, adentrou à minha cela. Entrou sozinho. Trazia às mãos uma Bíblia. Me cumprimentou de forma gentil com um largo sorriso no rosto. Quis saber detalhes de minha cirurgia e de como estava progredindo o tratamento. Informei a ele o que queria saber, contei-lhe as últimas e alvissareiras notícias. Ao que ele deu graças a Deus. E, em seguida, pediu-me permissão para iniciar o culto. De imediato aquiesci. Pediu-me ainda para que alguns membros do grupo viessem para dentro da cela, os que ali coubessem. Respondi-lhe que podia mandá-los entrar. Ele saiu e foi escalando os que deveriam permanecer junto a ele dentro da cela, de onde daria início ao trabalho religioso. O restante permaneceu à porta, no grande e largo corredor do hospital. Havia uma centena, ou mais, de sentenciados. Mais ou menos, com estas palavras iniciou o seu mister: “Meus caros e queridos irmãos, estamos hoje aqui reunidos em nome de Jesus e com a graça de Deus, que nos dá esta oportunidade de pedir e orar pela pronta recuperação do nosso irmão...” — fez uma pausa e baixando o rosto, perguntou o meu nome, respondi-lhe: “Correinha”... — ele continuou — “nosso irmão Correinha, que aqui está hospitalizado, para se recuperar de uma grave lesão. Peço a todos, que orem comigo o Pai Nosso, com o pensamento inteiramente voltado para o pronto restabelecimento deste policial, que como todos aqui presentes, sofre a amargura do cárcere: Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino e seja feita a vossa vontade, assim na terra, como no céu, o pão nosso de cada dia nos dai hoje e perdoai as nossas dívidas, assim como nós devemos perdoar a quem nos tenha de qualquer forma ofendido e não nos deixai cair em tentação e livra-nos de todo o mal, pois tua é a glória, o poder, a graça e o perdão. Amém.”

Todos o acompanharam na oração. O eco das vozes soou forte naquelas dependências.

Outros detentos hospitalizados também rezaram em voz alta. A seguir, o Pastor agradeceu a todos, leu algumas passagens da Bíblia, explicando o significado de cada uma. Disse a todos que se concentrassem o mais que fosse possível para ouvirem o Sermão da Montanha, proferido por Jesus, segundo o Apóstolo Matheus.

Foi um momento de fé e de beleza. Um acontecimento que me marcou para sempre. Enquanto ouvia... “bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, por que serão atendidos”... Olhava para o céu azul, perguntava a Deus, em pensamento: por que? Seria eu um privilegiado de suas graças? Será que merecia tanto? Ou era uma lição de vida que estava me dando? Enquanto o Sermão da Montanha prosseguia, todos de joelhos e as frontes baixadas em sinal de respeito a tão lindas e edificantes palavras, as lágrimas começaram a rolar pela minha face, sem que as pudesse conter. Agradeci a Deus, em silêncio, por aquele momento mágico, divino, quase impossível.

Ao terminar o culto, o Pastor conclamou todos a fazer nova oração. Dessa vez, foi a Ave Maria. Rezamos todos juntos em voz alta. O Culto estava encerrado. O Pastor me cumprimentou, agradeceu a Deus por aquele momento e beijou-me a face, num gesto de carinho. Em seguida, formou-se uma longa fila, pois todos queriam me cumprimentar pessoalmente e desejar-me melhoras. E assim foi feito. Muitos que eu conhecia passaram por ali, não só para me cumprimentar, como também, para oferecer-me seus préstimos no que eu precisasse. E os que eu não conhecia, procederam da mesma forma, com carinho e respeito.

Quando foram embora, um turbilhão de sentimentos misturava-se às minhas emoções. Nunca esperava passar por um acontecimento dessa grandeza e tão bonito. Meditei sobre isso até que as sombras da noite chegaram e adormeci. Talvez, a noite de sono mais tranqüilo que jamais tive. Uma lição tão forte e grandiosa, que a trago viva em minha mente e em meu espírito até hoje. Ao terminar esta obra, espero ter passado aos leitores alguma coisa que lhes acrescente algo ao espírito, que deve sempre caminhar rumo à luz.

 

“Senhor, por que tanto trabalho em
acender e apagar, seguidas vezes esse lampião?
Basta que caminhe em direção à luz”.


“Você é responsável por aqueles a quem cativa”.
Antoine Saint Exupery.


Fonte: Jornal da Tarde, Terça-feira, 10 de 2000




©2006 Astorige Corrêa

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Junho 2006

 

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