capa

eBookLibris

UM “GATO” NO CONGRESSO E OUTROS CONTOS

Cleusa Sarzêdas

www.ebooksbrasil.org


 

 

Um “Gato” no Congresso e Outros Contos
Cleusa Sarzêdas

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Fonte Digital
Documento da Autora

© 2001,2006 Cleusa Sarzêdas
cleosarzedas@uol.com.br


 

ÍNDICE

Um “Gato” no Congresso
A Carroça
Asa Partida
“Triângulo de Dois”


 

Um “Gato” no Congresso
e outros contos

Cleusa Sarzêdas


 

UM “GATO” NO CONGRESSO

 

O Morro da Toca, zona sul da cidade do Rio de Janeiro, era uma comunidade relativamente tranqüila, com 168 mil habitantes. Tinha vida comercial, posto policial, posto de saúde e um Grupo Escolar Estadual. Sem saneamento básico. Seus habitantes desciam, todos os dias, milhares de degraus até a via pública, onde passavam os veículos que os levariam ao trabalho.

Numa tarde de sábado do ano de 1988, nuvens escuras anunciaram tempestade — dissipada pelo vento — enquanto uma mudança subia o morro. A do tenente de Polícia Militar Walney Mattias Cântaro. Homem bem apessoado, falante e inescrupuloso. Ambicionava fortuna e ascensão social. Quando criança, só brincava com os amiguinhos se fosse o personagem principal. Discursava em meio a roda e finalizava assim:

— (...). Um dia serei Presidente da República. Todos riam em razão do menino contar somente cinco anos de idade.

Por quatro anos trabalhou num projeto visando alcançar os mais altos cargos no governo. Já contava 42 anos. Aquela seria a grande oportunidade para alcançar seus objetivos e nunca mais ouvir sua mulher queixar-se que as panelas estavam vazias e que os filhos, um menino e duas meninas, não tinham roupas e outras queixas mais.

Instalou-se com a família numa pequena casa, quase casebre, de quatro cômodos. Assumiu o lugar no posto policial para o qual fora designado e, logo no primeiro dia, fez contato com o maior traficante do morro. Conversaram até altas horas da madrugada e firmaram um pacto. Sua função, assim como a de outros olheiros (um em cada morro), era manter a ordem e comunicar à corporação o movimento dos traficantes e seus esconderijos para facilitar a prisão — chamada de “varredura geral”. Passava as madrugadas traçando roteiros que iriam dirigir sua ação na nova empreitada. Tudo meticulosamente calculado, cada detalhe tinha a importância de uma grande tarefa. Na primeira reunião da corporação, uma semana depois de empossado, abriu um mapa sobre a mesa do delegado e mostrou o que deveriam atacar de início. Disse com ênfase:

— No momento, somente peixe pequeno está à vista. Os grandes se mostrarão, é só uma questão de tempo. O grupo ficou impressionadíssimo com a riqueza de detalhes e lhe deu parabéns. Conquistara a confiança da equipe.

Nos dias de folga (uma por semana) era substituído por outro policial/serviçal. Nessas ocasiões visitava outros morros fazendo contato com os chefes do tóxico. Apresentava planos meticulosamente bem traçados para enganar a polícia. A principio era visto com desconfiança por ser ele um policial mas, à medida que expunha as minúcias da ação, o interesse crescia. Explicava:

— Alerto a Corporação sobre ação de traficantes num determinado morro e o roteiro a ser invadido. Algumas pessoas, contratadas por nós, serão capturadas. E, paralelamente, para dispersar a atenção, faremos assaltos a bancos com a finalidade de divulgar algumas figuras como chefe de gangue, um idiota qualquer, que receberá grana alta. Aceita a tarefa, assinará um contrato com a seguinte cláusula: se delatar quando preso, será eliminado lá mesmo e a família expulsa do morro e denunciada como cúmplice. Calado, terá assistência jurídica necessária. Essa ação servirá para os morros da redondeza. Quando um for invadido — e a polícia estiver ocupada na captura dos assaltantes de banco — os outros terão o caminho livre para a exportação do pó.

AÇÃO

Dias depois chegou ao morro da Toca um pelotão da Polícia Militar. Casas foram invadidas, papelotes de cocaína e armas encontradas, alguns homens presos, tiros trocados. Encenação perfeita.

Walney foi aclamado pelo chefe da polícia e do tráfico.

Enquanto isso, no mesmo dia e hora, realizaram o primeiro assalto a um banco no centro da cidade. Eram 10h30min. Muitos clientes, pagamento dos aposentados. Um homem de estatura baixa, barriga volumosa, entrou na agência e se posicionou na fila do caixa. Algum tempo depois entrou seu companheiro, este de aspecto normal, e logo a seguir mais outro. Os três portavam, sob a camisa, pistolas calibre 45 envoltas em capa protetora. Às 10h45min saíram levando o dinheiro do cofre. Quando a polícia chegou somente encontrou tumulto. As descrições físicas não coincidiam com nenhum suspeito. Todos afirmavam que o chefe era um homem baixo e barrigudo. Os companheiros o chamavam de Roliço. O vídeo instalado próximo ao caixa não ajudou. O denominado “chefe” tinha uma barriga postiça e os três usavam uma máscara de pele tão fina que alterava as feições de maneira natural; daí a dificuldade em descrevê-los.

Muitos outros assaltos foram executados. Todos de maneira simples e bem planejadas, levando as corporações ao desespero. Enquanto a polícia se preocupava em capturar bandidos, o tráfico era exportado sem embargo de qualquer espécie.

A figura de Roliço e de outros, considerados chefes de gangues, aparecia sempre de maneira diferente em cada assalto. A polícia elaborava mil maneiras de capturar o que chamavam “bando de Roliços” sem sucesso. Os delegados eram exonerados como incompetentes. Os jornais estampavam as notícias em letras garrafais, exaltando a ação gloriosa dos criminosos. Os adolescentes se prostravam em frente às bancas, extasiados com a façanha dos ladrões, e o número de jovens crescia a procura das gângsteres, para filiação, visando dinheiro fácil.

O esquema “Walney” era um sucesso. Quando substituído o delegado e a situação fugia ao controle, recebiam um alerta que emitia sinais coloridos identificando o local da invasão. A gangue se escondia num grande galpão feito nas entranhas do morro onde eram guardadas armas, coletes à prova de balas, tóxicos e todo o tipo de equipamento, inclusive um helicóptero pronto para decolar, se necessário. A população local ficava à mercê da arrogância e da violência de alguns policiais frustrados.

ASCENSÃO

Walney mudou-se com a família para uma residência afastada das demais e de aparência humilde, porém, no seu interior o luxo e o conforto imperavam. As festas aconteciam todas as sextas-feiras. A presença de Orlandão, chefe do tráfico do Morro da Toca era constante e sua figura chamava a atenção por ser um negro alto, corpulento, espadaúdo, com cara de mau e sorriso desdenhoso no canto da boca.

Os filhos estudavam em colégio particular, levados pelo motorista da família. Sua mulher freqüentava reuniões de chá de caridade oferecidos pelas senhoras de classe média alta.

Bastante rico, abriu um comércio de importação e exportação com o objetivo de lavar o dinheiro do tráfico e se candidatar a Deputado Federal. Pediu demissão da corporação usando como pretexto recebimento de herança de família. O delegado recusou o pedido afirmando categórico:

— “Necessitamos dos seus serviços por ser um policial competente e honesto. Não é todo dia que a gente encontra pessoas que não se deixam envolver por facilidades. Você é um cara de valor e presta grande contribuição à sociedade”. Ele agradeceu com falsa humildade e alegou ser impossível, porque pretendia montar comércio próprio o que absorveria todo seu tempo; mas sugeriu que, caso o delegado concordasse, o PM que o substituía no momento desse continuidade ao trabalho, e ele se comprometia em auxiliá-lo. O Delegado, sem alternativa, aceitou o pedido de demissão e agradeceu, comovido:

— “Obrigado meu amigo, é difícil conseguir policial para aquele posto”. Ninguém duvidou das palavras do tenente que recebeu abraços e felicitações.

A partir desse dia planejou sua estratégia com mais segurança. Participava ativamente dos negócios viajando várias vezes para Bolívia, Colômbia, Paraguai, Uruguai, Chile e muitos outros países, onde negociava os dois lados do comércio. Tornou-se um empresário importante aos olhos da sociedade. Filiou-se ao Partido..., candidatou-se a Deputado Federal ganhando a eleição, fácil, fácil. Dinheiro não faltava, custeava altos preços em Marketing. Sua plataforma política durante a campanha era combater os traficantes e moralizar os morros.

Comprou bela residência na Barra da Tijuca para onde levou a família. Não queria os filhos mancomunados com traficantes. A casa do morro foi mantida como ponto de ação e orgias.

Como deputado apresentava falsos projetos no combate ao tráfico e discursava na tribuna:

— “Lugar de traficantes é na cadeia! Não podem ficar em liberdade induzindo crianças inocentes ao vício!” — afirmava com toda convicção — “Quando policial meu objetivo principal sempre foi o de acabar com as gangues, mas elas proliferam como ratos! Um dia, ainda conseguirei exterminá-las por completo, essa é a minha grande meta.” — e mais inflamado ainda — Fui eleito “deputado com essa finalidade, não vou decepcioná-los, trabalharei sem descanso na caça desses criminosos!” Falava bonito e gesticulava com o braço acima da cabeça, punho cerrado em atitude de revolta. Muitos acreditavam, aplaudiam e comentavam:

— Homem de valor, se candidato a Presidente, certamente ganhará.

Seis anos depois Walney tinha fortuna, ascensão social e fama. Nas discussões inflamadas passava sempre para o lado do mais forte. Comparecia às festas com a família; outras vezes, convidava em retribuição. Favores eram trocados e acordos firmados. O círculo de amizade aumentava; a fortuna também.

Numa tarde de sábado sobe o morro a mulata Gilda — O Sol ainda brilhava lá em cima, iluminando com seus raios quentes toda a terra — nos seus vinte e pouco anos, dentro de um tubinho vermelho de alças, modelando um busto firme, cintura fina, quadris proporcionais, glúteos arredondados e bem posicionados; coxas grossas e torneadas, joelhos bem feitos e belas pernas; pés delicados, bem cuidados, numa sandália de saltinho. Seu caminhar insinuante excitava os homens e causava inveja às mulheres. No rosto, um sorriso franco e convidativo mostrava dentes se projetando um pouco fora da arcada, tirando a beleza do seu semblante.

A notícia se espalhou e os homens casados, solteiros e até adolescentes queriam se envolver com ela. As mulheres mantinham os maridos em casa nos fins de semana com medo de perdê-los.

Numa festa do ex-PM, a mulata Gilda chegou acompanhada causando grande rebuliço. Todos queriam conhecê-la. Recebia elogios aos quais respondia:

— “Ora, obrigada por dizer”. Chegou na varanda dos fundos onde estavam os homens mais importantes. Foi apresentada ao dono da casa, o mais bajulado da redondeza, que todos chamavam por Dr. Deputado. Os olhos se viram, as mãos se tocaram, a emoção correu o caminho do corpo chegando na boca num simples — muito prazer. Ela se afastou e os olhares cobiçosos a acompanharam.

Quatro horas da manhã. Poucos convidados ainda permaneciam na festa. Walney aproximou-se da mulata convidando-a a ficar após a saída de todos. Ela recusou. Virou-se e se afastou. Um sentimento de rejeição tomou conta dele. Seus olhos refletiram ódio, suas mãos se fecharam, os lábios se contraíram e a mente destilou veneno. Nunca mulher nenhuma ousou rejeitá-lo, a todas sempre usou como e quando quis, descartando-as quando se cansava.

— “Você será minha, deixarei que se apaixone e depois vou jogá-la fora, igual a lixo. Irá implorar pelo meu amor, sofrerá a humilhação de se sentir um nada. Sei como conquistar uma mulher, ou melhor, comprar, você não é diferente das outras”. Jurou.

No dia seguinte levantou-se bem cedo. Mandou chamar o homem que vira ao lado da mulher que despertou seus sentimentos mais íntimos e o rejeitara. Às onze horas adentrou na residência de Walney um mulato alto, corpulento, aparência simpática, trajando calça bege, sapatos marrom, camisa parda, modos educados. Se identificou com o nome de George da Motta Alencar. Conversaram cerca de duas horas. Foi-lhe perguntado pormenores da sua vida e preferências, até sexuais, para melhor moldá-lo aos objetivos. Almoçaram. Deliciavam um saboroso quindim quando:

— Pedi que viesse porque estou precisando de alguém com o seu perfil para ocupar a função de meu secretário particular em Brasília. Ofereço um salário de cinco mil dólares, mas terá que morar lá. George que levava um pedaço de doce à boca parou, prendeu a respiração, contraiu a fronte quase juntando as grossas sobrancelhas (não era homem de muitas palavras), olhou para o seu interlocutor e um pensamento rasgou sua mente: “Quem é esse homem? Por que oferece a mim tanto dinheiro por tão pouco trabalho? Ele não me conhece! Onde consegue tanto dinheiro?” Prosseguiu o movimento de levar o doce até à boca. Não articulou palavra. Walney satisfeito com a reação e um pouco surpreso pelo silêncio, voltou ao assunto.

— E então? Você aceita ser meu braço direito? Se concordar venha a minha casa na sexta-feira às vinte horas, acertaremos os detalhes. George despediu-se e afastou-se pensativo. “Não poderia recusar uma proposta tão tentadora, onde iria arranjar outra oportunidade semelhante?”.

Quinze dias depois viajaram a Capital Federal. George assumiu o posto de secretário do deputado mais invejado do Congresso. Instalado em belo apartamento de propriedade do patrão, ganhou conta bancária de cliente cinco estrelas e todas as facilidades de uma vida farta e confortável. Apresentado às pessoas certas e ao trabalho que deveria executar recebeu ordens expressas para não ausentar-se da Capital em hipótese nenhuma, a não ser quando convocado.

Na semana seguinte Walney voltou para o Rio de Janeiro e para o morro. Mandou chamar a mulata Gilda a sua casa. Ela chegou às 19 horas e percebeu um clima de sedução. O ambiente à meia luz, muitas frutas sobre o criado mudo, e uma canção baixinha falando de amor. Sentiu medo.

— O senhor mandou me chamar? Temerosa.

— Não, não mandei. Pedi que viesse; você não quer saber sobre seu namorado? O meu secretário George é seu namorado, ou não?

— É sim — respondeu nervosa — já estamos juntos há dois anos.

— Você gosta muito dele?

— Goosto.

— Esse “goosto” não me convenceu. Quero colocá-la a par das atividades dele e das oportunidades que terá, e como você também poderá colaborar, isto é, se quiser. Ela se manteve calada. Ele prosseguiu enumerando várias tarefas as quais poderia executar e assim, ganhar muito dinheiro. Tirou do bolso uma pequena caixa colocando-a em sua mão. Ela olhou para o objeto indecisa.

— Abra-a você vai gostar, tenho certeza! Abriu o estojo e lá estava um belíssimo anel de brilhantes.

— Ooooh!! É de verdade? É uma jóia verdadeira?

— Sim é uma jóia verdadeira e é sua. Essa é só a primeira, você poderá ter muitas outras se quiser, com o seu trabalho, claro. Acrescentou. Fascinada, colocou o anel no dedo, nunca vira algo tão valioso, ficou extasiada.

— Vamos festejar — disse ele. Abriu uma garrafa de champanhe francesa e brindaram com a primeira taça. Ao explodir a rolha da quarta garrafa ele a levou no colo para o quarto luxuosamente decorado: cama redonda, lençóis de cetim, algumas paredes e teto espelhados, música suave num ambiente acolhedor, onde o amor se fez. O desejo e a volúpia cresceram até o êxtase total, com juras e gemidos profundos.

O sol inundou o ambiente com seus raios brilhantes acordando os amantes. Walney levantou-se, vestiu o robe e postou-se ao centro do aposento. Olhou para ela que ainda deitada se espreguiçava, sonolenta e sensual, tendo como vestimenta somente a ponta do lençol, de cor azul claro, cobrindo pequena parte do seu corpo que contrastava com o moreno jambo da sua pele. Abriu os olhos e o viu. Assustou-se, cobriu o corpo tão exposto e uma inibição tomou conta do seu semblante. Ele, cada vez mais fascinado aproximou-se, beijou-a na face, abraçou-a, deixando a emoção falar o que a boca não conseguia se expressar. Todo sentimento de ódio e vingança esvaiu-se naquele momento. Nunca sentira tanta paixão por outra amante.

Três meses depois ainda estavam sob o império daquela atração. Ele não mais visitava a família, mal via os filhos. Os negócios estavam sendo relegados a segundo plano. Quase não comparecia mais ao Congresso em Brasília. Sua grande preocupação, no momento, era estar ao lado de Gilda. Levava-a a todos os lugares para os quais era convidado, antes freqüentados com a esposa. Não a deixava sozinha por ciúmes infundados. Ela o amava, jamais o trairia nem se atreveria. Ele, apesar do grande amor que sentia alertava:

— “Nunca pense em me trair, antes que o faça, saberei”. Ela sentia verdadeiro pavor de suas ameaças.

A DERROCADA

A derrocada de Walney teve início quando a Polícia invadiu, de surpresa, vários morros na redondeza, inclusive o morro da Toca. Roliço foi preso. Casas invadidas, chefes de família detidos, cuja única culpa era morar no morro, mas a polícia os apresentava como de alta periculosidade. Apreendidas armas e grande quantidade de cocaína. A imprensa elogiou a ação da polícia mostrando os vários corpos, bandidos ou não, espalhados pelo chão. Mulheres e crianças choravam a morte dos antes queridos. O Morro da Toca ficou sendo visto como o pior reduto de bandidos da região.

Com as notícias estampadas nos jornais George, desobedecendo a ordem embarcou para o Rio de Janeiro preocupado com o patrão e com sua amada, que há muito não via e não respondia suas cartas. Chegou ao morro numa sexta-feira e dirigiu-se à casa de Walney para informá-lo sobre os rumores de cassação do mandato devido à sua ausência nas reuniões. Depois, iria matar a saudade daquela que fazia pulsar todo seu corpo num frenesi. Tocou a campainha, passaram-se alguns segundos, surgiu na porta uma mulher num robe de lingerie pastel; o vento soprava devagar agitando levemente o tecido fino que mostrava na sua transparência as belas pernas da mulata. George hipnotizado, nunca a vira tão fascinante. Ela, constrangida, na tentativa de se desculpar, mais se comprometia. Ele virou-se, nada disse. Não era necessário, estava tudo muito claro. Finalmente entendera porque fora escolhido para o emprego com alto salário. O ódio assumiu proporções gigantescas em sua mente e naquele mesmo dia iniciou uma investigação sobre a vida do patrão. Descobriu, junto aos seus inimigos, muitas atrocidades. Voltou à Brasília e leu toda a correspondência sigilosa. Conversou com parlamentares e constatou que muitos sabiam das manobras de enriquecimento do nobre Deputado. Uma delas era o tráfico de drogas, mas não tinham coragem de delatar por ser ele protegido de políticos e corporações fortes. Ouviu muitos o denominarem de “O diabo e seus amigos” e acrescentavam que, estando afastado tanto tempo, seu castelo começava a ruir e já não era sem tempo. Falavam com receio e, negariam tudo, se pressionados. Jamais testemunhariam contra aquele homem. George aliou-se a um jornalista desejoso de sucesso. Fizeram levantamento de toda a vida de Walney que, preocupado em agradar o fruto da sua paixão carnal, descuidava-se de tudo que o cercava, abrindo brechas para novas investigações.

Um ano depois a CPI tinha material suficiente que comprovava as denúncias feitas pelo secretário do parlamentar Walney Matias Cântaro. Estourou o escândalo, os jornais estampavam as fotos dele com a mulata na primeira página. Ele negava as acusações.

— “Tudo não passa de manobra política, confio na Justiça para apurar a veracidade dos fatos e sairei ileso dessa situação. Sou inocente. Um homem de sucesso tem muitos inimigos. Os derrotados invejam aqueles que se projetam, é a única razão de todo esse alvoroço. Minha vida é um livro aberto. A moça da foto é amante do meu secretário e não minha. Jamais usei dinheiro público ou outra irregularidade para enriquecer. Meu patrimônio é fruto do meu trabalho, nada devo. Ser honesto para mim é religião”. Dizia, convicto.

Os inquéritos se sucediam sempre com provas mais evidentes da corrupção que o envolvia. A imprensa não dava tréguas, queria a cabeça do homem que explorava a boa fé do povo. O Congresso também queria sua cabeça por razões de moralização. As eleições estavam próximas. Somente um impasse nas investigações: onde conseguira tanto dinheiro em pouco mais de seis anos? Walney afirmava categoricamente haver recebido herança de família, mas não comprovava.

A DESCOBERTA

O tráfego era lento no sentido Cidade-Copacabana no Parque do Flamengo (conhecido como Aterro do Flamengo) às dezoito horas de uma tarde de segunda-feira. Rajadas de metralhadora foram ouvidas. Um Sedam azul desgovernado, com vários furos a bala bateu em diversos carros, indo chocar-se contra uma árvore. Um Fiat na cor vinho, com quatro homens, em alta velocidade sobre o gramado, entrou no desvio e ocupou a pista da praia em sentido contrário.

Próximo à entrada da Lapa, um acidente entre dois ônibus bloqueava a pista. A polícia providenciava ambulância para os feridos quando ouve pelo rádio um alerta: — “Atenção, atenção, todas as viaturas! Um Fiat na cor vinho placa não identificada, com quatro ocupantes, dirigindo-se ao Centro da Cidade na pista da praia, acaba de metralhar um Sedam azul no Aterro do Flamengo” — Os policiais, rapidamente organizaram o desvio e aguardaram. O veículo se aproximou; a polícia fez sinal de parar. Os assassinos aumentaram a velocidade numa tentativa desesperada de furar o cerco, mas o motorista foi atingido na nuca e o carro chocou-se com os ônibus acidentados. Outro ocupante foi gravemente ferido. Dois saíram correndo pela via pública em direção ao Aeroporto onde um helicóptero os esperava, mas foram detidos antes de lá chegar.

No morro, a gangue recebeu o comunicado de que a operação fora realizada: George estava morto. Só que surgiram imprevistos: A polícia matou Carlinho com um tiro na nuca. Justino ficou gravemente ferido sendo levado para o hospital. Mauricinho e Marcelinho foram presos.

Walney deu um murro na mesa — Isso não podia ter acontecido! Os dois não são confiáveis, abrirão o bico, temos de providenciar a liberdade deles antes que falem.

— Mas como? Estão na Polícia Central.

— Isso não é problema.

— Nada disso teria acontecido se você não tivesse se descuidado dos negócios por causa de uma mulher, disse Orlandão, irritado. Agora vamos sofrer as conseqüências, tomara que os dois não abram o bico.

— Não vão abrir, vou retirá-los de lá antes disso.

O Delegado, profissional experiente, temendo uma tentativa de resgate cercou os criminosos, no hospital e na Delegacia, de forte esquema de segurança e naquela mesma noite interrogou-os sobre o atentado ao Secretário George, por várias horas. O dia despontava quando Mauricinho não suportando a pressão, falou:

— Por que vocês não perguntam ao Dr. Deputado?! Ele é o dono do morro. Nós só furamos o cara, o assunto não sabemos.

— Como é o nome desse Deputado? Indagou o Delegado.

— Ué!! Todo mundo conhece ele, o Dotô Walney.

— O que ele faz no morro?

— O que ele faz?! Vende drogas, ora! Junto com o Orlandão e outros mais.

— Você tem certeza do que está dizendo?

— Claro! Todo mundo sabe!....

O Delegado se intera de outros detalhes, convoca um pelotão e arma estratégia sigilosa para invasão ao Morro da Toca. Enquanto o pelotão sobe o morro um grupo invade a Central de Polícia, com armas pesadas, exigindo a soltura dos dois criminosos. Os policiais impotentes abrem a porta da cela e os dois saem sorrindo provocando a ira de um tenente que grita:

— “Eles já confessaram” — O grupo se volta e vê estampado no rosto dos comparsas a verdade. Uma rajada é disparada matando o Tenente e os dois bandidos. Os assassinos entraram no carro que os esperava e desapareceram, deixando para trás os três corpos em frente à Central de Polícia.

Na casa do Deputado Walney uma sirene dispara. Era o código secreto de que a polícia estava a caminho. Chamou a mulata Gilda.

— Vamos fugir agora. Saíram pela porta dos fundos, desceram uma ribanceira, passaram por um túnel e chegaram ao esconderijo nas entranhas do morro. Lá estavam Orlandão e mais dois homens ligados à quadrilha, com o helicóptero preparado.

A polícia cercou a casa do Deputado invadindo-a. Encontraram num quarto fechado um cofre. Aberto, muitos documentos comprometendo parlamentares, empreiteiras e policiais de alto escalão. Mapas indicando os caminhos da droga em todo o país e até esquemas traçados para as próximas eleições, dois anos depois, em que Walney seria lançado como candidato à Presidência da República, com vitória garantida. Vasculhou o morro em terra. No ar, dois helicópteros acompanhavam a ação quando foram surpreendidos com tiros de metralhadora vindos de outro helicóptero, saindo de dentro do morro. Um da polícia foi abatido. O outro, impossibilitado de se aproximar, seguiu-os de longe comunicando o trajeto pelo rádio. Desceram num campo onde os esperava um jatinho.

A polícia chegou no momento em que o pequeno avião decolava e, impotente, o vê ganhar altura. Súbito ele aponta o bico para baixo numa velocidade vertiginosa e desaparece.

O Delegado irritado:

— Tomara que tenham ido para o inferno!!!.

De repente nuvens escuras cobriram o céu e desabou torrencial tempestade. As ruas alagaram-se rapidamente formando ondas de tamanha força que arrastavam tudo. Pessoas desesperadas gritavam tentando se salvar, carros, ônibus, árvores, tudo era levado como brinquedo. No Morro da Toca a água descia numa velocidade vertiginosa, formando sulcos profundos, aterrando barracos e vidas que impediam sua passagem. Os moradores subiam até o topo do morro onde o arrastamento das águas era menor e lá ficaram por quatro longos dias, enquanto durou a tempestade. Parecia o fim da vida na Terra.

Na tarde do quarto dia, para alívio de todos, a chuva cessou; os pássaros voltaram a cantar, o sol tímido despontou no horizonte, a água escoava por entre rachaduras e cascalhos indo se alojar lá embaixo nas ruas enlameadas e abarrotadas de entulhos.

As vítimas foram resgatadas e levadas aos hospitais. O atendimento precário por falta de pessoal, material e instalações inadequadas, levou muitos pacientes à morte.

Os desabrigados foram alojados em locais improvisados pelo governo e lá permaneceram com uma esperança. A promessa de construção de casas populares. O Morro da Toca nunca mais pôde ser habitado. Lá ficaram enterrados para sempre: o passado dos que lá viveram.

Um homem alto, esguio, vestido elegantemente e carregando uma pasta preta chegou junto a recepção de um hotel cinco estrelas..., no Chile. Em seguida chegou uma mulher; cumprimentaram-se com beijo na boca. A recepcionista dirigindo-se a ambos perguntou: — O nome por favor. O homem respondeu: — Walney...


 

A CARROÇA

 

Chovia forte numa manhã de segunda feira. Ao longe uma carroça, puxada por um único burro. Sobre ela um homem, tendo nas mãos as rédeas, atreladas ao animal. Grossa capa protegia-o. Sobre a cabeça, um chapéu de abas largas e arriadas, cobrindo o rosto.

Seguia lenta, no silencioso e longo caminho, em direção a um lugar distante. O vento frio enregelava. O burro andava com dificuldades sobre os buracos e a lama do sinuoso caminho estreito. Vez por outra parava e estremecia, espantando assim a friagem que machucava, apesar da grossa lona que o cobria.

Fim de tarde. A chuva cessou, o vento acalmou. No poente, o sol mostrou seus raios reluzentes. O burro nem se apercebeu da mudança, sua única “preocupação” estava no chão. Mais adiante, num campo verdejante, pararam para o descanso, prosseguindo, logo depois, por muitas horas mais.

Chegaram a uma cidade, no interior do Norte do país. Algumas casas esparsas, construídas em alvenaria, em um dos lados; do outro, vários casebres amontoados, dando a impressão de que um amparava o outro, tal a fragilidade das construções. Em frente à casa em cuja fachada estava escrito “HOTEL”, o rapaz desceu e puxou do interior da carroça grande baú, muito bem protegido. Cuidou do burro, levando-o para o pasto, por fim, entrou no recinto e os que lá já se encontravam saudaram-no:

— Olá! Há quanto tempo não aparece, ficou rico? Nunca mais voltou!

— Não..., não fiquei rico. Andei por outros caminhos, mas agora estou de volta. Como estão as coisas por aqui? O mercado está bom? Qual a maior procura no momento? Queimadinha ou clarinha? Todos riram.

— A coisa está mais ou menos, não tem um padrão, depende muito do grupo que estiver no mercado e também da mercadoria, claro. Houve uma época em que só queriam queimadinha, como diz você, mas hoje aceitam de tudo, acho que o mercado está mais liberado. Há quanto tempo não faz esse serviço?

— Oh! rapaz, há mais ou menos treze anos. Na época o mercado aqui não estava muito bom. Com o dinheiro que tinha montei uma lanchonete em minha cidade. Ganhei dinheiro com esse ramo, mas nos últimos anos a fiscalização apertou, o lucro diminuiu e surgiram dificuldades em pagar as contas. Decidi então fechar o comércio e voltar a minha antiga profissão de mercador. Aqui a gente não paga imposto, não tem fiscalização, não tem grande responsabilidade e nem chateação, é só saber negociar.

— É verdade, aqui ganha-se bem, se a sorte ajudar, né! Vamos descansar, amanhã o dia será longo, vamos em busca da melhor oferta.

Ainda era madrugada quando os mercadores saíram em várias direções. Genésio, o nosso personagem, era alto, magro, moreno claro, aparentando cinqüenta anos, cabelos alourados, grisalhos nas têmporas, olhos muito azuis. Falava macio, com muito poder de persuasão. Conquistava a todos que se aproximavam e obtinha, por meios nem sempre lícitos, tudo que desejava. Envolvia as mulheres em clima de falsa paixão quando sentia dificuldades no que almejava. Quando a situação extrapolava ao comercial, afastava-se dando lugar à outros mercadores.

A carroça rangia passando por ruelas, o burro caminhava cada vez mais lento. Genésio podia voltar no tempo e confabular com o seu passado. Lembrou-se da época em que conhecera a morena cor de jambo, a mais bonita da redondeza. Viveram dias muitos felizes, se amaram intensamente, até que numa manhã, ainda na cama, ela revelou sua gravidez. Genésio se alterou, deu um murro na parede e, com palavras grosseiras, distratou-a. Andou nervosamente pelo quarto durante algum tempo.

— Tem quanto tempo essa gravidez? — Ela não respondeu, só o olhava fixamente, recostada no espaldar da cama — Vou procurar alguém para fazer esse serviço.

Délia levantou-se devagar, vestiu-se, silenciosamente saiu do quarto, da casa e da vida de Genesio.

Ele a procurou por vários meses, arrependeu-se da atitude que tomara. Perdeu-a por pura estupidez. Com mais calma, poderia ter resolvido a questão.

— Onde estará nesse momento? E o bebê, será menino ou menina? Deve estar com quase 13 anos. Ah! se eu pudesse vê-los. E eu que pensei nunca mais voltar a esse lugar. As lembranças aqui são mais dolorosas.

Parou em frente a um casebre, onde crianças brincavam alegremente. O dono da casa o convidou para entrar. Saiu após trinta minutos, prosseguindo seu caminho. A mesma atitude se repetia em muitas outras residências. Quanto mais se embrenhava pelo mato, mais pobres eram as casas. Em nenhuma encontrou Délia, ninguém a conhecia. Quando a tarde se despedia e a noite despontava, parou junto a uma estalagem. Desatrelava o burro quando viu uma menina alta e magra, cabelos pretos e olhos muito azuis, rosto angelical, aparentando quinze anos. Figura muito interessante, pensou. Aproximou-se, conversaram bastante, marcaram encontro, despediram-se e, no dia seguinte, deu prosseguimento à viagem que duraria mais cinco dias. Fim da jornada, hora de voltar e recolher as mercadorias compradas.

Chegou ao hotel, onde se encontravam os outros mercadores, com a carroça abarrotada de preciosidades. Pernoitaram e, ainda madrugada, partiram em direção ao grande mercado. No centro da praça havia um grande palco onde a mercadoria era exposta para avaliação do preço. Genésio foi um dos últimos a negociar. Vendeu tudo que trouxera. Podia voltar a casa, sua missão estava cumprida. Só retornaria àquele lugar dois anos mais tarde.

Satisfeito, preparava-se para partir quando surgiu à sua frente uma mulher com uma espingarda apontando em sua direção, numa atitude ameaçadora. Todos se afastam temerosos. Só ele, petrificado, com os olhos arregalados, reconhece Délia, que atira, errando o alvo.

— Por que está fazendo isso? — Abaixa-se atrás da carroça. Outro tiro: o burro é atingido e cai em agonia, a carroça vira. O povo tenta conter a mulher em desespero. Mais um tiro. O cerco se abre, Genésio sangra no braço. Esconde-se em outro local, ela vai atrás. Ele insiste na pergunta:

— Por que está atirando em mim?

— Você vendeu sua filha, seu desgraçado! De alguma forma você a matou. Isso é por ela e por tantas outras meninas. Nunca mais vai vender ninguém. Suas pernas arquearam, passou a mão pela testa gotejante. O remorso apoderou-se dele. Cruzou a praça, não mais se importando com os tiros. Correu pela estrada atrás do ônibus aos gritos de pare, pare... O sangue escorria-lhe pelo corpo. Dentro, uma menina de olhos muito azuis, com o rosto colado ao vidro traseiro, olhava a cena, cada vez mais distante, e despedia-se da sua cidade natal, rumo a algum lugar. Não se sabe onde.


 

ASA PARTIDA

 

Noite sombria. Relâmpagos esparsos anunciavam tempestade.

Na serra de Friburgo um Caravan marinho descia em alta velocidade.

Os primeiros pingos de chuva bateram forte no pára-brisa; desabou um aguaceiro. Eram vinte e duas horas de uma quinta-feira. O carro desapareceu na neblina. O forte barulho da chuva incomodava. Serenou às vinte e quatro horas e um minuto; o veículo, lentamente, entrou numa curva e resvalou, dançou sobre a pista molhada, bateu num obstáculo e parou. Movimentou-se, devagar, em marcha à ré; o barranco cedeu; o automóvel desceu a ribanceira velozmente.

Numa grande fazenda um jovem casal foi despertado às cinco horas da manhã por insistente campainha. Cruzando a ampla sala, sonolento e resmungando, o homem abriu a porta com a intenção de esbravejar, mas, diante deles uma jovem com roupas sujas e rasgadas, cabelos desalinhados e olhos muito aflitos, tendo nos braços um bebê desacordado e uma valise, pedia angustiada:

— Senhor! Por favor, salve o meu filho. Estendeu os braços.

— Como a senhora chegou aqui?- indagou o fazendeiro — Esta fazenda tem muitos empregados que a vigiam dia e noite, como entrou?

— Senhor! Por favor, salve o meu filho!- repetiu ela. — Tenho que voltar e acudir meu marido. Ele está preso entre as ferragens.

— O que houve, algum acidente?

— Sim, de automóvel, por favor. Mantinha os braços estendidos.

— Vamos ajudá-la. Ana, pegue a criança. Vou chamar os empregados — disse o fazendeiro.

Jairo, acompanhado de cinco homens, seguiu a mulher até o local do sinistro. O veículo havia se partido ao meio. Na dianteira totalmente retorcida, estava um casal preso entre as ferragens. O capataz comentou:

— Como pode alguém sobreviver a isto? — referindo-se à mulher que os conduzira até ali.

Retiraram-nos com dificuldade, colocando-os sobre macas improvisadas. Ambos mortos.

Jairo, não vendo mais a rapariga, rodeou o local e encontrou a parte traseira do veículo intacta e, preso ao banco, um porta bebê vazio, nenhum vestígio de sangue. Insistiu na procura imaginando que acharia o corpo da criança. Nada encontrou. Voltou para junto do grupo e observou mais de perto os dois corpos; a jovem morta era a mesma que estivera na sua fazenda com o filho nas braços pedindo ajuda.

“Como é possível morto pedir ajuda! E o bebê? Seria também um fantasma?” — pensou. Preocupado, aquietou o grupo que também tivera a mesma certeza devido à semelhança entre a duas mulheres e, apreensivo, ordenou que aguardasse a chegada da polícia para remoção dos corpos. Nada comentou sobre a criança. Retornou à fazenda, adentrou a casa chamando pela esposa e receando algo desagradável.

— Ana, onde você está?

— Aqui, no nosso quarto.

Entrou ofegante e muito pálido:

— Onde está o bebê?

— Está aqui na nossa cama, dormindo como um anjo. Despertou chorando muito. Dei-lhe um banho morno, depois que mamou se acalmou. Felizmente dentro daquela maleta tem todos os seus objetos pessoais, inclusive mamadeira. Só não encontrei certidão de nascimento, mas ele deve ter uns dois meses.

Jairo suspirou aliviado e narrou a ocorrência demonstrando sua preocupação quanto ao destino do menino. Teriam de entregá-lo às autoridades. Alguém viria reclamá-lo. Ana se opôs terminantemente.

— Não vou entregá-lo. Ele nos foi confiado, de acordo com o seu relato, pelo fantasma da própria mãe. Se o fizermos, como saberemos que cuidarão bem dele! E ademais, ninguém a viu entrar com o bebê. Ficaremos com ele. Será nosso filho, já que não temos nenhum.

— Na redondeza todos sabem que não temos filho, como justificaremos a presença desta criança!.

— Já pensei em tudo. Iremos à Capital, assim que passar esse episódio, na volta diremos que o menino é neto de antiga empregada da fazenda do meu pai, cuja filha falecera no parto; o pai do bebê não se tem conhecimento e, não tendo outros parentes, nós o registramos como filho. Como hoje é dia vinte e cinco de janeiro, então, na certidão dele constará como data de nascimento o dia 25 de novembro de 1933, e se chamará Jeremias Valqueire Mirrard, filho de.... o meu nome e o seu. Ele se assemelha a você! Tem olhos claros, cabelos pretos e ondulados como os seus ah!... tem também uma mancha na coxa esquerda igualzinha a sua, parece seu filho, será que não é? Jairo sorriu com a observação.

— Que eu saiba mulher nenhuma, até hoje, se dispôs a ter um filho meu. Nem você! E já estamos casados há quase dois anos — ironizando.

— Não me culpe pela falta de gravidez. Os médicos, como você sabe, disseram que é uma questão de tempo. Não há nada de errado comigo, nem com você- exlamou contrariada. Ele se calou amuado.

VINTE E QUATRO ANOS ANTES

Aos 16 anos Jairo, filho único de um rico fazendeiro da região, apaixonara-se pela filha do caseiro, uma adolescente de 15 anos de olhos profundos e tristes. Para afastá-los o pai internou-o num colégio no Rio de Janeiro. Desejava casá-lo com moça de família rica, aumentando a fortuna. Ele, abatido com a separação, pediu a Verônica que o esperasse. Se casariam assim que completasse 21 anos, prometendo-lhe escrever todos os meses. Ela, deprimida, chorou muito com a sua partida.

Durante todo o tempo do internato Jairo cumpriu a promessa, enviando-lhe cartas apaixonadas e falando-lhe de um próximo futuro feliz, mas essa correspondência nunca chegou às mãos da amada. Ao retornar cinco anos depois, formado em direito, não a encontrou. Procurou-a como louco e veio a saber que ela grávida, para sua surpresa, e sem notícias, suicidara-se, julgando que ele a esquecera. Jairo acusou o pai pela desdita e nunca mais lhe dirigiu a palavra, apesar dos apelos constantes da mãe que sofria com as desavenças. Não se interessava por outras moças, nem pelos assuntos da fazenda em represália à atitude, que considerava criminosa, do genitor. Aos quarenta anos, o pai, já viúvo, o chamou no leito de morte e falou do seu arrependimento em separá-lo da jovem e por interceptar a correspondência, causando-lhes grande mal. Pediu-lhe perdão, em prantos.

— Não posso perdoar um homem que me infelicitou e o fez por ambição. Você sempre desejou para mim um casamento de conveniência. Agora que está quase falido mostra-se arrependido, esperando que eu aceite Ana Clara como esposa, aquela maluca, filha do seu amigo ricaço. Pois fique tranqüilo, vou casar-me com ela, estamos quase na miséria mesmo!. Uma semana depois ele se despedia da vida, sozinho e amargurado com a revolta do filho.

Ana Clara, jovem de 16 anos, filha única de fazendeiro próspero, porte elegante e atraente, tinha paixão pelo teatro. Fugia do internato para acompanhar grupo mambembe. Seus pais a devolviam ao Colégio até que não mais a aceitaram, alegando mau exemplo às outras jovens alunas. Levaram-na de volta ao lar e casaram-na com Jairo, apesar da diferença financeira e de idade.

Com poucos meses de casado ele saía em busca de mulheres nas casas noturnas em bairros vizinhos, até que conheceu Maria Angélica cujo olhar se assemelhava ao da sua Verônica. Nos seus braços sentia-se em paz. A relação durou pouco mais de um ano. Afastou-se, sem explicação, temendo se aprofundar naquele sentimento. Ana Clara não se importava com as ausências do marido, distraía-se criando pequenos bonecos de fantoches e encenava peças para as crianças, filhos dos empregados, alimentando assim, sua paixão pelo teatro, até que o rumo dos acontecimentos veio mudar a sua vida.

Jeremias cresceu sob os cuidados exagerados da mãe. Com dez anos era um menino esperto, inteligente e determinado. Aos quinze anos se interessou por uma menina de quatorze aguçando o ciúme da mãe que se queixou aos pais da jovem e ameaçou levá-lo para o Colégio interno. As atitudes de Ana Clara com relação ao filho eram estranhas. À noite, levava-lhe chá e passava a maior parte do tempo na sua cama, contando-lhe histórias que aprendera com o grupo mambembe, como se ele ainda fosse uma criança. Recolhia-se aos aposentos pela madrugada.

Numa tarde de outono um homem robusto de cabelos grisalhos, acompanhado de uma jovem, de nome Jussara, chegou à fazenda interessado na compra de bois de corte. Assim que Jeremias a viu apaixonou-se por ela, que retribuiu, para desconforto de Ana Clara que a tudo presenciou e, irritada, afastou-se. A partir desse dia, sua vida tornou-se um inferno. Sofria ao ver seu querido filho enrabichado pela rapariga, não lhe dando a mesma atenção. Desesperada, criava situações embaraçosas sempre que Jussara ia visitá-lo. O pai se desculpava pelas grosserias da esposa, alegando ciúmes por ser ele filho único e, em muitas ocasiões, chamava-lhe a atenção para os excessos que cometia nas atenções ao rapaz, como se ele ainda fosse um menino. Além de não atendê-lo, Ana Clara acusava-o de estar com ciúmes e a relação entre eles era cada dia mais difícil.

Num domingo com família reunida para o almoço, Jeremias, então com dezoito anos, anunciou o casamento com Jussara que estava presente. O pai deu-lhes os parabéns e, para surpresa de todos, Ana Clara felicitou-os indagando a data da cerimônia.

— Será daqui a seis meses, — respondeu Jeremias — tenho outra notícia também, embora esta, talvez, não seja tão agradável. Após as núpcias vamos morar na Capital, perto dos pais dela que ainda não conheço. Pretendo continuar os estudo e me formar em advogado como o meu pai, esta sempre foi a minha grande paixão, mas viremos visitá-los sempre.

Ana Clara, lívida, nada disse. Jairo protestou, veementemente, pela primeira vez.

— Não posso permitir, afinal você foi criado para substituir-me nas tarefas desta fazenda que é seu patrimônio. Você pode muito bem estudar, se é esta a sua vontade e continuar morando aqui. Por que está encantado com o que não conhece? Só por ouvir falar? Agora que não precisa dos nossos cuidados nos abandona?!

— Pai! Por que essa exaltação amorosa agora? Você, pelo que sei, nunca me amou, sempre me tratou à distância. Não me lembro de receber um carinho seu e...

— Se insistir nesta estupidez, deserdo-o. Levantou-se, mas antes lançou um olhar de revolta contra Jussara que se sentiu responsável pela discórdia, todos perceberam. O clima, tenso, gerou mal estar. Ana Clara nada disse, limitou-se a observar. Jeremias saiu com a noiva e só retornou pela manhã. Assim que entrou, comunicou a decisão de ir embora na segunda-feira próxima. O pai olhou-o com severidade. A mãe deu-lhe um abraço silencioso.

No dia aprazado despediu-se da mãe e foi esperar a noiva na porteira quando a viu correndo em sua direção, em seguida cair. Ele a socorreu achando tratar-se de um tombo qualquer. No momento em que a levantou, suas mãos encheram-se de sangue. Estava morta. Levara um tiro na nuca. Desesperado adentrou à fazenda com a jovem nos braços chamando o pai de assassino e, antes que algo fosse feito, muniu-se de uma espingarda e deu vários tiros em Jairo que caiu indefeso.

CINCO ANOS DEPOIS

Jeremias saiu da prisão e voltou à fazenda, com 23 anos e muita amargura no coração. Entrou na sala e se surpreendeu ao ver o pai num cadeira de rodas, um tiro afetara sua coluna e, mesmo assim, dirigiu-lhe palavras ofensivas e cheias de ódio.

— Pensei que tivesse morrido por isso voltei, mas não se agaste, vou falar com mamãe e irei embora.

— Espere, sua mãe não está aqui.

— Onde ela está? Fale rápido, não agüento olhar pra você por mais tempo!

— Se acalme, meu filho.

— Não me chame assim, não sou seu filho.

— Foi o que pensei, por 18 anos.

— O que você está dizendo?

— Vou contar-lhe uma longa história.

— Não quero ouvir suas lorotas...

— Acho bom ouví-las, diz respeito a todos nós. É importante.

— Se for breve. Não é meu desejo ficar muito tempo aqui.

— Na noite de ... — Jairo narrou os acontecimentos da madrugada do dia 25 de janeiro de 1934. — Depois da tragédia que o levou a prisão, fiquei entre a vida e a morte, por seis meses. Ana Clara esteve ao meu lado durante todo o tempo. Mais tarde disse-me que contratara advogado para defendê-lo, mas não evitou sua condenação. Um dia antes de deixar o hospital fui procurado por uma mulher de meia idade. Reconheci-a pelos olhos. Seu nome é Maria Angélica e, quando jovem trabalhava numa casa noturna onde eu freqüentava e, por quase um ano, foi exclusividade minha. Contou-me que engravidara num dos nossos encontros amorosos. Como eu não voltara, achou melhor ocultar o fato por eu ser casado. Abandonou o trabalho, passou dificuldades, conheceu um próspero comerciante disposto a se unir a ela, mas tinha uma condição: teria de dar o filho, que trazia no ventre para a irmã dele, casada e infeliz devido à impossibilidade de ser mãe. Sem outra alternativa concordou e, naquela noite o casal descia a serra de Friburgo com destino a São Paulo onde moravam, para registrar a criança como filho deles, quando tudo aconteceu. Maria Angélica sempre soubera onde você estava pelas condições do acidente. Contratara um detetive que a informara dos detalhes, mas achou melhor não interferir já que o destino se encarregara de unir pai e filho. Ela só não sabia que Jussara, sua filha com o comerciante, que passava as férias com o avô, se apaixonara pelo seu meio irmão.

Jeremias levantou-se num salto — Minha irmã! Você está dizendo que Jussara era minha irmã! E que minha mãe não é minha mãe! Não posso acreditar nisso. Você está mentindo. Você mandou matá-la para que eu não fosse embora e, para se justificar, inventou toda essa história. Não acredito em você. Mentiroso!!!. Gritou.

— Eu não a matei, e posso provar o que digo.

— Então, quem foi?

— Ana Clara.

— Minha mãe! Ficou maluco? Mãe!... -Levantou-se e percorreu a casa, não a encontrou. Voltou à sala — onde ela está? Você também a matou?

— Acalme-se, a história ainda não terminou. Ana Clara, no seu leito de morte, corroída pelo remorso, confessou-me que pagara a um capataz para eliminar Jussara. Não suportaria vê-lo ao lado de outra mulher. Sentia ciúmes doentio. Estava apaixonada por você. Eu desconfiava, mas não me importava. Ignorávamos, na ocasião, que você fosse meu filho. Jeremias com feições alteradas pelo ódio contra o pai inquiriu-o revoltado:

— Ela morreu de quê? Se é que pode explicar!

— De parto. Teve uma menina.

— De parto? Que estupidez é essa? — cada vez mais confuso.

— Ainda no hospital, mas recuperado da cirurgia, observei a transformação do seu corpo. Estava mais gorda e com uma barriga pequena e pontiaguda, o que não era natural nela. Nada disse naquele momento. Quando voltamos para casa obriguei-a a confessar. Queria saber de quem era aquele filho. Meu, tinha certeza que não era. Estávamos afastados há algum tempo, ou melhor, desde que você completara 15 anos. Ouvi o que mais temia. Era seu. Todas as noites leva-lhe chá de papoula, alucinógeno, os preparava bem fracos, só para ter relações sexuais e você não perceber, alegando ser relaxante e passava a maior parte da noite no seu quarto ... Jeremias interrompeu-o desesperado.

— Lembro-me desses chás, mas não sabia que eram alucinógenos! Lembro-me também das histórias interessantes do grupo mambembe que ela sempre contava. Não posso acreditar no que você diz, minha mãe não pode ter sido esse monstro que você está retratando!

— Ela não era um monstro, era uma mulher que não teve a oportunidade de conhecer o amor. Casamo-nos por imposição dos nossos pais. Sua grande paixão era o teatro, mas foi-lhe negado. Quando você chegou ela transferiu esse sentimento de maneira intensa, como em tudo que fazia, não avaliou as conseqüências. Inúmeras vezes a alertei sobre o perigo de criá-lo com tanto mimo, julgando tratar-se de amor materno. não pensei que chegasse a extremos. Neste momento uma menina entrou correndo na sala, acompanhada de uma babá.

— Vovô, vovô...

— Querida! O papai voltou de viagem... Ela olhou para Jeremias.

— Você é meu papai? Ele, perturbado afagou seus cabelos.

— Como é o seu nome?

— Verônica. O seu é Jeremias, vovô me disse; por que demorou tanto pra chegar?

— Quantos anos você têm Verônica?

— Quatro anos.

— Está no colégio?

— Estou ... Jeremias prolongou a conversa até sentir total controle das suas emoções. A menina se afastou com a babá e ele voltou a se entender com o pai.

— Por que você não me falou do nascimento da menina?

— Antes teria de contar toda a história, caso contrário, você não acreditaria, como ocorreu minutos atrás.

— Ainda estou desnorteado. Parece um pesadelo. Como vou dizer a essa criança que sua mãe era também minha mãe! Que loucura, meu Deus.

— Ana Clara não era sua mãe, mas o é de Verônica.

— Mas é como se fosse. Sempre a tratei como tal.

— Você tem toda a liberdade para decidir. Se fica e assume sua filha e o trabalho na fazenda ou se vai embora em busca do seu sonho, apoiarei qualquer decisão. Eu errei muito no passado e peço perdão por isso. Quanta coisa poderia ter sido evitada, meu filho, se é que posso chamá-lo assim. Jairo chorava.

Jeremias com os olhos molhados pelo pranto, enxugou as lágrimas que corriam pelo rosto do pai e disse o que ele mais esperava ouvir:

— Não chore pai, eu é que peço perdão pelo mal que lhe fiz. Se abraçaram ternamente e se perdoaram.


 

"TRIÂNGULO DE DOIS"

 

Uma linda tarde de sábado. O pôr do sol na praia é um quadro de indescritível beleza criado por Deus. Eu estava sentado num banco apreciando deslumbrado o brilho que se esvai como se tragado pelo mar que aos poucos vai sumindo para amanhã voltar.

A minha imaginação flutuou acompanhando aquele movimento e pensei: como seria bom se a mulher que amo fosse como o sol, que volta sempre! Se realmente existem outros mundos, eles terão também o privilégio de tão belo cenário? Acredito que sim. Deus não iria criar tamanha grandeza só para um se deleitar. Como será viver em Júpiter? Por exemplo, como será morrer e viver novamente? Que sentimos quando morremos: sofremos? Como o espírito se sente em relação à morte do seu corpo? Em que momento descobre que está morto?

Todas essas perguntas não eram propriamente uma preocupação e sim divagação da mente.

Naquela noite fui dormir ainda com aquele panorama que sempre impressionava-me e sonhei: sonhei com uma linda jovem de cabelos esvoaçantes e olhos brilhantes, de gestos suaves pegando na minha mão. Saímos, fomos parar em mundo distante. Todos que lá estavam não andavam, flutuavam, inclusive eu. O falar algumas vezes era por sinais. A sensação era de paz. Continuamos caminhando até chegarmos em uma zona que não era tão boa assim. A minha fada disse-me:

— Agora você fica aqui, alguém virá encontrá-lo.

Surpreso, vi ao meu lado o grande amor da minha vida. Petrificado a olhava. Ela comovida envolveu-me em seus braços expressando-se assim:

— Como vai o maior amor da minha vida?!

— Midi! — Assim a chamava — que faz aqui?

— Moro aqui! Você foi trazido para conhecer a verdade do que aconteceu. Venha!

Aproximamo-nos de um homem deitado numa cama.

— Lembra-se de Juliano?

Fiquei paralisado com a figura tão estranha do meu antigo desafeto. O homem que provocou toda a tragédia das nossas vidas alí estava esquálido, olhos esbugalhados e vermelhos que pareciam saltar das órbitas. Era um pavor. Não falava, contorcia-se numa atitude de dor e emitia gemidos alucinantes. Olhei em volta e vi outros seres que mais pareciam bichos enjaulados. Eram espíritos que se alimentavam de ódio, ainda não tinham encontrado o amor. Tudo me foi revelado na ocasião.

O impacto foi tão forte que acordei. Sentei-me na cama assustado e lembranças de um passado sofrido e distante tornaram-se vivas na minha mente.

Éramos jovens, Juliano, Midi, na realidade seu nome era Midiane e eu, Roberval. Estudávamos na mesma faculdade. Midi e eu namorávamos desde os doze anos de idade. Estávamos com vinte quando estourou a Segunda Guerra Mundial,(...)Teve início, propriamente, com a invasão da Polônia pelos Alemães no dia 1º de setembro de l939, mas foi no ano seguinte que a guerra começou. Dispostos a interceptar remessas de alimentos e matérias-primas para a Inglaterra e os Estados Unidos, os nazistas, sem nenhuma declaração formal de guerra, empreenderam uma campanha submarina no Atlântico, na qual atacaram sem aviso, de l5 a l7 de agosto de l942, cinco navios brasileiros. Esse ataque, que custou inicialmente ao país 607 vítimas, obrigou o governo brasileiro a abandonar a neutralidade que vinha mantendo no conflito e, em janeiro de l942, foi anunciado o rompimento das relações diplomáticas e comerciais do Brasil com a Alemanha, a Itália e o Japão. Em meados de l944, sob o comando do general Mascarenhas de Morais, partiu para a Itália a Força Expedicionária Brasileira. O primeiro escalão da FEB, sob o comando do general Zenóbio da Costa, desembarcou em Nápoles, a 16 de julho de 1944, onde foi incorporado ao 5º Exército Americano. Dirigiu-se para o Norte da Itália onde se desenvolveria a ofensiva aliada entre os rios Arno e Pó. (...)da qual eu fazia parte.

A despedida foi sofrida. Nunca até aquele momento havíamos nos separado, éramos um só, completavamo-nos em todas as formas, gostávamos das mesmas coisas, nossos pensamentos cruzavam-se num desejo único. Tínhamos nascido para ficar juntos. E agora? Como faríamos com tanta distância a nos separar? Prometi entre soluços e muita angustia que voltaria para ela, e a saudade já começava a doer no peito. Quando o navio começou a se afastar ela desmaiou, gritei seu nome correndo de um lado para outro sem ter como socorrê-la. Senti uma picada em meu braço. Quando me dei conta estava no camarim sendo atendido por um companheiro. Levantei-me e fui até o convés na esperança de vê-la novamente mas só vi água diante dos meus olhos. Fiquei ali chorando, misturando as minhas lágrimas àquele oceano que nos separava.

A revolta tomou conta de mim e indagava entre soluços: Por que a ambição dos homens os leva a extremos como esse, matando uns aos outros? Os homens criam as guerras e separam os amantes.

As cartas iam e vinham todos os dias, quanto mais falávamos do nosso amor mais tínhamos a falar. As juras ardorosas carimbavam o papel com as lágrimas que caíam pelo pranto incontrolável da saudade.

Numa batalha fui gravemente ferido na cabeça e abandonado pelos companheiros à beira do rio, por me considerarem morto. Fui recolhido dois dias depois por homens que vasculhavam os locais de conflitos na esperança de algo valioso.

Levaram-me para casa de família brasileira, composta de um casal, dois filhos, uma moça e um rapaz adotado por eles quando ainda criança.

Muito tempo depois fiquei curado dos ferimentos, porém sem memória. Por mais que me esforçasse para recordar de algum acontecimento passado nada conseguia, só via o momento presente. Não me lembrava de nada, nem da guerra. Ensinaram-me a falar, a caminhar e, tempos depois, a trabalhar para que eu me sentisse útil junto àquela família tão bondosa.

Durante muito tempo intercederam a meu favor junto ao Consulado Brasileiro. Tudo em vão, um homem sem memória e sem documentos não é nada, não tem Pátria nem família, não existe. Assim permaneci fazendo parte daqueles que passei a considerar como irmãos por dez anos.

Certo dia trabalhava com os companheiros na feitura de massas, atividade de sustento das famílias da região que me encontrava, quando minha atenção foi voltada para um fato que, naquele momento, não atinei com a importância, porém mais tarde verifiquei a relação com meu passado.

Meridiana, a filha caçula da família, na época com quinze anos, traçou no chão um triângulo, cortou uma das pontas permanecendo somente duas e escreveu “Triângulo de Dois”. Algo na minha cabeça estalou, senti forte dor, cambaleei, continuei a olhar fixamente aquela figura, tentando descobrir porque me fascinava tanto algo tão simples.

A partir daquele momento passei a associar o nome “Meridiana” a figura formada por ela. Depois de longos meses imagens se formaram na minha mente e vi, com alguma nitidez, algo distante. Eram três jovens desenhando no chão, mais parecia um colégio, a mesma figura, com os mesmos dizeres. A partir daí o passado foi aos poucos se tornando mais vivo. Já não era mais um ninguém.

A minha situação junto a Marinha foi restabelecida e, quando finalmente voltei à minha pátria fui procurar Midi. Surrei sua porta aos gritos.

— Estou aqui! cheguei Midi! Abra a porta!

— Uma vizinha vendo minha angústia disse-me:

— Não tem ninguém ai. Deu-me outro endereço para onde me dirigi. Bati à porta com tanta insistência que logo foi aberta e Midi surgiu. Olhava-me paralisada, depois atirou-se nos meus braços e choramos emocionados. Ao nos afastarmos notei o volume do seu ventre e, antes que pudesse indagar sobre a situação, ela passou a narrar todo o acontecido na minha ausência.

Esperou-me por muitos anos, minhas cartas a enchiam de esperança e a consolavam nos seus tristes dias. Quando elas não mais chegaram entrou em profundo desespero, foi ao Ministério da Marinha, ao Consulado Italiano, Consulado Brasileiro, escreveu, telefonou, implorou por notícias minhas. Não obteve nenhuma resposta favorável. Passou longas noites chorando e pedindo a Deus que me devolvesse para ela.

Certo dia, continuou ela, uma correspondência chegou. Abriu-a freneticamente pensando ser minha mas... “Não temos notícias do oficial Roberval, achamos... estar morto.”, ela desmaiou e ficou entre a vida e a morte num hospital. Submeteu-se a um tratamento com um neuro-psiquiatra por três anos. Juliano estava sempre ao seu lado, ajudando-a com seu afeto, se assim não fosse teria morrido, afirmou. Casaram-se um ano antes da minha chegada por muita insistência dele, mesmo sabendo que não o amava. Estava com cinco meses de gravidez.

Um sentimento de perda e mágoa abateu-se sobre mim e uma profunda dor apertou meu peito. Quase desfaleci. Chorei, chorei profundamente, ela também. Saí dali rapidamente, fui para casa ter com os meus que ainda não sabiam da minha volta.

Dias depois, mais centrado nos meus sentimentos voltei e pedi que ela fosse embora comigo, não podíamos viver separados, estávamos comprometidos pela eternidade.

Midi emocionada abraçou-me e confessou-me que ainda me amava. Sua vida foi atormentada por grande saudade e por viver ao lado de um homem que nos momentos mais íntimos pensava ser eu. O filho que esperava só podia ser meu, embora geneticamente fosse dele, porque no aconchego da sua cama era comigo que ela estava. Difícil a convivência quando não há amor. Juliano era bom, fazia de tudo para vê-la feliz, afirmava. Como iria dizer-lhe que era comigo que desejava ficar se estava casada com ele? Só estava por amizade e por pensar que eu jamais voltaria. Não encontrava solução e pedia a Deus que a ajudasse e a orientasse.

— Vamos fugir para bem longe, — disse-lhe — Prometo criar o bebê como meu filho. Ela ponderou, primeiro conversaria com Juliano e pediria a separação de maneira amigável.

Mas a questão não foi tão simples quanto nos parecia. Juliano, apesar de todas as explicações e pedidos, não cedeu. Afirmava que estavam casados e continuariam assim para o resto das suas vidas. Não abriria mão dela porque a amava e passou a vigiá-la em todos os lugares por onde ia, num ciúme quase feroz.

Não suportando mais aquela situação mandei-lhe um recado para que fosse encontrar-me no nosso esconderijo da época do colégio, uma gruta na montanha do outro lado do rio — estaria esperando-a por todo o dia, ansiosamente.

Ela chegou, às quinze horas um minuto e dez segundos. Eu estava na porta da gruta e corremos um para o outro sentindo a mesma satisfação de quando éramos crianças. Nos amamos com docilidade, nossos toques eram suaves, nossas bocas se tocavam num beijo doce e prazeroso. Nosso amor era tão intenso que ouvíamos música tocando ao longe, embalando este sentimento tão sublime. Assim ficamos por algumas horas. Ela levantou-se. Chegou o momento da sofrida despedida. Nos encontramos muitas outras vezes no mesmo lugar.

Um mês mais tarde a situação permanecia inalterada. Juliano não cedia às suas súplicas e cada vez mais se tornava obsessivo no seu ciúme incontrolável, nada o movia daquela atitude insana.

Num dos nossos encontros decidimos que o melhor para todos seria fugirmos.

Acertamos nossa fuga para dois dias depois. Nos encontraríamos na gruta às 10 horas, iríamos para o aeroporto que ficava bem distante e viajaríamos para outro Estado onde ninguém pudesse nos encontrar. Viveríamos felizes para sempre. Midi, o bebê e eu. Quanta ingenuidade!

No dia da partida estava tão excitado com a expectativa de ficar para sempre ao lado da mulher amada que levantei-me às cinco horas e olhava o relógio a cada minuto, desejando que as horas voassem tal qual meu pensamento. Mal podia esperar o momento de unir-me a ela para sempre.

Na hora combinada dirigi-me à gruta e lá chegando ouvi vozes, estranhei. Desci do carro e entrei com cuidado e, para minha surpresa, deparei com Juliano aos pés de Midi, chorando convulsivamente e pedindo que não o abandonasse, que a perdoaria pela traição mas que ficasse com ele pois não podia viver sem ela.

Midi, comovida, afagou sua cabeça e pediu-lhe que compreendesse que o amor dela por mim era grandioso desde a infância e que ele, Juliano, sempre soube, mas quis o destino experimentar a força daquele sentimento com uma separação tão longa. Suplicou-lhe que concordasse com a nossa partida e Deus o abençoaria. Do contrário, seriam muito infelizes. Ele deu um pulo para trás tal qual um gato e numa rapidez impressionante puxou um revolver e gritou: — Nunca!

Nesse exato momento, num salto coloquei-me na frente de Midi. A bala atravessou as minhas costelas e foi localizar-se no seu coração. Soube depois que Juliano suicidara-se com um tiro no ouvido.

Pescadores ouviram os estampidos e nos socorreram, fui operado e fiquei no hospital em coma por várias semanas. Quando finalmente acordei e chamei por ela, fui informado do ocorrido: Midi havia morrido na hora e o bebê, com oito meses de gestação também não resistiu. Minha dor foi tão profunda e meu desespero tão intenso que o ferimento agravou-se pelo esforço e luta corporal, com os enfermeiros para sair dali e encontrar-me com ela. Fui dopado e mantido naquela situação por várias semanas.

Quando voltei para casa era um homem sem forças. Um velho, aos trinta e um anos. Meus cabelos embranqueceram, minha pele enrugou, meus olhos perderam o brilho, meu corpo se curvou. Sem ela a vida perdera o encanto. Meus familiares não me deixavam sozinho com receio de uma atitude impensada. Já não mais chorava, mantinha-me sentado em uma cadeira de balanço junto à janela do quarto, calado, olhar no vazio e sem nada sentir, estava acabado. A vida não me interessava, tudo era muito triste sem Midi.

Essas recordações tão vivas após quarenta anos trouxeram-me novamente lágrimas aos olhos sem vida e soluços ao meu peito ainda tão dolorido.

Voltei a dormir. A mesma jovem chegou, segurou a minha mão e saímos como se estivéssemos voando qual pássaro dentro da noite. A lua no seu silêncio parecia nos espreitar e aprovar; a sensação era de muita paz. Chegamos no mesmo lugar de antes e fomos a um compartimento cujas paredes eram pintadas de um azul tão suave e brilhante que pareciam transparentes. Próximo a uma grande janela uma pequena mesa com tampo branco e um jarro com lindas rosas vermelhas. Olhei para o exterior e vi uma belo jardim colorido, banhado pela luz da lua. Belíssimo!!...

Minha boa fada pediu-me que aguardasse.

Instantes depois Midi entrou, abraçou-me comovida e passou a narrar fatos até então desconhecidos para mim.

Disse-me que nossas vidas se cruzaram por várias encarnações. Tudo começou no século IX. Juliano era um imperador e ela sua noiva. Estavam com o casamento marcado quando nos vimos. Eu era um vassalo. Apaixonamo-nos intensamente e fugimos. Juliano jurou que nos mataria e nos perseguiu durante toda a nossa vida na terra. Nos trouxe grandes sofrimentos, “só não o fazendo no plano espiritual por nos encontrarmos em faixas de vibrações diferentes”.

Reencarnamos muitas vezes mais, sempre os três juntos, precisávamos resgatar nosso passado. Juliano, no plano espiritual, era tratado e cuidado para aceitar nosso amor. Se comprometia nessa aceitação, porém no plano terreno se envolvia cada vez mais numa paixão desenfreada e sem limites até que, na última encarnação, chegou a extremos e hoje está sofrendo as conseqüências dos seus atos. Continuando, Midi alertou-me para não odia-lo, se possível rezar muito por ele, só assim se libertaria daquele remorso que corroía sua mente doente. Ela, por sua vez, tudo faria para amenizar seu sofrimento ficando ao seu lado, confortando-o e ajudando-o a entender que só por amor podemos ser felizes e dirigiu-se a mim afetuosamente: — Não sofra mais, amor. Na próxima reencarnação estaremos juntos novamente e em paz, com a graça de Deus.

De manhã quando acordei fiquei a refletir sobre os acontecimentos da noite. A dúvida assaltou-me. Levantei-me e, para minha surpresa, vi sobre a mesinha de cabeceira, uma rosa vermelha linda, fresca e salpicada de orvalho.


 

©2001,2006 — Cleusa Sarzêdas
cleosarzedas@uol.com.br

eBooksBrasil.com

__________________
Agosto 2001

Proibido todo e qualquer uso comercial.
Se você pagou por esse livro
VOCÊ FOI ROUBADO!

Você tem este e muitos outros títulos
GRÁTIS
direto na fonte:
eBooksBrasil.org

Edições em pdf e eBookLibris
eBooksBrasil.org
__________________
Março 2006

 

eBookLibris
© 2006eBooksBrasil.org