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Coletâneas

Eduardo Prado

www.eBooksBrasil.org

 

Coletâneas
Eduardo Prado
[Eduardo Paulo da Silva Prado]

© 2016 Eduardo Paulo da Silva Prado

Versão para eBook
eBooksBrasil

Fonte Digital base
Edição de 1904
escaneada por
books.google.com

Atualização ortográfica e edição
eBooksBrasil.org


 

Nota do Editor

«Quem controla o passado, controla o futuro.
Quem controla o presente, controla o passado»
George Orwell

 

Ainda sob o impacto da releitura das propostas do MEC para uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em janeiro de 2016, recomendo, com insistência, a leitura deste e de outros livros como este, principalmente aos que tiveram o infortúnio de estudar a História do Brasil só nas escolas, nos últimos 150 anos.

No caso, o leitor tem, à sua frente, crônicas que retratam um período histórico, visto pelos olhos de alguém que não tinha motivos para aplaudir o golpe de novembro de 1889.

É, quanto menos, uma leitura instigante, principalmente quando conferimos acontecimentos posteriores com as previsões do autor.

A ortografia foi atualizada, para benefício dos leitores que poderiam ser afastados do conteúdo pela ortografia d’antanho. A formatação foi sendo feita à medida em que relia as crônicas e, sinceramente, por mais que o texto seja interessante, dispensei-me de uma terceira leitura. Assim, peço ao eventual leitor, desde já, a tolerância com eventuais falhas de digitação. A base para essa edição foi o texto da primeira edição, de 1904, generosamente escaneada por Google Books. Estudiosos e pesquisadores,com certeza, estarão melhor servidos acessando-a. Aos demais, espero que a leitura da presente edição seja mais confortável. Boa leitura!

Teotonio Simões
verão de 2016


 

NOTA

 

O presente volume 3.° da série sob o título geral — Coletâneas e o 3.°, que seguirá aquele, constarão dos artigos publicados pelo sr. dr. Eduardo Prado no Comércio de S. Paulo.

São divididos em 3 partes, compreendendo; a Iª os artigos de colaboração, que o eminente publicista escreveu para a seção geral Opiniões daquele jornal, quando sob a direção do sr. Cesar Ribeiro, em 1895; a 2ª, os que fez publicar, já na fase monarquista da mesma folha, quando sob sua propriedade, até o empastelamento, em março de 97; a 3ª, os seus escritos até à data de seu falecimento.

O presente volume comporta os artigos escritos desde outubro de 1895 até dezembro do ano seguinte, cabendo ao 3º volume os artigos publicados de 97 em diante.

 

S. Paulo, dezembro de 1904.

 

A Revisão


 

Artigos - I PARTE


 

 

O BANQUETE MONARQUISTA

Seção Opiniões — Comércio de São Paulo, 24-10-1895.

 

Há uns vinte e cinco anos, vários paulistas reuniram-se numa pacífica cidade do interior de São Paulo, congregados na solidariedade do ódio e da cólera contra o governo de sua pátria.

A Monarquia nacional acabava de conquistar mais um título de benemerência, declarando livres os filhos das mulheres escravas. A Monarquia arrancara milhões de inocentes ao inferno da escravidão.

Os homens que então se reuniram em Itu eram escravocratas e, por ódio ao Império libertador, fizeram-se republicanos. Era natural. O Império era a liberdade e, por isso, foram eles para a República, coisa que na América do Sul quer sempre dizer o confisco de todas as liberdades. E foram aqueles homens, reunidos a outros, formar um partido, cuja política consistiu numa mendicidade de mais de vinte anos à porta dos quartéis, em que aos soldados pediam a esmola de fazer por eles uma revolução, coisa de que eles mesmos não seriam capazes. Em má hora cedeu o soldado à insistência, e desse momento datam todas as desgraças que tanto têm aviltado e infelicitado o pobre Brasil.

A maioria da nação tem tolerado todos os crimes. E é coisa de espantar a rapidez com que o brasileiro parece ter-se desabituado da liberdade, que, durante mais de sessenta anos, lhe dera o Império.

Tão profunda, tão completa foi a mudança, que, numa parte do território nacional, uma população inteira que abandonara os seus lares, fugindo aos verdugos da República, para animar-se a voltar, exige uma promessa especial e solene, exarada em tratado, de que seriam respeitadas a sua vida e a sua propriedade. E o presidente que faz esta promessa é coroado de flores. O presidente diz: «Eu vos prometo que não sereis assassinados, nem roubados», e nós todos nos extasiamos diante da clemência desse homem! Tão naturais parecem hoje o assassinato e o roubo cometidos pelas autoridades, que o não ser o cidadão morto, ou roubado, é já coisa considerada magnanimidade sublime por parte do poder público.

Se é assim, quando se trata do direito à vida, o mesmo se observa quanto ao direito à liberdade de pensamento.

Causa surpresa que alguém ouse dizer que pensa de modo contrário aos interesses dos dominadores. Diante da afirmação da ideia monárquica, há surpresa dos pusilânimes, já envilecidos na mudez que a tirania lhes impôs, mas há também o aplauso dos patriotas. Os que se deliciam com os estados de sítio, os que fazem profissão rendosa da legalidade, esses se enfurecem.

O fato é que a manifestação monárquica em São Paulo, por traduzir um sentimento latente, mas geralmente partilhado no Brasil, produziu grande impressão. Há uma semana que nos órgãos da imprensa, quer governista, oposicionista, ou neutra, no Senado Federal e em todos os círculos sociais, é a atitude dos monarquistas diversamente comentada.

***

O dr. Ferreira de Araújo disse, na Notícia, que, provavelmente, vão agora os monarquistas contar a seu modo a história do Império e que os republicanos devem estar preparados para responder. E devem, na verdade. Os monarquistas vão entrar em luta bem providos de documentos históricos sobre o antigo regime. Assim, por exemplo, quando tratarem da última fase da Monarquia, citarão eles os artigos do dr. Ferreira de Araújo sustentando, defendendo e elogiando o Ministério Ouro Preto. E, quando quiserem citar uma autoridade contra a República federativa, citarão ainda o dr. Ferreira de Araújo, que, quando adversário da federação, escreveu:.....

«a centralização política é indispensável à Monarquia, como será à República. Se o poder central não fizer sentir a sua influência em toda a vasta extensão deste país, chegaremos à impossibilidade de organizar um governo...»(1)

O ilustre jornalista constituiu-se o dr. Pangloss da República. Tudo quanto sucede diz ele que é uma grande lição e, em todo caso, é sempre um fato favorável e auspiciosíssimo para a República. Os monarquistas estão calados? Tanto melhor! É a prova da unanimidade com que é aceita a República. Agitam-se os monarquistas? Excelente! exclama o dr. Ferreira de Araújo; vamos discutir e demonstrar as vantageus do regime republicano. Tudo é um sucesso, tudo é uma ventura para a República.

E, no meio de tanta felicidade, a República, cada vez mais malsinada, vai arrastando o país de tombo em tombo, atrás do cavalo histórico (ele também!) que o sr. Bocaiuva montou a 15 de novembro.

O ilustre articulista tem o singular costume de dizer — nós — sempre que fala da República.

Mas s.exa. não fez essa República federativa que aí está e que s.exa. até reprovava e condenava, como vimos. Não foi consultado pelos conspiradores de 15 de novembro, nem podia sê-lo, na sua qualidade de jornalista favorável ao governo Ouro Preto. Não esteve no Quartel General e, menos feliz do que o sr. Patrocínio, não pôde chegar a tempo à Câmara Municipal, onde este jornalista e outras pessoas foram fingir que proclamavam a República, que, na verdade, foi feita só e só pelos batalhões revoltosos. E o ilustre escritor a dizer sempre nós, nós... Diga antes: eles quiseram, eles fizeram, enfim, eles e sempre eles, e não, nós. O distinto jornalista nada fez. Não diga, tampouco, com modéstia descabida: os nossos erros, as nossas faltas etc., quando falar dos erros da República. A verdade é que s.exa., não tendo tido nem parte, nem influência no governo, em nada tem errado, nem acertado.

***

Também tratou do banquete monarquista o sr. Alberto Torres, escritor mandado ao Congresso como deputado pelo entusiasmo dos povos.

Diz o sr. A. Torres que os propagandistas republicanos, antes de assistirem a banquetes, davam passos mais arriscados.

A esse propósito, cita Tiradentes e o sr. Silva Jardim. A história é muda quanto aos banquetes a que assistiu, ou deixou de assistir, Tiradentes. O sr. Silva Jardim, no tempo da sua propaganda, assistiu a muita ceia e a muito jantar organizados pelos republicanos. Foi entre nós o último propagandista político que se aproveitou da ampla liberdade que o Império sempre deu ao pensamento e à ação dos seus adversários. Se o propagandista não tivesse perecido nas sulfataras do Vesúvio e viesse ao Brasil fazer propaganda contra o sr. Floriano Peixoto, teria passado por Tabatinga, Cucuí e outros lugares e estaria a estas horas enterrado nas areias da Copacabana, ou devorado dos abutres, nos despenhadeiros do Paraná.

Se tem havido, ou não, monarquistas capazes de morrer pela sua ideia, que respondam e falem as muralhas desfeitas de Villegaignon e as sangas de Campo Osório.

E não venham com a pergunta: onde estavam os monarquistas, no dia 15 de novembro?

Estavam em suas casas, confiados na paz pública, a que a Monarquia acostumara os cidadãos, havia mais de meio século, e ignoravam a imensa perfídia que se tramava.

E onde estariam os republicanos a 16 de novembro, se o futuro legalista, o sr. Floriano Peixoto, não se bandeasse para os revoltosos de então e tivesse ordenado fogo contra o infeliz Deodoro, hoje tão diminuído e esquecido dos republicanos? O homem, porém, entendia que a verdadeira legalidade era só a sua e só soube defender a legalidade, quando, defendendo-a, defendia-se a si próprio.

Não era legalidade para ele o governo da Monarquia, não era legalidade o Congresso, cuja dissolução por Deodoro ele aprovou, e mostraria o caso que fazia da legalidade do sr. Prudente de Morais, se a morte não o tivesse levado à presença do Juiz que conta as lágrimas dos órfãos e das viúvas e pesa o sangue das vítimas.

***

No Senado Federal, também tratou do banquete monarquista o sr. Morais Barros, e as suas palavras têm significação, já pelo próprio sr. Morais Barros, já por serem palavras do irmão do presidente da República. As palavras que ele pronunciou foram nobres, dignas e patrióticas.

O sr. Morais Barros, depois de descrever a ruína das finanças republicanas, disse que era indispensável mostrar ao país que os monarquistas não tinham razão. Disse mais: que o único meio de vencer os partidários da Restauração era «tornar a República honesta».

Reconhece, portanto, s.exa. que a República não tem sido honesta e, por isso, quer corrigí-la, regenerando-a. Difícil empresa propõe s.exa. aos correligionários!

Que faz uma boa dona de casa, quando descobre que a cozinheira é ladra e desonesta?

Despede a cozinheira.

Ora, o sr. Morais Barros reconhece que a República tem sido desonesta e tem dado prejuízos ao país.

S.exa., porém, não quer que o país despeça a República. S. exa. quer esta difícil coisa, isto é, que a cozinheira infiel se transforme numa mulher honesta. Nós, os monarquistas, isto é, a maioria do país, interessados na economia doméstica da família brasileira, entendemos que, depois de uma longa experiência de seis anos, o melhor é despedir a cozinheira, isto é, a República.


 

UM PALADINO DA REPÚBLICA

Seção Opiniões — Comércio de São Paulo, 2-11-1895.

 

Não quero discutir o sr. Ferreira de Araújo com ninguém e, muito menos, quero fazer uma coisa sem graça, nem cortesia, como seria o discutir sobre s.exa. com s.exa. mesmo.

Trato de um assunto que tenho o mau gosto de achar um pouco mais interessante do que a pessoa do sr. Ferreira de Araújo. Preocupa-me a situação da Pátria, que s.exa., no final do seu artigo, no Estado de S. Paulo, diz estar à beira de um abismo.

A imagem não é (desculpe s.exa. a minha franqueza) lá das mais novas, ou originais. Desta vez, porém, é verdadeira.

Ora, o sr. Ferreira de Araújo não dizia isto no tempo do Ministério Ouro Preto. E, se o não dizia, e se é perspicaz, sincero e patriota, como deve ser quem por gosto escolhe a profissão de escritor público, era porque não havia naquele tempo abismo, nem beira de abismo. Segue-se, portanto, que o país chegou-se, ou foi arrastado à referida beira do aludido abismo, no período decorrido entre o Ministério Ouro Preto e o dia de hoje, isto é, durante a República.

Ora, devemos todos odiar, por patriotismo, um regime com o qual, na opinião dos próprios partidários desse regime, a nossa Pátria foi levada à beira de um abismo,

Estamos, pois, na opinião do sr. Ferreira de Araújo, à beira de um abismo. E parece que isto é a pura verdade. Não entra aí exageração, nem literatura. Se entrasse, de certo o escritor escolheria uma imagem menos batida e prudomesca.

O que aconselha, porém, o publicista republicano? Aconselha somente ao Brasil que não retroceda, e exclama: Para trás, não!

Pergunto eu a todo o mundo: Quem chega bem à beira de um precipício e sente já a vertigem da queda fetal, o que instintivamente fez para não perecer? Recua e retrocede.

É o que o Brasil deve fazer e há de fazer. Há de voltar ao sistema político que, por tanto tempo, o conservou longe do abismo, a cuja beira chegamos com a República, segundo a autorizada opinião do nunca assaz citado sr. Ferreira de Araújo.

Este escritor, porém, entende que, uma vez à beira do abismo, não deve a gente recuar. S. exa. é a favor da cambalhota no vácuo.

É a teoria do suicídio aplicada às nações. É uma teoria como outra qualquer.

***

Também incomodou ao escritor republicano uma referência que fiz à horoicidade de Saldanha e dos seus companheiros. Outros insultadores daqueles heróis, cujo martírio é hoje mais um remorso da República, negam agora que fossem monarquistas aqueles bravos.

O sr. Ferreira de Araújo duvida também. Pois duvida de mais uma verdade.

Eram monarquistas, e monarquistas morreram.

De outro modo, como explicar que toda a República, isto é, toda a sua imprensa, os seus Congressos, os seus governadores, os seus presidentes, em artigos, discursos, moções, decretos, mensagens e proclamações, tenham passado dois longos anos a chamar Saldanha e os seus de monarquistas, concitando contra eles o ódio dos sectários?

Esses homens, que tanto bradavam contra os revoltosos de Saldanha, o que é que eram, no fim de contas?

Eram mentirosos e caluniadores? Ou simples idiotas, incapazes de ver a realidade das coisas?

O sr. Ferreira de Araújo, espontânea e naturalmente identificado hoje com eles, poderá melhor do que eu dizer qual daqueles epitetos convém aos seus correligionários.

E é tudo quanto achei de interesse geral no longo artigo do sr. Ferreira de Araújo.

No mais, s.exa. limita-se a discutir a minha pessoa.

Não acho que o assunto seja muito interessante.

Devo deixar o meu antagonista discuti-la sozinho. Tendo de falar de mim, eu por certo que seria suspeito.

Notarei sómente dois pontos: 1º, diz o articulista que não inventei a pólvora; 2º, que andei centenas de léguas a cavalo, para não ser preso.

Tudo isto é verdade.

Todo o mundo sabe que quem inventou a pólvora foi o sr. Ferreira de Araújo, numa segunda-feira, à tarde. Ou seria o sr. Cassiano do Nascimento?

É verdade também que, no fim da revolta, entendendo eu que não seria da mínima utilidade para a minha causa ir eu para um cubículo da Correção e julgando que isto me seria particularmente desagradável e incômodo, fui à Bahia, para dali me escapar da América ditatorial, isto é, republicana, para a livre Europa, onde teria, como tive, a liberdade de escrever, que a República então me negava a mim, negava ao sr. Ferreira de Araújo e a todo o mundo.

Não me resignei, como s.exa., à perda dessa liberdade. Fiz essa viagem para readquiri-la.

Confesso que parte da mesma viagem foi feita a cavalo.

Parece que este ponto é particularmente importante para a História.


 

COISAS REPUBLICANAS

Seção Opiniões — Comércio de São Paulo, 8-11-1895.

 

Todos os anos, reúne-se o Congresso, e os cinco ou seis congressistas mais familiares com as quatro operações demonstram logo que a dívida é sempre muito grande e que, lá em baixo, na soma comparada das longas colunas das parcelas da receita e da despesa — os algarismos representativos do déficit se avolumam belamente e cada dia crescem e se multiplicam, à sombra protetora do manto augusto da República. Respondem outros oradores, concordando com as observações dos economistas do Congresso.

No intervalo, salva-se uma ou duas vezes a República, consolida-se a mesma outras tantas vezes, entra-se de quando em quando no regime da legalidade, experimenta-se a já vista e desacreditada panaceia da presidência civil, pacifica-se o país, pondo termo àquela singular guerra fratricida, que, sem dúvida, pela diferença do clima, ocasiona vertiginosos déficits no orçamento do sr. Rodrigues Alves e produz alterosos saldos no orçamento do sr. Castilhos.

E o câmbio desce mais um ponto e o preço da carne sobe mais de duzentos réis por quilo.

Prorroga-se o Congresso, prorroga-se o subsídio, e os congressistas que se ocupam do orçamento começam a comprimir o déficit, a apertá-lo, a cortá-lo e, depois, pegam na receita e começam a estirá-la, a estirá-la, puxando daqui e dali, pondo-lhe agora um remendo, logo um acréscimo, até que a receita fique grande, ao ponto de cobrir justamente o déficit, ou de lhe deixar apenas uma pontinha de fora.

No ano seguinte, reúne-se o Congresso e o déficit cresceu, cresceu, transbordou por todos os lados e a receita encolheu, encolheu, transformou-se num lencinho de assoar. Pegam outra vez no déficit, descompõem-no, chamam-lhe nomes feios, pisam-no aos pés e começam a puxar pela receita. Levam nisto seis, ou sete meses. Lá ficou outra vez o déficit a aparecer! Enfim, o conserto definitivo fica para o ano.

E a carne a subir.

***

A história das finanças republicanas não é longa, nem difícil de contar.

Vamos figurar a fortuna pública por meio de um algarismo qualquer. Digamos que, na manhã de 15 de novembro, o Brasil era possuidor de uma nota de 1$ooo, ou 27 dinheiros.

O partido republicano entendia que o regime monárquico não zelava bem daqueles 27 dinheiros, que não os guardava bem, que os estava gastando, desperdiçando, enfim, defraudando a nação.

Por amor daqueles dinheiros, isto é, para melhor garantir os mesmos dinheiros, que, por sinal, eram três de menos do que os célebres 30 da Escritura, entendeu o partido republicano que devia fazer uma revolução e confiar à República a chave da gaveta onde se guardava a fortuna pública. A República amarrou a chave à cinta.

A nação ficou de fora um pouco inquieta. Começou a ver entrar e sair caras suspeitas, bem conhecidas, que privavam com a República. A República, bradando sempre que a Monarquia esteve defraudando o país, tomou muitas medidas, para melhor guardar o dinheiro.

Fez mudar a fechadura da gaveta, pôs uma nova, americana, com muitos segredos, molas e combinações. Cá de fora, ouvia-se o ruído frequente da chave girando na fechadura e o ranger da gaveta. Enfim, a República dizia saber muito bem guardar o dinheiro e estar vigilante. O país foi criando confiança.

Hoje, passados seis anos, a nação deseja examinar a gaveta e ver os seus 27 dinheiros tão bem guardados pela República. Esta faz dificuldades em mostrar. A muito custo, a nação consegue a abertura da gaveta e — oh dor! oh surpresa! — só encontra 10 dinheiros!...

Quem tirou os dezesete dinheiros que faltam?

A chave da gaveta estava com a República. Só ela lidou com o dinheiro. Só ela é responsável.

***

A República, uma manhã, surpreendeu a administração monárquica.

Os republicanos entraram subitamente pelas repartições públicas. Sobre as mesas dos ministros acharam a correspondência aberta e por abrir. Penetraram no gabinete imperial, arrombando os móveis e tudo vasculhando. E o que acharam? Descobriram, por ventura, algum documento desonroso? Não. Nada, nada absolutamente acharam que prejudicasse a reputação de honestidade das administrações da Monarquia.

E não se pode duvidar que, no empenho de desacreditar os seus antecessores e adversários, os homens novos não tivessem escrúpulo em mandar publicar com ruído e espalhafato qualquer documento comprometedor que por ventura achassem.

Não sei se a administração republicana se sairia tão bem, como se saiu a Monarquia daquela surpresa. Facilmente admito, porém, para discutir, a absoluta pureza de todos os republicanos que têm gerido a fortuna da nação.

Diante do descalabro de hoje, os defensores da República só empregam um argumento de defesa da sua desacreditada causa:

Que o desastre financeiro provém do jogo e o jogo na Bolsa não foi criado pela República.

***

Responder que o estado de aflitiva penúria em que se acham as finanças da República provém do jogo, não é responder.

Em primeiro lugar, é preciso não confundir as finanças do Estado com a fortuna dos particulares. Os particulares jogaram e arruinaram-se, isto compreende-se. O Estado, porém, não jogou. Como se arruinou ele?

Foi com as medidas do primeiro ministro da Fazenda da República, respondem alguns republicanos. Mas os atos do sr. Rui Barbosa, hoje tão renegados, foram aplaudidíssimos pelos republicanos. Houve apenas uma ou outra voz discordante. Esses atos tiveram a aprovação do então imortal e naquele tempo ínclito Deodoro, foram aceitos como certos por toda a matemática do sr. Benjamin Constant, pelo sr. Floriano Peixoto, que mais tarde devia ser promovido a salvador da Pátria. Os outros dois ministros do Provisório, os generais cá da terra, ficaram mudos, a olhar com aprovação para a fachada do palácio financeiro erguido pela imaginação do sr. Rui Barbosa. Portanto, se foram perniciosos os atos deste estadista, a culpa não foi só dele, mas, sim, da República inteira, representada no governo provisório pelos seus mais aplaudidos e consumados artistas.

A desculpa da jogatina não é bem cabida e não serve para exonerar a República das suas culpas. Se é verdade que sempre houve especulação na Bolsa (e isto é próprio de todas as Bolsas), é inegável que o aparecimento da República exacerbou essa especulação e levou-a ao auge do frenesi, com aprovação do governo, com aplauso e até orgulho de toda a imprensa republicana, que apontava como obra da República aquilo que então apregoava como uma prova de riqueza e progresso e que hoje chama de jogatina, com ares de desprezo.

A Gazeta de Notícias publicou, nos primeiros meses de 1893, dois interviews financeiros com os srs. Glicério e Rangel Pestana. Ambos estes veteranos da República declararam que a nova forma de governo, para distrair da política o espírito da população, viu-se obrigada a fazer emissões, a favorecer o alargamento do crédito, a produzir a inflação do mercado, isto é, por outras palavras, a organizar o jogo. Disseram mais aqueles senhores que, no período crítico da sua infância, a República, para se popularisar, precisava agradar a muita gente, proporcionando-lhe ocasião de ganhar dinheiro. Esta confissão é importantíssima e não deve ser esquecida. Por ela vemos, testemunhadas por dois homens insuspeitos, estas verdades: que a República baquearia nos seus primeiros dias, se o espírito público se voltasse para o problema político. Em segundo lugar, vemos confirmada esta outra verdade:—que a fundação da República exigiu aquela vasta e colossal corrupção de todos os brasileiros.

Dizer, portanto, que o jogo foi a causa da ruína do país, é o mesmo que dizer que a República foi quem o arruinou, porque, para viver, precisou ela de sancionar, alargar e desenvolver o jogo, para o fim imoral de anestesiar e entorpecer o espírito público, que ela bem sabia ser-lhe contrário.


 

A RUÍNA FINANCEIRA DA REPÚBLICA

Seção Opiniões — Comércio de São Paulo, 14-11-1895.

 

A baixa do câmbio foi ontem o fato do dia no Rio, em Santos e em S. Paulo.

Alegrou os fazendeiros, mas causou no comércio verdadeiro desânimo.

Já produziram o que tinham de produzir de benéfico, em relação ao câmbio, os grandes fatores com que todos contavam para a valorização da depreciadíssima moeda da República.

Deviam atuar a favor da elevação do câmbio:

1º O empréstimo interno, destinado em parte ao resgate do papel moeda;

2º O empréstimo externo, que forneceu ouro ao governo em Londres;

3º A pacificação do Rio Grande;

4º A anistia;

5º A safra de café.

Todos os fatos acima citados criavam para o câmbio um conjunto de círcunstâncias favoráveis e evidentes. Se o câmbio está a 9, é graças a elas e não apesar delas.

Estaria muito mais abaixo, se não fosse mantido, como está, pelo influxo benéfico daquelas circunstâncias.

O público, porém, parece não ter uma nítida compreensão do caso.

***

Diz-se que o câmbio caiu em razão da divergência diplomática relativa à Ilha da Trindade.

Parece-nos errônea esta opinião. Na pior hipótese, isto é, na da Inglaterra ultimar o esbulho dos nossos direitos, não haveria motivo para pânico no comércio.

É certo que não teremos guerra com a Inglaterra. O prejuízo territorial será nulo com a perda da Trindade, sob o ponto de vista material e econômico, embora seja horrível o insulto feito aos brios da nação.

O capital e o crédito — e o câmbio é fenômeno ligado a um e a outro — não se alteram por motivos de ordem sentimental.

Todos sabem que, em plena questão Christie, no tempo da Monarquia, quando as nossas relações diplomáticas estavam cortadas com o governo inglês, levantou o Brasil um grande empréstimo na praça de Londres.

A especulação pode, acidentalmente e numa ocasião dada, influir até certo ponto no câmbio.

Não há, porém, especulação capaz de durar meses e anos seguidos e de só atuar num sentido. Se é a especulação que altera o câmbio, devia às vezes influenciá-lo no sentido da alta, o que não tem acontecido.

Não temos outro remédio senão conformar-nos com a triste realidade: o câmbio desgraçado que a República nos trouxe é a resultante das péssimas condições financeiras a que a mesma República tem reduzido o país.

***

O governo, se não cortar desde já um terço das despesas públicas, terá diante de si os seguintes alvitres:

a — Emitir papel moeda, isto é, aumentar até ao infinito a depreciação do meio circulante;

b — Não pagar os juros das apólices internas e externas;

c — Fazer o monopólio do café, como quer o muito republicano sr. Erico Coelho.

Aumentar os impostos é impossível. A matéria tributável está esgotada. A exageração dos direitos de importação tocou ao seu máximo limite.

Por um fenômeno bem conhecido dos economistas, a exageração do tributo produz a diminuição da renda do mesmo tributo. Diminui já, a olhos vistos, a renda das nossas Alfândegas. É o sinal irrecusável de que nada mais se conseguirá tirar destas. Todas as outras coisas tributáveis são do domínio constitucional dos Estados e a União não lhes pode tocar.

Quanto a diminuir as despesas, sabemos que isto é impossível. Os políticos opõem-se. É preciso não impopularizar a República no exército, onde maiores são essas despesas.

***

O governo terá forçosamente de ir procurar dinheiro onde há dinheiro, isto é, no café.

E por que modo?

Não o pode fazer por meio do imposto territorial, porque este compete aos Estados.

O mesmo motivo impede a União de tributar o café por meio do direito de exportação.

Tributar o ato da compra e venda também não pode, porque a matéria é ainda da competência dos Estados.

Não resta, pois, à República outro recurso, além do monopólio do café.

Este monopólio é uma ideia que será de aplicação necessária, fatal e indeclinável, se perdurar a atual Constituição republicana, com a sua absurda divisão de rendas e as enormes despesas militares e civis indispensáveis para a República manter-se.

O recurso do monopólio do café apareceu tendo um apresentante único e isolado.

Foi recebido com as honras de uma comissão especial. Para o ano, voltará, com mais signatários. Os apuros do Tesouro serão, então, maiores.

Talvez passe na Câmara e caia no Senado. Na legislatura seguinte, será — quem sabe? — votado por aclamação.

***

Sabe-se bem hoje quanto custa em dinheiro a República.

A renda anual da União, com os impostos três vezes maiores do que eram antes da República, é de pouco mais de 200.000 contos.

A despesa ordinária, média anual nos seis anos de República, tem sido de 300.000 contos, isto é, 100.000 contos por ano mais do que a receita, sejam 600.000 contos de déficits acumulados. Mais 400.000 de despesa extraordinaria confessada, e aí está o milhão de contos que a República já custa.

Para o ano, será já um milhão e cem mil contos. O Congresso decididamente não tem força para reduzir as despesas públicas. Só havia um meio de não crescer para o ano o déficit. Seria o Congresso cortar 100.000 contos de despesas. Ora, isto é impossível. Seria a salvação econômica do país, mas seria também a morte da República, que se veria abandonada de todos os que, por interesse, a sustentam, para melhor se sustentarem a si mesmos.

***

Para o ano, precisa a República, se quiser pagar os juros de sua dívida, de outros 100.000 contos, que lhe hão de faltar então, como hoje já lhe faltam.

Não há que pensar em empréstimo, e um empréstimo não faria senão adiar a dificuldade.

Não pagar pura e simplesmente os juros da dívida, à moda peruana, colombiana, venezuelana, paraguaia e argentina, seria uma solução genuinamente republicana, e o Brasil, adotando-a, ainda mais aumentaria a tão falada integralização sul-americana.

O Império, porém, incutiu na nação brasileira o velho preconceito da probidade, que muito tem custado à República destruir, e, por isso, pensamos que a administração republicana só em último caso deixará de pagar os juros da dívida.

É possível que isto não se dè ainda em 1896.

Impostos novos, ou aumento dos antigos, são coisas impossíveis.

O monopólio do café ficará ainda adiado.

Não é difícil profetizar o que se passará.

Não podendo fazer empréstímo, não querendo suspender já pagamentos, não podendo lançar impostos novos, não podendo reduzir as despesas, não ousando já lançar mão do monopólio do café — o sr. Prudente de Morais, para o ano, ou quem estiver em lugar dele, emitirá papel moeda, e todos os pagamentos serão satisfeitos. Serão necessários 100.000 contos de papel moeda acrescentados aos 600 e tantos mil em circulação, contra os 145.000 do tempo da Monarquia.

O ministro da Fazenda respirará por alguns meses.

Infiltrado que for na circulação esse papel, o câmbio baixará na proporção do papel emitido; a verba — Diferenças de câmbio — crescerá de modo correspondente e, em 1897, o problema será o mesmo.

O sr. Prudente de Morais, ou quem sabe se o sucessor do sucessor de s.exa., não pagará os juros da dívida externa.

Reclamações, humilhações, balbúrdia e, afinal, resignação dos credores.

Daí a pouco, os portadores de apólices internas não serão pagos.

No ano seguinte, grande acesso de rigor. Os empregados públicos diminuídos, cortados e logo convertidos em descontentes. A classe dos lavradores, única classe rica, será objeto da inveja e do ciúme de todos. O povo, esfomeado, obrigará o governo a tirar dinheiro dos fazendeiros e será adotado o projeto Erico Coelho. Ficarão pobres também os fazendeiros.

Surgirão por dá cá aquela palha guerras civis, porque bem diz o ditado: «Na casa onde não há pão, todos brigam e ninguém tem razão».

E, no meio do desmoronamento geral, quem se lembrará da voz dos iludidos de hoje, homens graves e sensatos, que, diante das ruínas agora amontoadas, dizem que é preciso consolidar esse entulho todo?

Qual consolidar!

É preciso remover, primeiro, o entulho, para, depois, reedificar a casa. É preciso suprimir a República, para reconstruir a nação.


 

A CRÍTICA REPUBLICANA

Seção Opiniões — Comércio de São Paulo, 21-11-1895.

 

Temos muitas vezes insistido no caráter altamente cômico da nossa preocupação em imitar os Estados Unidos. O que, porém, é doloroso é ver que, a todas as reverências e a todos os entusiasmos e mais fraternizações dos sul-americanos, o americano do norte responde com o mais merecido sarcasmo.

No último número da Harper’s Magazine, a grande revista americana, vem a relação de uma viagem feita por três americanos, através das Repúblicas espanholas. Entre outras regiões, visitaram eles a colônia inglesa de Belize, na América Central, e a seu respeito escrevem:

«A única vez, nesta viagem, em que nos sentimos tão livres, como se andássemos pelas ruas de New York, foi quando nos achamos debaixo da proteção da odiada Monarquia inglesa, em Belize.

Nunca vimos sinal de liberdade em nenhum dos desorganizados acampamentos militares, que, na América espanhola, têm a alcunha de Repúblicas livres. O cidadão dessas terras está tão preparado para a forma republicana, como para fazer uma expedição ao polo Norte.

Esses países devem impreterivelmente ser colocados sob o protetorado dos Estados Unidos, ou de qualquer outra nação.»

Nem pode um verdadeiro cidadão americano ter outra opinião destas nossas terras, tão diferentes em tudo da grande comunhão norte-americana.

Imagine que o elemento oficial e republicano entre nós, isto é, a ínfima minoria, horripila-se fanaticamente com a menção do nome de Deus num documento político, e que o presidente da nossa República, no seu discurso inaugural, nem uma só vez escreveu aquele nome proscrito. Nos Estados Unidos (não sabemos por que modo a coisa se faria), é certo que, se ali um presidente não invocasse o auxílio divino na sua mensagem inaugural, não ficaria por muitos dias na White House.

Um país onde o Congresso, todos os dias, antes de abrir as suas sessões, prosterna-se à voz de um capelão, que abençoa, em nome Deus, os trabalhos legislativos; um país em que o poder público, em solene proclamação, determina que um dia do ano deve ser de repouso e consagrado a agradecer à Divindade as graças recebidas; um país em que, numa grande crise da nação, o presidente decreta um dia de jejum nacional, para obter do céu a salvação pública, não pode ter nada de comum com o ateísmo vulgar, que é a essência mesma da República Brasileira.

Estamos ainda lembrados de um discurso de felicitações pronunciado pelo ministro americano diante do sr. Floriano Peixoto. Disse aquele diplomata que a República Norte-Americana e a Brasileira eram irmãs, porque ambas «temiam a Deus e amavam a liberdade».

Cândido disparate, o do diplomata americano! Nesse tempo, o sr. Floriano Peixoto, como o sr. Prudente de Morais, nunca em documento algum mencionara, sequer, o nome de Deus.

Quanto ao amar a liberdade, basta lembrar que o discurso foi pronunciado enquanto durava o estado de sítio, tão caro aos republicanos brasileiros.

Levemos a comparação ainda mais longe, a comparação entre a República Brasileira e a República dos Estados Unidos. Todo o mundo sabe da grande extensão que naquele país têm as missões dos padres jesuítas entre as tribos indígenas, especialmente entre os Sioux e os Cherokees.

Pois bem, o governo americano auxilia por todos os modos as missões dos jesuítas, presta-lhes todo o seu apoio direto e indireto e recorre aos missionários nas suas grandes dificuldades com os índios. E o governo americano tem essa política, porque a julga favorável aos interesses da civilização e da nação americana. Vejamos o que se dá entre nós.

A influência inglesa, há três ou quatro anos, apoderou-se do território dos Piraras e infiltra-se rapidamente num dos mais ricos e saudáveis pedaços do território brasileiro, isto é, nas terras altas do Rio Branco.

Podemos considerar perdida aquela região. E por que?

Porque os ingleses têm os seus missionários, que, caminhando do Norte para o Sul, têm vindo conquistando para o cristianismo, o que equivale, no caso, a dizer para a Inglaterra, os selvícolas daquela parte do Brasil.

A República Brasileira, filha do positivismo, suprimiu o serviço da catequese dos índios. Isto equivale a dizer que abandonamos um meio de influência, de alargamento e de defesa do nosso território, meio de que os nossos adversários, mais inteligentes do que os republicanos brasileiros, estão usando largamente contra o Brasil.

O sr. Carlos de Carvalho, ministro das Relações Exteriores, nas suas informações transmitidas ao Congresso, em 18 de outubro último, diz:

«Se o território neutralizado está sob a influência do governo inglês e da religião anglicana, isso é devido a causas gerais, que o governo brasileiro não pode modificar. Para o serviço da catequese e da civilização dos índios, encontra embaraços no preceito constitucional, parecendo-lhe que não pode dar desenvolvimento às missões apostólicas da Sagrada Congregação da Propaganda, como fora ajustado com o Vaticano, em outubro de 1862, modificado o regime do decreto n. 373, de 30 de julho de 1844, expedido em virtude do decreto legislativo, n. 285, de 21 de julho de 1843.

Ao governo não compete disputar para o catolicismo as tribos selvícolas do território contestado.»

Eis aí uma verdadeira e genuína amostra da política republicana. Sacrifica-se uma parte do território nacional, consente-se de bom grado na mutilação do solo pátrio, porque, diz o ministro, assim o quer, manda e determina a Constituição republicana!

Temos muitas razões para detestar essa Constituição exótica, copiada de uma raça estranha, sem raizes, nem antecedentes históricos entre nós. Essa Constituição é a mesma que arruína as finanças, ocasiona a guerra civil, dificulta a paz e, como muito bem observou o sr. Ferreira de Araújo, entrega a sorte dos Estados a tiranetes locais, Castilhos e Barbosas Limas, sem que haja contra eles remédio constitucional. Vemos agora que até nos devemos resignar a perder parte do nosso território, por amor dessa malfadada Constituição.

***

Ao manifesto redigido pelo dr. João Mendes, e que tivemos a honra de assinar com outros ilustres monarquistas paulistas, fez a crítica republicana três censuras! Increparam aos monarquistas o terem invocado o nome de Deus; disseram (a Gazeta de Notícias) que o jogo da Bolsa que exprobramos à República era próprio também das Monarquias e que, como exemplo, temos o recente jogo das minas de ouro, em Londres; disseram ainda que tínhamos faltado à delicadeza devida ao chefe do Estado.

Temos a felicidade de ser crentes em matéria religiosa.

Se o não fôssemos, se nos guiássemos simplesmente pelo interesse político do nosso partido, ainda assim assinaríamos do mesmo modo o manifesto.

Queiram ou não queiram os republicanos brasileiros, é da Europa que hão de receber sempre a luz e o pão do espírito. E, nas coisas da inteligência, a expressão Europa, para o resto do mundo, compreende os Estados Unidos, cuja população é de raça, de civilização e, em grande parte, até, de nascimento europeu.

Ora, em todo o Ocidente, o fato culminante destes últimos anos é o renascimento religioso.

O materialismo não satisfaz mais as aspirações humanas, e a Ciência tem-se mostrado impotente para a resolução do problema moral e social. Depois de quase um século de progressos materiais e incessantes, a humanidade tem a distinta intuição de que nada disso a fez ainda feliz. A ciência não leva o homem à bondade, nem ao sacrifício pelos outros.

E só a bondade e só o espírito de sacrifício podem fazer desabrochar algumas flores na estrada da vida. A humanidade abandona o materialismo. O espiritualismo e a fé, isto é, Deus e a religião, de novo se apossam do espírito e do coração humano. O temeroso problema social, as revoltantes desigualdades da sociedade moderna, em que o rico é tudo e o pobre é menos que nada, impõem-se ao espírito e ao coração dos homens. E a ciência não resolve o problema, nem dá remédio ao mal.

O homem volta-se para a religião, que lhe proporciona o consolo, a resignação e a esperança.

Estamos assistindo em nossos dias a esse grande movimento unísono e universal da alma humana, que se chama a reação religiosa. Este movimento já se nota na política, já aparece no ensino europeu, já invadiu a Arte, já quase domina a Literatura. É irresistível, incoercível, fatal e avassalador.

Ora, é da Europa que vêm até às nossas praias as grandes marés das ideias.

Por mais que o Brasil se encerre consigo mesmo, rodeado do muro chinês que o nativismo, nascido com a República, quer levantar ao redor da Pátria — a onda religiosa chegará até nós. Somente o oceano intelectual é mais largo do que o Atlântico e, se as modas levam seis meses para chegar até nós, as ideias levam anos. O positivismo apareceu-nos, quando já perdia terreno na Europa.

Em breve estará no Brasil, no mundo do ensino e das escolas, a reação espiritualista religiosa. Os nossos professores hão de ser, como sempre, levados pelos últimos livros que a Europa publica e nos manda. A mocidade escolar do momento atual é, talvez, em grande parte, materialista; mas, no Brasil, a mocidade, se é precoce, envelhece depressa. A mocidade de amanhã será diferente da de hoje. Ao contacto da mocidade influenciada pela reação espiritualista e religiosa, despertará na sociedade brasileira a velha religiosidade peninsular, hoje vaga e indistinta.

As escolas políticas, quando estão em luta, triunfam, ou sucumbem com os idéais filosóficos, ou morais com que se identificam. Triunfou a revolução francesa, porque se identificou com o enciclopedismo filosófico então dominante. Pôde Napoleão restaurar a Monarquia, porque se associou à reação cristã, no começo do nosso século. Entre nós, a República está ligada à sorte do positivismo e do materialismo. Batidos e expelidos estes, com eles será batida e expelida a República.

A Monarquia, adversária da República, subirá ao poder na onda espiritualista. Na luta de princípios, é inegável que a Monarquia está ao lado do princípio que vai dominar, e a República declinará e desaparecerá com o positivismo, com que se identificou.

***

Disse a Gazeta de Notícias que o manifesto monárquico não tinha razão em censurar a República pelo jogo da Bolsa. Disse que, nas Monarquias, também se joga e, a propósito, citou a grande jogatina das minas de ouro em Londres, coisa de que muito nos falou o telégrafo, nestes últimos dias.

Fez mal a Gazeta em citar esse caso, porque, relativamente a ele, ainda posso demonstrar superioridade das práticas monárquicas sobre as republicanas.

Há anos para cá, na África Meridional, no Transvaal, isto é, numa República, por ocasião da descoberta de umas riquíssimas minas de ouro, criaram-se centenas de companhias fantásticas, cujas ações tiveram logo grande ágio na Europa.

Na Inglaterra, onde o governo em pouca coisa intervém, houve toda a liberdade para essas especulações. A imprensa séria avisou, porém, os incautos; mas, como sempre acontece, o aviso foi dado em pura perda.

Na Alemanha imperial, o governo mandou dar grande publicidade ao relatório do cônsul alemão no Transvaal, relatório em que se demonstrava que muitas minas eram meras invenções de especuladores. A cotação só foi concedida, em Berlim e em Frankfurt, às grandes empresas mineiras que representavam um valor real.

Vejamos agora o que fez o governo republicano da França. O cônsul francês no Transvaal mandou um relatório idêntico ao do seu colega alemão. Se o governo o tivesse publicado, o capitalista francês não teria caído na ratoeira que lhe era armada. Ora, o alto pessoal administrativo e político da República francesa sabe bem o mundo todo de que gente é composto.

São uns restos de discípulos de Gambetta, o inventor do sórdido oportunismo; são uns radicais aburguesados, uns engenheiros positivistas e uns famélicos ao serviço da Rússia e que, no meio da população descrente e desiludida, são hoje os únicos a fazer roncar os r r r da expressão grrrands prrrincipes de 1789.

Essa gente, vivendo na escola republicana do Panamá, dos Caminhos de Ferro do Sul e de outras ladroeiras, que deram renome universal à corrupção da República Francesa, era naturalmente interessada na jogatina das minas de ouro. E que fez? Suprimiu e abafou o relatório do cônsul francês, para que o público entrasse com o seu dinheiro para o jogo em que os judeus sempre dão uma migalhazinha aos políticos da República. Só muito depois de apresentado, foi que, diante das reclamações enérgicas de Drumont e de Rochefort, veio à luz o relatório. Era tarde; já as economias francesas aplicadas às minas de ouro se tinham evaporado.

Veja a Gazeta como o governo monárquico da Alemanha compreendeu e cumpriu o seu dever. Veja como em França procedeu a República.

***

Estranhou um escritor que o manifesto monárquico tratasse menos respeitosamente o chefe do Estado.

Essa acusação feita ao manifesto foi injusta. Achamo-la, porém, naturalíssima.

Disseram, com circunlóquios, os monarquistas o que todo o mundo sabe e diz claramente; isto é, que quem governa o Brasil é o sr. Glicério.

O próprio sr. Prudente de Morais sabe disso, e a prova é que, já três ou quatro vezes, fez, com energia, esta extraordinária declaração, que antes de s.exa., de certo, nunca fez nenhum chefe de Estado: Quem governa sou eu!

A opinião acolhe com simpatia e com um certo sorriso de incredulidade estas afirmações. Alguma coisa diz-nos que s.exa. está enganado.

Há, a esse propósito, até um singular confronto a fazer entre D. Pedro II e o sr. Prudente de Morais.

O Imperador passou a sua vida a declarar que ele não governava e que quem governava eram os ministros. E ninguém acreditava.

Hoje, o sr. Prudente vive a dizer que quem governa é ele próprio. É coisa célebre:—também ninguém acredita!

Não nos causou surpresa haver quem achasse grosseira a referência feita pelo manifesto ao sr. Prudente de Morais. A República tem sido, para nós todos, um verdadeiro ensino obrigatório de servilismo.

Nas velhas Monarquias absolutas, sempre houve quem falasse com franqueza e liberdade aos reis. Nas Repúblicas sul-americanas, as ditaduras sucessivas têm infiltrado no espírito dos povos um temor de desagradar o poder, que é característico da forma republicana nesta parte do mundo.

O público todo pensa e nós dizemos que o sr. Prudente de Morais não é quem governa.

O sr. Prudente de Morais diz, contestando, que é ele quem governa.

E é natural esta convicção de s.exa.. Nós todos nos iludimos. Muitas vezes, estamos sendo governados e, quanto mais nos governam, mais nós afirmamos a nossa independência e a nossa vontade.

Havia um marido que tinha frequentes brigas com a mulher. Acontecia, porém, que a mulher, mais valente e mais forte, esbordoava sempre o marido. Uma vez, este, perseguido, refugiou-se debaixo da cama.

—Saia já daí para fora! exclamou a megera, brandindo um varapau.

—Não saio!

—Saia!

—Não saio! exclamou com energia o marido, acocorado a um canto e longe do pau. Não saio! hei de mostrar que quem governa aqui sou eu!

***

O manifesto monárquico não agradou ... à imprensa republicana.

Ficaríamos bem desapontados, se ele agradasse aos republicanos.

Não era esse o fim do manifesto.


 

AO «ESTADO DE SÃO PAULO»

Seção Opiniões — Comércio de São Paulo, 30-11-1895.

 

O Estado de S. Paulo quis responder, aos bocadinhos, o meu último artigo.

Disse eu que o materialismo e a ciência não satisfaziam às aspirações humanas. Disse o Estado que isto era inexato e, para prova, citou Berthelot contra Brunetière, reduzindo aquele debate, antigo como o espírito humano e vasto como o mundo, às proporções de uma divergência entre aqueles dois homens.

No segundo artigo, disse o meu adversário que, visto citar eu uma revista americana contra o republicanismo hispano-americano, era eu amigo da Inglaterra, aplaudia a tomada da Trindade e devia cantar o God save te queen!

No terceiro artigo, mudou o Estado de opinião a respeito do espiritualismo e do materialismo e disse que o espiritualismo vai triunfar. Divergiu da minha opinião somente quanto ao caráter da República Brasileira.

Dissera eu que esta era materialista e sectária do ateísmo; disse o Estado que a República do sr. Benjamin Constant e do sr. Teixeira Mendes é espiritualista e religiosa.

No quarto artigo, contestou o que eu dissera sobre as missões católicas nos Estados Unidos.

***

Nada tenho a opor ao primeiro artigo: o Estado mudou de opinião e concordou comigo.

Quanto ao segundo artigo, devo dizer que, na verdade, admiro muito a Inglaterra.

Tenho grande vontade de que o Brasil a imite em tudo, igualando-a em liberdade e, até, excedendo-a em grandeza, em civilização e em riqueza.

Não conhece limites a ambição dos meus desejos patrióticos.

A tomada da Trindade é, porém, uma violência sem nome.

Este atentado desperta a minha indignação contra o Ministério inglês que o autorizou e contra o atual, que sustenta o mesmo ato. Indignação igual sinto eu contra o governo do Brasil, que se tem mostrado fraco, pusilânime, incoerente e até pouco digno, admitindo todas as delongas, suportando todas as humilhações, sujeitando-se a tudo, sem nada conseguir.

Tem, numa palavra, feito figura triste, sem proveito.

E o sr. Carlos de Carvalho sai-se a citar direito romano a lord Salisbury, a respeito da ilha da Trindade! Não discutimos com quem nos rouba. Nos países onde não há receio de ser a gente mais roubada, ainda, pela polícia, costuma-se chamar a polícia, quando um ladrão nos assalta. Não há, porém, uma polícia para proteger as nações. A um ato de força, como aquele de que o Brasil foi vítima, as nações respondem, quando podem, com a força, ou, quando não, com a dignidade altiva de um protesto solene.

É uma questão de honra nacional. São mal cabidas, ridículas e indignas as delongas e as chicanices de pedantismos arqueológicos.

***

Quanto ao que eu disse sobre as missões católicas nos Estados Unidos, peço ao Estado que se dê ao trabalho de consultar os seguintes livros:

Werner: Katholischer Missions Atlas;

A coleção das Woodstock Letters;

Bryce: The American Commonwealth, vol. III, pag. 470, onde se fala nas subvenções oficiais dadas ao ensino da Igreja Católica. Só em New York, o catolicismo recebia 400.000 dollars de subvenção e as outras confissões, 72.000 dollars, isto é, à Igreja Católica cabiam 2.000 contos e às outras confissões, 360 contos.

Wagner: Dictionnaire de Droit Canonique, vol. II, pag. 473, onde se lê o seguinte trecho de um discurso de um senador, no Senado americano: «Todas as vezes que vejo uma escola de índios mantida por jesuítas, estou certo de que é dirigida por um sistema excelente, fruto da experiência de um século».

Nota mais o mesmo autor que o Congresso federal concedeu 8.000 dollars (40 contos) de subvenção a uma escola industrial de índios, estabelecida pelos jesuítas no território de Montana. É a missão jesuítica de Santo Inácio, estabelecida na Ioco Reservation.

Carlier: La République Américaine, vol. IV., pag. 317. Vê-se que não é só a sociedade de Santo Inácio que recebe estes auxílios; outras instituições religiosas recebem 108 dollars (540 mil réis) por ano e por aluno índio que sustentam.

N. S. Shaler: The United States of America, vol. II, pag. 355, menciona que os Estados de Alabama, Arkansas, Connecticut, Delaware, Iowa, Kansas, Kentucky, Maine, Maryland, Massachussets, Nebraska, Nevada, Rhode Island, South Carolina, Tennessee, Vermont e West Virginia consignam subvenções escolares a diferentes confissões religiosas, divergindo assim do governo da República Brasileira, que, como demonstramos, prefere, conforme disse o sr. Carlos de Carvalho, perder o território do Rio Branco, a auxiliar a catequese católica dos índios.

Quanto à intervenção dos jesuítas na questão dos índios norte-americanos, há dezenas de viajantes que a ela se referem. Não tenho à mão o livro do barão de Grangey, mas lá lerá o Estado uma curta notícia dos trabalhos dos jesuítas no Dakota.

Na última guerra indiana, há três ou quatro anos, representou o governo de Washington junto aos índios e estes, junto ao governo, um missionário jesuíta.

O fato foi comentadíssimo nos Estados Unidos. Bastará consultar os jornais do tempo para ver isso. O governo americano foi até atacado a esse propósito, havendo protestantes zelosos que pensaram nos males possíveis dessa importância dada pelo governo aos jesuítas.

Nesse sentido, apareceram vários artigos em revistas norte-americanas.

Uma consulta à coleção dos Reports of te Commissioners for te Indian Affairs esclareceria bem o assunto. A obra de J. G. Shea, History of the Catholic Missions among te Indian Tribes of te United States, vai infelizmente só até 1854, e eu desejaria citar fatos mais recentes ao Estado.

Demais, o Estado não deve ignorar, e, com certeza, não ignora, o grande desenvolvimento do catolicismo nos Estados Unidos, onde há mais de seis milhões de católicos, guiados por homens do valor dos Gibbons e Ireland. Na milícia eclesiástica, cabe o primeiro lugar ali aos jesuítas. São numerosos os seus estabelecimentos; vastas e riquíssimas, as suas instituições. O Colégio São Francisco é um colosso. Ainda há pouco tempo, esteve exposta em Paris uma custódia de ouro oferecida à igreja daquele Colégio pelos católicos de São Francisco. Era um admirável objeto de arte, avaliado em 1.600.000 francos, sejam mil e seiscentos contos. Os jornais explicaram que aquele esplendoroso donativo entraria nos Estados Unidos, sem pagar direito. Nos Estados Unidos, os objetos destinados ao culto são isentos de direitos nas alfândegas.

Há poucos anos, foi, nos arredores de Washington, inaugurada com a presença do presidente dos Estados Unidos a grande Universidade Católica, fundada, mantida e dirigida pelos jesuítas.

Não estou aqui a escrever, porém, para contar as grandezas do catolicismo nos Estados Unidos. Quero somente afirmar que é rigorosamente verdadeiro tudo quanto disse a respeito das relações do poder público, nos Estados Unidos, com os missionários. Não deixarei de notar que fica sem resposta nem refutação a censura que fiz ao governo do sr. Prudente de Morais, por não querer auxiliar as missões católicas nas fronteiras da Guiana, único meio de dominarmos aquelas fronteiras, ao passo que o governo norte-americano auxilia missões análogas.

***

Quanto ao disfarce espiritualista e, mesmo, religioso que o Estado quer, à última hora, dar à República Brasileira, isto é uma prova de que os republicanos inteligentes têm o instinto de que vai em mau caminho sua República positivista.

A união da República com o positivismo ateu é, porém, indissolúvel.

Queira a República romper com o positivismo, e os militares positivistas, isto é, a parte mais moça e mais ousada do exército, expelirão do poder o presidente imprudente que iniciar esse movimento. O sr. Prudente de Morais não é para essas audácias. Só depois de assistir à colocação de uma boa e pesada pedra sobre o sr. Floriano Peixoto é que s.exa. saiu do cemitério, convencido de que Peixoto havia cometido violências e ilegalidades inúteis.

O sr. Prudente de Morais levou oito meses sem ver essas ilegalidades que hoje espalhafatosamente revoga e condena.

Enquanto Peixoto respirou, o sr. Prudente de Morais nada revogou e até manteve as ilegalidades contra as quais hoje se mostra indignado. Nesse tempo, apesar das desfeitas que lhe fazia o marechal, o sr. Prudente de Morais chamava-lhe glória da humanidade!

Não romperá, pois, o sr. Prudente de Morais com o positivismo. Em nenhuma das suas proclamações, mensagens, ou decretos, ousou ainda s.exa. falar em Deus. Nem ousará.

***

Não dispersarei mais os meus esforços, vindo comprovar qualquer fato que eu, porventura, alegar na polêmica em que me acho envolvido e em defesa da causa nacional.

Não é de hoje que escrevo. O respeito que tenho pelo público e por mim mesmo me inibe de citar um fato que não seja exato. Poderei errar e erro, de certo, muitas vezes, nas minhas apreciações, mas não invento, nem falsifico acontecimentos. Um fato citado por mim será sempre um fato verdadeiro, embora sujeito, como todos os fatos, às mais variadas interpretações.

Não cansarei, portanto, mais o público com citações justificativas da existência material de fatos notórios, como aqueles que citei e o Estado contestou.


 

A REPÚBLICA E A LIBERDADE DE IMPRENSA

Seção Opiniões — Comércio de São Paulo, 10-12-1895.

 

A República, sob a forma de governo provisório, atacou a imprensa.

Era um período de transição — diziam os republicanos.

Atacou-a, depois de votada a Constituição republicana.

Ainda veio a tal história da transição.

O 3 de novembro ameaçou e amordaçou a imprensa.

Era o regime de um golpe de Estado. Serviu isto de desculpa.

O 23 de novembro restabeleceu a legalidade.

Dias depois, o ministro da Justiça, sr. José Higino, declarou aos redatores do Brasil e do Jornal do Brasil que o melhor era suspenderem eles a publicação de suas folhas, porque o governo não garantia as vidas dos escritores, nem a integridade das suas tipografias.

Serviu, então, de desculpa ainda a velha e estafada história do período de transição.

Seguiu-se o florianismo, o mais belo espécime da moral e da política republicana. Toda a liberdade de imprensa foi tolhida. Foi preciso inventar outra desculpa.

Descobriu-se a da salvação e da consolidação da República.

Veio o sr. Prudente de Morais. E o que vemos?

No Rio, há um chefe de polícia disposto a cumprir os seus deveres e, por isso, cessou a ameaça constante de violências, sob a qual tinha vivido a imprensa.

Mas nos Estados?

Em Pernambuco, é Barbosa Lima sujeitando a tormentos um jornalista. Em Sergipe, é um Valadão prendendo jornalistas e fechando jornais. No Rio Grande, é o regime castilhista em todo o seu rigor. Na Bahia, as violências sucedem-se. E em S. Paulo?... Em uma semana, são atacados e destruídos três jornais oposicionistas.

As folhas republicanas dizem que lamentam o fato, atiram alguns apodos às vítimas, e tudo fica e ficará como d’antes.

***

O sr. Rui Barbosa, no banquete do Jornal do Comércio, pronunciou um discurso notabilíssimo.

S. exa. é um mestre incomparável; as suas palavras são de ouro. Mas não será verdade que s.exa. se adiantou demais, quando augurou tantos bens da política atual, que s.exa. apelidou regime da Justiça?

O sr. Prudente de Morais não tem mandado fuzilar, nem, mesmo, prende gente, como fazia o sr. Floriano. É verdade.

O sr. Prudente de Morais tem reintegrado alguns professores ilegalmente demitídos. É também verdade.

Bastará, por ventura, isto?

O governo convive com assassinos confessos, a quem cumula de cargos de confiança, honrosas considerações e rendosas comissões.

O governo ainda persiste em, oficialmente, negar que as vítimas do Paraná e de Santa Catarina estejam mortas. O sr. Prudente de Morais tem deixado desçam as escadas do Itamaraty, sem uma palavra de conforto e sem uma longínqua esperança de reparação, as viúvas, os órfãos e os pais que têm ido pedir-lhe justiça.

A obra da reparação é longa; mas o sr. Rui Barbosa, que tanto fez e fará ainda, nem sempre com sucesso, para conter a República dentro da lei e da humanidade, tem ainda muito que fazer.

Em S. Paulo, como dissemos, foram destruídas três tipografias de jornais não amigos do governo.

Não foi o governo, nem os seus amigos, diz o Estado de S. Paulo.

É o governo, afirmamos nós solenemente; é o governo, que, se não por ação, ao menos por omissão culposa, é o autor dos crimes de Santos.

Paga o contribuinte paulista impostos pesadíssimos, grande parte dos quais é gasta profusamente na sustentação custosa de um verdadeiro exército, chamado força policial.

Quantias avultadas, mas não sabidas (porque publicidade não há), são gastas secretamente com a polícia. Pois bem! Para que serve este dinheiro, como é ele gasto, se a polícia não pôde, em Santos e em Mogi Mirim, impedir os três atentados contra a imprensa.

[ilegível] uma cidade pequena, como [ilegível] admitir a possibilidade do comandante do Corpo de bombeiros organizar uma expedição, como a que comandou contra os dois jornais, sem ciência da polícia? E, se é possível, para que serve essa dispendiosa polícia?

É inacreditável que, dando ordem de forma aos seus soldados, o tal comandante, saindo para a expedição, não fosse seguro do que fazia. A polícia não soube do que se tramava e do que se preparava no quartel de bombeiros.

Os bombeiros saíram à rua em marcha militar.

A polida não soube.

Invadiram o escritório da Tribuna, arrombaram as portas e janelas a machado, fizeram um alarido imenso. Na rua, ouvia-se o ruído de máquinas quebradas a machados, de vidros despedaçados, de móveis partidos, e, mais do que tudo, os brados dos empregados feridos e espancados, que gritavam por socorro. A polícia nada viu e de nada soube.

Acabado o crime contra a Tribuna, saíram os bombeiros e dirigiram-se ao Santos Comercial.

A polícia nada viu. Houve ali arrombamentos, destruição de máquinas, enfim, crimes ruidosos por sua natureza, perpetrados no meio de grande algazarra. E a polícia nada ouviu.

Esta cegueira, esta surdez, esta ausência da polícia, como qualificá-las?

Foi desídia, foi negligência? Ou não parece mais a abstenção proposital do mandante, que não quer aparecer, ou o silêncio e a anuência do cúmplice?

Os fariseus da República derramam nos seus jornais lágrimas crocodilescas e tocam de leve no crime, só para falar nos pretendidos abusos da liberdade de imprensa. Fossem verdadeiros esses abusos por parte das vítimas, e o crime semi-oficial de Santos não teria justificativa.

Mas a verdade é que os dois jornais usavam de linguagem moderada e que o Santos Comercial nem uma só vez, depois da sua declaração monárquica, tratou de assunto algum pessoal.

***

Falam os jornais do governo em punição dos culpados. Punir os culpados de crimes contra os adversários do governo, isto é coisa que a República nunca fez, nem há de fazer. Isto é essencialmente contrário à índole do governo republicano na América do Sul.

Perto de cem jornais têm sido destruídos pela força, desde que no Brasil há República. Nenhum destes jornais era amigo dos governos republicanos.

Eram todos oposicionistas.

Pergunto eu: quantos dos criminosos foram punidos? Nenhum.

Quando foi destruída a Tribuna Liberal, no Rio, em 1890, compareceu no meio dos destroços o ministro da Justiça, sr. Campos Sales. Lamentou o fato, dizem. E ninguém foi punido.

O Direito não existe na República.

O criminoso, desde que a vítima não é do partido do governo, pode contar, não só com a impunidade, como até com o louvor e a recompensa oficiais.

E, se querem dar-me um desmentido, eu só aceito um: cumpram a lei em Santos, punam, se forem capazes, aqueles criminosos.

***

Sempre que se dá um crime contra a imprensa, dizem os republicanos que o governo não tomou parte nesse crime.

Coisa singular! Nunca foi vítima de tais crimes um jornal governista.

Se é o povo, se são os adversários pessoais dos jornalistas vitimados que perpetram esses crimes, porque nunca os perpetraram contra as folhas amigas do governo?

As vítimas só recebem satisfação pelo dano que lhes é causado, quando são estrangeiras.

Causa vergonha ter a gente de confessar coisas destas; mas a verdade é que, na República, só pode contar com o respeito à sua pessoa e aos seus bens o estrangeiro. Atrás do estrangeiro, e para defendê-lo, está o seu cônsul, está a sua legação e estão os canhões da esquadra do seu país.

E a República nunca deixou, desde que existe, de se humilhar e curvar, diante de tudo isto.

Vários jornais têm sido destruídos, em S. Paulo, em circunstâncias mais ou menos odiosas.

Já vimos que nem uma só vez os criminosos foram punidos.

E só duas vezes os proprietários receberam satisfação pelos danos que lhes foram causados. Foram três italianos, esses homens felizes, que em terra do Brasil gozam de mais privilégios e garantias do que os míseros brasileiros.

E note-se uma coisa curiosa: quem pagou o dano não foram os criminosos; foi o governo, isto é, foi o dinheiro do contribuinte. Eu e o leitor, que não destruímos jornal nenhum de italianos, pagamos, como contribuintes, o preço do crime praticado por alguns republicanos exaltados.

O fato não é muito conhecido em S. Paulo, e nem é de admirar o silêncio que o governo e a sua imprensa têm guardado sobre mais essa vergonha republicana.

O regime republicano é — sobretudo em matéria de dinheiros públicos — o regime do segredo.

Aqui, na cidade de S. Paulo, foi destruída (por quem não se sabe) a tipografia do jornal italiano Roma. O governo de S. Paulo pagou o prejuízo.

Em Jundiaí, foi destruída outra tipografia pertencente a um italiano. O governo de S. Paulo pagou.

Não se disse aqui quanto pagou, nem de que forma.

Sabemos, porém, de todas as particularidades desse negócio, por uma publicação oficial italiana que temos presente:

«Documenti diplomatici presentati al Parlamento Italiano dal ministro degli Affari Esteri (Blanc). Brasile: Reclami italiani N. VI bis. Roma, 1895.»

À pag. 8 desse documento, lê-se uma carta do cônsul italiano Brichanteau, dirigida ao ministro dos Negócios Estrangeiros da Itália. Nessa carta, tratando do pagamento dessas indenizações, diz o cônsul Brichanteau que encontrou, da parte do presidente do Estado e dos seus ministros: il massimo buon volere — isto é, a melhor disposição e vontade de pagar.

Não foi, portanto, uma dessas exigências da força, diante das quais se curva, protestando, o governo do país mais fraco. Não; o governo de S. Paulo pagou bem, pagou depressa e pagou contente.

Leiamos o sr. cônsul italiano:

«Os danos sofridos pelos nossos compatriotas eram importantes. Os srs. Volpari e Frasca duas vezes sofreram o saque da sua tipografia, onde se imprimia o jornal Roma... O sr. Adriano Curti viu destruída a sua tipografia, onde se imprimia um jornal de oposição, e isto por instigação e intervenção do presidente da Câmara Municipal de Jundiaí, coronel Siqueira Morais, e de um deputado ao Congresso de S. Paulo. Por ordem do presidente do Estado, o ministro das Finanças concedeu 80 contos de réis de indenização pelas reclamações apresentadas a este Consulado. Aos srs. Volpari e Frasca coube a quantia de 32 contos; ao sr. Adriano Curti, a de 5 contos.»

«I dani patiti da nostri nazionali erano rilevanti. Per tacere di altri, i signori Volpari e Frasca ebbero a soffrire un duplice sacchegio della stamperia del giornale Roma, di cui essi erano proprietari; il signor Adriano Curd ebbe distrutta la sua tipografia, dove se stampava un giornale di opposizione, per istigazione e con intervento del presidente del municipio, colonello Siqueira Morais, e di un deputato al Congresso di S. Paulo. D’ordine del presidente dello Stato, il ministro delle Finanze assegnó 80 contos de réis (franchi 100.000 circa) d’indennità per i reclami presentati a questo Consolato. Ai signori Volpari e Frasca fu assegnata una somma di 32 conti; al signor Adriano Curti, una di 5 conti.»

***

Os amigos do presidente do Estado não dirão em que lei se fundou s.exa. para distribuir assim trinta e sete contos, entre três italianos donos das tipografias destruídas em S. Paulo e em Jundiaí?

Na Constituição federal, na Constituição do Estado, nem em lei alguma, se encontra disposição declarando ser mais respeitável o direito de propriedade do estrangeiro, do que o do nacional.

Os estrangeiros não podem, num país civilizado, gozar de mais direitos e regalias do que os nacionais. Se sofrem alguma violência por parte de cidadãos do país em que residem, só podem obter compensação por meio dos tribunais do país. O governo norte-americano nunca admitiu outra doutrina: — Digest of the Published Opinions of the Attorneys General & &. Revied Edition. Washington, 1877 — Case of two french citzens 3, op. 253, Butler (1837).

Pagar compensações como pagou o Estado de S. Paulo, é coisa que só fazem os régulos da Costa d’Africa.

Há só um caso em que um governo é obrigado a pagar: é quando das indagações resulta que o governo ou seus agentes foram cúmplices do crime (Calvo, § 1209).

O governo de S. Paulo, ou exorbitou da lei das nações, sacrificou a sua dignidade, dispôs arbitrariamente do dinheiro público, humilhou-nos perante o estrangeiro, criou um precedente perigosíssimo, ou, então, se querem, reconheceu a sua própria culpa, fazendo, com a máxima boa vontade, como diz o cônsul Brichanteau, aqueles pagamentos aos felizes Volpari, Frasca e Curti.

O pagamento frito a estes três italianos pelo governo de S. Paulo foi uma confissão pública e patente de cumplicidade nos crimes de S. Paulo e de Jundiaí. E esta confissão fica registrada nos livros de Direito Internacional, será sempre citada no estrangeiro, para vergonha e para descrédito do nosso país.

***

Nada disto deve causar admiração a quem sabe a História, ou quer lembrar-se dela.

A República é isto mesmo.

As vítimas dos crimes de Santos e de Mogi Mirim não hão de ser indenizadas do dano que sofreram.

A República é um regime em que o título de cidadão brasileiro, título que não dá direitos efetivos, é um distintivo de inferioridade, diante de qualquer estrangeiro.

Contra o brasileiro, o crime é livre.

O estrangeiro, mais feliz, faz-se respeitar e pagar.

O direito do brasileiro não impõe respeito à República. Ela só se contém diante da ameaça da força e do estrangeiro.


 

UMA LIÇÃO DE ARISTÓTELES

Seção Opiniões — Comércio de São Paulo, 12-12-1895.

 

Uma das nossas fraquezas nacionais consiste em julgar, ou, pelo menos, em dizer sempre que o Brasil é um país fora do comum, que aqui tudo se resolve diversamente do que em outras partes. Numa palavra, o brasileiro que, por sua natureza, é imitador, que preferiu perder a paz e a liberdade, adotando a República, só para deixar de ser exceção na América, o brasileiro quer, às vezes, passar pelo mais original dos povos.

Quando os economistas lhe demonstram que, dadas idênticas circunstâncias, as leis econômicas atuam sobre as sociedades com a fatalidade inflexível de leis iniludiveis; quando se lhe diz que dois e dois são quatro, no Brasil, como na Inglaterra, em Marte, como em Saturno, o brasileiro continua ainda, às vezes, incrédulo.

Quando se lhe diz que pedir emprestado para pagar dívidas não é enriquecer; quando se lhe acrescenta que emitir papel moeda não é criar dinheiro, mas, sim, assumir compromissos novos — há ainda um ou outro brasileiro renitente, julgando que estas coisas podem ser verdadeiras e certas na velha e gasta Europa, mas que não têm aplicação na América, num país novo e riquíssimo como o Brasil.

Isto, em matéria econômica.

Quando se trata de política, a ilusão, ou, antes, a pretenção é a mesma.

As coisas no Brasil não se passam, pensam os nossos homens, como no resto da terra. Não seremos exceção na América; mas somos, com certeza, exceção no mundo.

Pensar assim é pensar como quem não pensa. É a estultícia mais completa de que é capaz um ser racional.

Nada é novo. Tudo já foi visto e... previsto. A humana natureza é sempre a mesma.

E, se quisermos tirar a contraprova desta verdade, consideremos as nossas coisas brasileiras, tendo aberto sobre a mesa um livro do homem que melhor compendiou o que a antiguidade sabia.

O mestre dos sábios,

...il maestro di color che sanno, escrevia, há mais de dois mil anos, sobre formas de governo, sua natureza, origem, crescimento, decadência e morte. E, no final da sua Política, expõe Aristóteles uma teoria geral das revoluções.

Vamos destacar daí alguns trechos, e o leitor admirará conosco como eles se aplicam ao Brasil.

Entre nós, o livro de maior autoridade é o último publicado em Paris. Pois é para reagir contra esta tendência que vamos buscar um autor velho, de vinte e três séculos.

***

«O direito de fazer uma revolução deve pertencer aos cidadãos de mérito superior; estes, porém, nunca usam desse direito.»

Politica, liv. VIII, cap. I, §4.

O 15 de Novembro veio confirmar a asserção de Aristóteles.

A revolução não foi feita pelos homens de mérito superior. Os membros da Convenção de Itu, o sr. Campos Sales, o sr. Glicério, o diretório republicano de S. Paulo, o sr. Cassiano do Nascimento, toda esta gente superior não se meteu a fazer a revolução.

A revolução foi feita pelos soldados. Os homens superiores só apareceram, quando ficou bem provado e averiguado que o sr. Floriano não mandou atirar contra os regimentos revoltados.

***

Vemos agora oposicionistas republicanos declarando que, diante da força que ostenta o partido monarquista, o seu dever de republicanos impõe-lhes o esquecimento de injúrias antigas e o sacrifício de se reconciliarem com o poder, isto é, com os empregos, as vantagens, as honras e o Tesouro.

O caso não é novo.

Diz Aristóteles (Política liv. VIII, cap. IV, §1º) que «a comunidade do medo aproxima uns dos outros os piores inimigos».

Na verdade, cremos que têm razão os republicanos oposicionistas na sua resolução de se congregarem ao redor da República ameaçada. A República é fraca; o seu governo precisa do apoio de todos os seus partidários. Fosse a República uma instituição amada dos brasileiros, fosse ela forte e contasse com sérios elementos de vida e, com certeza, os republicanos oposicionistas persistiriam nas suas razões de oposição, que, de certo, não eram fúteis, nem pueris.

O medo de ver cair a República, medo que não deve ser infundado, porque os republicanos oposicionistas são inteligentes, vêem claramente as coisas e não são medrosos, fê-los abandonar a oposição e ir alistar-se nas fileiras nunca rareadas (em tempo algum) dos amigos do governo.

Está, pois, a República sem partidos políticos.

Só existe e só é possível, na República, um partido — o do governo.

Estamos convencidos de que a República Brasileira, organismo mal nascido e inviável, tem todos os caracteres dos seres inferiores.

Os animais superiores têm uma organização complexa.

O progresso fez-se na sua espécie do simples para o complexo.

Os partidos são, nas sociedades políticas, órgãos da vida nadonal; cada um deles corresponde a uma função e a uma necessidade. A forma política sem partidos é um corpo sem especialização de órgãos, é um ser inferior. É um ser em esboço, rudimentar e quase inerte. É um indivíduo do grau ínfimo, na escala da vida. É incapaz de existência longa e progressiva.

É o caso da República Brasileira. É incapaz de ter partidos.

Não pode haver um partido liberal na República, porque, teoricamente, isto é, no papel, estão promulgadas todas as reformas possíveis e imagináveis. Não pode haver um partido conservador, porque, na prática, isto é, na realidade, não há nada criado.

Pretendem os republicanos brasileiros que a sua República funcione sem oposição. Ora, isto é impossível. Há de sempre haver uma oposição.

Se não for oposição de princípios, será pessoal e oriunda deste simples fato: que no governo não há lugar para todos. Os que ficam de fora hão de ser oposicionistas.

Dentro da República, não podem achar um princípio para tomar como bandeira. Tudo está feito, tudo está legislado. Revogar estas reformas não é possível, porque é máxima republicana que em política não se retrocede.

Perante a História, esse tal conceito é uma tolice; mas, no Brasil, parece que é dogma. Que poderão, na realidade, invocar os oposicionistas republicanos para justificar a sua existência? Nada.

Suponhamos, porém, que algum atilado político descubra uma ideia para dela fazer bandeira de um partido oposicionista republicano.

Fica criado esse partido. Quais são as suas probabilidades de subir ao poder?

Pelos meios legais, não tem esperança, nem meio de subir. — Na República presidencial, o presidente é o homem do seu partido. Como chefe do governo, ele protege os seus partidários e, sendo assim, entre nós, o partido do presidente ganhará todas as eleições. A oposição não terá outro meio de subir, senão por uma revolta vitoriosa, ou por uma traição do presidente, feita ao partido que o elegeu.

Na Monarquia, como a tínhamos, se as eleições não eram perfeitas, ao menos a oposição tinha certeza de que, mais tarde, ou mais cedo, havia de ser governo. O partido dominante gastava-se no poder, a oposição agitava livremente a opinião pública e, se esta simpatizava com os oposicionistas, o Imperador, que atentamente acompanhava o movimento, chamava logo a oposição para o governo.

Na República, não é assim. Ou não haverá nunca oposição, o que será o fim de toda liberdade política e a completa desmoralização do país, ou haverá um governo certo de que nunca há de cair e, portanto, sem escrúpulos, nem freio de espécie alguma, e onipotente, diante de uma oposição sem esperança de vitória legal, aliada natural de todas as tentativas revolucionárias.

Sabemos que agora se fala em parlamentarismo.

Mas, queiram ou não os promotores desse partido, o parlamentarista há de converter-se em monarquista.

A República não quer ser parlamentar; a Monarquia brasileira foi e há de ser parlamentar. Ora, se é de Parlamento que fazem questão os parlamentaristas, é fatal que eles hão de voltar para a forma de governo que é inseparável de um Parlamento e hão de, gradualmente, abandonar a República, que lhes nega esse Parlamento.

Convençam-se os parlamentaristas: se houver uma mudança constitucional no Brasil, ela será completa e radical. Será a substituição da República autocrática de hoje pela Monarquia parlamentar.

Ainda a esse propósito pedimos licença para citar Aristóteles, Liv. VIII, cap. X, § 2º:

«Um sistema político qualquer transforma-se muito mais facilmente num sistema que lhe é diametralmente oposto, do que num sistema com o qual tem próxima semelhança.»

Assim será no Brasil. A República presidencial muito mais facilmente se transformará na Monarquia, que lhe é diametralmente oposta, do que no sistema parlamentar republicano.

***

Tudo o que acabamos de dizer prova a eterna juventude de Aristóteles. O que foi verdade na Grécia é verdade no Brasil.

Fala também o filósofo daquilo que nós modernamente chamamos a crise financeira e da sua influência na política.

Temos já várias vezes pintado a ruína financeira da República, e ainda não fomos contestados. O silêncio dos adversários, aliás tão loquazes, prova que a nossa crítica é irrefutável.

A impossibilidade da continuação das despesas atuais é o mais grave problema da República.

A dificuldade é, sobretudo, temerosa em relação às despesas militares.

Se a República continuar essas despesas, cairá pela bancarrota.

Se diminuir os soldos, as comissões e as gratificações militares, cairá pela revolta da força armada.

A única coisa que a República pode fazer é escolher o seu gênero de morte.

Ainda a esse respeito e para terminar, ouçamos a Aristóteles, que nos conta um caso semelhante, na Política, Liv. VIII, cap. IV, §2º:

«Em Rodes, os demagogos que administraram os dinheiros públicos procederam de modo que deixou de ser pago o soldo aos militares e aos comandantes das galeras. Estes conspiraram e derrubaram o governo.»

Lendo isto, é difícil a gente dizer se Aristóteles conta um fato do passado, ou se faz uma profecia para o futuro.


 

Artigos — II PARTE

 


 

AMAPÁ

Comércio de São Paulo, 14-3-1896.

 

A imprensa, que está discutindo os últimos incidentes do conflito franco-brasileiro no extremo norte do Brasil, não se lembra do ponto principal da questão.

O cônsul francês no Pará escreve uma carta ao governador daquele Estado, dizendo-lhe que, tendo o ministro do Brasil em Paris prometido ao governo francês que o do Brasil não consentiria na volta, ao território contestado, dos brasileiros aprisionados pelo «Bengali» e soltos com aquela condição, um desses homens, o sr. Branco, tinha voltado. Disse o cônsul na sua carta que isto constituía violação da promessa diplomática.

O governador respondeu que o governo do Brasil não podia tolher aos cidadãos brasileiros o direito de locomoção.

Bela resposta, que produziria grande efeito no espírito do governo francês, se este, como todo o mundo civilizado, não soubesse que, no Brasil, a liberdade, não só de locomoção, como de tudo o mais, é a todo o instante tolhida e que a teoria republicana é que o governo está acima das leis escritas e que, já o disse o sr. Cassiano do Nascimento em nota diplomática, no Brasil, as leis da humanidade não se aplicam a rebeldes.

A imprensa está a censurar com razão o cônsul francês abelhudo e a elogiar o governador. Ambos mostraram ser dois funcionários exorbitantes e impertinentes: não tinha o cônsul competência para reclamar, nem o governador autoridade para responder em nome do Brasil, colocando em frente ao estrangeiro a soberania paraense em conflito com a soberania brasileira, representada em Paris pelo sr. Piza.

Aquele diplomata fez a tal promessa e, devida, ou indevida, a promessa internacional devia ser cumprida. Se a promessa era coisa tão monstruosa, como disse o sr. governador do Pará, a culpa cabe ao governo brasileiro, que a fez.

Desenhou-se assim o antagonismo que existe entre o Pará e o Brasil, antagonismo cuja consequência última será a separação, programa confessado do positivismo, que, até em artigos publicados no Diário Oficial, se tem referido aos Estados da União como sendo as futuras pátrias em que o Brasil tem de se dividir.

O ideal positivista vai-se aproximando da sua realização.

Não vemos já o governo central impotente contra os militarismos estaduais, sem força moral, nem física, para nos Estados fazer respeitar a Constituição e as leis?

A separação está feita de fato.

Para ultimá-la, basta que o governador de Pernambuco, ou de Sergipe, mande, um dia destes, uma patrulha à alfândega, com ordem de que a renda arrecadada seja recolhida ao Tesouro estadual.

A separação ficará feita por uma simples portaria do governador.

O Rio de Janeiro não terá outro remédio senão reconhecer esse direito, essa independência, hoje quase consumada na prática.

Não é já o Rio Grande do Sul um Estado independente? É, em relação ao resto do Brasil, mais do que um Estado independente: é um Estado que exerce hegemonia real e imperiosa entre todos os outros, reduzidos a seus vassalos e tributários.

O Rio Grande dita a política no Rio de Janeiro e tem força bastante para obrigar os outros Estados a pagarem as despesas civis e militares rio-grandenses. É o direito do mais forte exercido com toda a franqueza.

No Rio Grande, o separatismo caminha a passos gigantescos. Os federalistas são já, ou serão em breve, todos separatistas, levados a essa solução pelo desespero. Os castilhistas também caminham para lá; temem eles que, de um momento para outro, apareça um presidente de República que suprima o castilhismo. A independência do Rio Grande liberta os castilhistas dessa apreensão. O sr. Castilhos e os seus amigos conspiram contra a integridade do território brasileiro.

Não nos veio, há dias, a notícia de que houve, em Porto Alegre, uma reunião plenária dos castilhistas, com assistência de enviados, de representantes uruguaios, futuros aliados na futura e próxima guerra separatista?

O caso do Pará é mais grave. Daquele extremo norte do Brasil, chegam-nos notícias indicadoras da próxima separação da Amazônia.

Os extremos tocam-se: não é por isso estranho que a grave agitação paraense coincida com as notícias dos planos do castilhismo.

Os últimos jornais estão cheios de telegramas do Pará, protestando com a maior violência contra um ato de política exterior praticado pelo governo do Rio de Janeiro.

O ministro do Brasil em Paris ajustou, em nome do seu governo, com o governo francês, a constituição de um governo misto e provisório no território contestado entre a França e o Brasil.

Não queremos aqui e agora apreciar o valor dessa transação. Os defensores do governo disseram que ele consentiu num acordo, em troca de ser dada cotação na Bolsa de Paris aos títulos do último empréstimo brasileiro. Foi, pois, uma necessidade de dinheiro, e não, um outro motivo de interesse, ou de dignidade nacional que ditou esse ato.

Ora, o governo do Pará, que não tem nada com os apuros do Tesouro federal, não está de acordo e... protesta.

Por enquanto, protesta só, mas protesta com violência e unanimemente. É o governador, é a Câmara dos deputados, é o Senado, são os meetings populares, e todos mandam telegramas cominatórios ao sr. Prudente de Morais.

Se se tratasse de um ato dependente só de s.exa., é certo que s.exa. cederia e mudaria de política e de opinião, como já tem feito todas as vezes que alguém lhe fala em tom áspero e de ameaça. O caso agora é diverso: uma lei interna revoga-se facilmente; uma opinião governamental muda-se conforme a necessidade; mas, quando se trata de um acordo internacional entre dois países, é preciso que as duas partes contratantes consintam na abolição do acordo.

Ora, o governo francês nada tem com a opinião do Pará, e está claro que não cederá. O sr. Prudente de Morais, que se aguente com as fúrias desencadeadas dos paraenses.

Ora, os paraenses falam a linguagem de quem não está disposto a recuar. O sr. Prudente de Morais está com a sua palavra dada à França. Como vai ele agora arranjar-se com os paraenses?

É um conflito: se o que dizem os paraenses é alguma coisa mais do que ruidosa pororoca passageira, a solução será, fatalmente, a separação definitiva da Amazônia.

Terá assim começo o ideal positivista das «futuras pátrias», em que, segundo aquela doutrina oficial da República, deve, fatalmente, ser dividido o Brasil.


 

RESPONDEMOS

Comércio de São Paulo, 24-3-1896.

 

Os brasileiros que, como nós, desejam que no Brasil sejam restabelecidas as práticas de liberdade e tolerância, próprias dos povos civilizados, não são conspiradores.

Se fossem conspiradores, não apresentariam claramente as suas ideias.

Estão por demais patentes, diante dos nossos olhos, os males de um regime saído de uma revolta estranha ao povo, para que queiramos, usando dos mesmos meios dos nossos adversários, — meios que condenamos, — repetir em detrimento da pátria, embora em nosso favor, um desses pronunciamentos sul-americanos,incompatível com a liberdade política a que aspiramos. Desejamos que o governo, seja ele qual for, na dificil missão de dirigir para os seus destinos este grande país, hoje cercado de tantas dificuldades que lhe criaram, erre o menos possível.

E como podemos tomar eficaz esse nosso desejo patriótico, senão exercendo o exame dos atos do governo? Se o governo é de boa fé, ninguém mais do que ele deve desejar que os seus atos sejam conhecidos e criticados.

O ideal dos nossos republicanos é, porém, outro. Querem a treva e o silêncio. Promulgam uma Constituição garantindo a liberdade de opinião, mas anulam-na, usando da violência e da ameaça. E, por uma irrisão, estas garantias de liberdades são repetidas em coro pelas vinte Constituições dos Estados e são de fato suprimidas por toda a parte.

Possuímos bastante filosofia para não termos ilusões. A geração brasileira que, sem resistência, se deixou espoliar da sua liberdade, não merece que esta lhe seja restituída.

O seu destino é figurar em pouco digna postura na história de nossa Pátria. Encontrando-se, ao nascer, numa atmosfera de tolerância e de liberdade, que parecia inalterável, ela se sujeitou, mais tarde, a todos os despotismos. Os homens que uma vez abdicam a liberdade nunca mais a recuperam.

Acima, porém, dos homens, acima dos interesses da nova geração, pairam as ideias de justiça e de liberdade. A História pode ser desfigurada pelos historiógrafos oficiais e interesseiros. Não é, porém, possível iludir a inteligência das gerações futuras, como se rouba a liberdade da geração presente.

Tudo passa, e, se os Impérios caem, as Repúblicas também desaparecem. Mais alguns anos, e os violentos de hoje estarão prestando contas dos crimes que fomentaram ao Deus que sabe todos os motivos dos atos e das palavras dos homens.

A geração que aí vem com a rapidez do tempo e que nos impele para o túmulo com todas as nossas dissensões, os nossos ódios e as nossas faltas, essa, achará a Pátria em ruína e, amaldiçoando a nossa obra, terá como ideal o restabelecimento da civilização brasileira, com a volta à liberdade e à tolerância, bens supremos de que nos despojamos e que os nossos filhos saberão reconquistar.

Trabalha, pois, pela justiça e pela liberdade uma força que nenhum decreto pode agrilhoar e que nenhuma ameaça pode deter.

Essa força é o Futuro.


 

QUAL O RECURSO

Comércio de São Paulo, 25-3-1896.

 

O Estado de S. Paulo é o único do Brasil onde há um serviço de saneamento completo, científica, hierárquica e luxuosamente montado.

S. Paulo é também o único Estado em cujo interior se acha instalada a febre amarela.

Sem querer insistir nesta tão notável quanto curiosa coincidência, devemos encarar a gravidade da situação atual no interior. Não nos compete a nós achar a razão do mal, os excluidos dos direitos políticos e naturais, e que em nossa Pátria somos menos do que estrangeiros, porque estes se fazem temidos e respeitados com as esquadras dos seus governos; a nossa voz, que apenas por tolerância pode articular alguns sons, não será, de certo, ouvida dos que tomaram a si a tarefa de governar.

Não nos dirigimos, pois, ao governo. Há anos que os amigos deste fazem do saneamento um dos seus títulos de glória. Ouvimos os louvores, e agora estão falando os fatos.

Gastaram-se milhares de contos em Campinas, e lá está grassando, com pavorosa intensidade, a febre amarela. Os dois jornais republicanos daquela cidade contam-nos, diariamente, o modo desastrado pelo qual as autoridades têm assinalado a sua intervenção.

O órgão republicano de mais importância nesta cidade disse, há dias, num artigo alarmante, que a situação era horrível e que o Estado não tinha recursos financeiros para debelar a febre amarela.

Apelava o órgão republicano para os municípios. Ora, os municípios flagelados já estão, há muito, apelando para o Estado. O Estado recorre ao município, e este, àquele. No intervalo, morrem os doentes aos milhares, implanta-se a peste maldita, e S. Paulo não tardará a adquirir no mundo a reputação de uma das regiões mais insalubres do globo. Sabemos que não precisamos do estrangeiro e que devemos ser nativistas, para sermos bons brasileiros; mas, não havendo estrangeiros que para cá queiram vir, não haverá quem colha café. Não havendo café, não haverá dinheiro no Tesouro do Estado, e havendo dinheiro oficial, o que será de tudo quanto existe e o que será de todos a quem esse dinheiro interessa?

Compete, pois, aos particulares o cuidar da higiene própria, e nas povoações do interior os particulares podem fazer muito. Convém, porém, que não esperem, para fazer alguma coisa, que o flagelo caia sobre eles. Em tempos normais, reúnam-se, fundem hospitais de isolamento dirigidos por associações, façam-se ouvidos do povo, e terão conseguido grande bem.

À classe dos agricultores, que é rica, cabe a direção deste movimento. Em cada localidade haja uma Sociedade de Higiene, com caráter particular, fundada por fazendeiros e por eles dirigida. Os párocos, pela influência da sua palavra, podem fazer muito, e é de esperar que não se recusem a dar conselhos de higiene aos seus paroquianos desfavorecidos da sorte. Farão obra de caridade e de patriotismo.

O governo nada mais pode fazer, disse-nos quem pode falar pelo governo.

Entendemos que os particulares podem e devem intervir agora, a menos que não queira a população do nosso interior resignar-se, sem um esforço, à miséria e à morte, como já se tem resignado a tudo o mais.


 

AMÉRICO BRASILIENSE

Comércio de São Paulo, 27-3-1895.

 

A vida deste homem, que acaba de morrer no Rio de Janeiro, merece ser estudada. Ela é cheia de ensinos para a nossa geração.

Américo Brasiliense nasceu numa época em que a liberdade não tinha limites no Brasil. Foi cedo político. Naquele tempo, quem tinha talento, tinha ideias e sabia exprimí-las, achava sempre nos partidos um lugar em que podia dar expansão à sua inteligência e atividade.

Américo Brasiliense pertenceu ao partido liberal e foi monarquista.

Como todos os homens do seu tempo, encontrou-se cidadão de um país onde a ordem era completa, onde a liberdade da imprensa era sem peias, onde havia nas leis o preceito imperativo das garantias individuais e, mais ainda, nos costumes, o longo hábito da tolerância política. No Brasil, estes bens supremos não tinham sido conquistados à custa de grandes e sanguinolentas lutas. Chegaremos naturalmente e sem esforço àquele grau de civilização política hoje perdida e que fará a admiração dos historiadores futuros.

Ora, a alma humana é insaciável: houve espíritos que, de boa fé, queriam ainda mais liberdade. Houve também ambiciosos, que, não podendo triunfar na livre concorrência das aptidões, queriam o poder pela força, para pela força o conservarem em proveito próprio. Não refletiam os brasileiros que aquela liberdade e aquela segurança individual de que gozavam correria risco mortal na aventura de uma mudança. As coisas valem pelo sacrifício que custaram; os brasileiros eram livres, sem ter conquistado a liberdade em combate. Não sabiam, por isso, apreciar o bem que possuíam.

Américo Brasiliense foi desses que, acreditando indestrutível entre nós a liberdade, não duvidou aconselhar aos seus compatriotas que destruíssem o regime sob o qual florescia essa liberdade. Pensava ele que se podia suprimir a Monarquia e conservar a liberdade. Errava, julgando que a sorte da liberdade não estava ligada à sorte da Monarquia Constitucional. Erro igual ao de um homem que, querendo derrubar a árvore, pretendesse conservar a sombra.

Para a vitória desse erro, consagrou Américo Brasiliense, durante largos anos, muito talento, muito trabalho, muita boa fé e muita honestidade. Não existia ainda, naquele tempo, a escola política que se vangloria de recorrer a «todos os meios», nem a doutrina da luta em «todos os terrenos», eufemismos grosseiros, que querem simplesmente dizer todos os crimes. Américo Brasiliense, à sombra da liberdade, que não lhe podia negar um governo civilizado, como era o da Monarquia, organizou o seu partido e a sua imprensa. Sua casa era o centro em que se reuniam os republicanos de S. Paulo, e muitos eram os monarquistas que lá iam conversar. Não se tratava de negócios, nem de empresas. Falava-se de política, e a linguagem de Américo Brasiliense era sempre toda de moderação e de honestidade nos seus juizos.

Era uma inteligência muito larga, e a sua ilustração era vasta e variada. Pretendeu ser lente da Faculdade de Direito, e a Monarquia, que não conhecia proscritos, nomeou professor o chefe conhecido do partido republicano de S. Paulo.

Era um doutrinário e um homem honesto na extensão da palavra. Tivesse prevalecido a sua influência no seu partido, e a República, porventura saída desse partido, seria, talvez, diversa da que nasceu das conspirações militares do sr. Quintino Bocaiuva.

Quando a República veio surpreender Américo Brasiliense, foi ele dos que mais apreensivos se mostraram. Nada de bom augurava ele da aventura militar. Via naquela revolução, não um começo de satisfação de todos os apetites, mas o início de uma era de trabalho e de sacrifícios, para os quais nem todos os seus amigos estavam dispostos.

Ele não foi dos que penetraram no governo como numa praça tomada de assalto e entregue ao saque.

Quando foi colocado no governo de S. Paulo, todo o seu desejo foi de moderação, justiça e probidade. Quando os republicanos que lhe eram contrários expulsaram do governo de S. Paulo o seu antigo chefe e o homem mais puro e ilustre do partido, Américo Brasiliense viu, de certo e bem de perto, o erro gravíssimo da sua vida política. Esse erro foi ser republicano no Brasil.

O seu governo foi curto e honesto.

Muitas vezes, teve, certamente, de transigir com as imposições de correligionários. Nunca o fez, porém, sem resistência. Na eleição a que aqui procedeu, por coisa alguma, quis aplicar o indigno Regulamento Alvim, que foi a lei eleitoral que deu à da República o batismo das urnas. Fez modificar a pretensa lei e prestou assim uma homenagem digna, embora platônica, ao princípio da liberdade eleitoral.

Américo Brasiliense escreveu para a imprensa e deu-se ao trabalho de reunir em volumes vários documentos, que a história conservará, para confusão dos chefes republicanos.

Esses documentos são os atos preliminares, os discursos e os programas do partido republicano paulista, no tempo da Monarquia. Que montão de promessas lemos ali! Que desmentidos tremendos não dão as palavras daqueles tempos aos atos de hoje!

Américo Brasiliense amava muito o Brasil. Era um cultor paciente da história nacional. Como professor numa instituição de ensino, fez um curso de história pátria hoje impresso e que conta duas edições. É um trabalho claro, metódico e bem escrito. É uma despretenciosa ampliação de Varnhagen, de Southey e de Pereira da Silva, na parte referente ao primeiro Reinado. Nesse curso de história pátria, o professor cede muitas vezes a palavra ao chefe de partido e a narração torna-se parcial.

Américo Brasiliense, como que por instinto, tinha uma grande aversão ao militarismo. Na lição em que trata da perda da província Cisplatina, diz ele que os brasileiros se deviam resignar de boa mente àquele insucesso, porque foi talvez graças a ele que o elemento militar não tomou grande incremento na nossa sociedade, nem veio a influir na marcha da nossa vida política.

Pois bem! esse homem, que achava que a anulação do militarismo era um bem, que compensava até uma ofensa ao amor próprio nacional — morre em plena República militar e desce ao túmulo nos dias em que se acentua, do modo o mais formal e inflexível, que, no Brasil republicano, o militar é tudo e o cidadão, nada.


 

A QUESTÃO DO CAFÉ

Comércio de São Paulo, 8-4-1896.

 

No periódico inglês Home & Colonial Mail, encontramos uma notícia que vem confirmar o que há pouco dissemos sobre a inutilidade da projetada campanha da propaganda do café na Rússia.

Depois de votar uma tarifa aduaneira que é absurda e que, para muitos produtos estrangeiros, é proibitiva, apresenta-se o Brasil na Rússia a querer introduzir o seu café e pedindo para ele redução nos direitos de entrada.

Um país que, como o Brasil, tem um pesadíssimo imposto de exportação, não tem o direito de pedir a nenhum país diminuição de direitos de entrada sobre seus produtos. Se o Brasil quer que o café seja aliviado de impostos, dê ele o exemplo. O café paga 11 por cento de direito de exportação, imposto anticientífico e condenado pelos economistas.

O governo russo, solicitado pela nossa diplomacia, responderá:

Porque não nos dão os srs. o exemplo? Porque não aliviam o café brasileiro do imposto de exportação.

O caso interessante narrado pela folha inglesa consta da menção de grandes esforços que na Rússia o governo e os particulares estão fazendo para introduzir na própria Rússia a cultura do chá. Como é sabido, a Rússia é, quanto ao chá, tributária da China, donde importa anualmente perto de vinte milhões de quilos de chá, o que equivale a mais de oito milhões esterlinos.

Parece, porém, que está provada a possibilidade do cultivo do chá no próprio território russo.

O sr. Solvotzoff plantou chá com grande sucesso, na Transcaucásia, nos arredores de Batum e fez em grande escala esta cultura. O seu exemplo foi seguido com entusiasmo por um grande número de cultivadores, que estão fazendo grandes compras de terras na Transcaucásia.

Foi acompanhado na sua tentativa o sr. Solvotzoff pelo Departamento dos Domínios Imperiais, isto é, pelo governo, que também mandou comprar terras e plantar chá, mostrando-se muito interessado no sucesso da empresa, que os russos consideram lucrativa e patriótica.

Dizem que as novas plantações são, em geral, modelos de perfeição, quanto ao plano de cultura, caminhos, máquinas e outros arranjos. É convicção geral que, dentro de muito poucos anos, a Rússia não dependerá mais do estrangeiro quanto ao chá. Os resultados já obtidos demonstram que a natureza do solo e o clima da Transcaucásia são altamente favoráveis à nova cultura.

O governo russo, interessado no assunto, mandou uma grande missão científica à China, à Índia, a Ceilão, ao Japão e à Califórnia, para estudar em todos os seus particulares a questão do chá, obter mudas e sementes, devendo também contratar um pessoal habilitado para dirigir as culturas incipientes, assim como trabalhadores japoneses. Ora, o chá é, em todos os mercados, o antagonista natural do café e, na Rússia, considerações de ordem econômica e, mais ainda, de ordem fisiológica, militam em favor do chá. Beber chá é um meio de absorver a quantidade de água necessária para a nutrição humana, e esta água, sendo tomada bem quente, como acontece com o chá, comunica a todo o sistema um bem-estar e um conforto inapreciáveis, num clima frígido como o da Rússia. Estas absorções de água quase fervendo repetem-se muitas vezes durante o dia e em quantidade que o café não permite, porque não haveria estômago capaz de suportar uma quantidade de café igual à de chá que pode qualquer indivíduo absorver impunemente.

Tinha o nosso café contra si, na Rússia, todas estas desvantagens. Que não vai ser, agora, que o chá se transforma num produto russo, o objeto de uma cultura que o governo favorece com tanto interesse e que, certamente, protegerá por todos os meios?

As propagandas nada podem contra situações econômicas que se originam de fatos naturais. Será loucura pretender modificar com meios artificiais estas situações, tanto mais que se vai lutar contra a vontade e a ação do governo russo.

Segundo Mulhall, o consumo de café na Rússia tem sido o seguinte:

 

ANOSTONEL.IMPOR.CONS. PER HABIT.
18606.0003 onças
18707.0004 »
18808.0004 »
18875.0002 »

 

Vê-se por este quadro que até 1880 o consumo aumentava gradualmente.

Em 1884, fez-se a grande propaganda do café brasileiro na Rússia, e logo, atraída a atenção do governo russo para aquele produto tão ruidosamente apregoado, foi decretado um novo imposto sobre o café, e o resultado nos dá a estatística: uma diminuição de mil toneladas na importação e o consumo anual por cabeça, passando de quatro onças a duas onças.

A importação do café brasileiro na Rússia vai crescendo naturalmente, apesar dos direitos de importação. No Rouskii Kalendar 1885 goda, de Souborine, vemos que o valor, em francos, de café que a Rússia importou do Brasil, em quatro anos, tem sido o seguinte:

 

1889188018911888
FrancosFrancosFrancosFrancos
3.447.9003.909.6001.128.6005.988.800

 

O último algarismo mostra um aumento considerável. Uma nova propaganda do café trará, com certeza, aumento dos direitos de importação e consequente diminuição do consumo.

A Rússia não tem motivo para contemplações com o Brasil. A sua exportação para o Brasil é nula. Em 1889, a Rússia exportou para o Brasil mercadorias no valor de 537.300 francos, e, em 1891, graças ao aumento das tarifas aduaneiras do Brasil, esta exportação caiu a 2.700 francos.

Vamos agora ter outra propaganda: a quanto baixará a importação do café no Império moscovita?

O preço do café já baixou na Europa. O sr. Muniz Freire veio fazer um grande dano aos nossos agricultores.

S.exa. largou de seu palácio governatório da Vitória e cá veio propagandear a propaganda russa...

Escreveu, e o presidente de S. Paulo com ele assinou um papel, em que se dizia que a produção do café era superior ao consumo. Esta falsidade, ou esta exageração, apareceu assim prestigiada com a palavra oficial.

Foi logo telegrafada para a Europa, os baixistas apoderaram-se dela, apregoaram-na em todos os tons e em todos os cantos, e o resultado foi a queda do café nos mercados europeus. Causaram os srs. governadores aos agricultores brasileiros um prejuízo de muitos milhões contos.

Satisfizeram, porém, a sua vaidade.

O sr. Muniz Freire, esse, satisfez alguma coisa mais. O iniciador da propaganda russa convenceu aos seus colegas de que o dinheiro é o nervo da propaganda, e os colegas, sem autorização dos Congressos respectivos, atribuíram à dita propaganda a quantia de 2.000 contos. Decididamente, feita a coisa assim autocraticamente, para dar-lhe um caráter bem russo, veio a gente a saber uma coisa bem curiosa.

É o sr. Muniz Freire o escolhido para o comando em chefe da propaganda. À frente dos valentes dois mil contos do contribuinte, s.exa., acompanhado de um luzido estado maior, vai invadir a Rússia. Dará batalhas campais e, novo Napoleão, a sua retirada da Rússia será feita com o câmbio a muitos graus abaixo de zero e os dois mil contos lá ficarão, nas neves, para maior glória da sabedoria e da economia republicanas.

***

Pretende-se desenvolver o consumo do café com o fim de favorecer a nossa agricultura. Ora, não se alarga o consumo de um gênero, senão tornando-o mais barato, e, para torná-lo mais barato, é preciso diminuir o seu custo de produção e de transporte. O mais, isto é, propaganda e comissões na Europa, são apenas novos desperdícios e sacrifícios inúteis feitos à custa dos contribuintes.

O governo, se na verdade tem desejos de alargar o consumo do café na Europa, o que deve fazer é trabalhar quanto couber em suas forças para que o café chegue mais barato aos portos europeus.

E essa diminuição no custo da produção e do transporte, único meio de aumentar o consumo, seria muito fácil de conseguir.

O governo de S. Paulo, para governar, com simplicidade democrática, menos de dois milhões de almas, não necessita das avultadas rendas que todos os anos recebe e que só servem para sustentar um exército de funcionários largamente remunerados. Se este governo se sente apoiado pela opinião pública, não precisa também de grande número de baionetas para sustentá-lo. Uma resumida guarda cívica, à moda suíça, ou norte-americana, bastaria para o caso. Porque não imita o governo estadual aqueles modelos que os republicanos tanto exaltaram noutro tempo? Ora, sendo assim, e se o governo quer que o uso do café se generalize no mundo, faça com que o café fique mais barato. Está nas suas mãos: diminua o onerosíssimo imposto de 11 por cento sobre a exportação do café, e o consumo logo crescerá. O governo deveria ter impedido o grande aumento que nos últimos tempos têm tido as tarifas das nossas estradas de ferro. Se tivesse cumprido esse dever, a agricultura não sofreria os pesados fretes que hoje tem de pagar, e o café, chegando mais barato à Europa, seria mais consumido e não haveria motivo para recear uma crise de exagerada produção, como a que o governo oficialmente anunciou. Longe de atender a isso, o governo republicano consentiu no atual e despropositado aumento das tarifas das estradas de ferro e, em relação à estrada de ferro Inglesa, fez favores escandalosos e inexplicáveis, em detrimento da lavoura e do público em geral. Se o consumo do café se retrai na Europa, é porque este gênero subiu a altos preços, e contribuiu para esta alta o ônus de que o café é sobrecarregado no preço de transporte, ônus que é devido ao governo republicano. Não venha, pois, o mesmo governo chorar a diminuição do consumo, quando ele tem tanta culpa deste fato.

Outro lado da questão é o preço e a dificuldade do trabalho agrícola. O preço e a facilidade do trabalho agrícola, tal se acha ele organizado entre nós, dependem da boa ordem do serviço público importantíssimo da imigração. Ninguém ignora que o governo paga a passagem do imigrante europeu. Ninguém ignora também que às companhias de vapores, que recebem apenas 80 francos por passageiro de terceira classe, o governo paga 130 por imigrante, sendo os restantes cinquenta francos divididos pelos intermediários, contratadores daqui, ou da Itália, e seus respectivos patronos e advogados políticos e administrativos.

As companhias de vapores transportam passageiros de terceira classe de Santos para a Europa a 50$000 réis, e isto prova quanto é exagerado o pagamento das passagens de imigrantes a 130 francos.

Contratasse o governo o pagamento das passagens diretamente com as companhias de vapores, prescindisse da advocacia administrativa e, com a mesma quantia atualmente despendida, traria para S. Paulo, isto é, para a agricultura, um terço mais de trabalhadores do que os que vêm atualmente. Isto, quanto à quantidade dos braços. Quanto à qualidade do imigrante, há muito que dizer: o governo está pagando passagens de famílias de mendigos, de enfermos de doenças incuráveis, de crianças raquíticas e escrofulosas, de cegos e, até, de surdos-mudos! Pois bem: se o governo cumprisse o seu dever neste assunto de imigração, a lavoura, dispondo de muito maior e melhor número de braços, produziria café com menor custo, e isto traria alargamento natural do consumo.

Vemos, portanto, que o governo tem feito tudo quanto tem podido para tornar mais cara e difícil a produção e o transporte do café. E, depois, vêm lastimar-se os presidentes dos Estados cafelistas de não se alargar o consumo do café! Proceda o governo de modo que saia mais barata a produção do café, e só assim conseguirá que o seu preço diminua sem prejuízo do produor e o consumo se alargue com vantagem para a agricultura nacional e para a riqueza pública.

Os principais meios para a redução do custo de produção e transporte de café são os seguintes:

Melhorar e moralizar o serviço de imigração; redução das tarifas de estradas de ferro; diminuição do imposto de exportação.

E, reduzido o custo de produção do café, o consumo universal se alargará. Não é indo deitar fora 2.000 contos na Rússia, que se conseguirá alguma coisa de útil para a lavoura.


 

A ALIANÇA ANGLO-AMERICANA

Comércio de São Paulo, 10-4-1896.

 

No último número da célebre revista de New York, The Forum, um notável pensador americano, Sidney Sherwood, professor na «John Hopkins University», escreveu um brilhantíssimo artigo, demonstrando que a política exterior mais racional para os Estados Unidos é a de uma estreita aliança com a Inglaterra.

Esta opinião, emitida por um homem de alto valor e apregoada na mais conceituada revista norte-americana, não exprime um sentimento individual, nem é um paradoxo literário e político. Poderá ela causar certa surpresa aos nossos monroistas, ignorantes do que é o verdadeiro sentimento nacional norte-americano. Esse sentimento não é, como aqui se acredita, o de fraternidade e de solidariedade com as Repúblicas que, nesta pobre América Latina, macaqueiam a Constituição Americana e se mostram sempre incapazes de adaptar-se à liberdade. Domina o espírito do povo americano a inabalável convicção da superioridade de sua raça sobre a dos outros povoadores do continente.

Como os ingleses, os americanos acreditam que o destino da raça que fala inglês, raça que Carlyle chamava — os súditos do rei Shakespeare — é a dominação universal. Só dois povos tiveram tão forte na história este instinto: os romanos e os ingleses.

Pode haver uma divergência momentânea entre a Inglaterra e os Esdos Unidos. Não poderá haver uma luta. Está passada a efervescência causada pela célebre mensagem do presidente Cleveland. Por um comum acordo, nascido do espírito prático da raça saxônia, ambos os contendores puseram uma pedra em cima do incidente. Nas chancelarias de Washington e nas de Londres, não se fala mais em Venezuela, com grande surpresa desta e dos latino-americanos, que tomaram as coisas ao pé da letra. O Congresso brasileiro, tomando o partido de Venezuela contra a Inglaterra, fez a sua costumada figura ridícula.

O Congresso norte-americano nem se dignou responder aos telegramas dos legisladores brasileiros; só estimou a coisa o nosso adversário francês. A nossa posição, quanto ao território contestado da Guiana, é a mesma da Inglaterra em Venezuela. Nós invocamos, para a nossa pretenção de donos do contestado, os mesmos princípios, quanto aos antecedentes históricos e quanto à ocupação, em que a Inglaterra se funda em relação à Venezuela.

A nossa contenda com a França vai ser sujeita ao arbitramento, e o advogado da França não deixará de citar o ato do Congresso brasileiro, como um repúdio indireto, feito pelo Brasil, dos princípios que ele mesmo invoca. E este argumento pesará, talvez, na consciência do árbitro, porque, se todos nós sabemos que o sr. Francisco Glicério não é o Brasil, o Congresso deste senhor, perante o estrangeiro, figura como a representação da nossa Pátria.

O sr. Sydney Sherwood estabelece no seu magistral artigo que a política externa tradicional dos Estados Unidos, a qual consiste em evitar toda interferência americana na Europa e toda agressão europeia na América, é uma politíca que não corresponde mais nem à realidade das coisas, nem às aspirações do povo americano. A base histórica desta política é a velha ideia do isolamento absoluto da América em relação ao resto do mundo. Este isolamento era relativamente verdadeiro no começo do século. Mas, pergunta o escritor americano, esse isolamento já não é uma verdade? As duas regras da política internacional americana foram deduzidas de condições políticas econômicas que já não existem. As transformações deste século destruíram o isolamento de outrora.

«Os contemporâneos dos fundadores da República Norte-Americana, imbuídos de indignação contra os abusos de Jorge III na América, ficaram com a noção de que a Monarquia inglesa e todas as Monarquias europeias eram hostis à liberdade e, por isso, não desejavam os nossos pais vê-las alargar os seus domínios na América,»

«Ora, diz o sr. Sydney Sherwood, a Inglaterra é hoje mais democrática do que os Estados Unidos e, poderia acrescentar, são governos livres os de todas as Monarquias europeias, exceto a Rússia. Sendo assim, não há mais motivo para os americanos não quererem a extensão do poder inglês no continente.

«Opormo-nos a uma pacífica extensão do governo inglês na América espanhola, seria opormo-nos ao progresso da verdadeira democracia. Pela minha parte, estimaria muito ver o governo colonial inglês estabelecido em Cuba».

Diz o escritor americano que as condições econômicas dos Estados Unidos estão hoje mudadas e que os Estados Unidos não podem continuar isolados. A sua indústria atingiu já quase o seu limite máximo. Entrou a grande República no seu período de expansão. E esta expansão, em vez de ser contra a Inglaterra, deve ser com a Inglaterra.

A aliança da Inglaterra com os Estados Unidos será garantia da paz universal e a supressão de todas as práticas de selvageria que ainda afrontam a civilização em diferentes países.

«Para nós, os americanos, diz o sr. Sydney Sherwood, o melhor meio que temos de promover o estabelecimento em toda a América de bons governos e de instituições livres, é animar e favorecer a influência inglesa. A Inglaterra, sob a forma monárquica, é hoje uma das nações mais democráticas do mundo e todos os ingleses são adeptos intransigentes da liberdade política. Em qualquer parte onde eles estabelecem uma colônia, estabelece-se, de direito e de fato, um governo livre.

«E sempre que a Inglaterra ocupa um país estrangeiro — como acontece no Egito — há logo toda a garantia de justiça nos tribunais, de ordem e de paz para os cidadãos e para o comércio, e uma escrupulosa e sólida administração financeira. Os ingleses são firmes e sólidos; se não têm grandes sentimentalismos, tratam melhor dos interesses dos povos que governam, do que seriam capazes esses próprios povos de o fazer. Nós, os americanos, sectários de um governo democrático, devemos desejar que a influência inglesa se estenda por todo o mundo.»

Depois destas palavras, o sr. Sydney Sherwood diz, em relação à Inglaterra, que «o melhor é desprezar a doutrina de Monroe e favorecer até o crescimento da influência inglesa no resto da América, para bem e engrandecimento das nações americanas». «O crescimento econômico e a civilização das nações americanas (coisa que o autor diz serem as consequências do domínio inglês) são muito do interesse dos Estados Unidos. Nós não podemos colonizar, e a Inglaterra pode e a dominação inglesa quer dizer desenvolvimento econômico.

«A extensão do comércio inglês, o estabelecimento dos ingleses no território de todas as Repúblicas sul-americanas, é um bem para os Estados Unidos. Os ingleses estabelecem uma ordem de coisas sérias e dão uma base sólida e honesta para o desenvolvimento de nossas relações comerciais com aqueles países».

O sr. Sydney Sherwood acrescenta que seria loucura dos Estados Unidos o tentar contra a Inglaterra a mesma luta comercial e militar que, durante mais de um século, a Inglaterra sustentou contra a Holanda. Os sacrifícios seriam enormes e o resultado, duvidoso.

Terminando, diz o escritor americano:

«Só teremos a lucrar com a nossa atitude de franca e positiva amizade para com a Inglaterra. Precisamos dos capitais ingleses; compraremos os seus produtos manufaturados e ela nos comprará os nossos produtos agrícolas. Devemos iniciar francamente uma obra de cooperação.

«O resto do mundo chamará, sem dúvida, a nossa aliança um instrumento de opressão.

«Essa aliança será justificada em si mesma, porque ela será uma combinação das forças econômicas, políticas e morais que mais têm adiantado no mundo a obra da civilização. E será inatacável esta firme união entre todos os povos da raça e da língua inglesa. Ela se baseará na nossa superioridade de métodos industriais, no nosso amor e na nossa prática da liberdade e da tolerância política, e na nossa preeminenda moral Os povos que quiserem viver ao nosso lado, nós os forçaremos a viver livres como nós».

***

Meditem os sul-americanos sobre as palavras que aí ficam.

Na América, há um problema superior a todos os outros. Esse problema é o da coexistência dos povos latinos e dos ingleses.

Estes têm sobre nós muitas superioridades. Eles são livres e não admitem tiranias. São mais numerosos, mais ricos e mais fortes.

Temem a Deus, e as classes governantes, na América do Sul, são compostas de ateus e de indiferentes.

Se, no nosso estado atual, entrarmos em luta com eles, desapareceremos, como nações, da face do planeta. E esta luta tem fatalmente de vir.

Que farão os pobres sul-americanos para resistir?

Nós somos dos que pensam que só a prática da mais ampla liberdade social e política poderá garantir o futuro latino da América.

Nós somos dos que estão convencidos de que só a fé no cristianismo poderá dar aos indivíduos a elevação moral indispensável para que a civilização, pela liberdade e pela tolerância, possa ser entre nós uma verdade.

Se os povos latinos recuperarem, um dia, a liberdade e se se voltarem os seus governos ao cristianismo, poderemos garantir no futuro a existência das nossas pátrias. Se, triunfando sempre os nossos adversários, predominar o espírito bárbaro, que é a causa da supressão da liberdade e da tolerância, e se a impiedade dirigir os conselhos das nações sul-americanas, nós, os descendentes dos colonizadores ibéricos, tudo perderemos, a nossa língua e as nossas pátrias, diante da fatal invasão dos saxônios, homens livres e cristãos.

Como as tribos de Canaã desapareceram para sempre diante do exército predestinado de Josué, nós desapareceremos ignominiosamente na história diante da invasão saxônia.

«Os povos que quiserem viver ao nosso lado, nós os forçaremos a viver livres como nós.» Eis aí a frase-programa que, pela boca profética do sr. Sydney Sherwood, dizem os novos romanos, os homens da raça que fala inglês.»

O escritor não completou a frase; mas não é difícil adivinhar o resto. Os povos que persistirem em não querer ser livres, que mantiverem a política da perseguição, do ódio, da violência, enfim, a política anticristã - e antimoral dos militarismos sanguinários e dos jacobinismos proscritores, esses povos serão suprimidos.


 

O PERIGO ARGENTINO

Comércio de São Paulo, 12-4-1896.

 

Telegramas de Roma, de ontem, dizem-nos que está ultimada a compra, pelo governo argentino, do cruzador italiano Varese e do grande transporte de guerra Liguria. É mais uma aquisição bélica, efetuada pelos nossos vizinhos, que muito deve fazer meditar os homens que estão governando o Brasil.

A inércia e o esquecimento da história têm levado a nossa imprensa a descurar, quase completamente, dos formidáveis armamentos que, há quase dois anos, se estão fazendo em Buenos Aires. Desanimados diante das nossas desgraças interiores, os brasileiros preferem não pensar na política exterior. Pensam que é suprimir o perigo o recusar encará-lo. E esta política de imprevidência suicida justificam—na os fatais otimistas, dizendo que os armamentos da Argentina não são contra nós e, sim, contra o Chile. Em França, no tempo de Napoleão III, dizia-se também que os armamentos prussianos eram contra a Áustria. A derrota de 1870 mostrou a verdade aos otimistas franceses.

Quem lê os grandes jornais diários de Buenos Aires que o correio nos traz vê, desde há muito, uma ou duas colunas de notícias militares. Ora é a descrição completa de importantíssimas manobras, em que perto de 30.000 homens tomaram parte, ora é a descrição de novos fuzis adotados, de novos e sempre mais numerosos canhões importados da Europa. É a partida de oficiais argentinos encarregados de novas compras; é a guarda nacional em armas fazendo manobras; é a tropa fazendo exercício de embarque e desembarque; é a esquadra, composta de admiráveis cruzadores e de vasos de guerra (última palavra do progresso naval) sempre de prontidão, entrando e saindo do estuário, subindo e descendo o rio. É toda a organização de uma grande guerra que se prepara.

A República Argentina tem, é verdade, pendente um litígio com o Chile. Este litígio debate-se no campo da diplomacia: a divergência não é, porém, insanável. O seu objeto, pequenos pontos de interpretação do tratado de limites, não é desses que tornem impossíveis concessões recíprocas. Com dois traços de pena, pode terminar amigável e rapidamente, a qualquer momento, o chamado conflito chileno-argentino. É até incompreensível que, por tanto tempo, os negociadores argentinos tenham prolongado a situação. Parece ter havido um deliberado propósito de deixar aberta, esta questão chilena, enquanto se avolumam os armamentos e o exército completa, os seus quadros, e os seus aprestos de campanha. Que política é essa, na aparência tão contrária aos próprios interesses argentinos? Seria muito mais comprensível o ter dado já à dificuldade uma solução, que todos reclamam em Buenos Aires.

Esta demora tem todas as aparências de um ardil engenhoso e de um hábil estratagema, destinado a enganar a todos sobre o fim verdadeiro dos colossais armamentos argentinos.

Convém fazer acreditar que a tempestade arrebentará nas Cordilheiras e que a guerra será com o Chile. Quem sabe se as nuvens, mudado o vento diplomático, não virão para a margem esquerda do Prata e se a guerra não será com o Brasil?

Duas falsas ideias têm contribuido para que entre nós muita gente confie na paz inalterável com a República Argentina.

Uma é que o natural e histórico antagonismo argentino-brasileiro diminuiu, desde que o Brasil adotou as instituições republicanas. Outra ideia falsa é que, decidida a questão das Missões, desapareceu do horizonte toda a possibilidade de uma guerra entre o Brasil e a Argentina. A identidade da forma de governo não implica a paz e a amizade entre as nações. Quantas guerras não têm tido entre si, apesar das grandiloquentes fratemizações, as Repúblicas hispano-americanas?

E não vemos na Europa a única das grandes potências que é República em estreita aliança com o único poder autocrático e despotico daquela parte do mundo?

Quanto à questão das Missões, convém lembrar que ela não era a causa essencial e primária do antagonismo entre o Brasil e a Argentina. Era um acidente desse antagonismo, que tem causas mais antigas e naturais. Aplainou-se o acidente, a rivalidade continuou.

Para bem se compreender esta situação, é preciso filosofar um pouco sobre a política sul-americana.

Há no continente americano três potências que, relativamente, são de primeira ordem: o Brasil, a República Argentina e o Chile. Cada um desses países tem diante de si o respectivo problema do desenvolvimento.

O Brasil tem a missão de manter e fortalecer a sua unidade, de povoar o seu imenso território e, tendo mais de mil léguas de costa, o seu destino é ser também um poder marítimo.

Desde alguns anos, o Brasil parece mostrar-se incapaz de realizar a sua missão, e como que se compraz com tudo quanto se opõe à realização do seu admirável destino. Enfraqueceu e comprometeu a obra da sua unidade, adotando um sistema político que tem a separação dos Estados como sua final consequência, hoje francamente aconselhada e ambicionada por muitos; viu o Brasil criar-se com favor e complacência dos governantes a escola do jacobinismo nativista, que, se prevalecer, arredará o concurso estrangeiro e impedirá o povoamento; vimos, finalmente, e permitimos com indiferença, a destruição do nosso poder marítimo. A atitude do Brasil nos últimos anos tem aparências de um deliberado suicídio. Parece que nos mostramos inferiores ao nosso próprio destino. É um caso de letargia nacional, uma morte que, por ora (podemos ter esperança), é uma morte aparente.

O Chile tem como campo da sua atividade a zona da terra compreendida entre o Pacífico e os Andes. É sua a hegemonia, sem contestação, na parte sul-americana daquele Oceano. A expansão chilena é e será para o Norte, onde ele se irá apoderar de regiões que já duas vezes invadiu e dominou, e onde encontra os produtos dos países tropicais e de que precisa para complemento da sua riqueza nacional, que já conta com todas as produções dos países frios e com as suas minas riquíssimas.

A Argentina é uma potência mediterrânea, vasta e larga no espraiamento das suas férteis planícies, aviventada pela circulação dos seus rios e dos seus facílimos caminhos de ferro e pelo influxo da imigração estrangeira, que lá não encontra jacobinos, nem nativistas. No seu desenvolvimento, tem o povo argentino três aspirações de ordem histórica e sentimental, e também de ordem econômica. A aspiração histórica, afagada pelos estadistas, sempre planeada, sempre desejada, sempre apregoada pelos escritores e sempre ambicionada por todo o país, é a reconstituição, sobre a forma de uma nação unida, do antigo Vice-reinado de Buenos Aires, compreendendo a Argentina, o Paraguai e o Uruguai. É dupla a aspiração econômica: consiste ela em dotar a Argentina com territórios onde haja todos os produtos da zona tórrida e em ter portos no Atlântico que lhe facilitem o desenvolvimento do seu poder marítimo e que a aproximem da Europa.

Ora, não é com o Chile que a República Argentina terá de contender para realizar essas tão justas ambições. O Chile pertence a outro sistema, tem uma órbita de marcha e desenvolvimento que nunca virá a incidir com a da Argentina. O Chile, como esta, procura a zona tórrida, mas irá atingi-la no Peru e no Equador, onde não encontrará a Argentina para disputar-lhe o passo.

A Argentina tem suas vistas sobre o Paraguai, seção do antigo vice-reinado, cuja reconstituição ela almeja, e para as regiões de Mato Grosso, onde todas as culturas tropicais encontram terreno favorável. Senhora dessa região, a República Argentina será um dos mais ricos e poderosos países do globo. Será um grande país agrícola e pastoril, e a sua agricultura será universal. Terá a vinha, o trigo, o açúcar, o café, o chá, o cacau, a borracha, numa palavra, ficará independente do resto do mundo quanto a todos os produtos da terra.

E, para um país destes, não basta, como saída para o exterior, o estreito corredor do Prata. É preciso uma porta larga e franca para a navegação: é preciso um porto no Atlântico.

Nada disso se acha em discussão na atual pendência com o Chile.

O litígio chileno-argentino já foi resolvido em 1881 na sua parte essencial. A Patagônia ficou pertencendo à República Argentina e o Estreito de Magalhães, ao Chile. Trata-se agora de interpretar minúcias e qualquer dos países pode ceder das suas pretensões, sem prejuízo, nem desar.

O mesmo não acontece em relação a nós.

É verdade que a República Argentina não tem hoje nenhuma pendência diplomática conosco. Isto, porém, a ninguém pode tranquilizar.

Não há litígio diplomático nenhum entre a França e a Alemanha, ou entre a França e a Itália. E quem poderá sustentar que uma guerra entre aquelas potências não é muito possível e até provável, em qualquer ocasião? A pendência diplomática surge quando é preciso. A questão de limites entre o Chile e a Argentina ficou resolvida pelo tratado de 1881, como, em 1895, ficou resolvida a questão das Missões pela decisão do árbitro escolhido. O conflito atual chileno-argentino surgiu com a demarcação. Ora, a demarcação dos limites do território de Palmas ainda não está feita...

Não será essa a ocasião escolhida pelos nossos adversários? A pequena nuga da demarcação poderá servir de pretexto para a tentativa de alargamento territorial, que consistirá, no caso de uma vitória argentina, na anexação do Paraguai, do Uruguai e de Mato Grosso.

Essa grande guerra de conquista é o pensamento constante e nem sempre secreto dos patriotas argentinos.

Cabe aos que dirigem o Brasil um sagrado dever de vigilância.


 

A EPIDEMIA

Comércio de São Paulo, 19-4-1896.

 

Continua em diferentes localidades do interior a febre amarela a produzir os seus deploráveis resultados e, de todos os pontos atacados, ainda de nenhum se retirou completamente esse esquálido e importuno hóspede. Causa dó o aspecto de algumas cidades flageladas: percorrem-se ruas, quarteirões inteiros de casas fechadas e no semblante do raro transeunte está pintado esse estado de indiferentismo a que chega a alma humana, batida, uma após outra, das rajadas da adversidade. É que o habitante dessas cidades, que nelas ainda vive, viu já saírem para a viagem de onde se não volta muitos dos seus, assistiu à ruína do seu pequeno comércio, ou da sua industriazinha, porque, parco de recursos, teve de contemplar todos os horrores da tormenta, sem ao menos poder fugir; a sua fuga e dos seus importava na perda de quanto possuía e em despesas de mudança e de novo estabelecimento, que ele não podia fazer. Felizmente, a estatística mortuária não acusa número tão grande de vítimas, como era de esperar de moléstia assim mortífera e que alastrou por tamanha extensão.

É relativamente pequena a população urbana do interior; a maior parte dos habitantes, fazendeiros, ou trabalhadores, residem nas fazendas, e estas ainda não foram atacadas do cruel morbus; além disso, logo que uma cidade é afetada, fogem dela todos os que podem; ficando só aqueles a quem a penúria veda o êxodo. Não é, portanto, ainda tão avultado o mal presente da epidemia; por enquanto, só tem sofrido e desaparecido, quase, a prosperidade das povoações afetadas: o seu comércio, a sua indústria, a sua riqueza predial. A administração superior não sentiu, por ora, os efeitos do flagelo; ela haure os recursos do seu orçamento da lavoura de café; e esta vive das fazendas, onde o mal não fez ainda a sua entrada.

É certo que nos centros imigrantistas, a notícia da devastadora epidemia em S. Paulo, explorada pelos nossos adversários e concorrentes, produz já maléficos frutos; entretanto, o grande mal não chegou, porém se aproxima.

Todos se recordam, de que a febre amarela apareceu no interior de S. Paulo por casos isolados; depois, avassalou uma cidade, depois, outra, e outra, no correr dos tempos, e, por último, não tem poupado mesmo as estações, os pequenos núcleos de população; ora, isto é um aviso de que, mais tarde, ela aparecerá nas fazendas e, então, a vida do futuroso Estado de S. Paulo estará completamente desorganizada.

Para este imenso mal que se avizinha não se descobre o remédio. A administração pública não sabe, não quer, ou não pode vencê-lo; têm-se escoado rios de dinheiro na faina do saneamento, e o estado sanitário piora consideravelmente. Dir-se-ia que o dinheiro é mal gasto e em pura perda, ou que Deus amaldiçoa os esforços dos nossos administradores. Da iniciativa particular é licito duvidar-se; o povo brasileiro, que tem assistido inerte ao confisco de todos os seus direitos, de todas as suas garantias, de todas as suas liberdades, e o ao esbulho do território e à imposição de cruéis vexames da mão do estrangeiro, não agirá contra um inimigo invisível. Observa-se na fisionomia moral da sociedade, nestes tempos calamitosos, um sintoma característico das épocas de decadência: os nobres sentimentos abandonam a alma dos homens, onde são substituídos pelo amor dos prazeres, do luxo e pelo seu consectário — o egoísmo. Quando uma cidade é invadida pela epidemia, cuidam todos de abrigar-se em lugar seguro — as autoridades, o Foro, a Câmara Municipal, a polícia, todos. Só uma entidade não tem fugido — a Igreja.

O antigo morador das cidades assoladas pela febre amarela ouve ainda, ao cair da tarde, o velho sino da matriz tocar a Ave Maria; à mesma hora, como no tempo da sua infância, escuta os repiques que anunciam a missa paroquial e vê no altar a figura singela do vigário a pedir ao Deus de clemência pelos vivos e pelos mortos. Quando sucede cair um desses apóstolos do dever vitimado pela peste, vai imediatamente outro substituí-lo, e, quando ainda o segundo morre, como em Araraquara, lá está, no dia seguinte, o seu substituto. E enquanto estes modestos soldados do Evangelho sucumbem ignorados no seu posto do dever e do sacrifício, os apóstolos do livre pensamento, os que substituíram Deus pela razão, ficam de longe a salvo e em lugar seguro, vencendo pingues ordenados, ou recebendo ruidosas ovações pagas pelo Tesouro público.

Felizmente, os crentes, os que têm fé, sabem que Deus tem salvo sempre a humanidade pelo sofrimento, e, por isso, eles têm esperança no futuro.


 

«A LIBERDADE»

Comércio de São Paulo, 6-5-1896.

 

Ao mesmo tempo que, em Santos, era unanimemente absolvido um militar que, com os seus subordinados, destruiu dois jornais, aparecia no Rio o esperado jornal monarquista que, relembrando o maior bem que a Monarquia nos deu, tomou o nome de «Liberdade». Para obter aquela sentença de um júri formado a dedo, tudo se pôs em jogo. Houve cabala de jurados, houve promessas, e o réu foi tão feliz, que encontrou um deputado estadual para ir glorificar o seu crime, e um juiz bastante esquecido de seu dever, para não apelar da sentença. Dias antes, o homem, que é o diretor da República, fazia um brinde num jantar em S. Paulo e toda a sua política revelou-se na frase característica de que os governos devem preferir ser temidos a ser amados. Era a filosofia das senzalas e a que regulava as relações do senhor para com os escravos.

Num país que estes fatos se sucedem e em que a opinião pública merece, pela sua indiferença, todas as afrontas que lhe são feitas, é naturalmente caso estranho o do aparecimento de um jornal não partidário do governo. Os proprietários do novo órgão viram-se ameaçados nas suas pessoas, e no escritório da sua folha não estão mais livres de uma violência material, do que o sr. Prudente de Morais no seu palácio. Num país em que não há garantia para os cidadãos, os governos também não têm segurança do dia de amanhã. É tão revolucionário atacar a força armada um inerme cidadão, como rebelar-se contra o governo. A injúria feita à lei é a mesma. Enquanto o cidadão não for livre, o governo não terá nem dignidade, nem duração.

Não são ambiciosos os homens que preferem os sacrifícios inseparáveis da sustentação de uma causa perseguida aos proventos de uma fácil, embora indecorosa, adesão, que lhes abriria todas os posições, onde se formariam por seus talentos e por suas competências. Sabem que no seu trabalho o seu maior colaborador é o tempo e sabem também que a sua missão é apenas a de desbravar o terreno, removendo os entulhos da ruína nacional e educando a nova geração para o porvir, consolando-a das misérias presentes com as lições do passado e as esperanças do futuro.

Não há convívio republicano em que os oradores não se cansem a si próprios, repetindo todos que a Monarquia não voltará. Se isto é uma coisa tão certa, para que tantas afirmações? É que no fundo das consciências não há a mesma certeza que as palavras revelam.

Nos primeiros tempos da República, o que afirmavam os vencedores era que não havia no Brasil monarquistas. Logo depois, passaram a enxergar monarquistas por toda a parte. Deodoro dissolveu o Congresso e disse que o fazia, por temer os monarquistas, e a legalidade que sucedeu a Deodoro justificava todos os seus atos com a existência dos mesmos monarquistas. Hoje, o jacobinismo dominante explica a sua política, porque há, diz ele, um perigo monarquista. Mas que perigo é este, se todos concordam que a Monarquia é impossível?

Está nas mãos dos republicanos tornarem-na impossível, isto é, desnecessária. Governem com o mesmo espírito liberal e tolerante da Monarquia e restituam ao país a sua antiga civilização política.

Não conseguirão isto, porque os sete anos de República têm sido justamente o contrário e, na idade madura, não poderá a República perder os defeitos com que nasceu e que tanto se revelaram na sua infância.

Podem prolongar a experiência republicana. Quando ela for completa, e se ainda houver Brasil, virá a Monarquia.

Como precursores dessa ressurreição nacional, recebam os fundadores da «Liberdade» as nossas saudações.


 

O PERIGO AMAZÔNICO

Comércio de São Paulo, 27-5-1896.

 

Se a revolução separatista, que se anuncia da fronteira peruano-brasileira, não é uma dessas tragicomédias que tão pouco honroso nome têm dado às Repúblicas sul-americanas, devemos confessar que é ela um fato gravíssimo e prenhe de surpresas.

Segundo os vagos telegramas que nos chegam, o movimento separatista abrange todo o departamento de Loreto, isto é, as cinco províncias do Bajo Amazonas (Iquitos), Alto Amazonas (Balsapuerto), Moyobamba, Huallaga (Saposoa), e San Martín (Tarapoto). Loreto é o maior departamento da República peruana; conta uma superfície de 773.000 quilômetros quadrados, que representam mais da metade de todo o território peruano, e uma população que, avaliada em 1876 em 61.000 habitantes, deve hoje passar de 100.000 almas. Esta é a zona sul-americana que o telégrafo nos representa em via de tomar-se uma nação independente, fato que é do maior interesse para o Brasil, pois o nosso território só confina com o do Peru no departamento revoltado. Se este se transformar em nação independente, deixaremos de ser vizinhos do Peru, para sermos limítrofes da nova República, cujo futuro nome ainda não sabemos.

A revolução que se anuncia como até agora triunfante e senhora de grandes recursos, de muitos soldados e muito armamento, e favorecida com o auxílio de ricos negociantes americanos, ingleses e alemães, assume, como dissemos, a missão de fundar uma nova nacionalidade. Divide-se comumente o Peru em três regiões: a da Costa, a da Sierra e a da Montana, isto é, o litoral, a região andina e a região amazonense.

Esta última região pouco comunica com o litoral, onde se acham as primeiras autoridades políticas da República.

Todo o seu comércio é para o oriente e para a Europa, descendo os rios amazônicos e o Amazonas e fazendo da cidade do Pará o seu grande entreposto.

Esta situação data de muitíssimos anos. A separação política vem sempre como uma consequência da separação comercial e econômica. Demais, pode-se quase dizer que a desintegração é, para as Repúblicas hispano-americanas, uma lei histórica. Separou-se Venezuela da Nova Granada, separou-se o reino de Quito do Peru; os governos centro-americanos separaram-se uns dos outros; o Texas, do México; o território atual, da Bolívia, a Banda Oriental e o Paraguai não ficaram unidos a Buenos Aires, de que já se tem querido separar Entre Ríos.

Só o Brasil, com a sua independência feita sob a égide da Monarquia, conservou a sua unidade. Nesse ponto têm razão os positivistas brasileiros, quando dizem ser a nossa unidade atual uma fase transitória e um período da preparação de futuras pátrias, em que, segundo eles, deve o Brasil dividir-se. Até em documentos oficiais tem-se falado nessas futuras pátrias antevistas. E, dada a forma republicana, essa subdivisão é fatal.

A forma republicana na América latina, demonstra-nos toda a História, é inseparável do militarismo e da fragmentação territorial.

Não é, portanto, uma coisa de espantar que surja entre o Peru e o Brasil a nova República de Loreto. Sabemos que, mesmo entre os piores governos republicanos da América, o governo peruano faz figura como um dos mais detestáveis. Os peruanos da costa e os habitantes de Lima, esses não têm o recurso de separar-se, do que querem, agora, lançar mão os loretenses, na esperança, falaz, talvez, de melhorarem de sorte. Nas nacionalidades que se esboroam, como nas casas sacudidas dos terremotos, está em melhor posição quem está à porta e que fácil e rapidamente pode sair. Os loretenses, situados nos limites extremos do país vitimado pelo governo republicano de Lima, querem escapar. Não condenemos a ambição que têm os infelizes de querer melhorar de sorte.

Pelo que dizem os telegramas, a revolução separatista rebentou com acertada e bem combinada simultaneidade nos pontos mais extremos do departamento. Loreto, não muito longe da fronteira brasileira e na margem esquerda do Amazonas, declarou-se pela revolta; Caballococha, na margem direita, Pebas e Iquitos, na esquerda, acompanharam Loreto, e muito mais longe Moyobamba, capital do departamento, à margem do Moyo, afluente do Huallaga, tributário do Amazonas, quase que nos confins da região andina, levantou a bandeira da separação e da autonomia.

O que poderá fazer o governo peruano? No Peru, há muito militarismo político e, por isso mesmo, não há militares, no sentido técnico e profissional da palavra. Os oficiais peruanos são todos políticos. Há entre eles jornalistas, oradores, deputados, senadores, ministros e partidários. O exército nominal de que diz dispor o governo peruano em tempo de paz (3.000 homens) e, mesmo, o seu exército de tempo de guerra (40.000 homens) dificilmente poderão, através das horríveis dificuldades dos caminhos transandinos, dificuldades que nos descrevem Tucker, Black, Werthemann Guillaume, Monmer, Marcoy e tantos viajantes, ir subjugar os rebeldes, que, de antemão, se organizaram, compraram e importaram armas pelo Amazonas e hoje se acham preparados e municiados. Só há dois caminhos por terra, e esses não dão passagem a cavaleiros, o que torna impossível o transporte de artilharia e, até, de provisões. Seguindo pelos vales do Perene e do Tambo para o Ucayali, ou transpondo as espessas florestas do norte, indo sair em Puerto Tucker, no rio Pichis, corrente navegável em canoas, que dá no Pachitea e, daí, ao baixo Ucayali, alguns viajantes muito audazes podem vir e têm vindo da costa ao Amazonas. O que, porém, é expedição arriscada para um viajante é uma impossibilidade para um exército.

O comércio das margens peruanas do grande rio tem aumentado prodigiosamente nos últimos anos. Há ali, pelo rio acima, uma verdadeira invasão estrangeira: entre os invasores, figuram, em primeira linha, os brasileiros amazonenses e cearenses, os portugueses e os comerciantes franceses e alemães. O governo peruano, representado em cada localidade por um maltrapilho destacamento de dois ou três soldados, só fazia sentir a sua influência pelo peso dos seus impostos exagerados e de suas desarrazoadas exigências fiscais. Nada mais natural a esta gente do que querer ver-se livre da tal República que domina o Peru, embora corra o risco de criar uma outra pior.

Pelo vapor que desce o Amazonas, vai-se mais rapidamente, com muito mais segurança, ao Pará e, daí, a Londres, ou a Paris, do que, por terra, a Lima, capital do país. Os funcionários peruanos que vão assumir seus postos no departamento de Loreto, vão por Panamá a New York e, ali, tomam o vapor, que os leva ao Pará, a menos que não prefiram a Europa, para, em Liverpool, ou em Lisboa, embarcarem para o Pará e, daí, para Loreto. Numa palavra, o Peru pode ser comparado a uma casa em que, para se ir da sala da frente à cozinha, é preciso sair à rua, dobrar a esquina e entrar por outra rua.

Os governos só se podem impor às populações distantes do centro nacional, ou pela força invencível, coisa de que não dispõe o Peru, ou pelo prestígio e pela justiça. Ora, os governos republicanos de Lima sucedem-se uns aos outros e todos se parecem. Saídos do militarismo, ditatoriais e jacobinos nos seus processos e nas suas práticas, esses governos de generais, ou, mesmo, de civis têm levado o Peru à sua ruína. Durante uns vinte e cinco meses, foi ali o guano, como entre nós o café, a única exportação. E era também, como o café no Brasil, uma exportação rendosíssima para os particulares e para o Estado. Tendo dinheiro a mancheias, os peruanos quiseram ter uma esquadra, e, em vez de fazerem estradas de ferro, ou de rodagem, baratas e práticas, que tornassem acessíveis as regiões interiores do Peru, fizeram o plano gigantesco de uma tríplice penetração do país por linhas paralelas de estradas de luxo, das quais só um trecho foi executado, o admirável caminho de ferro andino de Oroya, que custou uns quinhentos mil contos. O departamento do Loreto, largado à sua sorte, continuou em abandono e sem comunicação seguida e cômoda com o litoral. Foi abandonado a si mesmo. Foi vexado de impostos e compartilhou de todas as humilhações da derrota nacional, em 1879, quando o Chile venceu o Peru. Ora, os povos, como os indivíduos, facilmente querem fugir a toda solidariedade com a desgraça. O Peru é pobre, é infeliz; os loretenses, que não gozaram das grandezas da riqueza passada, esbanjada em Lima, acham que basta de sacrifícios e querem fazer vida à parte. É uma deliberação muito natural.

O fato da aparição de uma nova nacionalidade mediterrânea na América do Sul e vindo a ser essa nacionalidade nossa vizinha imediata e a soberana das margens de parte do curso superior do nosso grande rio navegável, é um fato do maior alcance para o Brasil. Por ora, a nacionalidade apresenta-se na sua fase de formação revolucionária, e o que há de mais grave para nós é que, com certeza, sendo brasileiros muitos dos revolucionários, essa revolução separatista em relação ao Peru pode ter como aspiração uma anexação ao Brasil. Nos tempos em que a pátria brasileira era grande e respeitada, não teriam dúvida, decerto, os loretenses em querer ser brasileiros. A qualidade, porém, de brasileiro não é hoje lá muito invejável. Quando o Texas se separou do México, viram os mexicanos nessa separação um ato preparatório da anexação norte-americana. A separação do Loreto não tornará o Brasil muito simpático ao Peru. Isto é tanto mais provável, quanto é indubitável que, sem a anuência das autoridades brasileiras do Amazonas, não poderia ter rebentado a atual revolta separatista. As armas e munições que os rebeldes receberam lhes foram fornecidas do território brasileiro, ou por ele transitaram. Não é possível que o fato fosse ignorado do governo do Amazonas, cuja inação foi uma cumplicidade, que nos parece indubitável, embora seja explicável essa quebra dos deveres internacionais, diante da simpatia que a causa da gente de Loreto inspira à nossa população amazonense, ligada àquela gente por estreitas relações de vizinhança e de comércio. O Peru, à custa de duros sacrifícios, vai mandar, dizem, uma expedição naval subir o Amazonas, para vir atacar, a quase mil léguas acima da sua embocadura, os rebeldes loretenses. Pode ser que os velhos e cansados vasos de guerra peruanos consigam passar os mares encapelados do cabo Horn; a mais serena e fácil passagem pelo estreito de Magalhães não lhes será, talvez, franqueada pelo Chile, baseando-se este no tratado de 1881, que estabelece a neutralidade do estreito. Poderá o Peru comprar na Europa, ou nos Estados Unidos, uma outra esquadra que venha diretamente subir o Amazonas? O Peru já não tem dinheiro para esquadras, mesmo de papelão. O recurso sul-americano do papel moeda emitido clandestinamente já não pega, e os funcionários diplomáticos ou militares peruanos não podem aproveitar a sorte, que lhes permitiria o se enriquecerem comprando canhões e torpedeiras. E, uma vez no Amazonas esses ou outros vasos de guerra, como poderão seguir até Loreto, se a isto se opõe o calado dos seus desmantelados navios de alto mar? Já nos anunciam que a simpatia de que os rebeldes separatistas gozam no território brasileiro é tal que, em Manaus, os práticos do rio já dizem que hão de recusar os seus serviços aos peruanos.

O comércio, desde já, projeta não vender carvão aos hipotéticos navios, que constituem, por assim dizer, o único e problemático meio de ataque de que o Peru dispõe contra os rebeldes.

Pelo que se sabe até agora, pode considerar-se o departamento de Loreto como definitivamente perdido para o Peru, que agora sofre a sorte comum de toda a República militarista na América — o desmembramento.

O futuro Estado, cujos primeiros vagidos nos chegam pelo telégrafo, tem muito futuro econômico. São admiráveis de fertilidade os campos mesopotâmicos limitados pelo Huallaga e o Ucayali, conhecidos pelo nome de pampas del Sacramento. A falta de sal, que é o grande mal econômico do Brasil central e da Bolívia, ali não se faz sentir, pois são inesgotáveis as montanhas salinas das cabeceiras dos afluentes do Ucayali e que fornecem sal a toda aquela zona. A navegação a vapor no Amazonas peruano é regular, desde a fronteira brasileira, até à foz do Huallaga, onde penetra, e nesses afluentes e subafluentes, o transporte comercial é fácil, pois é de mercadorias como a borracha, a coca e as plantas medicinais que, num volume pequeno, constituem grandes valores. Há centros importantes de população: Moyobamba (18.000 habitantes) produz os seus afamados chapéus de palha, que chamamos do Chile, feitos de fibras de bombonage; Taropoto produz e vende os algodões de tocuyo, de que se vestem os índios civilizados do país, e os melhores tabacos do Peru. Iquitos conta perto de 10.000 habitantes, quase todos brasileiros, e é ponto comercial de grande movimento. A sua Alfândega rendeu para mais de réis 6oo:ooo$ooo, em 1891, e Marcel Meunier chama-a a metrópole da Montaña amazônica. Mais vizinha ao Brasil está a vila de Caballococha, hoje muito próspera e onde brasileiros e portugueses mercadejam em borracha, fumo, peixes secos, salsaparrilha, cera e em chapéus de Moyobamba, que em canoas trazem os índios dos rios ocidentais Napo, Tigre, Pastaza, Santiago, Maranhão, Huallaga, Ucayali e Javari.

Embora pertençam nominalmente ao Peru, estas povoações não contêm outros peruanos senão os funcionários e é puramente fictício o laço que os prende àquele país. Como é sabido, o Peru entregou a seus credores ingleses, além de todos os seus caminhos de ferro e minas do Estado, todas as terras devolutas da vertente amazônica. A situação do departamento de Loreto é esta: o tráfego comercial é com o Brasil e pelo Brasil; os comerdantes são estrangeiros e as terras pertencem aos ingleses. Ora, nestas condições, nada mais o prende ao Peru, e a separação é fácil e inevitável.

Ficará, pois, formando um país independente junto ao nosso Estado do Amazonas, e a grande maioria dos cidadãos influentes desse país será composta de brasileiros, naturais do Amazonas. Esta formação de um governo independente, feita e promovida por brasileiros emigrados e aplaudida por brasileiros que ficam para cá da fronteira, é um fato que influirá decisivamente no futuro da Amazônia brasileira. É natural que os brasileiros convertidos em loretanos não queiram viver separados dos seus irmãos do baixo Amazonas.

Quererá o Brasil aceitar a anexação do Loreto, como os Estados Unidos fizeram com o Texas?

Com que olhos veriam esta anexação o Peru e a Bolívia, e, coisa ainda mais séria, qual seria, nesse caso, a atitude da República Argentina?

A anexação seria uma insensatez.

O que há que temer para o Brasil é o exemplo que Loreto dá ao Amazonas e ao Pará. Se as cordilheiras peruanas fazem com que, praticamente, Loreto esteja segregado do Peru, também grande extensão de território, despovoado e inviável, separa do resto do Brasil a nossa Amazônia. Se as comunicações de Loreto se fazem para os mercados europeus por portos e saídas não peruanas, também o Pará se comunica diretamente com a Europa e com os Estados Unidos, donde está mais perto que do Rio de Janeiro. Se é fictício o laço político que prende Loreto ao Peru, é também muito tênue o que prende a Amazônia ao Rio de Janeiro. Se Loreto tem recursos para viver independente, muito maiores são os recursos da Amazônia. Se no Loreto o comércio é estrangeiro, também o é no Pará e no Amazonas. Se a ideia de uma grande nação independente já seduz os paraenses e amazonenses, maior será esta sedução, desde que esta nação projetada puder incluir Loreto, estendendo-se assim do Atlântico até aos Andes. Os amazonenses que negociam com o Peru ficarão sabendo como se faz uma revolução separatista, e o auxílio que eles hoje prestam aos loretanos, estes hão de prestar-lhes por sua vez.

A Amazônia é um país de exportação. Não há possibilidade de haver ali indústrias tão cedo. Economicamente, a sua união com o Brasil só lhe serve para tornar ali a vida caríssima, graças aos direitos de importação. No dia em que forem suprimidas as alfândegas do Pará e de Manaus, a vida dos paraenses e amazonenses será muito mais folgada e cômoda. A orgia republicano-financeira do Rio depredou e envileceu a moeda em todo o país, reduzindo de dois terços a fortuna pública. O Pará e o Amazonas têm uma exportação muito mais que suficiente para garantir-lhes o câmbio ao par, se eles vierem a ter uma moeda sua própria.

O caso de Loreto fará com que tudo isto venha mais frequentemente ao espírito dos habitantes da Amazônia. Como todos os brasileiros, eles sofrem os males do nosso péssimo regime político, e isto criou-lhes um estado d’alma que certamente não os predispõe a uma exagerada fidelidade para com o pouco estimável governo, cuja existência no Rio de Janeiro eles apenas sabem pelo sangue por sua ordem derramado nas deposições de governadores e pelos pesadíssimos e absurdos direitos de importação. Acrescente-se a isto que os paraenses se julgam lesados nos seus direitos e em sua dignidade, pela atitude do sr. Prudente de Morais, quanto à questão do território contestado franco-brasileiro, onde tanto se tem expandido a iniciativa dos paraenses. O Pará considera tuna afronta a criação da comissão mista franco-brasileira para governar os paraenses habitantes do território contestado. Ora, o governo do Rio acaba de declarar que manterá a tal comissão. E é depois desta declaração, destinada a criar na Amazônia invencíveis desgostos, que surge o grave caso da revolução separatista de Loreto.

O nosso secretário do Exterior já fez a esse propósito uma declaração, redigida num momento de ócio que lhe deixam os seus clientes, quando, como patrono, o procuram, conjuntamente com os ministros estrangeiros, na sua Secretaria, transformada em escritório de advocacia. Esta declaração diz que o governo brasileiro «resolveu proceder com toda a lealdade para com o Peru» nesse caso de Loreto! A moral republicana entende que a lealdade não é coisa sempre suposta num governo. Ser leal, ou ser desleal, é coisa que num governo pode ser objeto de deliberação, segundo o sr. Carlos de Carvalho.

Depois de mais esse odioso ridículo, o nosso governo ainda nada fez, nem disse. A revolução de Loreto pode trazer-nos graves complicações internacionais, não com o Peru, que é, graças ao militarismo republicano que o arruinou de todo, uma quantidade que se não conta, mas com a Inglaterra, com a França e os Estados Unidos, porque os interesses ingleses são grandes na região e porque há franceses e americanos envolvidos na revolução. Se o Peru entender que não guardamos bem a nossa neutralidade (e dificílimo será guardá-la, porque todo o Amazonas é favorável aos rebeldes e, na federação, o governo central é impotente), quem sabe se ele não apelará para a República Argentina, agora que, segundo prevíamos, está ela desembaraçada da sua pendência chilena? Já mais de uma vez se tem falado na existência de um tratado secreto de aliança entre o Peru e a Argentina. Se há esse tratado, foi ele feito contra o Chile, mas pode também servir contra o Brasil.

Se o governo intervier eficazmente para manter a devida neutralidade, irritará a já desgostada população da Amazônia, e quem saberá quais serão os resultados de mais esse atrito entre a União e os dois Estados do nosso extremo norte?

Só um governo firme, calmo e justiceiro, como a República ainda não conseguiu ter, poderia fazer face aos grandes perigos que, para a paz e para a unidade brasileiras, surgem agora com a revolução separatista do departamento peruano do Loreto.


 

ECONOMIAS

Comércio de São Paulo, 28-5-1896.

 

Corre já na imprensa o projeto financeiro que o sr. general Glicério vai fazer votar no seu Congresso.

O Tesouro Nacional, não podendo resistir a sete anos de República, regime que será muito bom, mas que, por isso mesmo, é caro e acima das nossas posses, acha-se declaradamente quebrado. O sr. Glicério pensa no remédio e já saiu à luz o produto das suas cogitações de chefe real deste país, único responsável pela política e junto de quem desaparece a apagada e cinzenta figura do sr. Prudente de Morais.

O mal do Tesouro é a falta de dinheiro. Trata-se de descobrir a causa do mal, e o que se passou no espírito do chefe republicano lembra a fábula de La Fontaine relativa aos animais doentes da peste: reuniram-se os animais, sob a presidência do leão, para investigar qual seria o celerado que por seus crimes tinha atraído a cólera dos Deuses sobre todos os animais, cólera bem manifestada no flagelo da peste que os açoitava. Fez o leão a sua confissão, e foi unanimemente declarado puro e limpo de culpa. O tigre, o urso, a pantera foram também absolvidos com presteza.

Chegou a vez do burro, que, ingenuamente, confessou ter, uma vez, tosado de leve, com o dente, o pasto cercado de um vigário. Oh crime abominável! clamaram todos; sacrifiquemos este perverso à justa cólera do céu! E para calmar a cólera dos Deuses foi o burro trucidado.

Como o leão, o sr. Glicério reuniu a sua gente e fez um exame geral de consciência no jacobinismo todo, para ver quem era culpado das grandes despesas nacionais. Foi examinado o exército, mas a reunião achou prudente passar a coisa por alto; examinou-se, depois, a marinha, e, por boa cautela, também não insistiram; a força policial da cidade do Rio foi objeto de inquérito, mas foi prontamente lavada de toda culpa. O mesmo sucedeu com os adiantamentos a oficiais, com as escolas do exército e as comissões militares e o subsídio dos congressistas. Apareceram, depois, timidamente, as Faculdades de Direito e de Medicina, Academia das Belas Artes e a Biblioteca Nacional, e confessaram que, anualmente, consumiam perto de dois mil contos. Oh grandes perdulárias! exclamou o sr. Glicério, é por vossa culpa que está o país arruinado. Dois mil contos com professores, livros, quadros e esculturas! Já se viu que ruína! Sacrifiquemos já essas celeradas, que estão empobrecendo o Tesouro! E assim vai ser feito.

***

Apresentou-se, há dias, na imprensa, com o anunciado patrocínio do sr. Glicério, um projeto de poda orçamentária nas despesas, que é um verdadeiro monumento de sabedoria política e republicana em matéria de finanças.

Pretende o sr. Glicério reduzir as despesas da União e, para isso conseguir, quer que o governo federal abandone todos, ou quase todos os serviços a seu cargo, atirando uns para os Estados, outros para a Municipalidade do Rio e pondo outros em leilão, para serem atribuídos a empresas particulares.

O sr. Glicério pretende a liquidação do Brasil, como fazem a sua liquidação os particulares arruinados, que vão largando aos credores, ou abandonando de todo, os bens cuja conservação é dispendiosa. A Nau da República está afundando, e, invadida de água por toda a parte, o comandante ordena que a carga seja atirada ao mar.

A singular Constituição republicana, que nos infelicita atualmente, criou para o governo federal uma situação única. É um governo sem bens e sem patrimônio. Nos países civilizados, sempre se entendeu que a dívida pública, que entre nós são as apólices e o papel moeda, tem como garantia os bens nacionais. Ora, a República fez desaparecer essa garantia, despojando a Nação de todos os seus bens. As terras públicas e os meios possíveis foram atribuídos aos Estados, assim como a maior parte dos próprios nacionais. Um ou outro quartel nas capitais dos Estados, os edifícios das Secretarias no Rio, os navios da esquadra, os arsenais, as fortalezas dos portos, as linhas telegráficas, algumas estradas de ferro arruinadas, mais alguns edifícios de algumas instituições científicas no Rio e nos Estados, e as disputadas terras de marinha, eis ao que se reduz a fortuna real da Nação. Pois bem! O sr. Glicério quer acabar até com isto, reduzindo a riqueza nacional a zero e o governo federal, a coisa nenhuma. Seria mais lógico suprimir logo o Congresso Federal, coisa caríssima, que pouco e mal funciona e, até, a própria presidência da República, que, essa, então, é, na presidência Prudente, uma verdadeira inutilidade.

Segundo o plano do sr. Glicério, o poder federal, além da missão da representação externa do país, não conservará senão a sua função menos simpática, isto é, a de senhor da força armada. As escolas de ensino superior reverterão para os Estados, e a Escola de Belas Artes, o Museu Nacional e a Biblioteca Nacional, para a Municipalidade fluminense. Os telégrafos serão picados entre os Estados, sendo picada também a Estrada de Ferro Central, entre S. Paulo, Minas e o governo federal, ficando excluído, porém, o Estado do Rio na partilha.

A parte intelectual da missão nacional do Estado desaparece. A Arte fica sendo um serviço municipal, como o da limpeza das ruas; a ciência, um anexo inferior da vereança fluminense.

Que será o telégrafo sujeito aos Castilhos e aos Barbosas Limas?

Que serão as Faculdades de Direito e Medicina postas em praça pública e adjudicadas à empresa que mais der?

Há no plano Glicério um deliberado propósito de aniquilar o Brasil. Em alguns pontos, o plano é, felizmente, impossível e em outros, tresloucado.

Com que direito quer a União impor aos Estados estas e aquelas despesas? Os Estados poderão recusar-se a aceitar a imposição, e, com prejuízo do povo, cessarão de todo certos serviços públicos.

Com que direito quer o governo impor à Santa Casa do Rio que trate dos alienados? A Santa Casa poderá recusar-se, e, ou morrerão à fome, ou, antes, irão para a rua os alienados, que muito justamente poderão ser substituídos pelos nossos legisladores.

O sr. Glicério, com uma penada, passa para o Estado de Pernambuco a Estrada de Ferro Sul de Pernambuco; para a Paraíba, a Estrada de Ferro Central da Paraíba, e para a Bahia, a Estrada de Ferro Central da Bahia. Ora, estas empresas têm contratos com o governo federal e, certamente, hão de opor-se a esta substituição de pessoa. O governo central assumiu para com elas a responsabilidade da garantia de juros, e elas querem a garantia do Brasil e não a dos Estados. São empresas estrangeiras e, por isso, hão de ser atendidas, porque a sua reclamação há de ser apoiada pelos seus governos.

E o Distrito Federal, que não tem renda sequer para pagar os seus empregados atuais, como custeará ele os serviços que lhe quer atribuir o sr. Glicério?

Terá de aumentar os impostos já exageradíssimos, ou terá de fechar, ou a Biblioteca, ou o Museu. Todos os serviços que querem transferir aos Estados deixam déficit. Os Estados, ou deixarão perecer esses serviços, ou precisarão de aumentar por sua vez os impostos.

Se, no fim das contas, o povo tem por força de pagar mais impostos, pouco lhe importa que esses impostos sejam para a União, para um Estado, ou para a Municipalidade fluminense. Se, afinal de contas, de qualquer modo, quem vem a pagar é o povo, para que desorganizar tudo e pôr tudo em leilão? Diante do perigo separatista, que só cegos podem não ver, para que enfraquecer mais a União?

Havia uma grande árvore, de cujo tronco saíam vinte ramos. Era uma belíssima árvore. Conta-se que vinte selvagens, armados de vinte machados e cada um encarapitado num ramo, começaram a golpear o tronco. Tombou o tronco e, com eles, os ramos, esmagando os selvagens. Os representantes republicanos dos vinte Estados brasileiros representam os vinte selvagens. A União é o tronco que eles estão a golpear. Hão de derrubá-la, e, na queda da árvore, hão de ser esmagados.


 

A BAIXA DO CAFÉ

Comércio de São Paulo, 30-5-1896.

 

São da maior gravidade os telegramas chegados da Europa anunciando a grande baixa do preço do café no mercado do Havre.

O café cotado, há um ano, a 94 francos por 50 quilos, tinha caído, há uns dois meses, a 79; reerguera-se até 84 e, anteontem, fechou o mercado a 76 francos e 25 cêntimos, com tendência para baixa. Ontem, abriu a 75! É uma baixa de 19 francos, em um ano, e de 9 francos, numa semana.

Ontem, o café fechou em Santos a 12 mil réis por 10 quilos e sem compradores.

A produção do café no mundo não é superior ao consumo, e não acreditamos no aumento vertiginoso de produção que alguns antevêem no Brasil.

O ilustrado dr. Francisco Dias Martins, fazendeiro em Anápolis, num artigo magistral, assinado com o pseudônimo — Felício Moreira,— demonstrou no «Jornal do Comércio», à saciedade, com algarismos e argumentos irrespondíveis, que o aumento de produção, proveniente das plantações novas, apenas compensa a fatal e irremediável diminuição originada do envelhecimento de outros cafeeiros.

É verdade que, nos últimos 50 anos, todas as substâncias alimentares, pela extensão e pelo aperfeiçoamento agrícola, pela rapidez e pela barateza dos transportes, têm baixado de preço. Só constituem exceções o café, o álcool e o tabaco. E nem isso deve causar estranheza. São três excitantes, e a vida do homem moderno, ativada cada vez mais pela intensidade do viver e pela rapidez da locomoção, traz ao organismo um dispêndio nervoso muito superior ao do homem antigo.

O café, o tabaco, e, sobretudo, o álcool tornam-se indispensáveis à vida, e o que o consumidor economiza, por serem baratos, no pão e na carne, emprega, cada vez mais, na aquisição daqueles excitantes, cujo uso se impõe com a tirania do vício. No relaxamento das peias morais, servem eles ao rico para minorar-lhe as fadigas da agitação comercial, industrial, intelectual, ou mundana; ao pobre, para reparar-lhe os gastos fisiológicos do trabalho, e até ao miserável, para dar-lhe o esquecimento da desgraça. O número dos consumidores desses excitantes cresce, portanto, cada vez mais, e esta é a razão de, apesar de todos os desenvolvimentos da cultura e aperfeiçoamentos da preparação industrial, manter-se sempre elevado o preço do café, do tabaco e do álcool. E nesta situação mercantil tão favorável para estes três gêneros, o café é ainda privilegiado. O álcool é produzido em toda a parte, e o mesmo acontece quase com o tabaco. O café, porém, tem no mundo uma zona de produção muito restrita.

É mais uma garantia de que nunca virá a ser envilecido o seu preço.

A acumulação de depósitos, que momentaneamente pode trazer uma baixa, não é devida à exagerada produção, mas antes ao funcionamento irregular dos mercados distribuidores, onde a especulação pode demorar os cafés, que, sem ela, mais rápida e naturalmente seriam encaminhados para o seu destino final, nos mercados consumidores.

Não nos dá o telégrafo particularidade alguma sobre o que se está passando com o café no Havre, em Hamburgo e New York. A nossa imprensa é muito pobremente informada nesse assunto, aliás capital, e o próprio comércio brasileiro, que é vendedor, parece que se acha em posição inferior diante do comprador estrangeiro, senhor de completas e diárias informações que o guiam e esclarecem.

É muito possível que a baixa destes últimos dias seja a resultante da especulação que no Havre habitualmente se faz em café, sendo a liquidação para fins de maio. Pode ser que os altistas compradores, que agora deviam receber cafés comprados há meses, não possam pagá-los agora, e, não os recebendo, ou paguem as diferenças, ou faltem de todo com os seus compromissos. Num ou noutro caso, foi lançada subitamente, no mercado, uma grande quantidade de café, para ser vendido a qualquer preço. Se assim é, deve-se esperar, como em todo jogo, uma reação promovida pelos próprios vencedores do dia, que mudarão de tática, para aumentar as suas chanças de lucro.

É triste que o agricultor brasileiro esteja, ele que trabalha e produz, sujeito aos azares do jogo dos outros. É essa a iníqua e a péssima organização comercial, ainda dominante neste século e que os pensadores condenam, ideando contra elas medidas que os governos, hoje todo submissos aos interesses do capitalismo, ainda não tiveram a coragem de aplicar.

O produtor brasileiro, se fosse protegido pelo seu governo, poderia defender-se contra essa adversidade, que acreditamos seja passageira.

O prejuízo que lhe provém da depreciação do seu produto ficaria, até certo ponto, remediado, se a ação do poder público não lhe fosse constantemente adversa. O envilecimento da moeda, devido a uma malsinada administração financeira e a todos os desastres da política republicana, criou uma falsa ideia de segurança quanto aos lucros da agricultura, lucros muitas vezes ilusórios, porque eram, em grande parte, compensados pela carestia da vida, pelo encarecimento do salário e do preço do transporte e pelo aumento dos impostos, sem falar no retraimento do capital, que, produzindo a elevação do juro do dinheiro, aumentou de modo anormalíssimo o preço da produção agrícola.

Não se limitando a todos esses males gerais que derramou sobre o país, o governo republicano, ainda na parte que se refere ao preço do café, achou meio de fazer o mal, e fê-lo em escala considerável.

Com o fim de ocultar a irremediável e patente ruína das suas finanças, o governo republicano, desde o presidente da República até o ministro da Fazenda, desde os presidentes dos Estados até os seus respectivos secretários, em documentos oficiais, cuja autoridade é incontestada no estrangeiro, exagera a produção atual do nosso quase único gênero de exportação, faz cálculos fantásticos de produção, que os fatos desmentem daí a meses, fala em plantações colossais, e os baixistas estrangeiros reproduzem, à saciedade, essas levianas e exageradas afirmações, que fazem com que nos mercados do mundo se comece a acreditar que a produção do café, se já não excede, não tardará em exceder, de muito, as exigências do consumo.

E para isso não precisam os baixistas tirar difíceis conclusões, nem pôr deduções forçadas. Ainda há poucos meses, os ex-presidentes de S. Paulo e Espírito Santo assinaram um documento oficial, no qual se dizia que a produção do café ultrapassava as necessidades do consumo.

Esse documento, assinado levianamente com o fim de organizar uma problemática propaganda na Rússia, destinada a fazer passear na Europa afilhados e protegidos, não foi perdido para a especulação baixista. Nós o temos visto reproduzido em muitos jornais da Europa e dos Estados Unidos e transcrito na sua integra nas circulares das casas que promovem, ou, pelo menos, justificam a baixa. E à baixa destes últimos dias não é, de certo, totalmente estranho aquele desgraçado documento dos dois desazados personagens.

Como já tivemos ocasião de dizer, se o governo quer desenvolver o consumo do café, não tem outro meio senão fazer o gênero ficar mais barato, isto é, contribuir para diminuir o preço da produção e do transporte. Não esteja a proteger a advocacia administrativa, pagando por muito mais do que deve pagar a passagem de imigrantes impróprios para o trabalho agrícola. Com o dinheiro que está gastando, o governo podia introduzir mais imigrantes e assim baratear o salário. Não devia consentir na elevação das tarifas das estradas de ferro, que tanto encarecem o transporte de café e, se é verdade que o Tesouro de S. Paulo tem os tantos e tão avultados saldos que o governo e os seus amigos lhe atribuem, o dever do governo é, para bem da agricultura, diminuir o direito de exportação.

***

A opinião corrente entre os agricultores é que a safra atual de café não é tão grande quanto se dizia.

A seca intensa do mês de dezembro ocasionou a queda de grande quantidade de frutos. A maturação foi rápida demais; o grão é pequeno e pouco pesa. A quantidade média da safra será inferior à do ano passado, o que leva a crer que as qualidades superiores hão de manter-se nos preços altos, ou, pelo menos, não serão muito afetadas pela baixa.

No entanto, é inútil querer dissimular a gravidade do fato da atual depreciação do café.

Estamos vendo os inconvenientes da nossa cultura exclusiva, e os míopes, que tudo perdoavam ao governo, porque este, mantendo o câmbio baixo, favorecia o alto preço do café, hão de ser agora menos indulgentes, vendo que o péssimo câmbio republicano pode perfeitamente coincidir com mau preço do grão, que já vai sendo menos precioso.


 

DIPLOMACIA!

Comércio de São Paulo, 4-6-1896.

 

A diplomacia republicana não tem sido feliz. O empobrecimento, a desorganização e o descrédito do Brasil, nestes últimos anos, têm-lhe, é verdade, tirado muito da sua força e do seu prestígio. Os seus erros, porém, já não têm conta.

Começou a República sua história diplomática pelo escândalo do tratado Bocaiuva, que pretendeu resolver o litígio das Missões com uma cessão de território, escândalo encampado pelo governo provisório e que, felizmente, não foi consumado, valendo ao Brasil, para o reconhecimento do seu direito, o tratado de arbitramento que lhe deixou a Monarquia, com a data de sete de setembro de 1888. Houve, depois, as humilhações de S. Paulo, quando um couraçado brasileiro, trazendo a seu bordo o ministro das Relações Exteriores, veio a Santos abater o pavilhão da República diante do ministro italiano, ao mesmo tempo que a Tesouraria abria os seus postigos para pagar aos italianos gordas indenizações exigidas com insolência. Veio a revolta, e viu-se o presidente da República a mendigar dos navios estrangeiros que interviessem nas nossas lutas, sendo essas súplicas recebidas com desprezo, hoje demonstrado nos documentos oficiais estrangeiros publicados sobre aquele lutuoso período.

No fim da guerra civil, demos ao mundo o espetáculo selvagem e revoltante de um governo enfurecido e raivoso, na praia, rangendo os dentes de furor diante dos navios da nação generosa que abrigou centenares de vítimas, em cujo sangue se queriam cevar a vingança e o ódio. Mais do que os salvos do súplicio, deve o Brasil gratidão aos que pouparam tantas vidas. Sem eles, ficariam as páginas da história brasileira infamadas com uma hecatombe digna do Dahomey. E, a esse propósito, ainda assinalou-se a diplomacia republicana: numa nota dirigida às potências, escreveu o sr. Floriano Peixoto, em nome da República, que então consolidava, esta frase: «Os princípios da humanidade não se aplicam a rebeldes». Enquanto isto se lia no Rio, no Sul trucidava o governo centenas de vítimas e, como entre elas foram alguns estrangeiros, teve de, humilhado, pedir perdão por esses crimes e pagar, a peso de muito ouro, o sangue derramado. Mais tarde, uma povoação brasileira é assaltada por tropas francesas, incendiada, quase todos os seus habitantes mortos, e o governo da República suporta essa afronta, cala-se diante da arrogância francesa, que não lhe dá satisfação, e, por fim, implora da França que consinta numa comissão de franceses e brasileiros (comissão em que estes serão, de certo, anulados) para governar os brasileiros do Amapá, indignidade esta contra a qual, unânime, protestou a população do Pará e do Amazonas.

Na fronteira da Guiana Inglesa, confessa o sr. Carlos de Carvalho que a influência da Inglaterra cresce e se alarga, graças aos missionários que civilizam os índios, ao passo que o Brasil desorganizou a sua catequese e retirou, assim, a única barreira capaz de deter a invasão inglesa.

«A Constituição republicana, disse-nos o sr. Carlos de Carvalho, não permite que ensinemos religião aos índios.» Perca-se o território, mas conserve-se o princípio supremo do ateísmo do Estado.

A Inglaterra assenhoreia-se de uma ilha brasileira, e o governo da República conserva o seu ministro em Londres; aceita o ministro inglês no Rio e, se há probabilidades de cessar essa situação afrontosa para o Brasil, em que a Inglaterra nos despoja e nos desdenha, é porque Portugal, a nação amiga que a República tem coberto de insultos e tantas vezes afrontado, esquecendo essas baixezas, faz um ato de magnânimo esquecimento e propõe-se a ser o medianeiro entre a Inglaterra e o Brasil.

Se a diplomacia republicana levantou contra si as populações do Amazonas, não desgostou menos os nossos compatriotas do Sul. O governo republicano, a troco dos serviços de polícia, espionagem e delação, que contra os federalistas prestou o governo uruguaio, abriu-lhe a Lagoa dos Patos, por convênio, que é o sacrifício completo, naquela região, da nossa dignidade e dos nossos interesses. Dar aos uruguaios a liberdade de navegação daquelas águas interiores é abrir na guerra ao estrangeiro hostil as portas do nosso território, já tão mal cerradas no Sul, e é arruinar a navegação nacional. Os jornais trazem o eco dos protestos que vêm do Rio Grande do Sul, onde o comércio consegue romper a atmosfera da opressão castilhista e reclamar contra aquele crime de lesa-nação. E isto num Estado em que o assassinato é um meio regular de governo e onde um general põe uma cidade em alarma, para agarrar um cidadão ilustre, a quem quer mandar raspar a cabeça, para, assim, responder às graves acusações que aquele cidadão lhe fez pela imprensa!

Surgiu há pouco tempo no Peru a complicação revolucionária e separatista do Loreto, fato tão interessante para o Brasil. O que vimos? No Senado, e isto prova quanto baixou o nível intelectual daquela corporação, houve um senador que, ignorando que pelos nossos tratados com o Peru é franca a navegação do Amazonas aos navios de guerra daquela nação, protestou contra a anunciada passagem de tropas peruanas pelo território brasileiro. E, agora, o governo do sr. Prudente de Morais suprime o comando militar da fronteira peruana! Parece que nesse ato, ou vai um desejo de favorecer os separatistas do Loreto, ou, antes, é uma retirada para evitar complicações. Em todo caso, é um abandono da questão e das suas consequências, que poderão ser muito graves, que se vão passar com ignorância do governo e, certamente, com grave prejuízo para o Brasil.

Como já tivemos ocasião de expor, o Peru exerce uma soberania nominal na parte hoje revoltada do seu território. A esse propósito, achamos curioso apontar um grave erro de Tavares Bastos (Cartas do Solitário, Carta XXIV).

Acreditava aquele ilustre pensador que o Peru ia ter uma grande expansão no Amazonas. Era a época do guano, quando no Peru tudo eram grandezas e riquezas, que Tavares Bastos contrapunha à modéstia, à circunspeção e à economia da política do Império. Acreditando em fanfarronadas peruanas, assustava-se Tavares Bastos com os vapores de guerra, os arsenais e as escolas navais do Peru, no Amazonas. Onde para hoje tudo? O governo maltrapilho de Nauta, que o viajante Marcoy retrata, apenas dispõe de um igarité de um só remo, para varar os furos amazônicos, e os navios de guerra, os arsenais, tudo desapareceu em fumo.

São assim as grandezas dos militarismos republicanos na América do Sul. Mesmo as mais ricas e mais sérias dessas nações têm desapontado e desmentido os seus profetas. Quem não falava, há dez anos, na riqueza da República Argentina? É hoje o país da ruína financeira, por excelência. Quem não exaltava a ordem, a paz e a civilização no Chile? Uma guerra crudelíssima veio tudo desmentir. E o mesmo acontece com todas as Repúblicas sul-americanas. Quando alguém nos fala de alguma das suas grandezas, o melhor é esperar, antes de acreditar. O Peru não foi só no Amazonas que desmentiu a espectativa de Tavares Bastos. O Peru abriu falência nas finanças, na política e na civilização, em geral. É a mais típica das Repúblicas sul-americanas. De lá e de Nicarágua, nos vieram as práticas internacionais, que nos expuseram já, sob a República, à galhofa das nações cultas. São moda peruana os decretos declarando infames e traidores os inimigos do governo e proclamando piratas os navios revoltosos. E, se a República Brasileira se mostra discípula aproveitada, o Peru ainda não desmereceu do seu título de mestre dos nossos estadistas republicanos.

Chega-nos agora um telegrama, dizendo-nos que o governo peruano, por um decreto impresso a 600 léguas de Iquitos, declarou fechado este porto, com o fim, diz-nos o telegrama, de impedir que os revoltosos recebam recursos. Ora, Iquitos está em poder dos revoltosos, que hão de rir-se muito do decreto peruano, que é todo referente ao Brasil, porque com o Brasil é que Iquitos tem comércio.

O alcance prático do decreto peruano é nenhum. Se o fechamento do porto de Iquitos é uma simples medida administrativa, é ela contra os tratados que o Peru tem conosco. Se é uma medida de guerra, é um verdadeiro bloqueio. Ora, o bloqueio, queiram ou não os governos sul-americanos, só é válido, e por isso respeitado, quando uma força naval o torna efetivo. Ora, o Peru não tem força nenhuma naval, nem terrestre, no território de Loreto. O seu decreto, ou é uma puerilidade, ou é uma violação dos tratados. Em todo caso, é um papel sem valor, nem alcance. Se houvesse nas chancelarias cestas apropriadas para documentos dessa natureza, iria para elas esse decreto, junto com outros da Venezuela, Bolívia, Haiti, Argentina e Brasil, que têm as fulgurantes assinaturas dos Gusman Blanoo, Malgarejos, Hipólitos, Rosas e Peixotos.


 

OS DINHEIROS PÚBLICOS

Comércio de São Paulo, 5-6-1896.

 

Não é muito divertida a leitura da eloquência corrente entre os intitulados mandatários do povo, que, segundo temos ouvido de pessoas bem informadas, estão reunidos aqui em S. Paulo, há quase dois meses, ajudando o governo a puxar o carro do Estado pela estrada de todas as grandezas e felicidades. Há um Diário Oficial dispendioso para publicar tudo isto, mas, como parece que ninguém lê a prosa das nossas Secretarias, gasta-se ainda mais, para que, noutra folha, consiga aquela eloquência, com embuste e de surpresa, ser servida a alguns leitores de outras coisas.

Tomemos ao acaso um exemplar do excelente repositório em que se arquivam os feitos dos nossos legisladores. Vamos procurar nessas colunas alguma coisa referente à administração do Estado. Não é assunto muito do conhecimento do público. O que se passa nos arcanos administrativos tem hoje um caráter de reserva e de mistério, adotadao decerto a bem da majestade do governo, mas não em proveito da instrução do contribuinte. O viver às claras, lema positivista, traduzido em latim, é para o nosso público a velha expressão in albis. Abre-se, às vezes, súbito, e depressa fecha-se uma janela por onde entra de vez em quando alguma luz e por onde sai sempre muito dinheiro.

Ora, quem é curioso e quer ver, espreita. Espreitemos, pois, pelo postigo que se nos abre um pouco. Não temos certeza de ver as coisas como elas são. É tal a obscuridade, que mesmo os que estão de dentro pouco enxergam. Não nos disse, há dias, a principal folha republicana desta cidade que a União devia a S. Paulo não sei quantos mil contos, a propósito da estrada Inglesa? Pois bem, o sr. Glicério, que dizem ter a melhor vista da República, veio anteontem declarar no Jornal do Comércio que não sabe até que ponto são verdadeiros os dados em que se funda o seu correligionário paulista.

Acrescenta, porém, o sr. Glicério que a conta líquida apresenta um saldo, a favor da União, de 1.734:932$326 e que «não lhe parece discreto, para o decoro de S. Paulo, oferecer dúvidas contra o devido pagamento». Aí está: o jornalista vê saldo a favor de S. Paulo, e o general diz que, ou vê pouco, ou só vê saldo a favor da União, e ambos são da República!

***

No expediente do Congresso paulista do dia 12 de maio último, figura a abertura de créditos extraordinários, representando na maior parte quantias já gastas e que alcançam o respeitável algarismo de dezenove mil novecentos e sessenta e seis contos ou, precisamente, 19.966:079$979 réis, engulidos pela voragem do Saneamento (esguichos, etc.) e pelo abismo das obras públicas.

Sanear é uma coisa útil e construir palacetes, que estão dando a S. Paulo o monótono aspecto de uma estação balneária alemã, cheia de Kurhaus e Trinkhalle de caliça, não é também censurável. Na falta de Paladios, Bramantes e Verrochios nacionais, a nossa prata de casa está saindo com o cunho de um mestre d’obras alemão.

Em todo caso, um pouco de orçamento não destoaria nada. Se as boas contas fazem os bons amigos, não se segue que os bons amigos façam as más contas, e nem se descobriu ainda que estas prejudicassem o gênio dos arquitetos. Não se mostram na biblioteca Laurentiana os cadernos das contas minuciosas que Miguel Ângelo tinha com a Senhoria de Florença?

Disse um dos membros da comissão do Congresso que, só nos três primeiros meses deste exercício, já se esgotou a verba anual das obras públicas. Já é vontade de esgotar. Não haveria no caso algum equívoco? É possível que, nestes tempos em que se fala tanto em drenagem, se tente também a do Tesouro.

O governo, não sabemos se vai acertando, mas, em todo caso, é verdade que está fazendo justamente o contrário do que fazia o seu antecessor, o que já deu causa à troca de ofícios azedos e a irritações manifestadas em pedidos de demissão, uns aceitos e outros recusados. Quaisquer atos do governo passado eram elogiadíssimos pela imprensa republicana. Os atos do atual governo, não tendo sido censurados, ficamos um pouco perplexos. Quando acertava a administração? Quando bania a concorrência das obras públicas, ou, agora, restabelecendo-a? Quando gastava a mãos cheias, sem publicar coisa nenhuma, ou, agora, querendo revelar uma certa vontade de cortar um pouco as despesas. Os amigos do governo não lhe estão fazendo oposição. Oposição ao governo? Isso nunca se faz na República bem ordenada. Parece, no entanto, que há agora menos entusiasmo no elogio. O louvor é menos prodigalizado, os adjetivos encomiásticos começam a rarear. Por que? Porque esse arrefecimento nos transportes da admiração oficiosa? Será o restabelecimento da concorrência nas obras públicas que assim vem causar desgostos? A voz corrente é que está passada a idade de ouro das obras públicas. Dizem que a profissão de fornecedor é uma profissão arruinada. Há nisso exageração. Seja como for, parece que o novo governo quer gastar menos. No passado governo, a repartição de Obras Públicas e a do Saneamento eram os dois carrinhos que transportavam o dinheiro do Tesouro. Entre os dois carrinhos havia rivalidades e emulações terríveis. Qual transportaria mais dinheiro?

Desse estado de guerra entre as duas repartições, resultaram coisas bem curiosas. Foi assim que uma delas tinha em depósito uma porção de cimento, fornecido sem concurso (já se vê), em quantidade muito superior às necessidades. A repartição rival estava sem cimento. Era muito natural que a repartição atacada da pletora de cimento fornecesse esse material à sua irmã, que sofria da anemia de Portland. Pois assim não foi. O Saneamento vendeu a um feliz particular o cimento excessivo e o mesmo particular revendeu-o às Obras Públicas com um lucro de 8$ooo por barrica. Essa diferença pagou-a o Tesouro. O cimento saiu por uma porta e entrou por outra, acabou-se a história e manda a verdade que contemos outra...

Nos projetos de saneamento e de melhoramentos, figuram uma galeria de drenagem da margem do Tamanduateí e outro projeto da abertura de um canal. Um projeto é do Saneamento, e outro, das Obras Públicas. Feito o canal, ficava dispensada a galeria de drenagem, tanto mais quanto o canal, pelo projeto, corta em meio a galeria de drenagem, que já está quase feita, e, portanto, pelo menos metade dessa galeria vai ficar inutilizada. Dessa falta de acordo entre as repartições, sofre o Tesouro um prejuízo de mais de mil contos. Era, porém, preciso fazer grandes obras, porque com as grandes obras e com as grandes empreitadas se fazem os grandes amigos. Não foram profetas os nossos índios, quando denominaram aquele rio predestinado Tamanduateí, isto é, rio dos tamanduás?

Há fundadas esperanças, dizem-nos os otimistas, e nós queremos também ser otimistas, de que as coisas vão mudar, ou já estão mudadas. Não desanime o sr. Campos Sales. Tenha s.exa. menos elogios, mas gaste também menos dinheiro do contribuinte.


 

UM SINTOMA

Comércio de São Paulo, 16-6-1896.

 

O Jornal do Comércio, há dias, escreveu nas várias que o secretário da Fazenda da União afirmara em seu relatório ser o Estado de S. Paulo devedor ao Tesouro Federal de avultada soma, e, ponderou o grande órgão, nas apertadas conjunturas atuais do erário nacional, era justo que pagasse a sua dívida o Estado talvez mais rico da União.

A folha Estado de S. Paulo, em um ímpeto de justificado amor próprio estadual, redarguiu que não correspondia à realidade dos fatos a ponderação do jornal fluminense e que, ao invés disso, o Estado de S. Paulo é que é credor da União de quantiosa soma.

O governo de S. Paulo interveio na controvérsia para dizer, com a sua autoridade, que a verdade está com a folha paulistana e aproveitou o ensejo para promover com seu devedor a liquidação da conta. Afigura-se-nos que a folha paulista cumpriu o seu dever, assim como é legítima a atitude do governo estadual. Tendo aparecido na imprensa a acusação, era dever dos atuais representantes de S. Paulo esclarecer os fatos e desfazer a falsa imputação de sermos maus pagadores. Entretanto, não se pode negar que este fato é de suma importância e constitui um golpe mortal dado na República. No regime atual, os ministros não têm a responsabilidade dos atos de governo de sua pasta; a administração federal é uma, solidária, única, de sorte que o ato referido do secretário da Fazenda é do governo do Brasil. Esse ato é nada menos do que a afirmação pública de ser o governo credor de uma entidade da qual, na realidade, ele é devedor. A asseveração do governo torna-se mais grave, desde que se pondere que foi feita em uma peça destinada a servir de base às deliberações do Congresso Nacional, a fornecer os dados para a elaboração do orçamento público. O fato, portanto, é de suma gravidade: torna suspeitosas as informações do governo apresentadas à nação: não é simplesmente uma falsidade; parece um artifício destinado a amparar ficticiamente o nosso crédito perante a nação e perante o estrangeiro, e vai inquinar de suspeitas as deliberações legislativas. Figure-se que uma casa comercial use de igual expediente; não há dúvida de que a justiça criminal teria de se haver com ela. O Brasil é uma organização política; é uma nação da qual os Estados são partes, formando um todo homogêneo; desde que se quebre a solidariedade que deve haver entre eles e, em lugar dela, se forme o antagonismo e a rivalidade, a nação caminha, fatalmente, para a dissolução.

O governo de S. Paulo, com o procedimento que trazemos comentado, afirmou-se, no terreno econômico, uma entidade apartada, antagônica da União, com interesses seus contrários aos dela, não se lhe dando de comprometer, de humilhar, de desmascarar a União, para defender a própria honra e os seus interesses peculiares. Isto prova bem claramente que a federação só existe no papel; que, de fato, cada Estado cuida de si, com o egoísmo próprio do interesse, e que o verme da dissolução morde, voraz e incessantemente, o coração da República.

Com um governo que cava fundo o seu descrédito e a sua ruína financeira, permanecendo os Estados assim em antagonismo, parece certa a queda da República.


 

AGOUROS E PRESSÁGIOS

Comércio de São Paulo, 10-7-1896.

 

Não há muitos dias, noticiou-nos o telégrafo que o general Porfirio Diaz fora eleito presidente do México, pela quinta vez.

Para quem tem a filosofia que dá a lição da História, não é coisa de espantar esta manifestação feita, pela quinta vez, pelo povo mexicano ao seu consolidador, com aquela bem conhecida liberdade eleitoral característica da República.

Não foi Mario sete vezes cônsul?

A forma republicana na América ibérica, como nos demonstra a experiência de quase um século, é inevitavelmente militarista e pessoal.

É uma fatalidade histórica, a que não é lícito fugir. Debalde se têm feito tentativas de governos civis.

Diz-se, nestes pobres países, que neles existe um governo civil, quando acontece não vestir uma farda o pobre e fraco personagem que, durante um prazo legal, nem sempre vencido, exerce as funções de presidente da República.

Essa sombra apagada e triste que se chama um presidente civil, foi quase sempre imposta aos eleitores por algum caudilho cansado de governar e que acha bom, por decência, interromper um pouco o seu governo, sendo, por isso, como é costume, chamado de Washington, e aureolando-se com a fama da abnegação e do desinteresse.

Ora, o governo continua militarista sempre, embora o presidente não seja militar. O presidente civil é sempre o prisioneiro do seu ministro da Guerra. A Constituição confere ao presidente o direito de dar ordens ao ministro da Guerra. De que valem, porém, essas ordens, se, pelo que se pode chamar o direito público censuetudinário e republicano da América latina, ao general ministro, como chefe da força armada, assiste a faculdade de depor o governo?

As populações monárquicas da América latina, pela força da sua índole, modificam o regime republicano e encarnam sempre a República num indivíduo. A República, entre nós, chamou-se Deodoro, foi, depois, Floriano Peixoto. Hoje, desaparerido este, o republicano sem jaça diz-se, antes de tudo, florianista. Morreu o homem representativo do republicanismo, isto é, do militarismo, e ainda não apareceu o seu sucessor; mas todos o esperam, e fatalmente há de vir esse general. No préstito do aniversário do nosso consolidador, homens políticos levaram aos ombros, em charola, uma cadeira vazia coberta de crepe, encimada de uma águia e tendo ao lado o chapéu armado do defunto. Voluntário e significativo simbolismo, o daquele traste, o daquele pássaro e daquele acessório do uniforme. A cadeira era a cadeira presidencial que os verdadeiros republicanos consideram vazia, apesar de lá estar o sr. Prudente de Morais, cuja apagada magreza é julgada insufidente para ocupar aquela vasta poltrona. A águia é o Cesarismo e o chapéu armado vazio queria dizer que falta a cabeça que o deve encher e que a República está, por isso, acéfala. Naquele andor de procissão cívica revela-se toda a psicologia atual do republicanismo brasileiro.

Uma República sul-americana, sem o seu competente grande homem militar, é uma coisa vaga, inquietante, é um estado de transição, um interregno triste e pouco duradouro. Os republicanos são adeptos do messianismo: é preciso que haja sempre em circulação, ou em espectativa, um salvador da República. Ora, o sr. Prudente de Morais não tem a linha desse personagem necessário. Não serve; venha outro. Já na vila do Socorro, durante uma sessão do Júri, desprendeu-se do muro a melancólica efígie de s.exa. e, caindo sobre a cabeça do juiz, rompeu-se o quadro, desencaixilhou-se aquela litografia republicana e os estilhaços do vidro feriram gravemente o magistrado, que desmaiou, esvaído em sangue, e em perigo de vida foi levado para casa, ficando no chão, em bocados e banhada no sangue do magistrado, aquela efígie presidencial, dilacerada, triste, sempre triste.

Nestes tempos, em que é tão grande a preocupação do mistério e do invisível, nesta época de renascimento do ocultismo, não é fora de propósito, tratando-se daquela singular tentativa de morte perpetrada pelo retrato do sr. Prudente de Morais, o escrever a palavra agouro.

Falamos em Mario e nos seus sete consulados. Pois Mario acreditava em agouros. Sete vezes uma águia passou voando por cima da sua cabeça e sete vezes deixou cair das alturas sobre o manto de Mario alguma coisa que sete vezes o maculou e que significava os sete consulados.

Napoleão, ao passar a fronteira da Rússia, foi atirado ao chão pelo seu cavalo assustado por uma lebre. Funesto presságio para a campanha, naquele dia encetada e que foi para Napoleão o começo do seu fim. Hoje, cai o retrato. Quanto tempo durará, sem cair, o original?

A lista dos presidentes civis depostos é grande na América, quase tão grande como a dos eleitos.

E isso é natural. Se os próprios presidentes militares nem sempre têm escapado a esse melancólico destino, que segurança tem o cidadão que a tolerância da espada deixa chegar até à cadeira presidencial? O medo que uns têm de outros, a incerteza que todos têm de tudo, cria um estado social que a palavra anarquia mal pode pintar. A autoridade não respeita o povo e o povo não estima a autoridade.

Conta Tácito que o fim da República coincidiu em Roma com a repetição dos consulados conferidos ao mesmo homem e com o desenvolvimento do gosto frenético pelos jogos do circo. Ia o povo romano aos espetáculos das feras, que eram os jogos de bicho daquele tempo.

A morte impediu que à presidência da República voltasse o homem que foi a verdadeira encarnação da República, mas o nosso povo, cansado dos homens, esse, já vai aos bichos.

E em Roma, anos depois da morte de Nero, o seu túmulo era, às vezes, coberto de flores pelos que tinham saudade do seu reinado...


 

MOREIRA DE BARROS

Comércio de São Paulo, 11-7-1896.

 

A carreira dos negócios públicos no regime livre há sete anos interrompido no Brasil não tinha naquele tempo prêmios distribuídos ao acaso. A importância política e, mesmo, a simples notoriedade não era obtida facilmente.

O Imperador não tinha, cercado como era o seu poder pelos usos de um governo parlamentar e livre, a faculdade de criar estadistas, atribuição que, na República Brasileira, têm tido os chefes de Estado e de que, mais do que todos, usou o Consolidador, em quem devemos sempre ver o tipo mais acabado de um presidente de República.

Antonio Moreira de Barros era uma curiosa e valente organização. Era de uma energia indomável, que mais se exacerbava diante das contradições, dos revezes e nas diferentes fases de impopularidade, que lhe valeram, por vezes, a sua intransigência e a sua lealdade política.

Lutava ele, porém, numa época em que o assassinato não era um recurso usado pelos governos, ou pelos partidos, para obter o silêncio e a inação do adversário. Em toda a veemência das paixões políticas sabiam os contendores que todos viviam num regime civilizado, em que havia todas as liberdades, mas de que era banido o crime pelas leis e pelos costumes, costumes hoje tão espantosamente alterados.

Foi Moreira de Barros um lutador na política pequena do seu município, na política da província e no teatro mais vasto da política nacional, em que foi, em certo tempo, figura notável.

Aliava ele uma singular agudeza de engenho, uma inquebrantável retidão de intenções, uma firmeza de propósitos e de amizades que lhe davam grandes vantagens, porque ele sabia o que queria e, sabendo também escolher os seus amigos, nunca se achou isolado.

Tinha ele o segredo, precioso em política, de, dentre os maus amigos, eliminar os piores e, dentre os bons, preferir os melhores. E era com estes que ele dava as suas batalhas parlamentares, na Assembleia provincial e na Câmara dos deputados.

Pode-se, sem medo de errar, dizer que Moreira de Barros era um parlamentar dos mais notáveis que o Brasil tem tido. Era servido por uma palavra de uma facilidade espantosa, que, aquecida pela paixão, não raras vezes tocava a verdadeira eloquência. Era, sobretudo, inexcedível nos seus recursos de argumentação e de tática. Na extraordinária mobilidade de sua fisionomia podia seguir-se a impressão das palavras do adversário que seus grandes olhos faiscantes fitavam. Diante de um argumento sério, ou de um dito certeiro, empalidecia levemente. Ai, porém, do adversário infeliz ou inexperto a quem escapava uma frase também pouco feliz, ou pouco apropriada e contraproducente! A fisionomia do agudo contendor iluminava-se num sorriso, a resposta, quase sempre a mais própria, a mais cabal, acudia-lhe à inteligência, e essa resposta era dada imediatamente, sem demora, nem hesitação, numa frase leve, alígera, clara e concludente, que confundia o inimigo e valia a Moreira de Barros verdadeiros triunfos. Nem os mais afamados dos nossos oradores, muito mais eloquentes do que Moreira de Barros, escaparam a esses ataques, em que ele lhes levou às vezes vantagem. Nem a auréola de José Bonifácio lhe foi sempre garantia.

Homem de discussão e de luta política no terreno da liberdade, em que fora educado, Moreira de Barros nada tinha que fazer na República. Terminara com a Monarquia a era dos homens da discussão e da palavra. Os decretos restritivos da liberdade que assinalaram os primeiros tempos da República, imprimindo a esta um caráter de opressão política que ela não tem querido perder, bem cedo mostraram àquele espírito lúcido que nada mais lhe restava a fazer. As eleições foram, por assim dizer, abolidas, e Moreira de Barros, como tantos outros, desanimou do Brasil. Para ele, o esfacelamento definitivo e o fim da nacionalidade brasileira não eram mais objeto de dúvida. Abandonou-o, nos últimos tempos da sua vida, a suprema virtude do político: a esperança. Sentia, talvez, próximo o seu fim, mas, embora ausente e retirado, não faltou aos seus correligionários nem com o seu apoio, nem com a sua animação.

Em tempos que pudessem ser aproveitados pelo país os grandes recursos da sua energia e da sua atividade, seria uma grande perda para a sua terra a morte de Moreira de Barros, no pleno vigor da sua inteligência. Era, porém, um homem, como dissemos, que nada podia fazer na República. Era um homem que desconhecia, ou aborrecia os novos processos políticos, há anos inaugurados entre nós. Era todo lealdade e bondade, apesar da paixão que às vezes revelou contra os seus adversários. Influiu muitos anos no seu partido, e nunca foi causa da menor perseguição contra quem quer que fosse.

Desaparece deixando a memória de uma acentuada e original individualidade, que muitas vezes mereceu ser admirada e que sempre foi, com justiça, querida dos que de perto tiveram a fortuna de poder aquilatar-lhe o seu generoso e exuberante coração.


 

OS DIREITOS DE IMPORTAÇÃO EM OURO

Comércio de São Paulo, 16-7-1896.

 

Discute-se atualmente na comissão de Orçamento da Câmara dos deputados a questão do pagamento em ouro dos direitos aduaneiros, parecendo a maioria da comissão inclinada a tal forma de cobrança.

O assunto não é novo e, antes, mais de uma vez tem sido invocado este regime fiscal como uma espécie de panaceia destinada a aumentar os recursos do governo federal, hoje reduzidos ao produto das taxas votadas sobre os gêneros de importação estrangeira.

Hoje triunfante, amanhã votada ao ostracismo, para, logo depois, novamente aflorar no cérebro dos chamados representantes da soberania nacional, esta ideia voga caótica, anárquica, incompreendida, ao sabor das fantasias, dos caprichos, ou dos temores que a todos preocupam em face da situação do Tesouro federal, situação que afeta profundamente o Brasil, enquanto corpo organizado, conexo, coordenado, criando entre os Estados e a União um conflito de interesses no que diz respeito ao comércio e às transações internacionais.

O pagamento dos direitos em ouro, seja qual for o aspecto sob que encaremos a questão, traduz-se, em última análise, ou num resultado nulo, ou num resultado contraproducente. Bernardice, ou desastre, em qualquer das hipóteses, quem sofre é o país nas suas condições financeiras: os Estados, na sua economia interna; o comércio, na facilidade e multiplicação das suas transações, e o consumidor, no intolerável agravamento da sua vida doméstica.

Três soluções pode ter o problema: — ou o pagamento dos direitos em ouro é calculado ao câmbio do dia, ou esse pagamento tem por base o câmbio par, ou o Congresso estabelece uma taxa convencional, determinando-se pela média das oscilações cambiais combinada com a necessidade urgente de aumentar as receitas do Tesouro.

A primeira solução é absurda. Quer o pagamento dos direitos aduaneiros seja feito em papel moeda, quer em ouro, precisamente equivalente a esse papel, segundo o câmbio do dia, o resultado é o mesmo, sem tirar, nem pôr. A única diferença consistiria em que, em vez de ser o governo o tomador dos saques diretamente, essa função passaria a ser desempenhada pelo próprio comerciante. Mas ninguém de bom senso poderá descobrir nessa operação de simples caixeiro a menor vantagem financeira. O serviço seria, talvez, mais limpo, porque a libra esterlina tem um aspecto infinitamente mais sedutor do que uma nota sebenta, ou dilacerada, mas, com certeza, não seria mais produtivo e se traduziria para o comércio em um novo dispêndio de tempo e de diligências, sem vantagens para ninguém.

A segunda solução equivaleria à ruína inevitável do nosso comércio importador e consequente nulificação de todas as receitas aduaneiras. O pagamento dos direitos em ouro, tendo por base o câmbio par, representa sobre o produto importado um ônus triplo do atual, e, sem insistirmos no absurdo de, por uma só vez, de salto, inopinadamente, levarmos a cabo semelhante enormidade, basta ponderar que as atuais tarifas, sob o pretexto de beneficiar a indústria nacional, se tomaram quase proibitivas para um grande número de produtos que, no Brasil, não encontram similares, nem, provavelmente, os encontrarão dentro de um período cuja amplitude é impossível prever, por isso que depende de um conjunto de circunstâncias dificílimas de reunir.

Diz-se e repete-se por toda parte, com essa facilidade de generalização própria de todas as tolices, que o consumidor é quem, afinal, paga todas as diferenças. Paga, não há dúvida, mas a elasticidade da bolsa, mesmo no Brasil, tem limites, que não se podem impunemente violar.

Paga até onde esse desembolso não vai afetar as necessidades mais inadiáveis e mais urgentes da renda de casa, da alimentação e da luz. Paga, enquanto a linha divisória entre o essencial e o supérfluo não é destruída pelo supérfluo, em prejuízo do necessário. Uma vez alterado este equilíbrio, o consumidor não paga mais, porque absolutamente não pode pagar, o que já hoje sucede em relação a muitos artigos que a atual tarifa tornou proibitivos, sem se lembrar de que esses produtos não eram e não podiam ser por ora aqui fabricados, e que a única resultante dessa medida draconiana se traduzia na supressão radical do consumo e consequente eliminação de receitas.

Se a tarifa atual, como dissemos, é proibitiva para um grande número de artigos de importação estrangeira, determinando uma sensível diminuição da receita, fácil se toma calcular a que extremo o mal atingiria, se acaso se adotasse o segundo dos expedientes apontados! Seria a ruína inevitável do comércio internacional, a paralisação de enormes fontes de riqueza, o conforto banido da vida brasileira, o desequilíbrio completo de toda a nossa existência econômica, tanto mais quanto, importando o Brasil um grande número de gêneros de primeira necessidade, já não só as classes abastada e mediana, mas a própria classe proletária, viriam a ser dolorosamente afetadas por um semelhante estado de coisas.

Suponhamos agora a terceira hipótese, isto é, o estabelecimento de uma taxa convencional, determinando-se pelas médias das oscilações cambiais, combinada com a necessidade urgente de aumentar a receita do Tesouro.

Nem por isso a situação seria menos anormal, nem a concepção, menos errônea. Em primeiro lugar, essa medida, tendendo inequivocamente a melhorar a situação do Tesouro, promovendo um aumento da receita, estava no mesmo caso da anterior, enfermando de idênticos males, resentindo-se dos mesmos defeitos. Aumentaria o quantum dos ônus tributários, e, como já vimos, esse quantum não é susceptível de ser excedido. Mas, nesta hipótese, os inconvenientes subiriam de ponto, porque, ou a taxa tomada para base do pagamento dos direitos em ouro era superior, ou era inferior à taxa do câmbio do dia. No segundo caso, o produto ficaria agravado com um excesso tributário que ele não poderia suportar; no primeiro caso, o prejudicado seria o Tesouro, e tanto numa, como em outra circunstância, o comércio, cujo exercício se não compadece com esta incerteza, variabilidade e oscilação, antagônicas com a fixidez, a estabilidade e a regularização normal das transações.

O Congresso, porém, parece que insistirá em mais essa ideia fatal de imposto em ouro, que representa para o Brasil um perigo gravíssimo e cujos resultados desastrosos apenas de leve apontamos.


 

A HONRA NACIONAL

Comércio de São Paulo, 3-9-1896.

 

Conhecem a política do nambu? É primitiva, é simples e é agradável. Esconde o nambu a cabeça sob a asa, volta ao caçador o que por eufemismo chamaremos as costas, e, nada vendo, pensa e jura que não há perigo, até que a inesperada carga de chumbo lhe tire a vida e as suas ilusões de pássaro otimista.

Os plumitivos da imprensa não devem ter essa política tão fatal ao seu colega das matas. Cabe-lhes o dever, senão de afrontar, ao menos de enxergar e denunciar o perigo.

Há quarenta anos, num editorial destes, teria muito cabimento uma alusão aos gansos capitolinos.

Sejamos menos campanudos e falemos do perigo atual, que é a questão italiana.

***

Há uma questão italiana, aqui no Brasil. É uma questão diplomática, é uma questão financeira, é uma questão de honra, é uma questão de tudo. Ligada a ela há uma porção de coisas, há os interesses dos reclamantes e dos políticos, seus sócios e protetores; há os castos ouvidos do sr. Prudente de Morais, arranhado pela frase, aliás untuosa, do sr. Gonçalves Ferreira; há as faces magoadas de um parlamentar interrompido à mão aberta; há tudo, enfim.

Este mundo é o mundo das convenções. Parece estar convencionado que a Itália não nos ameaça e que o sr. Prudente de Morais tem força e energia para opor aos arreganhos da Itália.

Familiarizado, como já deve estar s.exa., com as botas militares, não lhe mete medo aquela bota na Europa. Esta, porém, parece que vai ser difícil de descalçar.

Não pode o governo abolir por decreto a questão italiana. Ela aí vem, ou, antes, ela aí já está, mal disfarçada em telegramas que se contradizem nas palavras e se confirmam todos no fundo. A esquadra não vem. É certo e é sabido. Não se ignora, porém, que não vem a pedido do governo, segundo disseram os próprios jornais governistas.

Não vem ao Rio — vai, porém, cruzar nos nossos mares pelas bandas do sul, nas alturas do Prata. Não nos vem ameaçar no corredor da nossa casa, mas fica alerta à porta, na calçada da rua.

Vem, é verdade, um enviado em missão especial.

Não vem, porém, como devia vir, como um emissário de paz e de amizade, no cômodo vapor transatlântico que todos tomam. Vem num minaz e formidável couraçado.

O sr. De Martino, que já uma vez rompeu brutalmente umas negociações com o nosso governo, vem reatar umas novas negociações, já bastante emaranhadas. E ele já mostrou não ser homem de paciência.

E entra pela nossa casa armado, pois a tanto equivale chegar aqui num vaso de guerra, que foi o seu vaso de eleição para esta viagem diplomática.

Por outro lado, chega-nos uma interessante notícia. O cônsul, que deu, ou não deu, os célebres morras, viu (dizem os jornalistas italianos) a sua atitude plenamente aprovada pelo governo italiano.

E o cônsul ficará, acrescentam com orgulho e triunfantes os dois jornais italianos que aqui se publicam, e que, com a impunidade de que em nenhum outro país da terra gozariam, aqui zombam e escarnecem de nós. E acrescentam que a atitude enérgica do sr. Bruno, chargé d’affaires italiano, impressionou o novo ministro do Exterior.

Acentuam o fato de que a nomeação de De Martino foi feita sem consulta prévia ao governo brasileiro, como é de uso em casos tais; que isto foi feito para mostrar ao nosso governo as disposições enérgicas e hostis da Itália!

E nada disso é sabido! Tudo é abafado pela algazarra dos poderes públicos, esbofeteando-se e injuriando-se em frente do estrangeiro ameaçador.

E para que mais funda seja a humilhação nacional e o sentimento da inferioridade a que a República nos reduziu, nestes dias de vergonha, vem, como que para presenciar e escarnecer, talvez, da nossa fraqueza, uma poderosa esquadra dos nossos rivais de sempre assistir a tudo isto.

Salvada pelos nossos cacaréus flutuantes, pelas nossas fortalezas desarmadas, entrou a baía do Rio de Janeiro a esquadra argentina, pomposa e triunfante. Os oficiais daquela esquadra, nobres e generosos como soem ser os homens do mar, tiveram, de certo, compaixão do estado de miséria a que está reduzida a valente armada do país, que já foi a mais poderosa da América do Sul.

Este nobre sentimento transformou-se, decerto, em desprezo e asco, quando ontem leram o jornal do negociador das Missões, que, no delírio do seu servilismo argentino, disse, em editorial, que aquela esquadra está honrando as águas de nossa terra e, batendo palmas à entrada triunfal da esquadra, diz, com júbilo, que esta armada entrou como senhora do porto!

Não, sr. Quintino Bocaiuva, as águas do Brasil não são honradas por nenhuma esquadra estrangeira. São águas sagradas, crescidas dos nossos rios, que embalaram o berço da nossa nacionalidade e tingiram-se do sangue dos nossos heróis. E, se a esquadra argentina, como com alegria observa O Paiz, é hoje senhora do porto, deve-o ao governo republicano, deve-o ao sr. Bocaiuva e aos seus amigos.

Que os italianos, que os argentinos, que todos os que nos são adversos agradeçam à República o estado a que ela reduziu o Brasil.

***

E os jovens oficiais argentinos, desprezando tudo isto que lhes apresenta o Brasil de hoje, atraídos pela invencível sedução da honra e da glória, vão, encorporados, saudar respeitosos o velho almirante marquês de Tamandaré, vida e gloriosa relíquia do Brasil de outrora.


 

UMA QUESTÃO DE MÉTODO

Comércio de São Paulo, 15-9-1896.

 

Convém mais a um partido oposicionista que quer destruir alguma coisa e retificar outras atacar, ou descompor?

Eis aí um problema que merece estudo.

Dirão, talvez, que a resposta cada um a dará segundo os instintos da sua natureza, ou os princípios da sua educação.

É verdade; mas o problema nem por isso deixa de existir: é um ponto interessante da arte da política e não simplesmente, como pode parecer, uma questão de manual de retórica.

A descompostura tem seus adeptos. Dá ela vazão ao vício da maledicência, que é inseparável da natureza humana, e, neste tempo em que todos os prazeres, mais ou menos nobres, andam pela hora da morte, nesta época de carestia, o prazer de, por 100 réis, ler, todas as manhãs, um terrível ataque contra os nossos desafetos, se não é o mais elevado, é, com certeza, o mais barato dos prazeres.

Se assim é, compreende-se, talvez, que devam existir, para satisfação desses instintos, insultadores públicos, como, para satisfação de outros, há uma outra instituição social que os legisladores, até os higienistas, julgam bem conservar e regular.

Cada um tem, porém, a natureza que lhe é própria. Não é possível a ninguém forçar a sua índole. Há quem tenha nascido para descompor, como há homens nascidos fatalmente ébrios, poetas, assassinos, ou artistas. Portanto, o temperamento crítico, dom que permite na análise a natureza exata das coisas e estabelecer, na síntese, a justa e harmônica relação entre elas — será irremediavelmente, sempre e sem possibilidade de aliança, incompatível com a índole dos insultadores e dos seus adeptos.

A descompostura compreende-se num Juvenal, quando é sublime diante da grandeza dos crimes. Mas a descompostura dia a dia, a descompostura a jorro contínuo, a descompostura descabelada e com pouca gramática, como ela sói ser, é uma coisa ridícula, improfícua, degradante para o partido que a emprega, e, mais do que tudo, vício e supremo para o artista que deve ser sempre o escritor — a descompostura é inestética.

***

A descompostura enrija a pele do adversário e este, encourado, feito um rinoceronte, resiste a todos os projéteis, zagaias das sátiras, ou lançadas dos editoriais. O escritor oposicionista que quiser atacar um governo não deve tomar como modelo o urso: o governo figura a mosca e o jardineiro da fábula é o país. Convém, para esmagar o governo, esborrachar a cara ao país?

E, se entra em cena o La Fontaine, digamos que o ideal do oposicionista deve ser antes o do mosquito, vencedor do leão.

A descompostura esfalfa o escritor e acaba cansando e afastando o leitor.

Vivemos em um país que, ao hábito inveterado da descompostura, sob a sua forma ativa ou passiva, mais do que a qualquer outra coisa, deve, talvez, toda a sua desorganização e todos os seus males.

Foi a descompostura impune que rebaixou tudo entre nós, foi a insânia dos nossos escritores, foi a loucura inexplicável dos nossos políticos, que tudo desprestigiou. A censura moderada, a crítica esclarecida poucas vezes conseguia fazer-se ouvir no desconcerto das injúrias, no atropelo das calúnias vociferadas.

E qual o resultado? O público, que não era, não é e nunca será político, desconsiderou a todos, porque todos se injuriavam. E o mesmo público, diante do estafado vocabulário das invectivas, conservou-se indiferente a tudo e a todos.

Daí, o entorpecimento da fibra nacional; daí, a morte do patriotismo.

Quando veio a tirania real e revoltante, quando a República se manchou com todos os crimes, quando o assassinato político apareceu, o público brasileiro ofereceu ao mundo o espetáculo miserando de sua indiferença, e por que? Porque já os jornalistas, os oradores e os escritores de todas as passadas oposições haviam esgotado o vocabulário de todas as afrontas contra adversários limpos de crimes. Já havia desbriado a muitos e enfastiado a todos com as suas descabidas, exageradas, odiosas e degradantes invectivas.

Como podia o povo acreditar nos crimes do sr. Floriano Peixoto, se o próprio Sr. D. Pedro II já havia recebido de todos os partidos todos os insultos? E o povo sabia que ele era inocente e, por isso, lembrando-se daquele grande caluniado, na lógica irrespondível da sua simplicidade, perguntava a si mesmo:— Quem sabe se, na verdade, Floriano não é tão criminoso?

E, por isso, o povo, diante da denúncia e da relação desses crimes, não se moveu.

E hoje, quando a cada instante se aproximam de nossas costas os navios de guerra de uma nação estrangeira, que em não disfarçada hostilidade vêm humilhar a nossa dignidade, o povo continua inerte, distraído, incrédulo, indiferente à iminência e ao opróbrio da afronta.

E por que? Porque o povo não acredita nas classes dirigentes e toma as reivinditas da dignidade nacional, como sendo o vão e odioso palanfrório de todos os tempos.

Ora, não é hoje que um homem inteligente, convencido de todos esses erros do passado, hesitará entre estes dois caminhos: ou adotar a política do doesto, ou a política da calma patriótica que a razão lhe impõe.

Se há monarquistas que desejam ler todos os dias que o sr. Campos Sales bebe o suor dp povo, que o sr. Peixoto Gomide se banha todas as manhãs no sangue das vítimas de sua crueldade, que o sr. Prudente de Morais manda fuzilar todos os dias duas dúzias de indivíduos, que o sr. Rodrigues Alves leva para a casa, também todos os dias, o dinheiro que há nas gavetas do Tesouro, que esses monarquistas digam isso por sua própria conta, e, inconscientes, afrontem mais esse ridículo.

E, afinal de contas, é uma questão de palavras. Nós estamos convencidos de que a República há de fatalmente desaparecer e, por isso, não hesitamos em escrever — A República está morta.

Há quem prefira escrever que ela já está podre. Simples divergência de educação civil e literária.

Quanto aos republicanos, a política que eles desejam ver adotada pelos escritores monarquistas é a da injúria e da violência.

E, por isso, eles preferem, com razão, os monarquistas espumantes e esbravejantes, aos monarquistas discutidores e analistas.

Aqueles fortalecem a República; estes apressam a sua queda.

Os republicanos não escondem essa sua predileção, aliás muito justa e natural.

Esta opinião é a verdadeira contraprova da nossa doutrina:

O melhor método de se atacar um adversário é o método de que ele menos gosta.


 

PATOLOGIA FINANCEIRA

Comércio de São Paulo, 19-9-1896.

 

Não há pior indício, para o doente, de gravidade da sua moléstia do que chegar ele, às vezes, a esquecer-se de que está doente. Quer isto dizer que já vai longa a moléstia que por tanto tempo o atormenta e que, tornada crônica e inveterada, é também incurável.

Ora, uma doença incurável dá ao espírito a conformidade que acompanha sempre as coisas sem remédio. Têm todos os moribundos a chamada visita da saúde. A ausência da dor é, porém, o prenúncio da morte: já não há queixas, nem gemidos. Os enfermeiros, caindo de fadiga, nada esperam. As pessoas da família, com os olhos inchados das vigílias, a tez macilenta, parecem assombrados fantasmas. E o médico, extenuado, conserva-se na câmara vizinha, e, se, porventura, se senta, adormece profundamente. O doente parece dormir; o ruído da respiração é tênue e sutil: são os últimos grãos de areia caindo na ampulheta da vida...

A casa parece calma. De repente, o doente respira com mais força; a respiração transforma-se em gemidos. Todos acodem: um estertor mais, e é o último.

E isto é que se chama morte.

***

Este quadro é o que apresenta o atual governo.

A doença data de sete anos. O enfermo não é velho; é, porém, uma criança que não tem a frescura, nem o viço da infância.

Nasceu enferma a República e enferma viveu, para desgosto dos pais, desespero dos médicos e trabalho de todos.

De esperanças em esperanças, de decepções em decepções, tem ela arrastado a sua vida e, hoje, apresenta o doloroso espetáculo da decrepitude em rosto de criança. Está ainda no berço, mas o berço tem uma vaga forma de esquife.

A sua existência assinala-se pela sucessão das gravíssimas moléstias, que são a sua história. São as crises: golpe de Estado, deposições, questões militares, guerras civis e pronunciamentos, que se sucedem sem prejuízo da moléstia financeira, que é o depauperamento irremediável do organismo todo.

De nenhuma das moléstias a infeliz conseguiu sarar completamente.

As suas convalescenças, os seus restabelecimentos, as chamadas consolidações, são apenas mudanças de nome das moléstias que a credulidade dos pais toma sempre pela volta da saúde. E todas essas moléstias juntas são, no entanto, uma só: a impossibilidade de viver.

A moléstia que hoje prostra a doente é, além de todas as outras que a enfraquecem mortalmente, a crise financeira.

Já não se aplicam remédios. Os criados arrecadaram de cima das mesas os frascos, as poções, os emplastros e os revulsivos, e tudo, com desespero, foi deitado fora.

E o médico, o ministro da Fazenda, o sr. Rodrigues Alves, sentado, dorme, dorme profundamente.

***

Os amigos da casa já quase não falam daquela doença. Os doentes que duram muito acabam meio esquecidos.

Durar demais parece ser uma impropriedade, por parte do enfermo, que contraria o egoísmo dos amigos. As visitas rareiam e, se o doente é pessoa notória, as notícias escasseiam nos jornais, e, por fim, desaparecem.

É o que se está dando com a moléstia financeira.

Há moléstia. É grave e já se começa a dizer e a sentir que não tem remédio.

***

Na abertura do Congresso, houve um reboliço. Falou-se em tratamentos vários, vagos sistemas Kneipp, homeopatias diversas, hipnotismos infalíveis, etc. etc. etc.

Os médicos formados foram deixados de lado. Entrou-se francamente no período do desespero, que faz a glória dos curandeiros, dos hervanários e dos curiosos.

O sr. Francisco Glicério apresentou com grande aparato a mezinha caseira, remédio radical e enérgico, um porrete, enfim, como se costuma dizer.

Esse remédio era a tal transferência dos serviços federais para os Estados e para a Municipalidade do Rio.

A sabedoria financeira do primeiro homem da República não deu para mais.

Há cinco meses que corre, suave e caudaloso, o rio do subsídio, que nasce em gotas das algibeiras dos contribuintes, é represado para o Tesouro e, derivado para o Congresso, ali se despeja em cascatas refrescantes. Esse rio é um verdadeiro rio Letes; as suas águas dão o esquecimento. Os congressistas esquecem depressa e esquecem tudo.

Esqueceram-se do déficit.

Lá para o fim da sessão, no desmanchar da féria parlamentar, o déficit reaparecerá.

Vamos ter a repetição das cenas do ano passado: ninguém saberá o que foi, ou o que não foi votado. O deficit passará de um orçamento para outro, sempre inseparável de suas irmãs queridas: A Dívida Flutuante e a Dívida Fundada.

Felizmente, o Brasil é República, e República sul-americana, e o sr. Glicério não deve ignorar que o herói venezuelano Gusman Blanco definia aquelas dívidas pela forma seguinte: A dívida flutuante é a dívida que não se paga; a dívida consolidada é a dívida de que nem se fala.

Isto que é hoje ainda um gracejo, será amanhã uma realidade republicana.


 

A REPÚBLICA E O CAFÉ

Comércio de São Paulo, 20-9-1896.

 

Se o que vamos escrever tivesse pretenções a humorismo, devia antes intitular-se este artigo a República e o Chá.

Esta bebida chinesa ficará para sempre associada à história das elegâncias prudentinas e republicanas, neste findar de século e de República, entre nós.

Os grandes homens da República que rodeiam o grande presidente tomam, todas as semanas, com moderação espartana, a loura bebida, que nem todos eles tomaram em pequenos.

Isso, porém, não basta para que esqueçamos o café. Esse café, que é a bebida nacional por excelência, e que, em xícara, é, talvez, a mais séria das ocupações dos nossos parlamentares, já recebeu da República grandes favores.

Agora, porém, parece que está roto o encanto, e o café, que se habituara a rir de todas as desgraças, pensando no negrume do seu coração e da sua cor, que é doce prosperar com os males alheios; esse café, que subia de preço, quando o câmbio caía, parece ter entrado numa fase de infelicidades, que o vai, talvez, curar do seu egoístico republicanismo.

Não há dúvida de que o café, até pouco tempo, era um grão republicanizado.

O café aderiu. E não podia deixar de aderir: a República atirara o câmbio a profundezas onde, nem nos pesadelos do seu sono histórico, jamais caiu o sr. Rodrigues Alves. E o câmbio era o contrapeso do café: câmbio em baixo, café em cima. Isto passou, por algum tempo, para muita gente, como um axioma da nossa mecânica econômica e financeira.

Esta situação estabeleceu uma explicável, embora criminosa, cumplicidade tácita do fazendeiro com todos os disparates da República. Para o fazendeiro, o pior dos governos era o melhor; não era ele o rebaixador do câmbio e, portanto, o levantador do café?

Ora, esta situação não podia durar muito, como todos os enganos d’alma e de finanças.

O câmbio e o café eram as duas caçambas de um poço: uma, estando em baixo, outra estaria, forçosamente, em cima. Ora, aconteceu que a corda do poço rebentou e que lá foram para baixo, e encontrando-se, afinal, no fundo as duas caçambas.

Há três anos, um livro que não foi dos menos falados dizia, quando ninguém em tal pensava, que chegaria, por fim, o dia em que se havia de ver o «câmbio baixo e o café também baixo, que não é impossível, como muita gente crê» (*).

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(*) Eduardo Prado: Ilusão Americana, 3ª edição, pag. 256

***

Chegamos a esse momento, desde há meses.

O café, que era a última tábua de salvação das finanças republicanas, a matéria monopolizável e tributável ao infinito, que o sr. Erico Coelho designava à fome do déficit devorador, o café, que era o objeto das desazadas propagandas planeadas pela sabedoria republicana, para sua maior depreciação, — o café, enfim, que era tudo, é já agora muito menos.

É já tempo para que os fazendeiros reflitam. O câmbio baixo que a República lhes tem dado até agora já não lhes dá mais a ilusão antiga dos grandes lucros fictícios.

O dinheiro vale pouco e o café também pouco vale.

O governo da República quis fazer alguma coisa em favor do ex-precioso grão e saiu-se com a tal propaganda desazada, que ainda mais rebaixou o seu preço, fazendo acreditar, inepta e falsamente, no excesso da sua produção.

Das antigas vantagens que o fazendeiro tirava do câmbio baixo, resta-lhe, como lembrança dos tempos felizes, a tarifa móvel das estradas de ferro pesando sobre a lavoura.

E, agora, a lavoura vai reunir-se em congressos. Vai pedir dinheiro, segundo parece.

Duvidamos de que o pedido seja atendido.

É morto o marechal, que sabia fazer o dinheiro de papel, à vontade. Os outros fabricantes que apareceram por aqui, embora tratados com certa benevolência e, mesmo, distinção, pelas nossas autoridades e pelos nossos magistrados, foram ineptamente perturbados na sua missão de enriquecedores da humanidade necessitada, e tão cedo não volverão ao seu honrado ofício.

Portanto,, não receberá a lavoura o dinheiro que pedir.

A coisa única que o governo pode fazer em favor da lavoura é reduzir os impostos, reduzindo especialmente os direitos de exportação e o direito de transmissão de propriedade.

Reduzidos os direitos de exportação, o café chegará mais barato aos mercados consumidores, o consumo crescerá na razão dessa redução e a diferença reverterá em favor do nosso produtor. Reduzido o imposto de transmissão de propriedade, a propriedade agrícola, tomando-se mais vendável, crescerá de valor.

Isto e só isto é que o governo pode fazer.

Pode, por certo, mas não quererá. A República precisa de dinheiro, de muito dinheiro, porque a República é um governo muito caro.

Tenham, portanto, paciência os fazendeiros e convençam-se de que a maior necessidade da lavoura, como de todas as classes, é a supressão da República.


 

A AFLIÇÃO DA LAVOURA

Comércio de São Paulo, 30-9-1896.

 

Reúnem-se hoje, nesta capital, os representantes da lavoura paulista.

E estes representantes vêm angustiados e aflitos com a quase irremediável ruína da classe que representam.

Há três anos, tudo era grandeza e confiança; hoje, tudo é temor.

Os que naquele tempo apontavam o perigo, eram tidos como pessimistas, inimigos da República e até da pátria.

Chegou o instante do cumprimento das profecias de então, que não eram senão rigorosas previsões do natural desenvolvimento dos fatos.

As indústrias de um país constituem um todo solidário com a massa geral da nação. Acidentalmente, pode florescer um ramo de indústria num meio arruinado.

Esta prosperidade é, porém, ilusória e passageira.

Na ruína nacional que a República tem causado, o alto preço do café era a boa sorte do fazendeiro e a inveja de todos, pois esse alto preço, avolumado pelo câmbio, dava lucros, que pareciam fabulosos.

Onde estão, porém, esses lucros? Onde está a reserva de numerário que devia existir, depois de tantos proveitos?

A atual crise das praças do Rio, de S. Paulo e de Santos é a mais cabal demonstração de que a baixa do câmbio, se aumentou o preço do café, trouxe um encarecimento da vida, uma alta de salários e um estado de desconfiança, que consumiram, ou fizeram retrair-se todos os recursos que, se fossem reais, deviam ter-se acumulado.

O congresso de hoje é o tardio reconhecimento de passados enganos.

Queira-se, embora, afastar dele a política, queiram, embora, os republicanos apresentar-se e popularizar-se como os defensores da lavoura.

A reunião de hoje é um verdadeiro «meeting» contra a administração republicana.

O atual estado aflitivo da lavoura, que vai ser exposto e patenteado na unanimidade das queixas, na solidariedade do desespero, não é devido a causas naturais, físicas, inevitáveis.

Tudo quanto a lavoura sofre hoje é obra da República.

***

Alargou-se a lavoura, graças à facilidade do crédito promovido pela Monarquia, facilidade transformada pela República em orgia, destinada em breve a matar o crédito.

Encontrou a lavoura braços, porque, no tempo da Monarquia, ficara organizado, e funcionando, graças ao bom nome do Brasil na Europa, o sistema imigratório que supriu os trabalhadores da nossa terra.

Teve a lavoura escoamento para os seus produtos, graças aos caminhos de ferro, todos construídos durante a Monarquia, o que foi possível fazer, em vista da prosperidade econômica e financeira de então.

E o que deu a República à lavoura? Os seus erros de toda sorte produziram o câmbio baixo e a ilusão de um lucro exagerado, ilusão hoje dissipada e esvaída.

O descalabro das suas finanças causou a situação atual aflitiva e desesperadora.

Este é o pensamento impossível de banir do espírito de nossos lavradores, hoje desiludidos do seu erro, ao terem de enfrentar com a dura realidade das coisas.

Os lavradores não vêm tratar de política, é verdade, mas a política é inseparável das questões econômicas.

Foi a tolerância dos lavradores para com os erros da República a principal causa da inconsciência com que esta se atirou à carreira de todos os desatinos.

Foi a indiferença política da classe mais rica da sociedade brasileira que deixou esta entregue a todas as audácias e a todas as fantasias.

Queixam-se agora os fazendeiros da sorte e da dureza dos tempos; queixam-se do governo, mas a verdade é que também deviam queixar-se de si mesmos.

***

O que mais comove os agricultores que hoje se reúnem é a baixa do café na Europa, coincidindo com a baixa do câmbio no Brasil.

Dá-se-lhes pouco ouro pelo café, e o café fica valendo também pouco papel.

E para todas as despesas é cada vez necessário mais e mais papel.

Não tivesse a República arruinado as finanças do Brasil, e, com três ou quatro vezes menos papel do que necessita hoje, atenderia o fazendeiro a todas as suas despesas, e, havendo confiança, os juros exagerados de hoje não pesariam sobre o lavrador.

Receberia 5.000 réis por arroba de café, mas, em vez de 1.000 réis por alqueire de café, pagaria 300 réis; pagaria quatro vezes menos frete nas estradas de ferro, e, em vez de 12 por cento sobre o dinheiro, pagaria 7, ou 8 por cento. Na situação atual, sofre o fazendeiro da diminuição do preço do seu produto e do aumento espantoso do custo da produção.

E não contente a República com causar estes males, ainda agravou-os por um ato inconcebível e que passou as raias da insensatez.

Referimo-nos ao já célebre disparate da propaganda na Rússia, quando o governo de S. Paulo, obedecendo a não sabemos que preocupações, oficialmente e inexatamente declarou que a produção do café excedia às necessidades do consumo.

Foi esta declaração, de uma criminosa inépcia, o principal fator da baixa atual.

Vejam os fazendeiros que se desinteressam da política que uma penada inconsciente de um funcionário inábil pode fazer-lhes perder milhares e milhares de contos.

Os fazendeiros vão entoar em coro as suas queixas. Vão pedir dinheiro ao governo; mas o governo a quem pedirá?

O contribuinte já está esgotado e o governo, só por altas combinações, que todas hão de afinal vir a dar na irremissível e inadiável emissão de papel moeda, poderá arranjar recursos para as necessidades da máquina dispendiosíssima que se chama República...

Os agricultores convençam-se de que todo o seu mal está no mau governo que há anos infelicita o Brasil. Intervenham na política os fazendeiros; melhorem pela sua intervenção a administração do país, e melhorada ficará também a sua condição.

Cada um, segundo as suas opiniões políticas: os monarquistas, como monarquistas, e os republicanos, como republicanos — saíam da criminosa inação em que têm estado.

Se a lavoura não quer perecer de todo, trabalhe para mudar as coisas.

O que aí está com o nome de política, de governo e de administração não pode continuar.


 

ODISSÉIA PÓSTUMA

Comércio de São Paulo, 25-10-1896.

 

Tem tido muitos lados tocantes a manifestação nacional feita ao redor e com o cadáver de Carlos Gomes.

Não há negar, contudo, aos organizadores destas festas funerárias que, se lhes tem sobrado o patriotismo, tem-lhes faltado um pouco a maior das virtudes, neste caso, que é a da discreção.

A morte, afinal de contas, é uma coisa séria; tanto a morte de um grande homem, como a de um humilde mortal.

Ora, corre grande risco de deixar de ser uma coisa augusta essa morte, se é ela, sob o pretexto de admiração, dada em pábulo à curiosidade por longos e longos dias. A natureza, a mestra suprema, quer que evitemos este contato profanador, esta intimidade antimoral dos vivos com os despojos dos mortos; a rapidez da decomposição faz com que não haja demora no desaparecimento do morto. Genial contrarregras do teatro do mundo, a natureza, fazendo sair da vista do público e dos atores os mortos, dá a estes o prestígio do mistério e dos desfechos trágicos, e aos vivos, o remédio do esquecimento que a saudade apenas enternece.

Tentar ir de encontro a esta sabedoria impecável da natureza, é um erro.

Há mais de um mês que deixou de sofrer, expirando à crueza de um mal horrível e dolorosíssimo, o artista extraordinário. Aquele que amou o belo acima de tudo viu expostas, nas indiscreções dos médicos e dos «reporters» ignaros, as mais repugnantes minúcias do seu mal: a sânie das suas feridas, a supuração das suas úlceras foram descritas e discutidas.

O leão e os animais superiores têm o pudor da morte, que é grande humilhação do vivo. O instinto leva-os a irem morrer na solidão, ocultando-se até da luz do sol que outrora os viu possantes e terríveis.

Àquele leão cortaram-lhe a juba, fizeram-no subir num tablado, e a carinhosa, mas indiscreta curiosidade dos provincianos, cercou-o durante longas semanas. Corriam todos a ver o raro espetáculo da agonia de um grande homem.

Se é dado supor que Carlos Gomes ambicionou alguma coisa nos seus últimos dias, pode-se crer que foi uma morte menos cheia de tisanas e menos rodeada de boticários e jornalistas.

Aquele Orfeu preferia, decerto, que as fabulosas Amazonas do rio, a cuja margem veio expirar ofegante, o dilacerassem nas sombras das florestas, como ao outro músico prodigioso fizeram as Mênades da Trácia. Invejou, decerto, a morte do outro brasileiro, o fado de Gonçalves Dias, para quem, sem discursos nem polianteias, se abriram, na grandeza de um naufrágio, as ondas dos verdes mares bravios de sua terra.

Morreu sob os olhares dos «reporters» o poeta das melodias brasileiras. Correram os lápis, agitaram-se febris as tiras de papel, e todo o Brasil imprimiu artigos sobre a luz que se apagara no Norte.

E começou o martírio: governadores, agarrados ao fio elétrico, discutiram por telegrama a posse do cadáver e, depois, se viria despachado como um volume de mercadorias, em navio mercante, ou trazido em um navio de guerra. Os médicos apoderaram-se do corpo morto para preservá-lo da putrefação; a ciência, que não pôde conservá-lo vivo, quis conservá-lo cadáver. Embalsamado como qualquer burguês rico que quer ir morto espantar a sua aldeia com o seu enterro pomposo, ouviu o cadáver toda a banalidade dos discursos e foi rodeado de todas as solenes massadas das cerimônias oficiais.

Ei-lo, enfim, no mar! Acha-se aquela grandeza extinta diante de uma grandeza que não morre — a do Oceano, na liberdade dos seus ventos, no infinito do seu azul, no baloiço eterno das suas vagas.

Chega ao porto. Formigam na praia enxames de casacas pretas: são os oradores, são os jornalistas: homo loquens, homo scribens, subtipo degenerado do homo sapiens de Lineu. Não é da família, não é da pátria, não é da natureza, a cuja corrente eterna devia ser restituído, aquele cadáver glorioso e atormentado. Não vai para a terra transformar-se em erva do cemitério em flor abotoada, portas por onde o que foi matéria em Carlos Gomes devia de novo entrar na vida universal.

O cadaver é dos discursadores, é dos «reporters»: caro data vermibus! E das igrejas para as escolas de música, sacudido, espionado, profanado — fazem-lhe cair das órbitas vazias os olhos de vidro que lhe puseram como a um boneco macabro, encasacado e barbeado.

E lá vai de novo embarcado: mais discursos, mais solavancos e, afinal, chega a Santos: novos discursos, novas remoções. Viaja agora em caminho de ferro. Para nas estações para ser aclamado e para almoçarem os jornalistas, transformados em comparsas de pompas fúnebres, já acostumados à sua tarefa, já sem emoção possível, mas com a fadiga de uma maçada, ou com a distração de um pic-nic sinistro.

E hoje está o cadáver em Campinas, onde vai, afinal, encontrar o descanso, e, sobre a sua fronte lívida, cairá a lágrima de Sant’Ana Gomes. Finalmente, uma primeira lágrima sincera encontra Carlos Gomes na sua póstuma odisséia!

Músicas, sanefas pretas, quilômetros de discursos, banalidades das coroas, tolices das dedicatórias.

Negociantes e pedantes, ganhando a sua vida! Ruído, palavras, poeira mesquinha, tudo isto.

Paz! paz! paz! para o morto.

Para fora todos os que vêm fazer ruído à porta do templo da Imortalidade!


 

ELEIÇÕES

Comércio de São Paulo, 31-10-1896.

 

Aproximam-se as eleições gerais, e, ao passo que os republicanos situacionistas permanecem quedos, à espera do firman despótico e indiscutível dos chefes, nos arraiais monárquicos principiou já a agitação nos espíritos. Os monarquistas revelam dest’arte a sua virilidade e pujança, a sua tendência para a discussão e para o confronto de opiniões, afim de apurar onde está a maioria, a verdadeira opinião pública do partido, único sistema que constitui a base legítima da democracia moderna. Espíritos respeitáveis pelas suas luzes e experiências opinam pela abstenção, como remédio eficaz para derruir as instituições que estão aniquilando a nossa Pátria.

Outros correligionários, ilustres por muitos títulos também, alvitram que a abstenção seria um erro e retardaria a vitória da causa monárquica. Estamos francamente ao lado destes e entendemos que é dever de todos os monarquistas levar o seu voto às urnas. Um ideal político não pode esperar o triunfo, se não se corporificar em um grande partido; ora, não se compreende um partido cujo programa fosse a abstenção, a indiferença, o quietismo. Concebe-se que indivíduos isolados cultivem in imo pectore um ideal político para a sua pátria, para outros países, ou para a humanidade; mas um partido não se forma, não vive, não pode existir com esse espírito de solidariedade, de mútuo auxílio, de resistência comum que só nasce do embate com os adversários.

Objeta-se que o governo mandará trancar as urnas em algumas localidades, recorrerá à fraude em outras, em suma, inutilizará por toda a parte os esforços dos monarquistas, que vão fazer sacrifícios em pura perda.

Primeiramente, o sacrifício pela Pátria nunca é perdido, basta o pensamento que o inspira, para o santificar e engrandecer aos olhos dos nossos concidadãos e da própria consciência. Depois, o governo republicano não tem mais aquele mágico prestígio dos dias de terror, ele há de encontrar resistência no seu próprio seio e nos amigos que prezarem o seu nome e em cujo coração o patriotismo não morreu de todo.

E, se a violência afastar das urnas os monarquistas, se a fraude inutilizar os seus esforços, os nossos correligionários deverão colher a prova desses fatos e remetê-la à imprensa, afim de ser levada à presença do país e do estrangeiro, que nos contemplam.

Afigura-se-nos que esta hipótese, se se realizar, será de maior proveito para a causa da Monarquia, do que a eleição de alguns deputados.

A República atravessa um momento muito difícil; ela tem, pelos seus erros, alienado a opinião dos bons republicanos e tem-se desacreditado perante os outros países; ela precisa, pois, na hora presente, de prestígio, de crédito, de força moral, e estes elementos só lhe poderão vir do seu Parlamento.

Se os monarquistas conseguirem provar à evidência que o Parlamento está falsificado, que não exprime senão a fraude e a violência, as suas decisões não terão nenhum valor, os nacionais as desobedecerão, os estrangeiros não depositarão a menor parcela de confiança nos fraudulentamente eleitos.

Dirão que o Congresso atual já é isso mesmo, já não exprime a vontade da nação. É certo que as eleições têm sido falseadas, não sendo senão o produto do bico da pena; mas isto, que nós sabemos, nunca procuramos provar, é uma simples alegação de interessados, no dizer deles. Demais, o país não pode ficar sem representantes; se uma parte da nação abandona as urnas, por este fato mesmo, a vitória fica pertencendo à outra parcialidade, e, sejam quais forem os meios empregados, o certo é que o resultado lhe seria sempre favorável, porque não haveria outros que pudessem ser eleitos. De sorte que a nossa abstenção constitui o único título de legitimidade para o Congresso da República.


 

FORA DA CIVILIZAÇÃO

Comércio de São Paulo, 1-11-1896.

 

Como anda devagar a civilização!

E como é fácil, depois dela entrar num país, uma volta à barbaria!

Depois de quatrocentos anos de descoberta, depois de setenta e quatro anos de independência, depois de sessenta e sete anos do domínio de uma Constituição e de uma política libérrimas, como foram as da Monarquia, bastaram sete anos de República para reduzir o Brasil ao estado em que se acha.

Não falemos da ruína das finanças. Um grande povo pode empobrecer, sendo grande: a civilização não se mede pelo dinheiro, mas pelo respeito ao direito. Há uma ruína pior do que a da fortuna pública e particular: — é a falência das consciências e a bancarrota do pudor.

Pois todas estas calamidades há sete longos anos que oprimem o país.

São flagelos que a espada inconsciente de Deodoro trouxe para o Brasil, quando abriu a era republicana como a caixa fatal de nova Pandora.

E, no meio de tudo isso, onde está o orgulho paulista? Onde a civilização, de que com tanta arrogância blasonamos diante de outras partes do Brasil, mais pobres do que nós?

S. Paulo ostenta palácios; mas que importa isso? Em que difere esta cidade pretenciosa da humilde e longínqua Aracaju, onde representam a República uns presidentes padres, para quem a lei e a Constituição são um par de galhetas vazias?

Raspado de leve, o governo de S. Paulo, sob o verniz do pedantismo, ostenta a grossa inconsciência do vulgar político sul-americano.

Ontem, foi uma legítima e legal associação dissolvida, sem sombra de direito, chamando-se de sedição a seis ou oito pessoas lendo jornais ao redor de uma mesa.

Hoje, uma reunião política, anunciada com longa antecedência, ao meio dia, numa casa particular, com prévia designação das pessoas convocadas, é dissolvida militarmente.

Tiveram as pessoas reunidas a ingenuidade de acreditar no § 8° do art. 72 da Constituição Republicana, que diz «ser lícito a todos associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública».

E de que tratavam os cidadãos que se achavam ali reunidos? Tratavam, como pela imprensa haviam dito, de intervir no pleito eleitoral que a República anuncia para breve. E bastou isso para ser revogada a Constituição em S. Paulo, impedindo-se, pela força, a cidadãos brasileiros, de exercerem com liberdade os seus direitos!

E por que deixaria, na verdade, o direito de voto de ser uma mentira na República? Tudo o mais não o é?

Defendíamos as nossas ideias para que os nossos concidadãos as fizessem prevalecer nas eleições.

Somos despojados dos nossos direitos, reduzidos a cristãos desta Turquia republicana, Turquia completa, onde não têm faltado as matanças, nem agora falta a bancarrota, como não há de faltar o desmembramento.

***

Nada mais diremos de ora em diante sobre política.

Imitaremos o povo brasileiro, que, com seu instinto superior, foge da República, fazendo o vazio nas urnas, o vácuo ao redor de sua administração, estabelecendo o silêncio em torno do governo. O povo conhece o governo pelos males que este lhe causa, e é o que basta.

A contar de hoje, a nossa folha falará ao povo dos governos de outros países. As nossas colunas só estamparão produções literárias e científicas. Mostraremos a nossa simpatia pelo sofrimento do povo, ocupando-nos de assuntos agrícolas e industriais, isto é, da questão da miséria pública. Trataremos da nossa velha história, educando na admiração do passado a mocidade, que tem todo o direito de esperar dias melhores.

A política ficará banida destas colunas, tal é a abjeção a que está reduzido, no Brasil, aquilo que Aristóteles chamava — a arte sublime de tomar felizes os homens em sociedade.

Fique sendo o que ela é na República. Não um campo aberto a todos os talentos e a todos os patriotismos, mas uma profissão fechada, reservada aos interessados, para a qual não se exige título algum de capacidade. Fique essa política republicana, como até agora, como um monstro devorador, a que a nação paga o tributo do imposto, monstro destruidor, cujo hálito infectado cresta e esteriliza.

E, como é a última vez que dizemos alguma coisa sobre essa política republicana, sem sabermos até onde irá a tolerância para as nossas expansões, só perguntaremos:

Uma vez emudecida a última voz monarquista, enterrado o último monarquista, a quanto subirá o câmbio?

Poderá a República fazer o milagre de transformar as pedras, com que nos lapida, em pão para os famintos que gritam de fome e de desespero?

Quanto tempo pode um regime permanecer em equilíbrio sobre a ponta de uma baioneta?

Que solidez tem uma instituição que julga perigar, porque alguns cidadãos querem exercer o mais elementar e o mais positivo dos seus direitos?

Nas violências destes últimos dias, o que mais se revelou: a força da ideia monárquica, ou a debilidade de uma instituição que uma sombra intimida?

E, quando for vencedora a inconsolidável República, quando tiver triunfado de vez a barbaria, quando tiver realizado este sonho (que é próprio de todas as tiranias) o de não encontrar oposição alguma, quando, na ruína da pátria, a fortuna fugir deste teatro de desolações, quando o estrangeiro abandonar este solo por outro onde haja mais liberdade e riqueza, quando tudo isto suceder, o que restará do Brasil?

Restará, simbolizando todo este regresso, a figura do sr. Glicério, encarnação do espírito republicano. O seu nome passará à História como o de uma figura detestada, mas nem os nomes ficarão daqueles que, instrumentos seus, para ficarem dentro da sua República, não têm duvidado sair da civilização.


 

A REPÚBLICA

Comércio de São Paulo, 18-11-1896.

 

Não é pequeno acontecimento a publicação do primeiro número de um jornal do sr. Francisco Glicério.

Indica o aparecimento da (ou do?) República que o chefe real do governo deste país julgou não lhe ser mais possível o continuar, como tem feito até hoje, a não dar satisfações ao Brasil e governando com todas as irresponsabilidades possiveis.

Na tribuna da Câmara, o chefe a que obedecem, mais ou menos, os deputados, e a cujo aceno se curvam até os mais empavesados governadores dos Estados, não explica a sua política. As discussões jurídicas e técnicas da administração, os princípios gerais da política, as questões de doutrina não seduzem o temperamento filosófico, ou literário, do homem que melhor encarnou as tendências republicanas.

Entre o país e o pensamento do seu dominador havia um véu espesso.

Apenas, mais ou menos apoiados por ele, alguns familiares e subalternos falavam ao público, já da tribuna congressista, já de algum jornal. O que diziam esses porta-vozes de pouca autoridade era atribuído à superior inspiração do Homem-República, nome este que não duvidamos dar ao sr. Glicério. Não se diz o Homem-Peixe, o Homem-Canhão, o Homem-Borracha? A política, afinal de contas, é também um teatro e pode-se, portanto, transportar para a crítica dos seus dramas os termos correntes na cena das feiras, cena iluminada a sebo e azeite pouco perfumados, cena que Shakespeare e Calderón não desdenharam e que, no entanto, pouco vale, comparada aos esplendores da glória do sr. Glicério.

Apareceu, dizíamos, a República. Não bastavam ao sr. Glicério o Diário Oficial do Rio e os vinte outros Diários Oficiaizinhos dos Estados, para a publicação dos seus atos notáveis e registro dos seus grandes feitos, dos seus rasgos de gênio. Napoleão só tinha um Diário Oficial; mas quem jamais se lembrará de comparar a estatura do sr. Glicério com a de Napoleão? O corso de cabelos lisos, le corse aux chéveux plats, era pequeno ao lado do sr. Glicério.

Tem agora s.exa. o seu vigésimo segundo Diário Oficial. O número 22 no víspora (os dois patinhos), vem a ser República. Não tem esta folha a gravidade dos vinte e um jornais oficiais publicados todas as manhãs, em honra do sr. Glicério, desde Manaus até porto Alegre, solene salva de vinte e um tiros de papel e tinta. A pólvora, esta, não é inglesa, pois é paga pelo contribuinte brasileiro. A pólvora do novo jornal foi fornecida pelo Banco da República.

Meticuloso, poupado e engenhoso, como todos os mineiros, raça da qual se diz que o mais tolo conserta um relógio no escuro para poupar a vela, o sr. Afonso Pena conseguiu achar nos cofres do Banco, (cofres ironicamente chapeados e couraçados de aço, para guarda de tesouros ausentes), alguns contos de réis esquecidos dos ratos nalgum canto deserto. Os contos serviram para a fundação da folha do partido republicano federal.

E não foi pequeno esse serviço prestado ao país pelo sr. Afonso Pena, pensem o que quiserem os casmurros e os acionistas do Banco.

Graças a ele, vai, finalmente, o público saber o que pensa e o que quer o sr. F. Glicério. Nos diários oficiais há uma certa compostura a guardar, há etiquetas, há tradições, há silêncios obrigados.

Na folha nova nada disso haverá. Terá o novo jornalista toda a liberdade de palavra e de movimentos: veremos de robe de chambre o homem que nos governa e ele terá de falar com franqueza.

E já começou a falar, desde o primeiro número da República.

No editorial, dá a República (instituição política) como firmada para toda a eternidade, e diz que só uma coisa lhe dá alguma inquietação: é a situação financeira. As dificuldades dessa situação são, porém, todas superáveis e quase nulas.

Quanto ao resto, o Brasil voga num mar de rosas.

O órgão do sr. Glicério, falando da crise financeira, diz: «Está ao alcance dos poderes públicos dominar a crise e vencê-la».

A seção comercial é particularmente minuciosa e interessante, como é natural numa folha cujo redator, o sr. Alcindo Guanabara, é hoje chefe de uma importante e abastada casa comercial, que gira sob a sua firma. Nessa seção, diz-se:

«O Partido Republicano Federal conhece perfeitamente o estado atual do câmbio, as origens da sua moléstia e os meios a empregar para melhorá-lo.»

«Em tempo oportuno, ele bem saberá pôr cobro à sua marcha devastadora.»

«Por enquanto, temos o câmbio a 8.»

***

Estas declarações são uma condenação absoluta do passado.

Há vários anos que esta expressão — os poderes públicos — quer dizer simplesmente o Partido Republicano Federal, isto é, o sr. Glicério.

A crise financeira e o envilecimento espantoso da moeda datam precisamente do tempo em que o Partido Republicano Federal começou a dominar o Brasil e a ser «os poderes públicos». Ora, se está ao alcance desses poderes públicos dominar a crise e vencê-la, porque o não fizeram? Porque deixaram até hoje padecer o Brasil?

Negligência, ou perversidade? O fato é que não quis o sr. Glicério nem dominar, nem vencer a crise, coisa que só agora diz ser tão fácil.

Mudou de política. Diz pública e solenemente pelo seu jornal que sabe porque o câmbio está baixo, que é sabedor de todos os segredos e de todos os remédios. Vai, anuncia levantar o câmbio.

Entra em cena o prestidigitador: Vai fazer sair coelhos de dentro de chapéus, tirar da algibeira da casaca terrinas cheias de água e com peixinhos vermelhos.

Fica ao público, que sempre paga, quer compre, quer não compre bilhete da plateia republicana, o dever de aplaudir a mágica, quando vir o câmbio subindo, e o direito de patear, se a sorte falhar.

O politiqueiro promete muito.

Veremos.

***

Na mesma seção comercial, aconselha aos jogadores que façam operações sobre as pequenas ações do Banco da República. Faz reclame desses títulos, dizendo esperar que a especulação saberá «entreter o fogo sagrado, bastante intenso para provocar, seja como for, o movimento para cima, ou para baixo».

Ora, os publicistas da República acusam a especulação de ser autora de todos os males financeiros atuais e, depois disso, o órgão do supremo homem da República vem animar e acoroçoar especulações de Bolsa!...

Ora, todas as operações, mesmo as de bolsa, são sempre perigosas, e que o diga o sr. Prudente de Morais, que tanto tem sofrido em resultado de uma operação, cujas mais íntimas particularidades são com tanta indelicadeza discutidas pelos Esculápios.

A República, desde o seu primeiro número, manifesta-se um órgão bolsista. É uma dependência de um banco, por assim dizer, falido.

E não lhe bastou essa origem. No seu programa não há uma ideia nobre, nem uma só aspiração elevada. Esse programa é:

1º A República por todos os meios, o que faz crer que também a quer para todos os fins, porque só não olha os meios quem também não tem escrúpulos quanto aos fins;

2º Levantar o câmbio, coisa que diz ser facílima, o que prova a incapacidade dos governos republicanos, que, até hoje, não o têm feito;

3º Aconselhar aos jogadores arredios, ou escarmentados, que se cheguem à mesa e façam suas paradas. Dá palpites para o jogo, que é assim, oficialmente, aconselhado.

E isto se passa na República, chama-se República o jornal que assim se exprime, e o banco capitalista sobre o qual se quer abrir o jogo é, naturalmente, o Banco também da República!

Adivinhava, decerto, Montesquieu o sr. Glicério, quando diz que as Repúblicas devem ter o seu fundamento na Virtude.


 

A NOVA BAIXA DO CAFÉ

Comércio de São Paulo, 19-11-1896.

 

Como é sabido e está na consciência de todos, a baixa do preço do café, em meados do ano corrente, foi devida aos governos da República e de alguns Estados, nomeadamente o de S. Paulo.

Esse desastre, que tantos prejuízos acarretou à nossa lavoura, teve como causa a inexplicável atitude do governo, dizendo, contra a verdade, depois demonstrada pelos fatos, que a colheita de 1896 era enorme, declaração que motivou a queda imediata do nosso produto nos mercados estrangeiros.

A produção deste ano mal atinge a quatro milhões e quinhentas mil sacas, e, no entanto, o ministro da Fazenda, baseando-se em dados errados, infelizmente fornecidos pela Associação Comercial de S. Paulo, no seu relatório, disse que essa produção seria de seis milhões de sacas!

A superabundância do café, o seu excesso sobre as necessidades do consumo, foi proclamada como um perigo real para o país, perigo que devia ser enfrentado com coragem e remediado com várias medidas prontas e decisivas.

Isso disse, em mensagem, o sr. Prudente de Morais e isso disseram, numa espécie de tratado diplomático, convenção, ou coisa que o valha, os presidentes do Rio, de S. Paulo, de Minas, da Bahia, e, mais do que todos, o megalomaníaco presidente do Espírito Santo, sr. Muniz Freire. Esse papel foi elogiadíssimo pela imprensa republicana e considerado verdadeiro rasgo de gênio dos nossos estadistas.

Ora, quando o nosso governo tem uma ideia, é bom que o contribuinte e o país se previnam, porque, demonstra-o a experiência, a desgraça é certa. Assim foi com o café. Os mercados consumidores fizeram este raciocínio: «Se o governo brasileiro, interessado em manter os altos preços do único produto da sua exportação, reconhece e afirma o excesso da sua produção, é porque é imenso, incalculável, esse excesso, e nesse caso vai haver grande queda de preços. Sendo assim, o nosso interesse é comprar agora muito pouco, esperando preços ainda mais baixos.»

E, se assim disseram os compradores europeus, melhor o fizeram.

Em poucas semanas, o café caiu de 84 francos a 60 francos, dando um prejuízo à lavoura brasileira de mais 25 por cento sobre o preço do seu produto.

O novo presidente da Bahia, com inteligência e clara noção das coisas, retirou logo a adesão da Bahia ao célebre tratado, mas os do Rio, Minas, S. Paulo e Espírito Santo, mantiveram a sua desarrazoada opinião.

Correram os dias, os fazendeiros prejudicados resignaram-se às suas perdas e, verificado que a colheita não era enorme como dizia o governo, provando-se assim, materialmente, o erro dos cálculos oficiais, o café teve uma pequena aragem favorável e, pouco a pouco, ia renascendo a confiança.

Pensavam, naturalmente, todos que as coisas iriam assim melhorando, desfazendo-se, aos poucos, os efeitos funestos dos atos do governo. Acreditava a lavoura que a República não viria causar-lhe de novo mais prejuízos e que a deixaria quieta.

Oh doce e passageira ilusão do ingênuo lavrador!

O governo viu o preço do café subindo, viu a confiança renascida, viu a lavoura compensando, um pouco, os prejuízos que lhe causara o mesmo governo. Naturalmente, achou o governo que era desaforo e que a coisa não podia continuar. — Pois quê! exclamou. Os srs. têm a petulância de estar a vender café por bom preço! Esperem um pouco, e verão.

A lavoura já viu. Já viu o café, em uma semana, cair mais de mil e quinhentos réis em dez quilos, e ter, assim, um prejuízo de 71 por cento, ou 2.250 réis em arroba.

E não pensem que isso é uma fantasia: o causador desta nova baixa foi, ainda, o governo, como já o fora da primeira.

***

Do dia 10 do corrente ao dia 13, a empresa do Cais de Santos, empresa que é a mais poderosa instituição deste país, e cuja ação sobre os poderes públicos já não é um mistério, apareceu no mercado comprando café.

Este estava na base de 14.000 réis por dez quilos, mas o novo comprador, sôfrego e com desembaraço de quem executa ordens e joga com alheios capitais, ofereceu logo aos vendedores a base de 14.500 réis, e, em três dias, comprou perto de 70.000 sacas de café.

Não há segredos nesta terra. Foi logo sabido que o Cais comprava café por ordem do Banco da República, e que este, por sua vez, comprava por conta do governo, que, assim, tinha o pequeno prazer de pagar duas comissões, em vez de uma só, como pagaria, se o intermediário fosse só um. Isto, sem falar nas corretagens avultadas.

Sabia-se que o governo, tendo de passar dinheiro para o estrangeiro, preferia comprar café, para vendê-lo na Europa, em vez de tomar cambiais na praça.

Ora, qual foi o resultado? Os compradores normais, isto é, os exportadores de café em Santos, retraíram-se e alguns deles até venderam com vantagem, ao próprio governo, cafés já comprados aos comissários, realizando assim, do dia para a noite, bons lucros. E, como era natural, o caso foi telegrafado para o Havre e para New York.

Nessas praças, os compradores, vendo entrar no mercado de café um elemento novo, estranho ao comércio regular e perturbador dele, porque vinha fazer subir repentinamente os preços, coligaram-se, como era natural, contra o intruso, para infligir-lhe, como lhes era fácil fazer, e fizeram, um prejuízo que lhe tirasse a vontade de, para o futuro, se meter em negócios que não lhe competem.

E a posição do governo era de grande inferioridade para lutar com os compradores do Havre. Demais, estes operavam pela certa. O governo comprara café para ter dinheiro de pronto na Europa e, para isso, precisava vender logo a mercadoria comprada. Não podia esperar. Portanto, retraindo-se os compradores, como fazem agora, os preços cairiam, como já caíram, e o governo tinha de passar pelas forcas caudinas, vendendo com grande prejuízo o café comprado em Santos.

Basta dizer que, se o governo vender hoje o café comprado na semana passada, já tem um prejuízo de 2.000 réis por dez quilos, seja 12.000 réis em saca, ou seja 840 contos pelas 70.000 sacas.

Aquelas setenta mil sacas são hoje cobiçadas pelos especuladores do Havre e de New York, resolvidos a comprá-las a baixo preço, e hão de, efetivamente, baixar os preços, até terem, com a compra delas e sua venda posterior, um lucro colossal. É uma operação certa e infalível, em vista da fraqueza do adversário, que é o governo, obrigado em breve a vender o café para fazer dinheiro. O governo está à mercê dos compradores. Estes podem esperar, têm grandes stocks para satisfazer ao pedido do consumo. O governo, vítima da sua própria incompetência e incapacidade, esse, marcha para o sacrifício, e assim, para impedir uma pequena depressão cambial, causada pela sua procura de cambiais, vai ter um grande prejuízo.

Infelizmente, este prejuízo não é só para o Tesouro. É principalmente o fazendeiro quem vem a sofrer. A manobra de abstenção praticada pelos compradores de café, manobra necessária para envilecer o preço e assim comprarem por pouco as 70 mil sacas do governo, deprecia também todos os outros cafés, e, assim, o café, que estava a 14.200 réis em Santos, já está a 12.500 réis por dez quilos!

Este ato da compra do café em Santos foi, felizmente, o canto do cisne do sr. Rodrigues Alves, na pasta da Fazenda.

Desse ato resultaram:

1º — Grande prejuízo para o Tesouro.

2º — Enorme prejuízo para a lavoura, trazendo nova baixa de café.

3º — Baixa, ou, pelo menos, estagnação do câmbio, porque o baixo preço do café faz diminuir a quantidade de ouro que entra para o país, o que é, naturalmente, causa de câmbio baixo.

***

Resta agora que o sucessor do sr. Rodrigues Alves faça ainda pior, como tem sempre acontecido no regime atual: hoje é sempre pior que ontem, e amanhã, pior que hoje.


 

DOIS ACONTECIMENTOS

Comércio de São Paulo, 19-11-1896.

 

A saída do sr. Rodrigues Alves da pasta da Fazenda e do almirante sr. Eliziário Barbosa, da da Marinha, são dois acontecimentos muito lógicos.

A República não deve por mais tempo empregar os homens do antigo regime. A nós sempre nos pareceu um absurdo o governo republicano ter querido admitir antigos monarquistas na política e na administração.

Muito mais absurdo ainda julgamos que esses monarquistas tenham querido servir a República.

A experiência está feita. Nem esses monarquistas convêm à República, nem esta, àqueles.

O sr. Gonçalves Ferreira saiu batendo a porta e soltando uma exclamação que, se foi heróica no quadrado de Cambronne, em Waterloo, foi simplesmente cômica no Conselho de ministros do sr. Prudente de Morais.

Um telegrama do Rio diz que o sr. Rodrigues Alves, despedindo-se, ou aceitando a sua despedida, escreveu ao sr. Manoel Victorino uma carta violenta. Levaria esse papel a mesma exclamação do sr. Gonçalves Ferreira?

Não se sabe. O que se sabe é que a viagem do sr. Rodrigues Alves pelas culminâncias do poder republicano foi para s.exa. um fiasco imenso, e que, sem dúvida, assinalará o fim da sua carreira política, outrora iniciada sob os melhores auspícios.

Na sua mocidade, teve s.exa. a reputação de homem de talento e, sobretudo, de orador. É verdade que, sempre que s.exa. falava na Assembleia Provincial, os seus admiradores diziam: — O Rodrigues Alves não esteve hoje num dos seus dias felizes.

O certo é que, pelo seu caráter e pelo seu talento, s.exa. tinha prestígio. Entrou para a República, e o que lhe resta hoje desse prestígio? Diminuído por uma campanha de ridículo, tornado o símbolo da inação e do desleixo, volta o sr. Rodrigues Alves para a vida privada, onde já está recolhido, a título provisório, mas com ares de ser definitiva a retirada, e o próprio sr. Prudente de Morais, moralmente, senão materialmente, acha-se deposto pela opinião unânime do seu partido. Quanta filosofia não deve haver nos diálogos íntimos travados entre os dois estadistas? Piracicaba de luto abraça Guaratinguetá desapontada...

Quanto ao ministro da Viação, consta que esse sempre foi republicano. Pois nem isso lhe valeu; também saiu. Saiu o marechal diretor da E. de Ferro Central, e o governo, parece, vai mandar pôr escritos nessa estrada, que é assim oferecida de aluguel.

Liquida-se a situação Prudente. Está terminada a primeira presidência civil, essa panaceia que se julgava destinada a curar todos os males. Os biógrafos profetas, que, há dois anos, anunciavam todos os méritos do sr. Prudente de Morais, devem estar desapontados. É verdade que não têm tempo para pensar nisso, ocupados, como estão, em elogiar o sr. Manoel Victorino...

Não é, porém, menos certo que se dissiparam todas as ilusões nesse ensaio de dois anos. Mesmo com a respeitabilidade do sr. Prudente de Morais, a primeira presidência civil foi uma desilusão.

A presidência civil murchou, não diremos como uma rosa, mas sim como uma bexiga cheia de vento, furada pelo que Guerra Junqueiro chama — «O agudo bisturi da nossa experiência».


 

DIGNO DE GRATIDÃO

Comércio de São Paulo, 22-9-1896.

 

Se há um homem merecedor de uma estrondosa manifestação de apreço e gratidão, por parte dos brasileiros, é o sr. conde de Brichanteau, cônsul da Itália nesta cidade.

Há uns quatro meses, eram apresentados no Congresso os famosos protocolos italianos, peça diplomática, pela qual o Brasil se arriscava a pagar perto de trinta mil contos à Itália, além de fazer-lhe várias outras concessões.

Levantou-se o sr. Glicério e disse que a suprema razão de Estado exigia a aprovação imediata daquele arranjo. Houve jornalistas que demonstraram ser a coisa, não só muito digna, como até muito vantajosa para o país.

Começou a haver uma certa agitação contra a história — Especulações dos adversários das instituições! disse desdenhosamente o sr. Glicério! A agitação cresceu e se avolumou e nela se achou envolvido, não se sabe bem como, nem porque, o sr. conde de Brichanteau, que, no largo do Rosário, segundo uns, deu, e segundo ele e outros, não deu uns certos morras ao Brasil, morras que, quer fossem, quer não fossem dados, foram, pelo menos, muito discutidos.

Por esse tempo, ao lado, ou, antes, contra a razão de Estado invocada pelo sr. Glicério, surgira uma outra razão, e essa fora do Clube Militar. Achou-se o chefe político da República entre as duas razões: a razão de Estado e a razão da espada.

A razão de Estado não passava de uma figura, uma abstração, uma coisa incorpórea e incerta. A outra razão era mais positiva e mais imperiosa. Era preciso ceder-lhe, mas, se fosse possível ceder sem parecer ceder? Como? Nisto, chega um telegrama ao Rio: — o conde de Brichanteau deu morras ao Brasil! O sr. Glicério repudia os protocolos adotados pelo seu gênio de estadista, até então bafejados pela sua influência e por ele declarados imprescindíveis e indispensáveis.

Barulhos, tumultos, bordoadas e, afinal, entra no Rio, a bordo do Piemonte, um enviado especial da Itália, o sr. De Martino.

A situação piorara muito para o Brasil e a Itália achava-se irritada. Pois bem, apesar disso, e ao fim de poucas semanas de negociação, sem mais complicações, a Itália contentou-se com uns quaisquer 4.000 contos, sem mais questões, nem dúvidas.

Em vez de vinte e sete mil contos que o sr. Carlos de Carvalho, apoiado pelo sr. Glicério, queria pagar à Itália, pagamento que julgava imprescindível, vem o Brasil somente a pagar 4.000 contos!

O Clube Militar e o sr. Brichanteau pouparam ao Brasil 23 mil contos!

O que pensar de um regime em que um ministro de Estrangeiros e um chefe de partido fazem erro de conta dessa importância, contra o Tesouro Nacional.

Felizmente, o erro foi corrigido. Não se atendeu à razão de Estado do sr. Glicério, pela qual deveríamos pagar vinte e sete mil contos, e com o abandono, só dessa opinião do chefe campineiro, o Brasil ganhou vinte e três mil contos. Quanto não ganharia, se abandonasse todos os outros alvitres, inspirações e conselhos do sr. Glicério?


 

DOIS SÓIS

Comércio de São Paulo, 22-11-1896.

 

Diz uma vária, do Jornal do Comércio:

«O sr. presidente da República passou bem o dia de ontem, tendo-se conservado longo tempo na janela da parte do nascente, da sua residência do Morro do Inglês.»

«Sabemos que o sr. presidente da República receberia anteontem o sr. vice-presidente da República, e esperou-o até à noite.»

«O sr. vice-presidente, porém, tendo notícia de que os médicos assistentes do sr. presidente achavam inconveniente ao seu tratamento qualquer conferência de ordem política, absteve-se, como devia, de procurar a s.exa.»

São de uma melancolia quase trágica estas linhas!

Um inválido, à janela, voltado para o sol nascente, à espera todo o dia de que o sol o venha visitar...

O sol nascente, porém, é o sr. Manoel Victorino, e o sol nesse dia estava muito ocupado, escolhendo asteróides para compor o seu pequeno sistema planetário, com o qual, através do espaço, vai gravitar atraído, subjugado pela constelação de Hércules, isto é, da força, que, aqui entre nós, é o poder militar.

O doente da janela não foi, decerto, nunca um homem de imaginação e de paixões violentas. A sorte não o formou da massa formidável dos grandes chefes de homens, nem o destino o talhou no mármore humano em que se esculpiram os Césares e os Bonapartes. Piracicaba não dava para tanto. Não se encarnou nele a alma atroz nas suas feições catonianas de um novo Francia, rebento sul-americano da força espanhola, sombrio descendente moral de Philippe II. Também para isso não dava Piracicaba.

É provável que o sr. Prudente de Morais, nos séculos futuros, não tenha jamais um Shakespeare para descobrir-lhe, na esqualidez da barba branca, os traços trágicos do rei Lear.

Despojado do poder, pela força das circunstâncias e, principalmente, das instâncias quase ameaçadoras dos amigos, s.exa. não teve, para a sua cadeira presidencial, sujeita às contingências dos meteorismos humanos, as lamúrias lancinantes de um Luiz XI moribundo, agarrado à coroa da sua realeza.

O sr. Prudente de Morais, passando o dia à janela, na inação do abandono, depois de, durante dois anos, ter experimentado as seduções do mando, é uma lição da inanidade das grandezas. Deocleciano plantando alface em Salona, Carlos V, em San Yuste, são outros tipos.

Plantar alfaces era fazer alguma coisa; enfrentar o problema da morte no ascetismo monástico, era revelar uma elevação e uma força d’alma que nem de todos se pode esperar.

Por enquanto, está o sr. Prudente de Morais a sarar da cicatriz da sua operação. Há, porém, feridas que nunca fecham: uma delas é o amor próprio. E esta deve sangrar na carne do sr. Prudente de Morais mais do que os talhos e retalhos do barão de Pedro Afonso.

Ver a própria incompetência, a própria incapacidade reconhecida por um país inteiro, proclamada pelos próprios correligionários, registrada na consciência de todos e transmitida à História, onde os azares da política fizeram entrar o sr. Prudente, é, na verdade, coisa dolorosíssima. E o que é mais doloroso, nos abandonos que sempre se seguem às abdicações, (e o sr. Prudente, por ora, abdicou) é o contemplar, como faz s.exa., o sol nascente, sol que não vem mais iluminar a casa...

E, se o sr. Prudente lê os jornais, deve ver e admirar talvez a facilidade com que a imprensa, o país todo e até os seus mais íntimos amigos, já prescindiram da sua tristonha personalidade e já o esqueceram.

Se por desgraça se tivesse cerrado sobre s.exa. a tampa fatal de um esquife; se, em vez de recém-sarado, estivesse embalsamado; se, com a gentileza própria de um príncipe da ciência, o sr. Pedro Afonso o tivesse passado às mãos do colega Costa Ferraz, não seria maior o esquecimento.

Enquanto s.exa. se alimenta regularmente, segundo dizem as folhas, com certeza, à janela onde o Jornal o pinta, o sr. Prudente faz o seu cigarro e também um pouco de filosofia. Com certeza, porém, o cigarro do presidente é mais forte do que a sua filosofia.

O velho presidente lê os aplausos dados ao presidente novo, vê que este é bem falante, ativo, merece, como todo poder ainda fresco, os elogios dos que apostam na sua sorte. O ciúme, o tormento dos velhos, entra no coração do sr. Prudente. Do seu retiro, vê o jovem marchar para as festas das suas bodas com a Popularidade. E o velho tem ciúme.

No meio das aclamações dos amigos novos, esquece-se o sr. Victorino de que o velho ainda é dono da casa para onde s.exa. entrou, mudando os trastes e a criadagem. Nas aclamações e no ruído das festas, olvidava Ernani, mirando-se nos olhos de Don Sol, que a sua sorte dependia do velho Silva, de quem todos se esqueciam.

E, de repente, ouviu-se a trompa aterradora que desfez todos os encantos...

Quem sabe se, quando mais entusiasmado estiver o sr. Victorino nas doçuras do seu noivado presidencial, não lhe aparecerá o velho presidente, e, com um atestado de restabeledmento numa das mãos, com a outra emagrecida de doença e de ciúme, não mostrará ao sr. Victorino a porta da rua, que é serventia das casas e das Repúblicas?...

***

Há oito dias que o sr. Victorino procurava um ministro da Fazenda, juntamente com alguns para pastas diversas.

Todas as noites, ao deitar-se, dizia o sr. vice-presidente: «Eu sem ministro da Fazenda»?— Encontrava os amigos e perguntava-lhes: «Não conhecerão vocês, por aí, alguém que sirva para ministro da Fazenda»?

Todos os dias encontrava-se, em conciliábulos patrióticos, com as maiores notabilidades republicanas, passava os olhos pelas ditas notabilidades e dizia, abanando a cabeça: «Não encontro»!

Entre essas notabilidades, entre os mais eminentes economistas, entre os mais provectos financeiros deste país, figura, como é geralmente sabido, o sr. Bernardino de Campos. Nem o sr. Victorino era capaz de, nas atuais e gravíssimas circunstâncias, chamar, para dirigir as finanças brasileiras, um homem que não fosse um abalizado especialista, de competência unanimemente apregoada.

O que é de estranhar é que o sr. Victorino, vendo todos os dias o sr. Bernardino, não se lembrasse dele há mais tempo. Lamentável esquecimento! Imperdoável distração! Foi ela causa de perder o Brasil uns pares de dias da fecundíssima administração do sr. Bernardino.

É de esperar que o dano seja reparado.


 

MAIS UMA ILUSÃO DESFEITA

Comércio de São Paulo, 16-12-1896.

 

Há perto de um ano, o telégrafo enviou-nos dos Estados Unidos uma gravíssima notícia: o presidente Cleveland, em mensagem ao Congresso, arvorara-se, em nome da doutrina de Monroe, em soberano protetor da pobre República de Venezuela, contra as pretendidas extorções inglesas. E nessa mensagem célebre havia frases que pareciam ser a tradução de um verdadeiro, positivo, altivíssimo ultimatum atirado à face da Inglaterra.

Soaram logo nas ruas de Caracas os hinos festivos, e os ecos mais longínquos de todo o território da ingênua Venezuela repetiram as aclamações à nobre grandeza dos Estados Unidos e à bizarra coragem de Cleveland, paladino da autonomia e da liberdade do Continente americano. Correu a notícia pelos fios telegráficos e chegou a todos as Repúblicas sul e centro-americanas. Passeatas, vivas, músicas, e os respectivos Congressos, tomando parte nas manifestações, embocaram as tubas em honra e glória do governo de Washington. No Congresso que se reúne no Rio, o sr. Glicério, com a clara visão de estadista ilustradíssimo que todos lhe reconhecem e que o faz neste século um rival de Peel, de Gladstone, de Disraeli e de Gambetta, percebeu logo que o caso, segundo as tradições e o espírito da escola campineira, era para manifestação, pediu a palavra e propôs, não um brinde de «champagne», que seria o próprio de uma manifestação de retrato, ou tinteiro de prata, mas uma moção, que é o brinde seco, em uso no banquete orçamentário que se chama Congresso.

Essa moção telegrafada ao Congresso dos Estados Unidos era violenta contra a Europa. Foi votada por aclamação, transmitida pelo telégrafo, e, coisa muito notável e muito própria para mostrar o desprestígio da República Brasileira, ficou até hoje sem resposta. Foi debalde que o sr. Glicério empunhou a taça da confraternização americana.

As Repúblicas sul-americanas já se vão acostumando a ser tratadas em Washington como o são parentes pobres e obscuros pelos mais ricos e felizes. A todo propósito, diante da grandiosa fortuna norte-americana, as Repúblicas da América do Sul alegam fraternidades e parentescos, mas o parente grande e rico desconversa e pensa noutra coisa.

Pareciam então confundidos os que têm a mais firme e inabalável crença no egoísmo secular e nunca desmentido do governo de Washington. Esse governo, na pessoa de Cleveland, aparecia todo generosidade, todo grandeza, todo desinteresse.

Às ameaças de Cleveland respondeu a Inglaterra com firmeza, e o pânico declarou-se em New York.

Os títulos desmoronaram na escala das cotações de Wall Street e a imprensa, diante da angústia do comércio, moderou a sua linguagem, passando da violência à cordura. O pânico foi apenas menor na Bolsa de Londres e, passada a primeira violência, começaram de um lado e de outro as manifestações contra o que todos concordaram em chamar a leviandade de Cleveland. Nas revistas mensais, nas folhas hebdomadárias, nos jornais, nos discursos das reuniões públicas, nos púlpitos, a linguagem foi logo de paz e de concórdia. De lado a lado invocava-se a comunidade de origem, de língua, a realeza comum de Shakespeare num e no outro lado do Atlântico, e todas estas declarações dos homens mais eminentes da Inglaterra e dos Estados Unidos terminavam sempre dizendo que seria loucura os dois países maiores do mundo, habitados pela superior raça inglesa, entrarem em guerra por amor de Venezuela, ou de qualquer outra republiqueta latino-americana. Esta declaração rematava sempre todas estas manifestações de fraternidade anglo-americana.

Ora, dado este estado dos espíritos, era fácil de prever o resultado.

A Inglaterra contemporizando, parecendo ceder quanto ao modo de resolver a questão, conseguiu, afinal, tudo quanto desejava, mais até do que pensara, e a infeliz Venezuela perdeu os seus rojões, e mais uma vez foi humilhada e prejudicada, como tem acontecido a todos os países sul-americanos que se têm deixado levar pela ilusão americana.

Os telegramas de Caracas dizem que há ali grande indignação contra o arranjo que, a respeito de Venezuela, fizeram os Estados Unidos e a Inglaterra. Na amargura da decepção, há ali remorso e vergonha das musicatas e das luminárias ingênuas e prematuras de há um ano.

Os Estados Unidos tratavam de questão territorial venezuelana, sem darem a menor atenção à própria Venezuela, excluída das negociações e não sendo ouvida, nem cheirada. Este protetorado não disfarçado foi afrontoso para a altivez espanhola, de que os de Venezuela são herdeiros diretos. O sentimento do orgulho nacional é ali vivo e intenso. Não há naquele país nem Quintinos missioneiros, nem Glicérios protocolistas.

A imprensa de Buenos Aires, superior à nossa a muitos respeitos, manteve-se também nessa questão na atitude única que podia ter quem conhece a história diplomática da América. A imprensa argentina foi reservada, e agora o telégrafo nos anuncia que já protestou contra o arranjo anglo-americano.

E protestou com toda a razão. A Inglaterra, por esse arranjo, consente, é verdade, no arbitramento, mas em que condições? Em primeiro lugar, o arbitramento vai ser entre a Inglaterra e os Estados Unidos: Venezuela ficou excluída do direito de ser ouvida, e não consentem que mande representante algum junto ao árbitro. É tratada como colônia, como incapaz de ser uma nação, como uma protegida e tutelada dos Estados Unidos. Em segundo lugar, a Inglaterra e os Estados Unidos decidiram que a ocupação por mais de cinquenta anos, de um território, estabelecia direito definitivo. Ora, Venezuela sempre reclamou, como seus, territórios onde, há mais de cinquenta anos, há ingleses estabelecidos, e assim, apesar do arbitramento, a verdade material dos fatos é que, de uma penada, o governo de Washington deu à Inglaterra territórios sobre os quais Venezuela sempre pretendeu ter direitos.

Daí, a justa indignação dos venezuelanos.

O princípio da posse meio-secular transformar-se em domínio, é fatal para a República Argentina, e, adotadao ele, as ilhas Malvinas, argentinas por todos os títulos, ficam inglesas por decisão dos Estados Unidos, pois há mais de cinquenta anos que os ingleses as ocupam, apesar dos protestos argentinos.

A mensagem de Cleveland, simples manobra eleitoral para despertar popularidade, resultou finalmente em prejuízo e em afronta para a pobre Venezuela!

Esta é a história de todos os países latino-americanos que têm tido a tolice de acreditar por um momento na amizade e na proteção dos Estados Unidos.

Quanto ao Brasil, este novo princípio de ocupação por mais de cinquenta anos criar domínio definitivo é desastroso, se jamais tivermos de sujeitar a um árbitro a retificação dos nossos limites com a Guiana Inglesa.

Há trechos de território brasileiro, claramente brasileiro, onde, há perto de cinquenta anos, há ingleses e não há brasileiros. Ora, sendo assim, pode dizer-se que, por uma penada, os americanos, proclamando este princípio, deram aos ingleses território brasileiro, sem que nós fôssemos consultados.

Ora, diante de tudo isto, que figura fez o Brasil, representado pelo sr. Glicério e pelo seu Congresso, fazendo a espalhafatosa moção do ano passado? O Brasil aplaudiu a intervenção americana, intervenção que, como acabamos de ver, resultou em humilhação e em prejuízo para Venezuela e, talvez, em dano nosso.

A figura que o Brasil republicano representou foi bem triste perante o mundo, porque o mundo não conhece o sr. Glicério, e os atos deste, para o estrangeiro, são atos do Brasil.

Esta triste figura será a que sempre hão de fazer os países que tiverem a desgraça de ver os seus destinos confiados à incurável incompetência dos ignorantes.


 

O PADRE MARCHETTI

Comércio de São Paulo, 16-12-1896.

 

Há três anos, mais ou menos, chegava a esta capital um jovem sacerdote italiano, de 24 anos de idade.

Trazia o nome de missionário e o propósito de dedicar a sua vida à educação dos orfãozinhos da colônia italiana empregada na nossa agricultura e dos filhos dos pobres imigrantes italianos falecidos durante a travessia, ou nos primeiros e penosos dias de sua aclimação.

Quem escreve estas linhas viu, pela primeira vez, esse padre no vaporzinho que conduz os passageiros de Santos à praia do Guarujá, e aquela figura doce e simpática gravou-se-lhe na memória. No dia seguinte, ouviu, tocada no salão do hotel, uma melodia de Schumann, executada com raro sentimento. Levado pela curiosidade, penetrou no salão, e o artista levantou-se do piano, corando, como surpreendido e vexado.

Era o jovem padre Marchetti. Viera a Santos esperar um vapor de imigrantes que devia chegar no dia seguinte. Era um sábado, e, no domingo, dizia ele missa na capelinha do Guarujá. Ia esperar o vapor dos imigrantes, consolar e socorrer os doentes e recolher as criancinhas cujos pais tivessem morrido na viagem. Em cada travessia de imigrantes, são numerosos os óbitos. Ia, por isso, o padre Marchetti quase certo de achar crianças abandonadas, para recolher e trazer para o seu hospital do Ipiranga.

Esta admirável instituição, pouco conhecida do nosso público, ele a levantara à força de sacrifícios, fazendo longas e penosas viagens, solicitando esmolas, sofrendo privações e afrontas e recolhendo, por um milagroso esforço, esmola de ricos e de pobres. Conseguira o santo jovem reunir no Ipiranga perto de trezentos órfãos. Sabia que a epidemia da febre amarela grassava numa localidade, e corria para recolher os órfãos, com a mesma sofreguidão e a mesma ansiedade que outros empregam na busca de vantagens e proventos para si. E logo trazia para o Ipiranga as crianças abandonadas.

E aí as acolhia, tratando-as com desvelo admirável. A sua caridade inexcedível tinha descobertas engenhosíssimas. Aquele mancebo, filho de uma família distinta, tendo recebido uma educação primorosa, segundo as necessidades, transformava-se em alfaiate, ou sapateiro. Os bonets do pobre uniforme dos seus órfãos, ele os fazia de um pedaço de zuarte e de um cipó. O pano azul cozido ao cipó dobrado em círculo formava um gorro de marinheiro. E um dia, alguém admirando aquele prodígio de economia do padre Marchetti, que fazia milagre com pouquíssimo dinheiro e que era um calculista invencível, quando se tratava do dinheiro dos pobres, este reclamou logo, dizendo que cada chapéu custava pelo menos 100!!...

Vivia o padre Marchetti com sua velha mãe, o melhor dos seus colaboradores na santa obra. E era tal o prestígio que aureolava aquele jovem angélico, que todas as manhãs lutava o filho por beijar a mão de sua mãe e a mãe, por beijar a mão do filho.

Terminou ontem neste mundo esta santa comunhão de duas almas cristãs. Morreu anteontem, com vinte e sete anos, o padre Marchetti, vítima de uma febre tifóide, das que o descuido das autoridades sanitárias deixa grassar no bairro do Ipiranga.

E à mãe hoje só resta a certeza de em breve ir para o céu compartilhar da ventura do filho, cujos trabalhos acompanhou na terra.

É provável que não pereça o orfelinato «Cristovão Colombo», que o padre Marchetti elevou no Ipiranga. A Mãe de Deus há de protegê-lo.

S. Paulo deve muita gratidão ao padre Marchetti. A nossa Municipalidade, que conspurca as nossas ruas dando-lhes nomes de comendadores, conselheiros e doutores, gordos no seu egoísmo, deve a recompensa mesquinha de uma placa ao nome do padre Marchetti. — Será sempre um exemplo cívico este nome. Mesmo morto, continuará o padre a fazer o bem.


 

TRÊS FATOS

Comércio de São Paulo, 27-12-1896.

 

O governo, nesse caso de reconhecimento da beligerância dos cubanos revoltosos, já disse o que tinha a dizer. Já o disse pela boca presidencial e eloquente do sr. Manoel Victorino, e já o disse pelos seus jornais.

O governo da República Brasileira abdica de sua autonomia e de sua independência. Fará o que fizerem os Estados Unidos.

Estão assim oficialmente reconhecidas a nossa humilhante subordinação e a nossa degradante vassalagem em relação à República norte-americana.

Somos um país sem existência, sem responsabilidade própria.

Não deliberamos por nós, não praticamos nenhum ato espontâneo e livre.

Somos uma dependência, um reflexo de alheia força e de estranha vontade.

***

As doenças dos grandes homens são simples acidentes patológicos, interessando apenas a economia orgânica dos indivíduos. São acontecimentos políticos.

Ora, em face da Constituição, quer queiram, quer não, o sr. Prudente de Morais é um grande homem. É o maior dos brasileiros, porque foi escolhido, como sendo, entre dezesseis milhões de pessoas, o de mais mérito, e, por isso, elevado pelo povo à primeira posição do país.

Nas Monarquias carunchosas, o que determina a elevação do indivíduo ao primeiro lugar é o acaso cego do nascimento; nas Repúblicas, é simplesmente o mérito. Vemos assim que, nas Monarquias, o tal acaso levou ao governo os idiotas e cretinos, que se chamaram Alexandre, Tito, Carlos Magno, Carlos V, Henrique IV, Pedro o Grande, Carlos XII, Frederico, Pedro II e outros.

O sr. Prudente nada deveu ao acaso, como eles: só à fina força de muito mérito é que chegou a ser chefe de Estado.

Está, portanto, demonstrado, como dois e dois são quatro, que s.exa. é um grande homem. E como nada há de pequeno nos grandes, a sua moléstia histórica foi e continua a ser um grande fato. Bossuet achou meio de, sem quebra da majestade do seu estilo, falar do púlpito na pedra da bexiga de Cromwell. Chamou-a «o grão de areia que bastou para deter o carro triunfal do vencedor.»

A nossa época naturalista é menos pomposa e chamamos prosaicamente as coisas pelos seus nomes. Não teve o Diário Oficial necessidade das alevantadas metáforas para tratar do assunto, e a pedra, não tendo ido para o museu, é de esperar que tenha servido para a consolidação dos alicerces da República. Como republicano histórico, não quis o sr. Prudente de Morais deixar de trazer a sua pedra para o edifício. A missão do perfeito presidente é consolidar e consolidar sempre. Fosse s.exa. um guerreiro, e consolidaria com a espada; fosse um legislador, e consolidaria com algum codigo imortal e estupendo, saído do seu cérebro. Não foi do cérebro, mas sempre foi de alguma parte que s.exa. tirou a sua pedra. E esta pedra foi pedra preciosa para a República...

A República estava precisando de alguns rasgos de gênio. O sr. Prudente de Morais recusava-se a ter estes rasgos. Veio a pedra: o carro do sr. Prudente de Morais descarrilou com ela, como no século XVII, com outra pedra, desencarrilara o de Cromwell E, posto de lado o presidente, veio o sr. Manoel Victorino, que, ainda segundo a Constituição, é o homem de mais gênio e valor que há no Brasil, logo abaixo do sr. Prudente de Morais, está visto. E, como temos presenciado, no Sinai do governo, está relampejando o gênio.

Tudo isto foi-nos sugerido por um telegrama em que se dizia que o sr. Prudente de Morais, «gordo e muito corado, passeava todas as manhãs pelos campos de Teresópolis»:

Este telegrama que nos pinta o sr. Prudente transformado em inglês jogador de soco é altamente lisonjeiro para os bons ares de Teresópolis. S. exa., tendo de passar o governo ao sr. Victorino, subiu a serra para convalescer, já se vê. No alto da serra, deitou-se a convalescer com fúria, como quem tem muita vontade de descer depressa a mesma serra. Victor Hugo já disse:

...Il aspire à descendre.

E o sr. Prudente, que talvez não conheça o verso, conhece com certeza o sentimento. Corado e robusto, andando léguas a pé, a cavalo, (quem sabe até se desce de bicicleta o sr. Prudente), apto para disputar prêmios em jogos atléticos, quererá em breve descer lá para baixo da serra, onde há alguem ocupando o seu lugar, lugar donde cento e vinte contos contemplam para a serrania o presidente corado, robusto, pletórico, transudando força e saúde e até fraternidade.

Acontece, porém, que aquela serra de Teresópolis, ao contrário do outeiro de Camões, pode ser mais fácil de subir que descer...

Descerá jamais o sr. Prudente de Morais?

Será s.exa. da família dos Morais que, quando vão, não voltam mais?

Se descer, será reconheddo pelo povo, pelos políticos, pela tropa? Aquele homem vermelho e gordo poderá conseguir ser tomado pelo ex-venerando, ex-esquálido e ex-tristonho sr. Prudente de Morais?

Aquela tez afogueada de um sangue quente e rejuvenescido será talvez causa de lhe ser recusada a entrada no governo. Sobretudo se s.exa. levou a sua convalescença ao ponto de tornar-se um «sportsman».

Consta que s.exa. anda em Teresópolis vestido todo de flanela branca, calças arregaçadas, camisa de seda, cinturão azul, casquette de flanela e sapatos de couro amarelo.

Com todas estas transformações, é provável que o sr. Prudente de Morais veja contestada a sua identidade e lhe seja negada pelo usurpador Victorino a entrada do poder. Como o peregrino da Terra Santa, desconhecido ao voltar ao seu castelo; como o cativo de Marrocos, tido por morto, e que, ao tomar à casa, acha a mulher casada e cheia de novos filhos; como o prisioneiro da Sibéria, que, ao voltar, só é reconhecido pela fidelidade de um velho cão, o sr. Prudente de Morais ver-se-á apertado para mostrar que é o velho Prudente de Itamaraty.

Aquele braço musculoso não é o braço fraco que mal podia com a roda do leme da nau da República; aquelas mãos robustas não são as mesmas de que outrora pendiam frouxas as rédeas do carro do Estado.

Para tornar-se conhecido, dará sinais.

Ao sr. Filadelfo, falará de uma pinta que lhe viu nas costas tomando banho em Icaraí. E, se isto não pegar, s.exa. lavrará um protesto. O feliz sr. Victorino, esse, ficará no poder.

***

Ora, até que afinal o governo republicano dá indícios de querer viver às claras.

O sr. Manoel Victorino, consciente de que não é lá muito grande o crédito do governo, nem enorme a confiança que inspira, resolveu convidar vários negociantes nacionais e estrangeiros para assistirem à queima do papel moeda recolhido.

O governo quer que fique bem daro que não está roubando e não haja a menor dúvida sobre o destino das notas recolhidas. Reconhece o governo que, para o comércio, não basta a sua palavra oficial. Não ganhará muito o governo em prestígio com essa confissão...


 

O GOVERNO E O CAFÉ

Comércio de São Paulo, 29-12-1896.

 

Se não estivéssemos convencidos de que uma fatalidade persegue o governo republicano, como a desgraça acompanha o criminoso, diríamos que a República é inimiga proposital dos produtores brasileiros e faz timbre em prejudicar a lavoura no preço dos seus produtos.

Nas vésperas da safra, cuja exportação está terminando, era muito vantajosa a posição do café no mercado. No Havre, praça por assim dizer reguladora do preço deste gênero, valiam noventa francos cinquenta quilogramas de café. Computado este preço ao câmbio que regulou durante o ano, teriam os lavradores brasileiros, sobretudo os lavradores paulistas, recolhido excelente compensação em numerário para a colheita pendente. Mas o mau fado que persegue a República inspirou ao sr. Bernardino de Campos e outros ras que nos governam a infeliz lembrança de organizar a propaganda do café na Rússia, e, para o fim de obter mais empregos para os seus sectários e de fornecer ensejo de passearem pela Europa mais alguns republicanos, — pois ainda os há que não conhecem os prazeres do velho mundo à custa do contribuinte brasileiro, — lá criaram a legenda de excesso de produção, sancionada pelo sr. Prudente de Morais na sua mensagem ao Congresso, fornecendo armas aos baixistas para arrastarem o café do preço de noventa francos por quilograma ao valor vil de cinquenta e oito francos.

A lavoura oprimida com a carestia de numerário que o governo republicano criou, pela falta de confiança que inspira e pela feroz concorrência que faz ao comércio e às indústrias, no mercado de dinheiro, teve de suportar o prejuízo de milhares de contos de réis, arrancados ao seu bolso pela incapacidade e falta de patriotismo do governo.

Exportada grande parte da safra, quando os comissários estavam libertos de compromissos das vendas a termo, o mercado entrou a melhorar e presenciamos o café ir-se elevando a preços mais vantajosos.

Lembrou-se o governo de intervir no mercado, comprando setenta mil sacas de café. Não teve, porém, a prudência elementar de comprar o gênero aos produtores, ou aos comissários; teria assim praticado um erro menos desastroso. Foi comprá-lo aos exportadores. Estes, que se tinham constituído em elementos propugnadores da alta, pela grande existência de café que tinham, converteram-se em auxiliares dos baixistas, para recomprar do governo o próprio café vendido, a preços inferiores, e tivemos outra vez de assistir à baixa promovida pelo governo republicano.

Agora, tudo prenuncia que teremos bons preços para o ano; a safra é pequena, diminuída ainda pela queda do fruto, que se está dando em todas as zonas cafeeiras, em consequência do enfraquecimento das árvores, já pela prolongada seca de dezembro do ano passado, já pela pouca chuva deste ano. Pois bem, o governo maquina meios de impedir que os lavradores obtenham bons preços; vai agora abrir concorrência para o arrendamento das estradas de ferro da União, e esse arrendamento se efetuará provavelmente na época de exportação da safra. Em consequência, o câmbio subirá momentaneamente, com a entrada do preço do arrendamento, e o café valerá para os lavradores menos alguns mil réis em arroba.

Entretanto, entrado o ouro dos arrendantes das estradas de ferro, o governo republicano fará com ele o que tem feito da fortuna nacional: esbanjá-lo-á no pagamento das loucuras já praticadas e em novas despesas republicanas, como subsídios a deputados e senadores, em sessões intermináveis, aumentos de empregos e de ordenados, pensões, comissões à Europa, construções de obras por empresários e amigos, compra de armamentos, de torres blindadas e de novos uniformes militares, encomendas de navios para a esquadra, enfim, esse sem número de meios tão usados de dissipar a fortuna brasileira. Teremos outra vez o câmbio baixo, porque a outras causas de depreciação se juntará a grande diminuição do patrimônio nacional, pela cessão das estradas de ferro, e terão os lavradores de continuar a pagar altos salários e de comprar os gêneros de consumo pela hora da morte, com o minguado produto da sua safra.

No ano vindouro, provavelmente, o governo se lembrará de arrendar as alfândegas, ou de hipotecar as suas rendas, e veremos repetido o mesmo fenômeno da alta passageira do câmbio e depreciação do preço do café. Assim iremos, até que os brasileiros enxotem do governo esses indivíduos sem preparo, sem patriotismo, que, para guardarem a aviltante posição de escudeiros do militarismo triunfante, se prestam ao papel de algozes dos seus concidadãos.


 

VIOLÊNCIAS DO GOVERNO

Comércio de São Paulo, 30-12-1896.

 

As violências do governo de S. Paulo contra os monarquistas, poucas semanas antes das eleições, quando estes se preparavam para votar nos seus candidatos, demonstram que a República temia alguma contrariedade na eleição.

Por atos demonstrou o governo que se arreceava das eleições, que temia o grande número de votos dados a monarquistas, e fez incorporar no direito público republicano este axioma: Os monarquistas não têm direitos políticos. Julgou isso mais conveniente; achou mais fácil uma violência coletiva e geral, do que uma série de miúdas e pequenas arbitrariedades, ou fraudes multiplicadas por tantos quantos fossem os colégios eleitorais.

O direito público consuetudinário da República tem, ao lado dos preceitos escritos da Constituição, e dominando-os, máximas muito notáveis. Uma delas, e a principal, é que, na América do Sul, o exército tem o direito de mudar a forma do governo. Esta máxima fundamental é o tormento dos governos, a origem das conspirações e a ruína das finanças.

Entre nós, a máxima: «Os monarquistas não têm direitos políticos» pode ser cômoda para os detentores das posições oficiais, que desejam e precisam administrar longe de toda e qualquer fiscalização. Máxima dessas, porém, são a morte do governo que as aceita. A desgraça, porém, é que não morre dela só esse governo. A dignidade pública e o poder nacional desapareceram e as gerações educadas nesse desrespeito ao direito estão aptas para todos os crimes, prontas para aceitar todas as degradações da tirania.

***

Uma falta de organização séria do partido monarquista, falta que é preferível patentear, para corrigir, do que esconder, perpetuando-a, e o desejo natural de evitar contatos com instituições políticas cujos diretores usam de métodos barbarescos e africanos, levaram o partido monarquista a não apresentar isso que com razão se chama uma chapa eleitoral.

É preciso, porém, que esta abstenção, que não foi deliberada pelos monarquistas, mas sim imposta pelo governo republicano, seja a última. Um partido político não pode viver alheio ao meio onde quer exercer a sua ação. Se tentar fazê-lo, marchará para um inevitável suicídio.

Revolução, eleição, ou pasmaceira, eis entre o que esse partido tem de escolher.

Não há dúvida que os erros dos adversários da Monarquia adiantam muito no Brasil a causa da libertação nacional; mas isto não basta.

A República nunca ousará suprimir ao menos a aparência de um governo representativo. Continuará sempre a fingir que tem eleições, mas os monarquistas, pela sua insistência, podem obrigá-la a tomar uma quase realidade o que é hoje fingimento. Esta intervenção dos monarquistas nas eleições deve ser preparada de antemão por uma propaganda toda de patriotismo e de critério.

A tudo isto deve, porém, presidir a ação indispensável de uma capacidade verdadeiramente diretora e não por pretenções que amesquinham e esterilizam tudo, pela estreiteza das suas vistas curtas, atraindo o ridículo para o partido.

Se o partido monarquista não tomar no futuro atitude diversa, será traidor à sua missão e criminosamente deixará consumar-se a ruína da Pátria e a perda irreparável da mais justa das causas.


 

ÍNDICE

 

Nota

Artigos — Primeira Parte

O Banquete Monarquista
«Um Paladino da República
Coisas Republicanas
A Ruína Financeira de República
A Crítica Republicana
Ao «Estado de S. Paulo»
A República e a Liberdade de Imprensa
Uma Lição de Aristóteles

Artigos — Segunda Parte

Amapá
Respondemos
Qual o Recurso
Américo Brasiliense
A Questão do Café
A Aliança Anglo-Americana
O Perigo Argentino
A Epidemia
A Liberdade
O Perigo Amazônico
Economias
A Baixa do Café
Diplomacia
Os Dinheiros Públicos
Um Sintoma
Agouros e Presságios
Moreira de Barros
Os Direitos de Importação em Ouro
A Honra Nacional
Uma Questão de Método
Patologia Financeira
A República e o Café
A Aflição da Lavoura
Odisséia Póstuma
Eleições
Fora da Civilização
A República
A Nova Baixa do Café
Dois Acontecimentos
Digno de Gratidão
Dois Sóis
Mais Uma Ilusão Desfeita
O Padre Marchetti
Três Fatos
O Governo e o Café
Violências do Governo


 

O Autor

Eduardo Prado

 

“Eduardo Prado (Eduardo Paulo da Silva Prado) nasceu a 27 de fevereiro de 1860 em São Paulo, SP. Era filho de Martinho da Silva Prado e de Veridiana da Silva Prado, de tradicional família paulista. Faleceu na mesma capital a 30 de agosto de 1901.

Ocupou-se desde a mocidade com estudos históricos. Formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo. Na época era colaborador assíduo do Correio Paulistano onde assinava artigos de crítica literária e política internacional..

Durante algum tempo trabalhou como adido na delegação brasileira em Londres. Conheceu diversos países europeus e também o Egito. Dessas viagens daria observações no livro Viagens, publicado em Paris em 1886..

Monarquista convicto, era amigo do Barão do Rio Branco, colaborando da edição de Le Brésil en 1889, obra publicada por ocasião da Exposição Internacional de Paris, comemorativa do centenário da Revolução Francesa..

Travou amizade com os escritores portugueses Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, que pertenciam ao famoso grupo dos Vencidos da Vida.

Com a proclamação da República no Brasil em 15 de novembro de 1889 passou a combater, em livros e jornais, os atos praticados pelo governo republicano. Eça de Queirós, diretor da Revista de Portugal, abriu-lhe as páginas da publicação, para uma série de artigos com o pseudônimo de Frederico de S. e que seriam reunidos em livro com o título de Fastos da Ditadura Militar no Brasil. Colaborou, também, em A Década Republicana, obra em que colaboraram os mais destacados monarquistas brasileiros.

Foi Eduardo Prado um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, na qual ocupou a cadeira nº 40, cujo patrono é o Visconde do Rio Branco. Pertenceu, igualmente, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na qualidade de sócio correspondente..

Combateu a ingerência dos Estados Unidos na América Latina, lançando um livro polêmico, A ilusão americana, cuja primeira edição, de 1895, foi apreendida pelo Governo brasileiro..

Severas críticas às alterações feitas pelos republicanos na bandeira do país, fazem parte do livro Bandeira Nacional.

Dedicou-se a estudos históricos, tendo publicado estudos sobre Anchieta..

Ronald de Carvalho, na sua Pequena História da Literatura Brasileira considerou Eduardo Prado “um dos publicistas que melhor compreenderam esta situação de pequenas tiranias organizadas, a que ficou reduzido o nosso país, depois que a República o dividiu em vários Estados interligados”..

Viveu em Paris, primeiro na Rue Casimir Perrier e depois na Rue de Rivoli, e nos últimos anos de vida morou na Fazenda do Brejão, no interior paulista.

Alguns amigos indicam a figura de Eduardo Prado como modelo do Jacinto, personagem de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, o milionário enfastiado pelos confortos da civilização e que vai terminar os seus dias na quietude das serranias portuguesas de Tormes.”

Fonte: ABL


 

©2016 — Eduardo Paulo da Silva Prado

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Janeiro 2016

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