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A Teoria da “Coisa Nossa”

ou
A Visão do Público como Negócio Particular
seguido de

O Estado e a Oligarquia, e o Sistema

Oliveiros S. Ferreira


 

A Teoria da "Coisa Nossa"
ou
A Visão do Público como Negócio Particular
seguido de
O Estado e a Oligarquia, e o Sistema
Oliveiros S. Ferreira

Fonte Digital
Digitalização autorizada pelo Autor
do livro em papel
Edições GRD
Rio de Janeiro — GB
1964

© 2004 — Oliveiros S. Ferreira


 

Índice

A teoria da “coisa nossa”
O estado e a oligarquia
Uma caracterização do sistema
    I —   Questões teóricas
    II —  Mergulho no passado
            Estado fiscalista
            As capitanias e o espaço
            A Independência
    III — A República: a crise de Estado
            A Sociedade e o Poder Moderador
            A desarticulação do escravismo
            A República e o Exército
    IV — A privatização do Poder
            A organização política
            A Juventude
            A ligação de interesses
    V —  O Estado Novo e a CLT
            Os elementos novos
            A CLT
    VI — A Nação sem projeto
            A última face


 

 

 

A TEORIA DA “COISA NOSSA”

 

Depoimento prestado pelo jornalista Oliveiros S. Ferreira, diretor de “O Estado de S. Paulo”, perante Comissão Especial do Senado Federal, a 18 de outubro de 1983.

 

Senhores membros do Congresso Nacional,

Atendo seu convite para vir colaborar com o Congresso Nacional no sentido de esclarecer o rumoroso caso conhecido como das “polonetas”. Os que me conhecem, sabem que venho no cumprimento de dever de cidadão, consciente dos limites que a ética jornalística impõe, especialmente em casos como os que estão sob exame desta Comissão Especial. Acrescentaria a essa dupla ressalva — a primeira impondo dizer, a segunda determinando calar — que tenho consciência perfeita dos estreitos limites em que navega essa Comissão, sem poderes para intimar ou perquerir, talvez até mesmo para concluir. Em outras palavras, diria que V. Exas. e eu, cada um no seu papel e no cumprimento de seu reto dever de cidadão, conhecemos as limitações dos poderes do Congresso Nacional, no entanto teoricamente o depositário, por delegação expressa e irrevogável, da soberania popular.

O caso em exame é desses que só pôde ocupar sua atenção porque o Congresso Nacional — ou por não lhe conceder tais poderes a Carta Constitucional vigente, ou por não saberem exercê-lo, em os possuindo, os senhores deputados e senadores — não tem a faculdade de controlar as ações do Executivo no campo eminentemente político das relações exteriores e do comércio internacional. Tivessem caminhado em outro sentido as relações entre o Congresso e o Executivo, e acordos bilaterais de comércio no estilo do que permitiu à Polônia amealhar quase dois bilhões de dólares à custa da poupança dos brasileiros, teriam sido, ao menos, objeto de deliberação do Legislativo. Essa ausência de controle dos delegados da vontade popular sobre os atos do Executivo — que responde a constrangimento de delegação originário do poder real no aparelho do Estado, ou a injunções do tipo que se supõe ter determinado a constituição desta Comissão —, essa falta de controle explica muito do que se faz em matéria de comércio internacional, de política externa e, causa e conseqüência de uma e outro, de defesa nacional.

Apesar dessa limitação constitutiva, ousaria dizer, especialista em generalidades, mas tendo, nesse curso de humanidades que é o jornalismo, desenvolvido a tendência ao raciocínio voltado para a análise de situações, que ao fim dos trabalhos dessa Comissão, os senhores representantes da Federação poderão ser compelidos a concluir que, malgrado seus poderes restritos, cometeram-se a tarefa mais importante de todas as que se atribuíram Comissões Parlamentares de Inquérito, pois sem dúvida chegarão a estabelecer as conexões que ligam o Público e o Privado, em teia tão intrincada de interesses, vantagens, proveitos e ganhos, que outro nome não se pode dar a esse tipo de organização de solidariedades que não o de Coisa Nossa.

O termo Coisa Nossa cunhou-o “O Estado de S. Paulo” num primeiro editorial, em sua sempre renovada cruzada — lado a lado com o “Jornal da Tarde” — em favor do estabelecimento não só do Estado de Direito, mas também de uma República bem organizada. Ela é aquele governo em que não paira sobre os governantes a mais leve suspeita da prática de atos que firam os sentimentos coletivos no que têm de mais profundo, que é a idéia da ação inatacável dos Poderes do Estado como administradores da coisa pública; é o governo em que os governantes se preocupam em prestar contas não ao Tribunal de Contas, mas sim a este tribunal isento, porém severo; justo, e contudo impiedoso, que é a opinião pública.

Que se deve entender pela Coisa Nossa, objeto real da investigação desta Comissão Especial? O nobre senador Fernando Henrique Cardoso, eminente sociólogo e último catedrático de Política da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, melhor do que eu poderia traçar para Vossas Excelências essa rede intrincada de solidariedades nem sempre, nem necessariamente criminosas, mas sempre e necessariamente antisociais, porque violadoras das normas básicas do pacto social que dá origem à Res Publica. Foi num desabafo indignado que “O Estado”, há tempos — mas não há muito tempo —, ao concluir sua crítica dos costumes administrativos, dizia mais ou menos nestas palavras: “Dir-se-ia que transformaram a Res Publica em Res Nostra, ou para traduzir com toda a sua crueza, em Coisa Nossa”.

A imbricação do Público com o Privado é, quer-me parecer, o principal problema com que se defronta o País, no décimo-nono ano de movimento civil-militar que teve profundas repercussões no até então (1964) plácido relacionamento do Brasil com o mundo industrializado, e foi de dramáticas conseqüências para todos e cada um de nós. A longa noite hobbesiana que se estendeu sobre o País teve, como produto próprio desse tipo de regime, o isolamento do Executivo, seu reforço e supremacia no conjunto dos Poderes do Estado. Essa segregação auto-imposta e ao mesmo tempo decorrência do autoritarismo fez que, ao longo dos meses que se seguiram ao fatídico dezembro de 1968, o Executivo fosse levado a tornar-se politicamente irresponsável, resultado a que se chegou também por haver o Poder trilhado os ínvios caminhos abertos pela teoria conspirativa que passou a orientar as ações estatais, e pela ação repressiva sem controles políticos. Ora, os ilustres juristas que me ouvem sabem que não há poderes irresponsáveis. Quando muito, a teoria constitucional brasileira registrará que, sob a vigência da Constituição de 1824, o Imperador era irresponsável, e o Poder Moderador, neutro, no conjunto dos demais; da mesma maneira como reconhecerá que no afã de fazer triunfar a soberania popular sobre a irresponsabilidade inerente ao princípio dinástico, Zacharias de Góes e Vasconcellos foi dos primeiros a sustentar que se o Imperador era irresponsável, o Presidente do Conselho era responsável pelos atos do Imperador tomados em Conselho de Estado e por ele referendados.

A irresponsabilidade do Executivo a que me refiro — que se pressentia nos entreveros que acabaram conduzindo ao 31 de março de 1964, e reforçada após o Ato Institucional n.° 5 —, essa irresponsabilidade, dizia, não poderia ser inscrita na Emenda n.° l de 1969; dela, o peso da tradição republicana ainda fez constar a possibilidade do julgamento político dos membros do Executivo pelo Congresso. Essa irresponsabilidade, no entanto, decorre daquilo que os constitucionalistas chamariam da dinâmica da Constituição, das relações entre a Constituição escrita e a Constituição real; foi imposta pela força (companheira, senão turva geradora dessa noite hobbesiana da qual ainda não acordamos) com o objetivo de, primeiro mascarar o medo, depois ocultar as solidariedades estabelecidas pela comum apropriação do Público por mãos privadas.

Não faria correto juízo de sua inteligência política se lhes dissesse que o Executivo é o único responsável por essa situacão criada na História. Se há estados sociais em que talvez a teoria da culpabilidade coletiva tenha aplicação, é esta nossa situação, em que cada um de nós, feito o exame de consciência, sente dever rezar o Confiteor. Não nos preocupemos, no entanto, em fixar responsabilidades pessoais pela criação desse estado de coisas; olhemos, isto sim, o quadro que se construiu a partir da solidariedade advinda da compartilha de posições de mando num regime regido pelo medo e em que a irresponbilidade do Executivo se tornou indispensável a que todo o sistema político continuasse funcionando com seus mais e os seus menos.

Não é preciso citar lord Acton para afirmar que o Poder corrompe. Mesmo porque a corrupção com a qual podemos preocupar-nos não é aquela que o Código Penal sumaria. Essa é do domínio do Ministério Público, dominus litis, submetido cada vez mais à vontade do Executivo. Assim já era em 1964, quando, para punir fatos capitulados no Código Penal — que é o mesmo, note-se — rompeu-se a ordem constitucional; e ela foi rompida porque a consciência jurídica não aceitaria que nos termos da lei positiva, não revolucionária, alguém fosse julgado com base na presunção. No quadro institucional do direito positivo pelo qual pautamos nossos atos públicos, o que nos deve preocupar é o que “O Estado” denominou de corrupcão institucional, e que eu chamaria simplesmente de corruptio, que nos dicionários se define, como primeiro sentido, como “Putréfaction” (tal qual no Petit-Larousse) e que no “Melhoramentos” vem definido como “ação ou efeito de corromper, decomposição, putrefação”. Sendo que o verbo corromper significa (sempre no primeiro sentido), “decompor, estragar, tornar podre”. Severo demais o juízo sobre o estado a que chegaram os costumes político-administrativos neste ano da graça de 1983? Fixemo-nos, então, no segundo sentido do verbo: “Alterar, desnaturar, mudar para mal”, lançando, talvez, um olhar d’esguelha para pequeno dicionário da língua inglesa, onde depois do sentido de putrefação, registra-se este sentido: “officials who are proof against corruption, who cannot be bribed”.

Certo, não falemos em putrefação. Fixemo-nos em desnaturação. Então, podemos dizer que a corrupção que nos deve preocupar — na medida em que a apuração daquela inscrita no Código Penal cai na exclusiva alçada do Ministério Público — é a que levou à transformação da natureza da atividade pública, à mudança para mal da relação entre o funcionário e os meios administrativos que a sociedade coloca à sua disposição para lhe prestar serviços. Para essa transformação, concorreram vários fatores, inclusivamente o fato de ela já estar presente na natureza do Estado Brasileiro pré-64. Afinal, poder-se-ia dizer que a Coisa Nossa nada mais é do que o ponto final do desenvolvimento da instituição do despachante, que numa sinistra paródia hegeliana ganhou consciência de si.

Se Vossas Excelências dedicarem seu tempo a buscar detectar atos criminosos naquilo que estão investigando, talvez não consigam chegar a concretizar seu objetivo, com pesar da Nação e alegria de alguns poucos. É que esta Comissão Especial não tem poderes reais para descer até onde se faria necessário. De certa forma, a Comissão goza de idêntica situação de desfavor que a Imprensa; como disse “O Estado”, não temos, Vossas Excelências e nós, condições de descer ao fundo dos problemas. Tal ausência de poder e capacidade jurídica de investigar fato certo e determinado, indiciando responsáveis, compensa-se, no entanto, pelo poder que as circunstâncias lhes conferem de estabelecer as conexões entre um ato e outro, além de verificar até que ponto estes ou aqueles personagens aparecem em diferentes novelas. Registrada sua presença constante, será possível emitir juízo político sobre atos lesivos à Administração e sobre esse juízo fundar ações que se revistam de conteúdo jurídico, vale dizer, permitam a aplicação de sanções materiais ou morais.

É fundamental que se estabeleça essa conexão entre as pessoas e os atos para detectar a Coisa Nossa — a Res Publica desnaturada. Ela não é uma organização criminosa; é tão-só (e por isso mesmo mais eficiente) uma teia de relações sociais, às vezes centrada no que se poderia chamar de estruturas de parentesco, o mais das vezes tecidas na intimidade, primeiro, das experiências comuns nos bancos acadêmicos, depois na compartilha de iguais vicissitudes do início de vida profissional, dos mesmos desejos de fugir às responsabilidades do trabalho assalariado ou do trabalho que contrata trabalho e gera riquezas, e de a ela fugindo, entrar no reino ameno e irresponsável das consultorias para assuntos especiais ou naquele outro, mais próximo do ilícito penal, em que se obtém vantagem, a pretexto de influir em funcionário público no exercício da função. Essa teia de relações fundadas sobre as bases afetivas do parentesco, do compadrio ou da amizade não se estabelece, no entanto, no vazio institucional; para que seja efetiva e possa vir a constituir conjunto de ações isoladas ou sucessivas, únicas ou sistemáticas aptas a desnaturar as funções públicas, é fundamental que a estrutura do aparelho de Estado seja de tal ordem que as decisões que dizem respeito ao dia a dia de pessoas e empresas públicas ou privadas — e das quais depende o êxito ou o malogro do negócio — possam ser tomadas no segredo dos grupos fechados. Esses grupos burocráticos que decidem sobre a vida ou a morte, o prejuízo ou o lucro de pessoas e empresas, não são da estrutura normal do funcionalismo; as pessoas que os integram vieram de fora da carreira, levados pelo parentesco, pelo compadrio ou pela amizade — em todos os casos irmanados, os que chegam e os já residentes, na mesma visão distorcida do que seja a relação política (poderemos dizer ético-política) entre a Coisa Pública e o Tesouro Privado. Na minha linguagem, os que integram esses grupos se definiriam como coterie. A Coisa Nossa é uma coterie, ou se se quiser, no sentido da gíria brasileira, uma patota, isto é, grupo ou bando que, até se poderia dizer, faz patotadas.

Chamaria a atenção de Vossas Excelências para o seguinte: a fim de que a desnaturação da função pública já presente na instituição do despachante pudesse concluir-se na Coisa Nossa, foi preciso haver: 1. a irresponsabilidade dos membros do Poder Executivo; 2. a perda de função e o desprestígio do Congresso Nacional, reputado foro inadequado para controle de determinados, senão de todos os atos administrativos e decisões políticas do Executivo; 3. a conseqüente hipertrofia do Executivo, apoiado na força exercida com um mínimo de legalidade formal, mas sem o fundamento básico da legitimidade decorrente da escorreita manifestação da vontade popular; 4. a centralização das decisões sobre o dia a dia das empresas na mão de alguns poucos que decidem, no Executivo, primeiro ou segundo escalão, quando não terceiro; 5. o controle do Executivo por uma oligarquia sem face mas com mil olhos e dez mil tentáculos.

Essa teia de relações só se poderia construir num regime oligárquico, como o atual. Só nele seria possível a transformação qualitativa do despachante, que de simples comprador de facilidades e alívio para problemas meramente aborrecidos, acaba obtendo título universitário ou equivalente e organiza e registra sociedade civil com o objeto social de “instalar, organizar e manter em funcionamento, exclusivamente para uso dos sócios, escritório aparelhado material e tecnicamente para proporcionar ampla assistência às atividades profissionais de cada um dos associados”. Da mesma maneira, só neste regime, que ao lado de seu caráter oligárquico ostenta no desdém de alguns por esta Comissão a certeza da irresponsabilidade, é que os interesses do Estado podem confundir-se com as vantagens da oligarquia e, por redução, na prática do dia a dia, com os ganhos da Coisa Nossa — amparadas, a oligarquia e a Coisa Nossa pelo medo que se disseminou em boa parte do aparelho de Estado de que o eventual controle, pelo Congresso, das atividades administrativas e das decisões políticas do Governo venha a significar o triunfo das forças ditas contra-revolucionárias.

O medo (o deles, de que o Congresso assuma as funções delegadas da soberania, e o nosso, de que qualquer esforço nesse caminho precipite o país no abismo de noite hobbesiana ainda mais negra do que a anterior) está na origem da progressiva transformação dos parentes, amigos e consultores de despachantes em membros à parte inteira da Coisa Nossa. Membros à parte inteira, mas não toda ela; sem eles, a Coisa Nossa não existiria, mas sem os outros, os que estão do outro lado do fio com que se teceu a mortalha da Res Publica, ela não teria tomado conta do aparelho de Estado em suas instâncias decisórias.

Creio que a tarefa dessa Comissão seria facilitada se ao invés de procurar descobrir ilícitos penais, fizesse o retrato da Coisa Nossa, isto é, desfizesse o novelo das relações que se estabeleceram ao longo dos anos e verificasse onde elas começam na sociedade e onde terminam no aparelho de Estado. Não será difícil a Vossas Excelências traçar esse caminho — afinal, será necessário apenas um simples programa de computador para descobrir quem é quem aqui e ali, onde começam as intermediações, por onde passam e onde chegam os fios dessas relações sociais. Depois de estabelecido esse quadro, esse novo “Who's who na Coisa Nossa”, será fácil responder às perguntas que o próprio “O Estado” já colocou como fundamentais:

Como foi possível ao Brasil acumular um crédito de 2 bilhões de dólares com a Polônia, nas condições em que tal fato se deu; por quê se chegou a esse resultado funesto para nossas reservas, em que pese o otimismo do Ministro da Fazenda; quem decidiu que assim se fizesse contra toda a lógica do bom senso?

Traçada a teia das relações — e temo que ela seja mais densa do que pensamos em nossa vã filosofia — e respondidas essas três perguntas: Como, por quê, quem?, esta Comissão estará capacitada a exercer os poderes que lhe são próprios de verificar se alguém, ou várias pessoas, procedeu “de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de cargo”. A lei 1.079, de 10 de abril de 1950, por ter sido feita há muitos anos num período em que se presumia que o Executivo fosse responsável, e por nunca ter sido usada, ainda está em vigor, creio. Para ela ou a que a tenha substituído chamo a atenção de Vossas Excelências, pois preserva a honorabilidade da função pública e permite que o Senado da República emita juízos sobre a conduta dos membros do Executivo.

Antes de colocar-me à disposição de Vossas Excelências, permitam-me concluir com uma frase de dom Eugênio de Araújo Salles, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro: “Além de uma hierarquia no afrontamento da problemática e busca de soluções concretas, dois alicerces são indispensáveis para superar essa situação, que se aproxima de um nível insuportável: o fortalecimento de princípios e o exemplo, a começar do alto, mas que também é exigido em todas as escalas. A honestidade fundamenta a vida individual e o relacionamento social”.

Muito obrigado.


 

 

 

O ESTADO E A OLIGARQUIA

 

A análise do senador Roberto de Oliveira Campos peca num ponto: é quando, ao procurar caracterizar o clima luceferiano em que vivemos, deixa de lado a questão central, que é a da oligarquia, e não dá a ênfase devida ao papel político da tecnoburocracia das empresas estatais. Mostrando como três burocratas podem destruir qualquer empresa (menos uma empresa estatal), esquece-se de chamar a atenção do Senado para o fato de que a crise subjacente a tudo o que estamos assistindo é uma crise de hegemonia: quem terá a supremacia no Estado? O setor público da economia? Ou o setor privado? A questão mais parece daqueles problemas que os velhos bolchevistas discutiam quando a Rússia Soviética não dominava mais do que o primitivo Grão Ducado de Moscou, e ademais estava cercada pelos “brancos” e pelos exércitos ocidentais da intervenção. A diferença entre o Brasil de Roberto Campos e a Rússia de Lênin é que no Brasil é o setor privado quem está cercado e, tudo indica, o Estado, na sua acepção doutrinária, com ele, acuado pelas estatais que não admitem que se toque nos privilégios da Nomenklatura. É preciso, pois, ir aos fatos, usando o método analítico que o senador recusou.

I — Somos governados por uma oligarquia. O “sistema”, em torno de cuja existência se teceram tantas considerações, até a eleição do general Ernesto Geisel, acabou sendo mera abstração. Só faltou que se tomasse consciência de que o “Sistema” era a vontade de poder, a energia de comando e a capacidade de manobra política do general Orlando Geisel, para que o término dele fosse total. Alguém hoje, emprega a expressão “sistema”?

A renovação dos comandos e do Alto-Comando do Exército, além da subordinação das Forças Armadas ao presidente da República desde o governo Geisel, evidencia que a sede do poder hoje não se encontra onde os analistas políticos a pretenderam situar durante anos, mas em outro lugar — aliás o mais evidente, isto é, o Palácio do Planalto. Nem sempre foi assim, porém; momentos houve em que os três Poderes da Pepública se resumiam a dois, em equilíbrio instável, ou um prevalescendo sobre outro: o Planalto e o Ministério do Exército. Sob Castello, o Planalto foi mais fraco; sob Costa e Silva, deu-se o contrário; com Médici, verificou-se o equilíbrio, o Planalto cuidando da administração e do desenvolvimento, e o Ministério do Exército da segurança (que na época significava a política). Com Geisel, inverteram-se os pratos da balança e assim continuam até hoje: manda o Planalto. A diferença entre os governos Geisel e Figueiredo é que, no primeiro, o presidente da República comandava também o Serviço Nacional de Informações, e, no segundo, tudo leva a crer que a autonomia operacional e a influência do SNI é maior do que a de todos os Ministérios Militares.

Para bem entender o Brasil de hoje, é preciso saber que no Planalto se instalou uma oligarquia, isto é, governo em que a autoridade está nas mãos de algumas famílias ou pessoas poderosas. Essa oligarquia é regida pela única lei que entende: conservar o poder e aumentar cada vez mais o poder que detém. A oligarquia não se formou, nem encontra sua origem em eleições sempre falseadas, no terror institucionalizado, em grandes famílias aristocráticas como no passado, no dinheiro como quase sempre. O pleito falseado, a tortura, as ligações aristocráticas, o dinheiro — tudo isso pode ser instrumentalizado, usado como meio; o que rege as pessoas influentes e poderosas que governam o Brasil é uma mutualidade de interesses quase clânica (sobrelevando sempre, entre os diferentes interesses, o de manter o poder e desfrutar de suas benesses, sejam quais forem), é aquela solidariedade que vem de relações pessoais que a sociologia definiria como simpatéticas. Os que freqüentaram a oligarquia costumam resumir essa solidariedade numa frase: “Fulano só cria problemas, coitado; contudo é amigo. Nomeia-se!”.

Esse círculo restrito, essa Coterie como dizem os franceses, criou aquilo que há muitos anos um bolchevista, lutando contra a burocracia stalinista, chamou de “diferenciação funcional de poder”. Os membros da coterie são diferentes não apenas de nós, simples cidadãos, mas também daqueles que a opinião pública supõe serem os reais detentores do mando. Essa diferença, que se consolidou no governo Geisel, não reside apenas na inteligência superior deles com relação a nós, que estamos na planície; tempo houve em que o vulgo os supunha mais capacitados e mais inteligentes do que o comum dos mortais. Hoje percebe que não. Afinal, na vala comum jogaram homens como Roberto Campos. Bem vistas as coisas, pode dizer-se que eles têm a experiência de ofício e a esperteza — afora os que realmente são inteligentes e cultos, mas que são poucos, porém, o que torna mais sombrio o panorama político brasileiro.

A diferença entre eles e nós vem de que têm aquilo que ninguém mais possui: o controle das informações. Reúnam-se os dados obtidos graças ao Imposto de Renda, ao IPI, ao ICM, à Previdência Social, ao Incra, às inconfidências, às campanas, às gravações ostensivas, à vaidade estimulada, ao medo generalizado, ao poder legal de promover, transferir ou incluir na cota compulsória, e ter-se-á uma soma de poder sobre as pessoas, tomadas individualmente, que não existiu em tempo algum da história do Brasil. Quando se fala, rotineiramente, na “Comunidade de Informações” — pensando-se no SNI e nos serviços de informações das Armas, da Polícia Federal e das polícias estaduais — não se diz nada sobre a origem do poder dessa oligarquia. A “Comunidade”, que a rigor, é o SNI, fornece parte daquilo que a coterie tem em seus arquivos; o grosso dos elementos dos quais se origina o poder dela sobre os cidadãos, especialmente os cidadãos empresários, vem dos mil tentáculos que o aparelho de Estado estendeu sobre nós.

Outras fossem as circunstâncias — vale dizer, fosse a situação rotineira —, a oligarquia encontraria seu apoio nas camadas privilegiadas da sociedade. Pesquise-se, no entanto, a origem social dos membros dessa coterie — não corresponde ao figurino que deles se vendeu aos costureiros do prêt-à-porter dos estudos acadêmicos ou do jornalismo engajado. Eles são ricos, mas não tiveram bens de raiz que sustentassem por si seu estilo de vida atual. Vivem de e pelo aparelho do Estado. Não diria que são corruptos ou cínicos, quando aceitam favores deste ou daquele a quem um dia irão favorecer, podendo até mesmo punir. Eles têm esses favores com que são cumulados como coisa natural: é parte inerente da junção receber presentes! Eles conhecem muitos ricos que os mimoseiam e sabem que esses muitos ricos gostam de ser lembrados e agradecidos quando o oligarca reconhece o direito que o muito rico tem como cidadão, e toma as providências para que esse direito seja reconhecido pelos burocratas de nível superior. Ao constituir a oligarquia, os membros da coterie traziam no íntimo a firme convicção de que a sociedade lhes devia muito pelos anos que passaram servindo humildemente os muito ricos, os fainéants que só sabiam alimentar-se das colunas sociais e não construir uma administração pública e privada racional. Sem a ética calvinista, muitos deles são no entanto partidários fervorosos de uma racionalidade puritana que exigem dos muito ricos. Dos estudos da Escola Superior de Guerra (hoje objeto de análises que parecem estudos de história antiga) aprenderam o horror à administração por pareceres. Do desenvolvimentismo dos anos 55-60, tomaram a idéia da administração paralela. Conhecendo a fraqueza institucional da burguesia, fraqueza que viram de perto, pois serviram a “classe” e os muito ricos antes de 1964, apreciando a dependência deles do Estado, o ciúme que os desunia e a vaidade que os consumia, preferiram, e com amor, as empresas de Estado.

Os integrantes do círculo restrito que comanda a oligarquia — pensem nisso os sociólogos e cientistas políticos — não são agentes da burguesia nacional, nem muito menos de multinacionais, mesmo que aceitem seus favores como homenagem que se presta à majestade deles. São produto das universidades oficiais, alguns vieram da carreira das Armas, outros poucos da iniciativa privada — mas são todos inimigos dos muito ricos e da burguesia porque ela, supondo-se aristocrática, menosprezava a cultura. Ao sentimento de rancor ocasionado pela discriminação, sucedeu aquele outro, de hostilidade à origem social dos burgueses e o ódio ao lucro, visto como móvel único da ação do setor privado. Nisso eles se parecem aos calvinistas dos primeiros momentos de Genebra, ou aos teólogos medievais. Se a aliança entre eles e a burguesia brasileira aconteceu um dia, de 1964 a 1974, foi por equívoco da segunda, que imaginava ter neles seus commis. A burguesia que pode dar aos membros da coterie? Empregos, mansos week-ends, mulheres de suaves e estranhas fragrâncias? O poder em que se encastelaram dá tudo isso mais aquilo que é próprio dele, que é a certeza legal de mandar nos burgueses. Aquilo que para nós, mortais, parece ser corrupção — isto é, o favor prestado pelo rico burguês ao oligarca — para o membro da coterie é apenas a corvéia que o servo deve ao senhor. Ele a aceita como de direito próprio, divino, natural ou funcional — não se preocupa com a origem das coisas.

O impulso de cada um, individualmente, leva necessariamente todos a ter o burguês muito endinheirado como subordinado e incapaz; decorre daí terem criado tantas e tantas empresas estatais, justamente no período em que a oligarquia se consolida. Aceitar o favor do endinheirado é uma coisa; receber dele um emprego é outra — muda a relação de dependência. Receber, por outro lado, o emprego do Estado, que eles controlam, é totalmente diferente; fortalece o domínio sobre o burguês, envilece as vontades dos que devem ser calados ou cooptados, aumenta a margem de opressão sobre a sociedade.

A coterie era pequena, no início, e poderia sucumbir se a sociedade se tivesse organizado. Antes que a expressão Sociedade Civil ganhasse foros de cidade — mas nenhuma concreção na realidade —, os membros da coterie encontram no âmbito do Estado seus aliados naturais. Não, como pensamos nós, jornalistas ou acadêmicos bem pensantes, os militares da ativa — sim os da reserva.

Os muito ricos supuseram, a partir de 1964, que era preciso fazer poderoso lobby, junto aos militares da ativa; feito o diagnóstico, passaram a contratar os militares que engrossavam a grande reserva de profissionais que uma doutrina política das Forças Armadas inteiramente dissociada da realidade lança no mercado todos os anos. Ledo engano, que custará anos para que as Ciências Sociais dele se redimam. A coterie foi mais sábia: o dinheiro privado, para constituir o lobby, conspurca; o do Estado, para fortalecer o aparelho de Estado nos setores econômicos, nos serviços de informação e segurança, nos ministérios e em mil e outras funções, esse dinheiro é apenas a recompensa devida pelos serviços prestados no passado às corporações militares. O militar da ativa recebe mal o companheiro da reserva que vem da parte do endinheirado discutir problemas de empresas privadas, egoístas e vis; confraterniza com o outro que milita na empresa estatal e vem debater com ele os problemas de segurança, ou o futuro grandioso do país, ambos dependentes de uma decisão governamental, que o colega da ativa pode auxiliar a ser tomada.

A coterie, vingando-se de sua origem social, submeteu os endinheirados à sua vontade; pior do que isso, diferenciou funcionalmente o poder do militar da ativa do da reserva. Sugeriria aos brazilianistas que pensassem nesta hipótese de trabalho: a aliança que nos governa não é dos tecnoburocratas com os militares da ativa, mas sim com os da reserva — os primeiros garantem o domínio da coterie sobre a sociedade, e quem governa é a oligarquia.

Parkinson produziria a prova cabal do que afirmo: na “Reunião dos 9” não tem assento ministro algum das Forças Armadas, mas o controlador (?) das estatais e o chefe do atual fiscal delas: os ministros do Planejamento e do SNI (não nos esqueçamos de que houve um dia em que se entregou à Agência Central do SNI a tarefa de controlar as estatais).

Se pensarmos que são as Forças Armadas que nos governam, cometeremos erro grosseiro; elas são apenas o instrumento de que se vale a oligarquia para perpetuar-se no mando. Com o perdão da blasfêmia, da coterie são o poder e a glória.

II — A desarticulação da sociedade brasileira; a acomodação de muitos que se recusam a assumir suas responsabilidades; a inépcia intelectual e organizatória de tantos, tudo isso somado produziu um efeito perverso no processo histórico: trocamos uma felicidade real pelo preço de uma liberdade aparente.

Gostaria de ser entendido com clareza para que não se perca tempo em interpretações em torno do sim e dos não: o processo social e político só avançou no Brasil quando (e desde que) uma fracção organizada da sociedade soube compreender que sem o apoio das Forças Armadas o Estado continuaria imobilista, buscou esse apoio, doutrinou os chefes ou catequizou os inferiores e esteve ao lado — nem à frente, nem atrás — dos movimentos militares. Pagou-se, reconheço a evidência, preço muito grande, que foi dar de comer carne às feras. Até 1960, quando havia sentido político nas ações dos grupos políticos brasileiros, da esquerda à direita — pois em 1964 os civis pensaram ser espertos, entregando o abacaxi aos militares — foi possível a marcha paralela dos grupos civis e militares. Acusar a UDN de golpista é ceder aos chavões explicativos mais fáceis. Nunca houve, de 1945 para cá, conspiração mais bem articulada do que a que conduziu aos dois golpes de Estado de novembro de 1955, os quais só tiveram êxito porque o PSD deu a cobertura parlamentar ao Movimento Militar Constitucionalista.

Essa marcha paralela traduzia-se não no respeito formal do Ministério da Guerra ao Catete, mas na real colaboração entre eles, poderes distintos e harmônicos entre si. No Legislativo, os grupos políticos tão-só procuravam criar o clima para o triunfo de seus aliados militares sobre os do adversário. A democracia brasileira avançou assim, é escapismo imaginar o contrário. A cédula única, por exemplo, foi arrancada de um Congresso de fato oligárquico pelo general Teixeira Lott, que o visitou em cortesia e manifestou publicamente seu apoio à idéia moralizadora. Quando os grupos políticos dirigentes do processo se esfacelaram em 1960, perdendo sua identidade como forma de conquistar ou manter o poder com o sr. Jânio Quadros, não foi possível mais manter o equilíbrio. Em 1961, a fera demonstrou que desejava continuar se alimentando de carne — e a partir dali até 1964, a imaginação criadora triunfou sobre a consciência política, e todo o país passou a fazer projetos numa antecipação cabocla de maio de 1968, em Paris. A luta deixou de ser entre o PSD e a UDN, que de um jeito ou de outro queriam manter o equilíbrio tradicional, para ser entre projetos opostos, contraditórios e viceralmente antagônicos, mas cheios de imaginação. Quem deu o poder aos militares em 1964 (chamasse-se Castello, Kruel, Dutra ou até mesmo Denys) foram os governadores de São Paulo, Guanabara, Minas, Paraná e Rio Grande do Sul, que queriam ser presidentes em 1965, além de Kubitschek, que preferiu Castello a Dutra.

Não quero fazer a história desses anos, que está para ser escrita, mas nunca o será corretamente pelo preconceito que tomou conta da Nação. Quero apenas dizer que a oligarquia se estabeleceu não só sobre a sociedade, mas também sobre os militares da ativa porque o período Médici, em termos de liberdades políticas e respeito aos direitos humanos, foi o que foi, canalizando as energias intelectuais criadoras contra o aparelho repressivo e impedindo a análise correta do que se passava.

Se a oligarquia se instalou no Planalto com Ernesto Geisel, foi porque o general Orlando, ministro de Médici e ardoroso defensor da autonomia do Exército diante do Planalto, criou as condições para tanto. Criou-as, isolando-se da Sociedade, unificando o sistema de segurança e impondo, em Palácio, sua vontade à do general Fontoura, que chefiava o SNI. Da perspectiva do equilíbrio Planalto-Ministério (Catete-Ministério) o elemento complicador foi a autonomia relativa que o aparelho de segurança assumiu ao longo do período: há fatos indicadores de que ele era mais poderoso em seu campo do que a Presidência. A tarefa de Ernesto Geisel foi tentar conseguir o que Lênin nem tentara: controlar a Tcheka, o aparelho repressivo, submetendo-o ao Planalto. Fê-lo por sua tenacidade, inteligência e sentido de manobra — no que foi auxiliado por alguns poucos. Para alardear à Nação que o havia feito, mostrou-se inflexível no episódio Herzog-Fiel em São Paulo, e foi nesse preciso instante que inverteu a balança e estabeleceu a supremacia do Planalto sobre o Ministério. A sociedade o apoiou e aplaudiu: o pesadelo se fora. Ninguém pôde ver que Bonaparte sentara-se no Planalto e que a oligarquia passara a dominar a Nação. Só se teve vaga consciência disso quando a candidatura do general Figueiredo foi empurrada güela abaixo de civis e militares. O manifesto do general Frota, no entanto, não era de molde a entusiasmar os que buscavam via alternativa.

Tudo isso foi possível, afora pela desarticulação da sociedade, por dois fatores: um, o comando indiscutível do general Orlando Geisel, condestável da República pós-68, pertinaz na consecução do objetivo de colocar o irmão mais moço na Presidência, fazendo alianças e más-alianças e atravessando o Rubicão para vencer os planos do general Fontoura; outro, o fato de que, pela firmeza de comando do general Orlando, pela intimidação exercida com a vigência do Ato Institucional n.° l7, pela necessidade de união imposta pela guerrilha e também porque o general Albuquerque Lima não quisera jogar a carta em 1969, os jovens oficiais que tinham feito 1964, 1965 e 1968 recolheram-se, passando a pensar no futuro pessoal. A hierarquia e o “princípio do chefe” tinham sido consagrados; a guerra psicológica favorável encarregou-se de vencer as demais resistências. Nesse quadro, a sociedade dita civil recolheu-se.

III — No governo Médici, como referi acima, criaram-se as condições para a consolidação da oligarquia, em parte porque o princípio da guerra — cada um faz a lei do outro — anestesiou os sentimentos de amplos segmentos da sociedade, os quais

1. se calaram, ou se solidarizaram pelo silêncio ou ostensivamente com a ação dos aparelhos repressivos, contribuindo para a autonomia que viriam a adquirir;

2. se deixaram acalentar pela propaganda da sociedade de consumo, gênero de vida que caracterizou todo o período do “milagre” (cujo lema pode ser resumido no enriquecei-vos), e

3. preferiram transferir para o futuro os problemas que alguns poucos suscitavam, seja os referentes aos direitos humanos, seja os atinentes a uma eventual transformação do sistema social.

É necessário ter presente, por outro lado, que, nesse período, os problemas políticos fundamentais foram relegados a segundo plano por quase todos os que conseguiram não se deixar seduzir pelo canto da sereia consumista, preocupados que estavam quer com a luta premente pelos direitos humanos, quer empenhados em reformular — sem êxito até hoje — o modelo econômico. A política foi fundida com a batalha tática do cotidiano; a ausência de um Estado-Maior na sociedade (que Hermann Heller julgava indispensável a que houvesse opinião pública) impediu transformar os recontros táticos em parte de um plano estratégico mais amplo. A carga emocional que se colocou na condenação dos aparelhos repressivos e do caráter antipopular do modelo econômico levou a perder de vista alguns aspectos fundamentais do processo:

a) muito poucos deram-se conta de que, de Castello Branco à Junta Militar, realizara-se com êxito política destinada a afastar a sociedade das Forças Armadas, vale dizer, voltada a quebrar a tradição histórica da união de uma fração das Forças Armadas com um grupo social possuidor de um projeto político coerente, qualquer que fosse ele;

b) muito poucos tiveram presente que o princípio da guerra se aplica à política: cada um faz a lei do outro. No governo Médici, a associação da luta em prol dos direitos humanos ao combate ao caráter antipopular do modelo econômico fez que muitos elementos em posição de relevo na economia, na sociedade e na política (ocupando o que chamo de “posições políticas altas”, mensuráveis por riqueza, prestígio e poder) defendessem a ação dos aparelhos de segurança para não ceder passo às correntes que desejavam a transformação da política econômica, transformação essa vista como o “cavalo de Tróia” com o qual a chamada “esquerda” tomaria pé no processo político e levaria à transformação da sociedade. Esse fato foi de suma importância porque:

I — reforçou a posição do general Orlando Geisel como condestável do regime; tornou moeda corrente em amplos setores relevantes na sociedade a idéia de que as posições políticas altas e a influência dos que as ocupavam estavam corretamente defendidos pelo “princípio do chefe” e pela Tcheka cabocla;

II — o reforço da posição do general Orlando no aparelho do Estado deu-lhe base social de sustentação e manobra quando deu os primeiros passos para a sucessão do presidente Médici, e o general Ernesto começou a ser apontado como aquele que faria a “descompressão”.

Pesquisa aprofundada determinará com grau de probabilidade cientificamente satisfatória que houve significativa mudança na atitude das camadas sociais em posição política alta no decorrer de 1972, antes que o debate sobre a sucessão começasse a minar as bases do equilíbrio entre o Planalto e o Ministério do Exército. Essa mudança ocorreu de maneira molecular: aos poucos, a inteligência falou mais alto do que os interesses e foi possível discernir que a concentração de rendas não tinha relação necessária com a existência incontrolada dos aparelhos de repressão. Apesar de o general Orlando ter sido o unificador desses órgãos — impedindo uma maior anomia estatal — a candidatura do general Ernesto foi apresentada a muitos círculos senão decisórios, ao menos fundamentais, como sendo a do projeto de abertura, isto é, do fim da censura e do início da subordinação da Tcheka ao Estado. O presidente Geisel provou, ex post, que as intenções do general Ernesto eram essas. Não é isso que se discute aqui, porém; procuro indicar que ao lançar a candidatura do irmão, o general Orlando decidiu enfrentar as veleidades de um grupo sem chefia para conseguir o objetivo maior que era, segundo indícios veementes, continuar desempenhando o papel de condestável do Estado.

Nessa contradança em que a autoridade, a astúcia e a brutalidade de comando do ministro do Exército contrastavam com a falta de visão política dos adversários e a passividade do presidente Médici, o importante a assinalar é que o projeto do condestável alienou os aparelhos repressivos. Eles ampliaram a área política atingida por sua ação (significativamente, a queda do PCB se deu a partir de 1972) em represália ao projeto de descompressão e a postura do general Orlando levou a um reforço da censura à imprensa executada exatamente por parte dos seus adversários.

Da perspectiva histórica, esses aspectos só serviram para reforçar o projeto Geisel (o do general Orlando), na medida em que os setores sociais com posição política alta formaram ao lado da candidatura do general Ernesto e ajudaram a criar o clima psico-social contrário a qualquer outra candidatura, que nasceria da incubação dos serviços de repressão, da censura à imprensa e do “fechamento”. A candidatura do general Ernesto foi: pessoalmente, o triunfo do general Orlando; politicamente, a vitória do Exército sobre o Planalto, e o triunfo do Exército sobre o Serviço Nacional de Informações; socialmente, a vitória da oligarquia, então incipiente, que encontrou nas camadas altas da sociedade o apoio com que elas acreditavam exonerar-se da culpa que lhes fora atribuída pelos mortos e pelos sobreviventes na luta armada, culpa essa apontada por quase todos os que formavam contra o governo Médici.

Há aspectos a serem ressaltados no que tange a dois fortes grupos no fim do governo Médici e durante a consolidação do poder do presidente Geisel: os militares e os tecnocratas.

Os militares — O triunfo do general Orlando pôs termo ao longo processo histórico pelo qual fracções da sociedade somavam forças a fracções da oficialidade do Exército (com importantes acréscimos da Força Aérea e da Marinha) e se constituíam em força decisiva na condução política. A candidatura do general Ernesto não resultou de confabulacões na sociedade; essa foi chamada a apoiar uma solução que convinha a um grupo restrito do Exército.

A candidatura Castello Branco havia sido a convergência de uma bem urdida articulação em cujo decorrer as forças políticas foram decisivas e a hierarquia militar pouco contou; a de Costa e Silva só foi possível porque teve o apoio irrestrito das bases contra o general Golbery do Couto e Silva e porque o presidente Castello Branco não quis se desfazer de seu auxiliar, afora o apoio (decorrente de erro de apreciação) de importantes setores da sociedade. O general Médici foi eleito presidente pela oficialidade das três Armas, sem que a sociedade opinasse. A candidatura Ernesto Geisel, como visto, foi produto de uma política traçada e executada de cima — com ela se inverteu a linha histórica que se cristalizara em 1964, consagrando-se definitivamente o “princípio do chefe”, cujo estabelecimento se ensaiara em 1969.

O general Orlando, primeiro, e o presidente Ernesto Geisel, depois, burocratizaram o Exército e o tornaram obediente. Os chamados jovens oficiais preferiram deixar a militância política e enquadrar-se nas normas regulamentares. Ao final da crise decorrente da demissão do general Frota da chefia do Ministério, depois da demissão do general Ednardo, o Exército brasileiro estava sem chefias naturais, tal qual a Wehrmacht diante do Fuehrer após a demissão de Blomberg e o escândalo von Fritsch.

Os tecnocratas — Eles merecem um título à parte.

IV — Os tecnocratas — Fui dos que, no processo de 1964, analisei (e talvez tenha batizado) a aliança da tecnocracia com o poder militar. Então, falava em aliança sagrada dos que pretendiam a racionalidade da economia e aqueles que dela necessitavam para construir o sonho da grande potência. Suprema ironia, o tecnocrata de ontem é o crítico de hoje da burocracia. O que indica, a ironia, ou que talvez o termo de então fosse excessivo, ou que a aliança foi destruída nesse longo e tortuoso processo de afirmação da oligarquia.

Os três burocratas que destróem qualquer multinacional, ou empresa nacional de qualquer porte, não nasceram no governo Geisel, nem em decorrência do Ato Institucional n.° 5. São figura secular na história política e social do Brasil; por acaso, Raymundo Faoro não os retratou, em 1956, em Os donos do poder? Eles nasceram com o primeiro Governo Geral, o de Tomé de Souza. Ocorre, todavia, que ao longo de sucessivas gerações foram combatidos pelos bacharéis que estavam do outro lado do balcão, defendendo os direitos de seus clientes. Essa defesa dos direitos civis dos cidadãos só podia ser feita numa situação social em que: a) a média da sociedade tinha a consciência de que os direitos civis eram parte distinta dos direitos políticos e que deviam ser defendidos para assegurar aos oligarcas (os antigos!) que não estavam no poder a sua sobrevivência; b) os burocratas sabiam que o jogo era esse e o respeitavam por duas razões: uma, porque amanhã os outros oligarcas poderiam ser governo; duas, porque a defesa da ordem jurídica (a prevalência do Direito sobre a regra burocrática) era a garantia dos seus privilégios estamentais, enquanto burocracia.

Os golpes de Estado de 11 e 21 de novembro de 1955 marcam significativa involução do processo. Pela primeira vez desde o golpe de estado de Floriano Peixoto, o Direito submeteu-se à força; se em 1893 o ditador republicano perguntava quem daria habeas-corpus aos ministros do Supremo que concedessem a ordem aos que ele, Floriano, perseguia, em 1955 um juiz do Supremo dizia, justificando a não concessão do mandado de segurança ao presidente Café Filho, que os tanques haviam feito um outro Direito! O abalo da ordem jurídica e a explicitaçãô de que ela era produto direto da força, ou das manobras de bastidor, foi acompanhado, no governo Kubitschek, pela criação de uma nova estrutura burocrática, uma administração paralela sem normas estabelecidas e tradicionais, os famosos “Grupos de Trabalho”, nos quais pela primeira vez civis e militares tomaram o mapa econômico do Brasil e o dividiram a seu prazer sem se preocupar com leis ou quejandos.

“Não há alternativa para a vitória!”. O êxito do governo JK coonestou o avanço burocrático. Enquanto, na República, Kubitschek lançava as sementes de que nasceria uma nova burocracia imunizada contra os preconceitos jurisdicistas da anterior, Jânio Quadros deitava abaixo, em São Paulo, o que havia de respeito por ela — em nome do combate à burocracia. As denúncias anônimas, os processos administrativos ruidosos (e os “Arquive-se, por falta de provas” singelamente acompanhados de um número no Diário Oficial) ajudaram a fazer da Lei uma ficção bacharelesca, udenista e burguesa! Daí a resolver-se a crise de 1964 fora dos quadros tradicionais, aceitar o Ato Institucional de 1964, o AI-2 e tudo o mais foi um passo. O mais grave, foi aceitar o AI-5, que suspendia o habeas-corpus e aquietar-se, a sociedade, com a cassação dos ministros do Supremo. Era o triunfo do florianismo em nome de nada.

O descrédito da ordem jurídica a acompanhar-se de fenômeno político da maior relevância: o descrédito do Poder Legislativo. Se, por um lado, de 1945 a 1962, a representação perdera em nível intelectual e efetiva representatividade política, com o “janismo” ela começava a ser mal vista e a ser tratada como apêndice do Executivo. O período Castello Branco colocou algumas pedras no túmulo do Congresso; pobre Adaucto Lúcio Cardoso pretendendo defender a independência do Congresso diante da tropa do Coronel Meira Mattos! Não só aí: nesse período ganhou corpo a tese de que o Congresso não tinha condições de governar. Eu próprio talvez tenha aceitado essa tese; o fato é que ela não se discutiu — aceitou-se-a. O Congresso não foi isento de culpa. Ao invés de, nos períodos em que consentiam seu trabalho (pouco e limitado), preocupar-se em reforçar seus quadros técnicos, decidiu aderir ao “enriquecei-vos”. Hoje, não tem estrutura para enfrentar o economês dos ministros sérios ou a audácia dos petulantes.

Tudo isso criou o novo tecnoburocrata. Ele não é o senador Roberto Campos, nem o ministro Delfim Netto: ele é a figura apagada, supostamente eficiente, que domina um Congresso de papalvos e todos os industriais inteligentes e endinheirados por um simples fato: tem o Diário Oficial na mão e sabe que os oligarcas (no velho e saudoso sentido) não ousarão recorrer ao Judiciário para restabelecer os Princípios Gerais do Direito. Mesmo que o quisessem, poderiam? Não foi ilustre mestre quem fez o mais excogitado ataque aos cidadãos, dando ao Procurador-Geral a iniciativa da argüição de inconstitucionalidade de leis, decretos-leis, decretos, portarias e instruções normativas?

Os três burocratas a que se refere o senador Roberto Campos mandam no Brasil porque a ordem jurídica não existe; porque os cidadãos não exercem mais seus direitos civis com receio de desagradar os militares — só se for os da reserva, que os da ativa não sabem desses problemas — e com medo de que o fim do poder burocrático, mediante o restabelecimento do império da Lei e o poder de controle do Congresso sobre o Executivo acabe por mudar o regime social.

Engano, que não é ledo, mas fatal! Para defender a propriedade contra a subversão, entregam ela por inteiro aos burocratas. E sustentam a oligarquia, que imporá ao Brasil — especialmente graças à crise do balanço de pagamentos — um regime nacional-socialista.

V — A luta contra os três burocratas e contra a oligarquia só pode ser travada em muitas frentes e simultaneamente, infelizmente. Se, porém, existir a consciência de que é possível vencer o adversário, talvez seja possível reduzir as várias frentes a uma só, descobrir o centro de gravidade do campo adversário e para ele canalizar a contra-ofensiva. Se o senador Roberto Campos tiver conseguido despertar as consciências empresariais para essa possibilidade, terá sido perdoado dos pecados de que se acusou em seu discurso.


 

 

 

UMA CARACTERIZAÇÃO DO SISTEMA

 

 

I — QUESTÕES TEÓRICAS

 

1. Tomamos a expressão Sistema em seu sentido mais geral de “conjunto de elementos, materais ou não, que dependem reciprocamente uns dos outros de maneira a formar um todo organizado” (Lalande). O fato de esses elementos — em nosso caso especial, os indivíduos e os grupos sociais — serem objetivamente diversos e terem inclusive interesses antagônicos perde em importância se se comprovar, na análise teórica e na observação empírica, que os quadros institucionais em que desenvolvem suas ações para conservar sua posição relativa na escala de fruição dos valores sócio-econômicos estabelece um nexo de relação e dependência recíproca entre eles.

O importante para identificar o Sistema é, pois, estabelecer em que ponto da articulação institucional-legal da sociedade global se dá o nexo de articulação dos vários grupos sociais. O foco da análise é assim mais institucional que propriamente estrutural; tende mais a ver como o Estado restringe determinadas formas de organização e permite outras e como essas disposições legais alteram o comportamento suposto de determinadas classes, do que propriamente a considerar as ações em si, atribuindo-lhes este ou aquele sentido conforme a situação de classe dos agentes.

2. O fato de afirmarmos a existência real do Sistema não significa que seus componentes (grupos e indivíduos) tenham consciência expressa de a ele pertencer. Só quando uma de suas partes vitais é atingida é que o organismo reage como um todo — e é nessa reação que se manifesta a solidariedade das partes com o todo e desse com aquelas. É essa solidariedade (característica dos sistemas em sentido lato), que demonstra a existência de uma consciência do Sistema, a qual por ser coletiva informa o consciente individual imediatamente apenas ao nível do subconsciente.

É por isso que afirmamos acima que a existência real do Sistema não implicava, da parte dos indivíduos que o integram, a consciência expressa de sua existência. Ela apenas se manifestará nos momentos de crise, ou quando forem atacados os seus nexos relacionais. Mas ainda assim ela existe e informa o comportamento político dos grupos que o compõem, os quais nada farão para alterar o Sistema, mesmo que verbalmente estejam contra determinados de seus aspectos (os menos importantes em termos dos nexos relacionais), ou o uso que deles se faz.

3. O Sistema não se define em função de estruturas sociais, de situações de classe, como ficou visto acima. Sua caracterização deve ser feita a partir das estruturas políticas, de dominação; das oportunidades que o sistema político-jurídico oferece para a apropriação das possibilidades de mando econômico, social e político aos indivíduos que as integram. O pertencer a uma determinada classe pode condicionar uma série de ações sociais, visando a alcançar determinados objetivos que são socialmente reputados válidos e dignos de serem obtidos. Esses objetivos possivelmente são diversos daqueles percorridos por indivíduos pertencentes a classes diferentes. Mas esse pertencer pode levar a perseguir os mesmos fins — e geralmente assim é, pois uma sociedade fixa os mesmos valores gerais para seus componentes, pertençam a uma ou outra das classes que a compõem.

Nessa circunstância — a dos objetivos perseguidos serem iguais ou semelhantes — dá-se o choque de interesses e o conflito entre os diferentes sentidos atribuídos às ações pelos agentes, sentidos esses condicionados por condições de existência social definidas em função da posição ocupada pelos agentes no processo de produção: proprietários, ou não proprietários. Há, assim, ações convergentes para os mesmos objetivos, mas inspiradas por sentidos diversos, O problema teórico e prático, na hipótese das ações convergentes ditadas por motivos diversos, é saber quais os objetivos em causa e se o sentido pensado, o conteúdo subjetivo da ação social estabelecido pela análise teórica é real, ou adjudicado, objetivo em função das condições concretas em que vive o agente da ação social, ou atribuído pelo observador, ele próprio condicionado por suas particulares condições de existência e motivado pelos objetivos que individualmente persegue. Em outros termos, saber em que medida o conteúdo adjudicado se afasta do conteúdo real, passando a ser uma mera abstração, e em que medida dele se aproxima, não na análise teórica, mas na configuração concreta da ação.

Da perspectiva da análise estrutural, os fins perseguidos são dados como diferentes, pois o uso que deles se pretende fazer, uma vez apropriados os valores sócio-econômicos a eles correspondentes, é postulado diverso para os vários grupos sociais em presença. Igualmente, os conteúdos éticos que informam a ação são dados como diferentes: cada classe tem a sua própria e peculiar concepção do mundo, e é para realizá-la que se opõe às demais. Uma não participa do universo da outra, donde não haver a possibilidade de entendimento entre elas e afirmar-se a irredutibilidade da dominada à dominante (dominação ainda uma vez definida em termos de propriedade). A sociedade perde, assim, na análise teórica, a sua articulação, e as idéias e valores deixam de informar todos os estratos em que ela se decompõe para serem privativos deste ou daquele grupo e irredutíveis aos demais.

Em outros termos, interpreta-se mal uma frase de Marx, segundo a qual a ideologia de uma época é a ideologia da classe dominante. Com isso, ele desejava afirmar que os conteúdos éticos, os valores profundos da consciência coletiva têm sua origem na dominação de classe e servem para mascarar essa dominação, pois as criações intelectuais em que se traduzem esses valores só podem ser produto da classe socialmente dominante, que é aquela que tem acesso aos centros focais da cultura, e servir a seus interesses. Mas não pretendia dizer que não são aceitos, nem transformados (às vezes num sentido mais reacionário) pelas classes dominadas, pois afirmá-lo seria negar às classes dominadas sua posição de subordinação e desconhecer a dinâmica social entre as classes.

É exatamente essa aceitação dos valores da sociedade global (oriundos da dominação de classe) que permite compreender o caráter conservador das grandes massas. E é apenas a constatação de que os conteúdos éticos e os valores profundos da consciência coletiva penetram todos os grupos, que permite explicar como a reivindicação das classes dominadas se dá sempre em nome desses valores e desse conteúdo no momento em que a articulação do todo social não mais oferece possibilidades reais e concretas de as aspirações da sociedade global se tornarem efetivas. As classes dominadas sustentam as estruturas políticas e sociais que apoiam os valores da sociedade global até o momento em que tomam consciência de que aquelas estruturas não mais permitem a obtenção desses valores. Aí passam à Revolução. A consciência do antagonismo fundamental entre proprietários e não-proprietários só a tem um pequeno número — e é ele quem, do Poder, vai alterar as estruturas e tentar criar novos valores.

Importa notar ainda que a análise estrutural, adjudicando um tipo de consciência e portanto de ação peculiar a cada classe em função de uma escatologia referida em última análise à situação de proprietário ou não-proprietário, deixa de assinalar um importante elemento que é a necessidade de a sociedade global cumprir a racionalidade que lhe é inerente — a qual pode ser atribuída, sem riscos teóricos ou práticos, pois vai ser procurada nela mesma e não numa imagem sua, no conteúdo ético e nos valores profundos da consciência coletiva constantemente afirmados e reafirmados nas criações objetivas da vida em sociedade. É a defasagem entre a racionalidade proposta pelos valores e a realidade das ações humanas que leva às revoluções para cumprir a primeira — e a alteração das estruturas de Poder cria uma nova racionalidade, que se distancia ou atrasa com relação às criações, gerando assim novas revoluções.

Poderíamos dizer de outra forma: a racionalidade estabelece determinadas conexões de sentido que devem ser socialmente interpretadas e atendidas ao nível das instituiçõs políticas. Quando essas são ultrapassadas — isto é, mostram-se incapazes de satisfazer plenamente as exigências da realidade — dá-se a Revolução, que gera novas instituições, que inicialmente atenderão às conexões de sentido, mas alterarão por sua vez a realidade, criando nela nova exigência de transformação institucional.

4. São as instituições políticas que estabelecem as condições de adesão às estruturas de dominação. Elas que definem a articulação política dos vários segmentos sociais, a qual pode ser diversa da articulação econômica. Pela via institucional, grupos dominados podem ter facilitado seu acesso a posições políticas altas, de dominação, próprias dos grupos dominantes. (Por posição política, entendemos a posição relativa ocupada na escala de fruição dos valores sócio-econômicos: ser mais ou menos rico, ser mais ou menos respeitado e homenageado pelas camadas superiores, fazer-se ou não obedecer pelas camadas inferiores). Na defesa dos interesses políticos assim definidos, certos grupos dominados poderão auxiliar a manter situações institucionais-legais que consagram a dominação de grupos, cujos interesses objetivos são contrários aos seus, ambos objetivamente definidos em termos de proprietários e não-proprietários.

São os interesses políticos (ligados às posições políticas e não às situações de classe) que comandam as ações dos grupos: o desejo de alterar, ou conservar uma posição relativa ou absoluta na escala de fruição dos valores sócio-econômicos. Para alterar sua posição relativa baixa, os grupos dominados (em termos de proprietários ou não-proprietários) podem chegar, no limite da ação teoricamente concebida, à Revolução. Mas para conservar uma posição relativa alta, os grupos dominantes podem seja esmagar as reivindicações dos grupos dominados, seja auxiliá-los a elevar-se socialmente (sem alterar a posição absoluta), ou alguns grupos dominados podem auxiliar os grupos dominantes a manter-se na estrutura máxima do Poder político, que é o Estado.

5. O importante, na análise, é ver se a posição política retira sua legalidade e assenta sua legitimidade na classe, enquanto organização dos comportamentos para a defesa de interesses sócio-econômicos em sentido estrito, ou se pelo contrário vai buscá-la fora dela, no Estado. Se a legalidade se funda na classe, a posição política pode ser definida como autêntica, ou orgânica; se pelo contrário é decorrência da vontade do Estado, é inautêntica, ou burocrática. (Esse problema nada tem a ver com a tendência manifestada nas organizações políticas — sindicato ou partido — a se burocratizarem, ou se tornarem oligarquias, como observou Robert Michels. Uma organização pode ser oligárquica, ou burocratizada, nesse sentido, e a legalidade de sua posição política ser orgânica).

6. Essa consideração introduz uma outra, a meu ver fundamental: a de que o Estado não pode ser visto como um simples instrumento de opressão de classe, apenas como o comitê executivo da classe dominante, ou a agência social que executa uma determinada política para favorecer apenas os proprietários. Ele pode assim ser entendido — mas essa característica não esgota sua definição, pois ele é mais que isso porquanto submete toda a Sociedade a suas normas coatoras, sejam os burgueses, sejam os proletários. (Que haja indivíduos que por sua posição política alta consigam, às vezes, subtrair-se do rigor dessas normas é um problema que afeta a prática de poder do Governo e não a essência do Estado).

O Estado é antes de mais nada uma unidade coletiva de ação com legalidade própria, orgânica e não burocrática. Isto é, retira sua legitimidade de sua própria existência e não da de outros grupos sociais que lhe são juridicamente subordinados. É um grupo inclusivo, que submete todos os demais às suas normas. É ele que molda as demais instituições políticas; é ele quem organiza o comportamento político dos grupos — alguns podem opor-se à sua norma jurídica, mas para que a oposição à Lei tenha sentido enquanto ação, deve traduzir-se num projeto revolucionário, visando à posse do Estado para estabelecer uma nova ordenação jurídico-política para a Sociedade. Mesmo quando isso se dá, no entanto, o Estado permanece inalterado em sua essência de poder coator, soberano. Daí a importância que os revolucionários atribuem à posse do aparelho de Estado: é que só ele pode organizar a cooperação entre os homens conforme à visão do mundo daqueles que dele se apossam.

O Estado e o Governo distinguem-se na prática, da mesma forma que na teoria. O Estado é o cérebro social de onde emanam as normas de organização dos homens; o Governo, o executor dessas normas. Na monarquia absoluta, o Estado resumia-se no Rei; nos Estados democráticos modernos, essa capacidade de estabelecer as normas da organização da convivência entre os homens foi teoricamente atribuída ao Legislativo, já que era o representante do Povo, Soberano por excelência. Mas a teoria constitucional previa os casos em que o chefe de Estado poderia dissolver o Legislativo para que a vontade do representante do Soberano correspondesse realmente ao sentir do Povo. O Judiciário era o Poder incumbido de defender os indivíduos contra as violações que o Executivo pudesse fazer dos direitos assegurados pelas leis votadas pelo Legislativo. Daí não se poder, a rigor, considerá-lo como Estado, mas apenas como uma agência sua.

O desenvolvimento das técnicas de produção, a concentração dos capitais e dos meios de informação e difusão, a extrema especialização das funções públicas e o caráter secreto de muitas decisões políticas, fez que paulatinamente o Legislativo perdesse a função que lhe fora atribuída (pois ele tinha menores possibilidades de conhecer a realidade sobre a qual deveria legislar), passando o Executivo (o presidente da República, o primeiro-ministro, alguns altos funcionários administrativos e alguns membros de órgãos especiais do Legislativo) a representar a função de cérebro social própria do Estado. Pela trama diária de poder, tornaram-se na prática quase irresponsáveis — e concentraram em suas mãos o poder soberano. Ademais, como o monopólio legítimo dos meios de violência é exercido pelo Executivo, seu controle é mais do que nunca indispensável a que se controle todo o Estado. Na Revolução, o grupo hegemônico apodera-se do Executivo, dissolve o Legislativo ou faz um à sua imagem e controla o Judiciário. Detém, assim, o poder de Estado e legisla em função de seus interesses.

7. Um último elemento. Como o problema é de instituições, mais especificamente de Estado, importa assinalar que as classes só passam a ter existência política quando organizadas para a conquista do aparelho de Estado. Um grupo social amplo, como a classe, que não se organiza para a defesa de seus interesses econômico-sociais, não pode estabelecer a relação entre esses interesses e os problemas políticos mais amplos; por conseguinte, por falta de relacionamento competitivo, não pode afirmar-se como sujeito de uma ação política, isto é, de uma ação que em última análise visa à posse do aparelho estatal para realizar uma transformação institucional e estrutural da sociedade.

É a organização para a defesa dos interesses econômico-corporativos que caracteriza, antes de mais nada, a existência das classes sociais, pois é essa organização que, levando a classe a entrar em conflito com o Outro, permitir-lhe-á adquirir consciência de si. Essa consciência tende a resolver-se no plano do Estado, pela eliminação do Outro, ou pela alteração das posições políticas relativas.

Como o problema é a posse do Estado, a organização deve ter amplitude igual à distribuição geográfica dos elementos que a compõem. Se os interesses econômicos-sociais correspondem objetivamente ao espaço geográfico da Nação, a organização deve ter uma extensão nacional (acrescido ao fato de que a luta sendo política, a organização deve corresponder à extensão do Estado, último objetivo visado).

Para que a organização possa atuar em nome da classe, é mister que seja uma unidade coletiva de ação; para que seja tal, é mister que os membros da classe mantenham, no plano nacional, contatos organizatoriamente significativos — o que significa conscientes — a fim de que as diferentes visões do mundo condicionadas pelos diversos espaços geográficos se dissolvam numa mesma visão organizatória. Para que exista a organização política de uma classe, portanto, é preciso que o problema das comunicações no território nacional seja superado — pois a sociabilidade política, da mesma forma que a social, só se estabelece através de contatos freqüentes e constantes.

Uma classe só aspira o Poder quando tem do Espaço a mesmo proposição que o Estado; quando a noção de que os interesses objetivos — identificados pela relação que se estabelece no processo de produção — são semelhantes ou iguais em todos os pontos do território nacional se interiorizou na consciência de cada um de seus membros.

Só quando a legalidade da organização for orgânica é que a classe pode ser considerada sujeito de sua ação — pois então é ela quem constrói as formas de seu que-fazer cotidiano. Na legalidade burocrática, a condição de sujeito desaparece, pois a organização da classe decorre da vontade do Estado e não de um ato livre e criador. A unidade coletiva de ação não é assim um produto do Nós que é a classe, mas integra um Nós mais amplo, que é o Estado.

O Sistema não pode ser definido concretamente sem que se tenha uma visão clara e o mais possível próxima do processo real de formação do Brasil. Por isso, sua conceituação brotará da exposição dos fatos, ao invés de ser estabelecida a priori.


 

 

 

II — MERGULHO NO PASSADO

 

O Sistema não brota do nada, a partir da ditadura Vargas, ou da Revolução de 30. A ditadura, conseqüência prático-teórica necessária da Revolução de 30, deu-lhe forma acabada no plano das relações sociais, estabelecendo o nexo institucional entre os vários grupos sociais em presença. Ao estabelecer-se, porém, foi obrigada a romper a forma federativa de Governo — que caracteriza o Sistema no plano institucional mais amplo — a qual foi restabelecida em 1946 e agoniza em fins de 1965, batida pelo governo da Revolução feita com o apoio da Federação. São as contradições da realidade política brasileira — e o Estado Novo foi talvez a sua maior contradição, pois, reencontrando-se com a linha geral da nossa História pelo restabelecimento de uma forma unitária de Governo, consagrou também juridicamente o Sistema, que é o inimigo jurado do progresso nacional.

Sobre a ditadura Vargas cai o anátema dos liberais-democratas e a suspeita da esquerda (que às vezes recorre à figura do ex-presidente constitucional para efeitos demagógicos), um e outra impedindo até hoje se fizesse o estudo criterioso desse período, que marcou o fim de uma etapa republicana e moldou todas as crises das repúblicas a ele subseqüentes. O Estado Novo é importante por isso — mas não é nele que se devem buscar as articulações do Sistema, apesar de ter sido nele que se deu claramente a vinculação de seus elementos sociais componentes.

É necessário mergulhar mais fundo se se deseja compreender o porquê do surgimento do Estado Novo; se se pretende saber que fatos o tornaram necessário. É mister, a nosso ver, quando se empreende a tarefa de explicitação do que é o Sistema, ir até as origens do Brasil — por acadêmica que possa parecer a proposição. Há quem situe a origem histórica e politicamente significativa do nosso processo em meados do século XIX. A nosso ver, embora seja neste momento que aparecem os elementos econômico-estruturais significativos, eles surgem num quadro institucional já acabado, inserindo-se ao mesmo tempo em uma problemática maior que vem da Colônia. É a ela, portanto, que vamos voltar — e se isso fazemos, apesar de mediarem entre Cabral e nossos dias quase cinco séculos completos, é porque com os primeiros colonizadores surge também — e surge antes que a Sociedade Civil se tivesse articulado no território brasileiro — o Estado.

O fato de o Estado aqui se estabelecer antes que houvesse uma Sociedade Civil que se reconhecesse tal no Espaço por ele coberto é de capital importância; da mesma forma que é significativa a circunstância de antes de havermos podido construir qualquer forma autônoma de organização da vida econômica (autônoma no sentido de responder às necessidades internas da Sociedade Civil), termos sido inseridos no contexto mercantilista mundial na posição de colônia, e não termos conseguido vencer até hoje a condição de dependência.

A presença do Estado moldou em formas rígidas o desabrochar da Sociedade Civil; impediu que novas formas de sociabilidade impostas pelo habitat alterassem fundamentalmente as instituições sociais, que os colonos traziam consigo de Portugal. Mas não apenas o Estado. Também a Igreja, essa, a igual título que aquele estranha à Sociedade que se fundava e coatora de comportamentos novos, ao mesmo tempo que elemento incumbido de reforçar o patriarcalismo da organização familiar, perpetuando-o seja no campo, seja na cidade.

 

ESTADO FISCALISTA

 

O Estado português que aqui se instala traz consigo a visão fiscalista que o caracterizara desde a fundação do Condado Portucalense. É um Estado de origens agrárias, que se afirma como unidade inclusiva de dominação antes que a Sociedade portuguesa se tivesse articulado em termos políticos, embora não tivesse podido, exatamente por haver surgido antes do completo desenvolvimento da Sociedade Civil, desenvolver uma burocracia própria, sendo forçado muitas vezes a valer-se dos serviços dos senhores privados para exercer sua dominação sobre o conjunto do território. O Estado português tem como sua negação não os estamentos internos, mas o inimigo externo: a Coroa de Leão, e para dela defender-se, enfeuda-se a um poder igualmente estranho à Sociedade portuguesa, que é o Papado. De origem agrária, numa sociedade agrária, ele necessita de rendas para manter os áulicos da Corte e seus serviços. Essa mentalidade fiscalista é que marcará toda a empresa de colonização do Brasil.

Em termos genéricos, a tributação era aplicada não como instrumento de uma política mais ampla, tendente a fortalecer o poder do Estado contra os privatismos feudais — como foi em outros países — mas para sustentação da Corte e das empresas que empreenderia depois de Aljubarrota. Assinale-se que a mentalidade fiscalista, esgotando sua racionalidade e seu futuro no mero ato não-reprodutivo de recolher o tributo, não é capaz de abarcar a racionalidade estrutural mais ampla da economia. O mercantilismo típico possuía uma racionalidade mais ampla que o mercantilismo fiscalista português, a qual resultava da necessidade em que encontravam as Coroas de construir uma estrutura de poder capaz de negar os privatismos urbanos e feudais. Em Portugal, essa necessidade pode ser dada como inexistente — daí o Estado ter-se contentado em existir sem progredir e sem ampliar seu poder político através do desenvolvimento econômico da sociedade. Pombal é a tentativa de reação contra essa tendência — mas se vota ao malogro, pois não encontra na Sociedade forças para vencer os grandes adversários do progresso técnico e científico: os nobres, áulicos da Corte, embora, e a Igreja, que era o núcleo hegemônico da nação portuguesa, pois lhe dava a direção intelectual, cultural e política.

São o agrarismo da Coroa e o fiscalismo do Estado, associados aos fatos de a Igreja ser o núcleo hegemônico da sociedade, que fazem de Portugal um capítulo à parte na história do mercantilismo europeu. É metalista — não promotor de riquezas; serve ao consumo ostentatório das classes dirigentes — não à promoção do desenvolvimento mediante o trabalho. Nação marítima, sequer uma indústria naval possui autenticamente nacional; dona do maior império colonial da época, permite que a comercialização dos produtos coloniais fique em mãos de particulares e de estrangeiros.

A concepção fiscalista do Estado, a idéia metalista que marca seu mercantilismo e o “ethos” católico-português em que o conhecimento das ciências exatas é relegado a plano secundário e em que o “Viver à maneira nobre” — isto é, consumir para ostentar — predomina sobre o trabalho, marcam esse Estado, que na explosão liberal do Porto, em 1820, vai buscar remédio para seus males no restabelecimento do Pacto Colonial no instante em que já não possuía condições para tentá-lo, nem para a revitalização do corpo nacional.

O Estado e o mercantilismo metalista marcam o Brasil até o século XIX, quando se rompe o Pacto Colonial — medida jurídica de grande significada para o futuro desenrolar dos fatos políticos, mas que em nada altera a situação de dependência econômica do país, pois a produção essencialmente agrária e voltada para o mercado exterior continua sendo comercializada, lá fora, por grupos a que não se ligavam os produtores brasileiros.

 

AS CAPITANIAS E O ESPAÇO

 

Isso posto, cabe ver como se articulou a Sociedade Civil no território a partir do esforço da Coroa para colonizar a nova terra. São capitanias hereditárias separadas uma das outras por longas distâncias, de tal sorte que a comunicação entre elas é praticamente inexistente. Desenvolvem-se, assim, pela imposição do Espaço, tantas sociedades quantas são as capitanias que conseguem progredir. Sem dúvida, entre elas há muito em comum, o que à primeira vista permitiria dizer que constituem uma só sociedade: a mesma origem étnica, a mesma língua, a mesma religião, costumes semelhantes, uma estrutura estatal de referência sempre a mesma. Esses elementos comuns, no entanto, não bastam para configurar uma só Nação e são insuficientes porque as Capitanias não tinham uma proposição nacional do Espaço.

O único Espaço que existia para as Capitanias era aquele lindeiro com a necessidade de alargar a cultura da cana, prear os índios indispensáveis ao trabalho e descobrir novas catas de ouro. Era o Espaço recoberto por suas relações sociais mais imediatas. O Destino que esses nucleamentos populacionais podiam propor-se, portanto, era limitado pelo Espaço que conseguiam conceber — ainda que fosse em termos sociais amplos. O Espaço recoberto pela sociedade a que cada grupo se sente ligado. A única proposição nacional do Espaço e o único Destino nacional formulado são a proposição e o Destino do Estado português instalado no Brasil. Daí todos os movimentos nativistas registrados na Colônia serem regionais e não nacionais; é que a geografia impedia a articulação da sociedade sobre o território recoberto pelo Estado. Por isso o Estado aparece como a negação do Destino dessas sociedades menores, constrangendo-as a adaptar-se a normas jurídicas vinculadas ao Espaço continental e elaboradas para atender às exigências fiscais da Coroa.

A articulação política da Sociedade Civil, o conhecimento de si fazia-se assim, entre um nucleamento populacional e outro, pela intermediação do Estado — era ele quem tinha a idéia do Brasil, não os vários núcleos de população. A própria Inconfidência Mineira surge como um movimento regional, desejando a libertação de Minas, São Paulo e Rio. É que mais não podia propor, pois o sistema social que lastreava o movimento só se articulava nessas três capitanias. (O fato de o ciclo do ouro ter permitido uma maior articulação do Sul do País com o Centro simbolizado pelas Gerais não altera o fundamental do raciocínio, pois a Sociedade não se articulava organicamente com as regiões sulinas).

Note-se, contudo, que o gênero de vida a que a colonização e a perspectiva exterior condenavam a Colônia tornava possível uma identidade objetiva de formas de vida e organização familiar seja no Sul, seja no Centro, seja no Norte-Nordeste. Era uma vida eminentemente agrária, fundada no domínio senhorial-escravocrata e na família patriarcal — forma de organização familiar que se transmite facilmente às cidades através da ação da Igreja e da circunstância de terem sido os núcleos urbanos, durante muito tempo, mera extensão do latifúndio (o caso de Minas é diverso, mas a breve duração do ciclo do ouro e sua rápida decadência permitiram a agrarização do único núcleo realmente urbano de povoamento durante a Colônia), e não uma oposição social, econômica e política às formas de vida existentes no campo. O caráter do latifúndio brasileiro e a ação da Igreja imprimiram a toda a sociedade colonial, apesar de mal articulada sobre o território, o mesmo “ethos” marcadamente rural em que os valores que antecedem o capitalismo não penetraram. Nosso capitalismo nasce sob a marca rural e referido a um Estado que surgira antes das classes se terem constituído no conjunto do território nacional. Aí reside a deformação maior de nosso processo.

 

A INDEPENDÊNCIA

 

Não se fale em luta de classes no período colonial — a expressão, sobre ser sem sentido numa sociedade não articulada social ou politicamente no território, desconhece a dependência em que se encontravam os setores urbanos com relação aos rurais. Para os setores que se poderiam dizer “dominados” da sociedade colonial, a Cidade não aparecia como alternativa de Liberdade — como o burgo o foi para o servo da gleba. A Liberdade, pelo contrário, se conquistava nas imensidões do interior, longe da coerção social dos senhores da terra e de seus delegados nos centros políticos de então. Longe, portanto, da sociedade.

Sem dúvida, há conflitos entre comerciantes e senhores de terra — e eles se manifestam sobretudo no desejo dos primeiros de serem admitidos nas Câmaras. Importa assinalar, contudo, que o móvel da ação dos comerciantes não era estabelecer, pelo controle das Câmaras, uma nova ordenação ainda que meramente espiritual da sociedade urbana ou urbanóide em que radicavam; pelo contrário, a sua ascensão aos postos de controle político (na medida em que assim se pode falar, quando se sabe que a Coroa estabelece, a partir do século XVIII, sua soberania indiscutível sobre toda a administração, retirando o pouco de autonomia decisória que as Câmaras conservavam) só será possível no “ethos” dos senhores rurais, isto é, quando podem e conseguem fazer a prova de que “vivem à maneira nobre” isto é, a prova de que consomem e não produzem.

Longe de haver uma choque entre comerciantes e senhores de terra em torno da posse dos mesmos valores, cuja apropriação poderia servir a fins diferentes, dá-se uma acomodação tão logo o segmento comerciante adere ao “ethos” rural. Aliás, não poderia ser diferente, pois além de as cidades não terem importância demográfica, econômica e social, a sociabilidade básica, a organização familiar, era a mesma na cidade que no campo. Há sem dúvida nas cidades uma grande massa de homens livres, que não participam da mesma posição política que comerciantes e senhores de terra — mas mais que a negação das formas de viver vigentes, mais que o proletariado, são o lumpemproletariat, a massa de manobras, os quase-dependentes do sistema senhorial. Os escravos não contam, como nunca contaram a não ser como instrumento; é que eles são coisas e não cidadãos.

Mesmo o nativismo alegado existir na Colônia parece-me fora de lugar. A burocracia portuguesa participava da mesma visão cultural do mundo que os setores dominantes rurais e urbanos — deles se distinguia porque representava interesses fiscais diferentes. Quando o governador, ou capitão-general dissente da visão do mundo dos senhores brasileiros, é repudiado não enquanto expressão do despotismo português, mas como manifestação marginal da administração lusa; veja-se o caso do “Fanfarrão Minésio” nas Cartas Chilenas.

Por esses motivos, a Independência não conduziu à fragmentação do Brasil, ao contrário do que ocorreu na América Espanhola. O milagre foi possível porque no instante em que os interesses fiscais da burocracia se conciliaram com os da Sociedade Civil (na abertura dos portos), os burocratas passaram naturalmente, por já se encontrarem no governo, a desempenhar o papel de representantes políticos dessa Sociedade. Por isso é que o Estado foi o autor da Independência — não a Sociedade Civil. E foi porque a estrutura burocrática estabelecida desde o primeiro Governo Geral, em 1549, se manteve intacta, que o Brasil não se fragmentou.

Enquanto expressão organizatória do Estado, a burocracia era o único grupo social capaz de propor-se um Destino nacional consentâneo com o desafio do Espaço Continental. E o manteve uno através do Império, cedendo às pressões do regionalismo apenas em 1889, quando se estabeleceu a Federação e o projeto do Destino nacional se fragmentou em função dos localismos.


 

 

 

III — A REPÚBLICA: A CRISE DE ESTADO

 

 

Quando o Estado brasileiro surge, em 1822, como uma unidade de dominação independente e soberana, os canais em que se dará o desenvolvimento futuro da sociedade já estão traçados. Resumem-se, a meu ver, em cinco grandes problemas: a) a dialética entre o Estado e os localismos, o Estado e a Sociedade Civil; b) a questão institucional; c) a questão militar; d) a questão do Prata, e e) a questão religiosa.

O primeiro vem do descobrimento, atravessa o Império e continua a manifestar-se na República; o segundo põe-se e resolve-se no Império em termos condizentes com a proposicão do Espaço, para sofrer um retrocesso na República; o terceiro surge com d. João VI, atravessa disfarçadamente o Império e explode na República; o quarto é peculiar, enquanto proposição, à Colônia; resolve-se no Império para surgir sob nova forma, cada vez mais inconsciente, na República. O quinto, finalmente, vem de Portugal com os jesuítas e até hoje persiste. É nele que se manifesta claramente o problema da hegemonia entre os setores urbano e rurais; o predomínio do “ethos” urbano, ou o do rural.

Convém, para os efeitos desse trabalho, tão apenas enunciá-los sem entrar na exposição detalhada de cada um deles. O primeiro já foi tratado em suas linhas gerais no que veio atrás; o segundo resume-se, a meu entender, na dialética entre a União e a Federação — e por isso o Estado Novo é o ponto de encontro da República com a tradição imperial; o quarto, por ter sido superado ao nível da consciência expressa dos dirigentes e dos grupos formadores da opinião pública, pode passar sem referências, apesar de sua importância, da mesma forma que o último, talvez escabroso demais, mas nem por isso menos importante. Convém determo-nos ligeiramente no terceiro: a questão militar.

Quando d. João VI chega ao Brasil, a abertura dos portos elimina o único elemento objetivo, que poderia permitir — todas as condições, sendo as mesmas — a identificação do Brasil como um todo enquanto Colônia por oposição à Metrópole. A abertura dos portos, realmente, extingue de fato o Pacto Colonial, e os poucos produtos que a Coroa conserva sob estanco não são significativos no plano político. Os fatores objetivos que poderiam levar à separação saem assim do plano econômico-social para situar-se meramente no político; daí durante o período que se seguirá à volta de d. João até 1822, a Independência ter sido uma e não a única das hipóteses consideradas para resolver a crise entre o Brasil e Portugal, só se tornando necessária a partir do instante em que as Cortes portuguesas decidem restabelecer a situação anterior a 1808 e fazer o príncipe regente voltar.

É o desaparecimento dos elementos determinantes no plano econômico-social (permitindo a identificação da burocracia de Estado com os setores dominantes da sociedade), que explica o aspecto aleatório das agitações que levaram à Independência, o qual tende a fazer sobressair o jogo das personalidades e permite compreender porque os estadistas na oposição adotam políticas contrárias àquelas por eles preconizadas quando no governo, e vice-versa.

É a predominância do quadro político (onde vigora o aleatório) sobre o econômico-social (que gera o necessário), que permite o triunfo da organização. No Rio, o poder de Estado dependia, para sua manutenção, do apoio da população contra a tropa paga, e da tropa contra a população. Não havendo, mesmo no complexo Centro-Sul, classes politicamente organizadas, o problema do governo, ou dos que a ele se opunham resumia-se em obter o apoio do Exército para realizar determinadas políticas; quando, além da tropa, contava-se com o apoio da população urbana, especialmente se conseguia levar aqueles semi-livres a formarem grupos de pressão nas ruas, a vitória da política perseguida era certa, pois não havia forças a opor a essas mobilizadas seja pelo Poder, seja pelos que a ele se opunham.

É a desorganização política das classes, associada à concentração física do Poder de Estado no Rio de Janeiro e acrescida da dificuldade de comunicações entre Rio, Ouro Preto e São Paulo, que dá ao Exército papel saliente nas agitações políticas que se iniciam com a vinda de D. João e prosseguem nas lutas da Independência, no I Reinado, na Regência e no II Império. O Exército era o único sustentáculo do Poder de Estado — e quando ele contra esse Poder se coloca, o Estado é forçado a recorrer aos privativismos regionais, solicitando-lhe o apoio armado para conter a sedição da tropa paga.

A desorganização da sociedade, aliada, como observa muito bem Celso Furtado, aos surtos de inflação que corroem o soldo dos militares, investe as Forças Armadas de um papel político que D. Pedro já sabia não ser delas, embora delas se tivesse servido a 26 de fevereiro de 1821 para levar seu pai a jurar à Constituição, que as Cortes portuguesas ainda iam elaborar: “A tropa faz parte da Nação, mas a tropa não é toda a Nação”. A consciência de que a tropa era paga para servir ao Estado e não para contra ele voltar-se, expressa por D. Pedro, está no entanto afastada da realidade, pois as relações efetivas que nela se observam permitem dizer, naquela época, que a tropa não é toda a Nação, certo, mas na ausência de uma organização política das classes nacionais, ela assume o papel de guia da Nação nas horas que reputa cruciais.

Contra essa realidade, a desorganização da sociedade nada permite que se faça; pelo contrário, é essa desorganização, associada ao secular conflito entre os privatismos regionais e o Estado (as diferentes proposições do Espaço das sociedades locais e do Estado), que obriga a reforçar ainda mais o poder do Exército e da Marinha, que afora a tarefa de submeter os separatismos se vêem atribuídos uma missão externa de enorme importância, nem sempre compreendida pelos liberais da época, prontos a negar créditos militares ao Governo e a voltar-se contra a Razão de Estado, que com D. João e depois com D. Pedro se empenha na campanha da Cisplatina para assegurar as comunicações com o Oeste distante e estender as fronteiras do país até o Prata,

Esses dois elementos: a guerra externa e a necessidade de impor a vontade do Poder Central, isto é, a Lei, a todos os rincões da Pátria fazem do Exército brasileiro, no início do último quartel do século XIX, importante elemento no jogo político. Seu volume e sua densidade no corpo político nacional não vinham, no entanto, apenas dessas necessidades; decorriam do caráter bismarckista do Estado brasileiro, que se vinha marcando tal desde a Colônia e se firmará, dada a especial articulação do sistema político, no Segundo Império.

 

 

A SOCIEDADE E O PODER MODERADOR

 

 

O desenvolvimento demográfico do Centro-Sul, associado ao café, enseja a criação de uma economia de mercado baseada no capitalismo-escravista, ou no escravismo-capitalista — com o que a economia brasileira, quando se instala apoiada em capitais nacionais, desenvolve-se num quadro de referência agrário e patrimonial; num contexto social em que as cidades, enquanto elemento de urbanização (portanto de criação de uma nova visão do mundo traduzida em comportamentos sociais diversos dos desenvolvidos no meio rural) contam pouco. A organização familiar continua sendo central, desempenhando o mesmo papel de intermediação entre a Autoridade e o filho, que quebra as normas estabelecidas pelo Pai; a Igreja continua exercendo seu império sobre as consciências — e a conjugação do “ethos” rural, da organização familiar e da Igreja pesam sobre a Sociedade, impedindo a renovação de mentalidades, comportamentos e estrutura, consentânea com a racionalidade do modo de produzir capitalista, que se espraiara pelo mundo.

O capitalismo aqui radicado, prisioneiro desse “ethos”, perde suas funções e características básicas, chegando inclusive a alterar seu próprio, espírito. Todavia, essa perda e essa alteração não eliminam a racionalidade que lhe é inerente enquanto expressão de um sistema mundial de produção. Fossem o Brasil e as demais nações latino-americanas os centros irradiadores, hegemônicos, do capitalismo mundial, e a transformação das características e do espírito poderiam conduzir a uma alteração na racionalidade do sistema capitalista global; não sendo, o capitalismo-rural (o rur-capitalismo) que aqui se estabelece entra em contradição com a racionalidade do sistema mundial, a qual é ou tende a ser urbana — e daí as crises sucessivas tendentes a adaptar a expressão real de nosso capitalismo àquela escrita, de sua racionalidade.

A esse elemento constritor do progresso do Brasil no quadro do sistema mundial (um capitalismo atípico em termos do “ethos” que o informa) — constritor a igual título que a situação de dependência no mercado mundial, dada a permanência dos vínculos reais do novo pacto colonial —, deve acrescentar-se a articulação política da sociedade brasileira durante o Segundo Império, quando o Poder Moderador aparece em sua plenitude e desempenha seu papel com uma consciência extremamente clara da missão que o Estado possui no Brasil.

O Moderador, dadas as características do desenvolvimento histórico-político brasileiro, embora constitucionalmente dado como um dos poderes do Estado, é o próprio Estado; esse o aspecto, cuja compreensão reputamos essencial. Sua irresponsabilidade constitucional confere-lhe a irresponsabilidade própria do poder soberano; sua colocação entre os outros três poderes dá-lhe o caráter de incontrastabilidade que uma vez mais define o Soberano.

O Conselho de Ministros é responsável perante a Câmara e essa, pelo mecanismo de dissolução, responde perante o Moderador; já o Imperador, no exercício do Poder Moderador é julgado politicamente por ninguém. Por isso é que a revolta contra o Imperador é a revolta contra o Estado — daí a República que é uma nova forma de Estado. É por isso que a República é uma Revolução, ainda que limitada ao plano do Estado, pois não alterou relação de poder alguma na sociedade brasileira; é que o marechal Deodoro destrói um Estado e em seu lugar coloca outro para realizar a concepção do mundo própria dos liberais e dos republicanos: uma república federal em que os direitos políticos se situam por sobre a consciência dos direitos sociais, da qual em boa lógica são decorrência.

É por ser o Estado, que o Moderador exerce plenamente as funções bismarckistas do Estado brasileiro, centralizado e centralizador, buscando retirar cada vez mais da dominação senhorial o controle da vida política em seu escalão mais elevado, que é o estatal. O Moderador não se desvincula totalmente da realidade social sobre a qual assenta: na verdade, participa dos valores mais gerais da sociedade brasileira e busca mesmo incentivá-los. Mas o fato de ser irresponsável e a circunstância de sua legitimidade não depender da Sociedade Civil fazem dele, enquanto Estado, o “cérebro social” a que se refere Durkheim; por isso é aquele Poder capaz de apreender as direções da racionalidade do mundo capitalista em que o Brasil se insere, e aquele que busca alterar o sentido da racionalidade própria do capitalismo-escravista brasileiro.

 

 

A DESARTICULAÇÃO DO ESCRAVISMO

 

 

É a Coroa, que naquele preciso instante realiza a emancipação dos nascituros — não o jogo das forças urbanas contra as rurais, do capitalismo de trabalho assalariado contra o capitalismo de trabalho escravo. Não que o faça do nada — as condições econômicas para que o Ventre Livre fosse possível já existiam, mas não fôra o trabalho da Coroa, as condições políticas para a aprovação da lei de 1871 só se dariam mais tarde. A desarticulação do sistema escravista era possível, quando se deu; não necessária. A atualidade, a necessidade do poder (a necessidade post foctum, que se comprova pela permanência das inovações), essa conferiu-lhe a Coroa, por havê-la realizado. E desarticulou o sistema escravista antes que a consciência política da necessidade dessa desarticulação tivesse ganhado as massas urbanas (de maior influência imediata sobre os destinos políticos, dada sua proximidade dos centros de decisão), e as massas rurais (de influência mediata, mas mais decisiva, pois nelas se concentrava o grosso do eleitorado).

Observe-se a articulação do sistema institucional no Império: o Moderador designa o presidente do Conselho, que deve obter a aprovação da Câmara. Teoricamente, esse presidente do Conselho e seu ministério deveriam responder aos interesses das camadas sociais superiores às quais se ligava a maioria da Câmara, isto é, aos interesses dos setores agrários do país, dirigentes e dominantes. Isso de fato acontecia — mas acontecia juntamente com outro elemento de capital importância: partidos de patronagem, que nutriam seu poder dos favores concedidos pelo Estado, chocavam-se conservadores e liberais com o cruel dilema de ou atender aos reclamos dos setores agrários, ou satisfazer à vontade do Paço, única forma de permanecer no Poder, retirando dele os elementos capazes de legitimar sua existência perante aqueles de cujo voto dependiam para postular o Governo. O poder nominal residia nos setores agrários; o poder real, contudo, estava no Moderador, pois era dele que dependia pudessem os partidos pagar a contrapartida do serviço que os setores rurais lhes prestavam com os seus votos. O dilema, até 1889, sempre se resolveu em detrimento dos setores agrários, especialmente daqueles que timbravam em permanecer na oposição. Interesses, diga-se de passagem, inicialmente políticos e de prestigio, e só no fim econômicos-sociais, com o Ventre Livre e a abolição.

 

 

A REPUBLICA E O EXÉRCITO

 

 

Não é correto fazer a República decorrer, em linha de conseqüência necessária, da Abolição, ou mesmo do surgimento de uma burguesia urbana capitalista. A ligação entre esses fatos é circunstancial e episódica; emocional, não social. Da mesma forma como a Independência deveria ter sido a obra do Brasil, enquanto protesto político de sua Sociedade Civil contra a Metrópole, e não o foi porque D. João VI extinguiu o Pacto Colonial, a desarticulação do sistema escravista deveria ter sido (considerando-se, o que não é verdadeiro, a Monarquia como impeditiva do capitalismo liberal) a obra da República, ou dos radicais do Império, que a reclamavam já em 1869, juntamente com a extinção do Moderador, a privatizacão do Poder municipal e a quase-federação; a realização, ou ao menos o terreno social sobre o qual se plantaria a bandeira política reformista dos “inimigos da sociedade” contra os “partidários da Ordem”.

O caráter bismarckista do Estado brasileiro e a incipiência de uma força urbana organizada impediram que a ordem teoricamente dada das coisas se desse — e impediu, em boa medida, porque a desarticulação do sistema escravista, dado o caráter particular da sociedade brasileira, não chegou a sensibilizar, nos anos de propaganda, o senso comum das pessoas, colocando-se como tarefa necessária ao nível da consciência coletiva. Tendo sido a Coroa a fautora dessa desarticulação, a República perdeu sentido enquanto expressão política de uma nova visão da organização social. Não tinha, econômica e socialmente, porque postular a preferência do povo, nem encontrava modelos adequados a sugerir à consciência nacional.

Nessa ordem de coisas, a República representou, em termos de necessidade (afora a necessidade do Poder atrás referida), apenas o triunfo dos privatismos sobre a visão nacional do Poder Central. Não foram as camadas urbanas socialmente mais progressistas que fizeram a República: aquelas ligadas politicamente à Abolição — portanto à transformação das relações no campo — cedo se deram conta de que o Moderador havia realizado a tarefa que deveria ser delas, expressão organizada da Sociedade Civil. E consideraram a tarefa política realizada, formando ao lado do Império contra a República, que já não trazia conteúdo emocional, político ou social — sequer econômico — novo, a não ser o vago apelo a uma forma suposta superior da organização democrática dos povos.

A República não foi necessária no sentido de que na realidade não havia elementos econômico-sociais determinantes, que a todos, permitisse a consciência da disjuntiva: ou progresso com a República, ou Regressão com o Império. Sua necessidade — no sentido de sua realização — só se explica por dois motivos, descontada a possibilidade de haver intervindo o princípio do erro: um, a centralização imperial, que sufocava as regiões em desenvolvimento, nesse sufocar alimentando o federalismo, que a rigor nasceu com as capitanias; outro, a necessidade em que se encontrava a Sociedade Civil, organizada em partidos de patronagem, de romper a dependência em que se encontrava do Moderador, aliado extremamente incômodo, para ocupar de uma vez o Poder.

Nesse sentido, a República é o triunfo dos setores agrários sobre a racionalidade a cumprir-se da sociedade brasileira mensurável pelo tipo da economia mundial em que se inseria A centralização do Império poderia ter sido vencida pela reforma judiciária e administrativa, mas a autonomia das Províncias, a independência e a não-subordinação dos partidos aos interesses do Moderador, essas exigências só poderiam ser cumpridas com a derrubada da Coroa.

O Exército cumpriu, objetivamente, em 1889, a tarefa dos radicais do Império, dos republicanos, dos regionalismos e dos setores agrários. Tornou o Estado responsável perante as Armas e se constituiu, na prática, na fonte real do Poder. Como, porém, não era e não é o Estado, mas seu garante, criou uma grave contradição entre a legitimidade legal republicana, que deve ser buscada na Sociedade Civil através das eleições, e aquela real do poder militar, que não radica, enquanto legitimidade, nem no Estado, nem na Sociedade, mas apenas na força. Essa contradição, do ponto de vista teórico, está na origem das crises republicanas.


 

 

 

IV — A PRIVATIZAÇÃO DO PODER

 

 

A extinção da Monarquia não conduziu a uma alteração das posições políticas relativas na sociedade brasileira, pois a República foi um movimento desencadeado sem a indispensável mobilização de forças sociais ponderáveis; ampliou o poder das elites regionais mediante as novas relações que se estabeleceram entre a União e os Estados, e aumentou extraordinariamente a força do sistema de patronagem. Realmente, embora os partidos continuassem retirando sua força do Poder Público (e ao longo do processo passaram a dele auferir sua legitimidade, que assim se tornou burocrática no sentido definido no primeiro artigo desta série), a automática confusão estabelecida entre o Governo e o Estado pela forma presidencialista da República levou a que o chefe de Estado, responsável ao contrário do Imperador, passasse a executar enquantc chefe do Governo a vontade dos partidos, além de seu poder resultar, sendo ele pois dela a expressão, da vontade dos presidentes dos Estados e dos grandes caudilhos republicanos.

O Poder Central, na República, tornou-se pela primeira vez na história do Brasil inteiramente dependente dos interesses privados. Antes, participava do “ethos” que informava a sociedade global, mas era capaz — pela distância política que guardava com relação aos diferentes segmentos (pois retirava seu poder e sua legitimidade de elementos outros que os meramente privados) — de propor ao país um Destino consentâneo com a racionalidade que fosse capaz de intuir própria ao desenvolvimento do Brasil; na fase republicana, não só participa do “ethos” rural, como também apenas se sustenta pelo apoio que recebe dos setores privados. Daí, quando deseja realizar qualquer política tendente a contrariar aqueles interesses dos quais é tido como mero executor, a necessidade de o presidente da República contar com a força armada, única organização capaz de dar-lhe apoio em escala nacional. E daí, também, dada a desorganização política da Sociedade Civil e o desinteresse da grande massa do povo pela política da Cidade, o fato de o Poder Central estar sempre à mercê das Forças Armadas e de para a elas contrapor-se ser levado a apelar a elementos privados.

Na República, pois, dá-se a perfeita e acabada articulação dos interesses político-eleitorais com os econômico-sociais dos setores agrários — e dá-se no aparelho do Estado. E é com a República que tem início a primeira época do Sistema, aquela em que o Estado se privatiza.

É para a circunstância de os interesses político-eleitorais se conjugarem no plano do Estado com os econômico-sociais que devemos dirigir nossa atenção. O controle da maioria do Congresso é condição indispensável, apesar do Presidencialismo, para que os setores politicamente dominantes (no sentido de uma posição relativa alta na escala de fruição dos valores sócio-econômicos) possam reivindicar o controle da máquina administrativa, sem o qual não poderão preencher a função de patronagem que os caracteriza. Ao contrário do que se dava no Império, porém, o Congresso não se compõe em função do jogo de interesses entre o Moderador e a Sociedade Civil; inexistindo o poder de dissolução, o Congresso responde unicamente aos interesses dessa última e, nela, de seus estratos politicamente dominantes.

Por seu turno, embora concentrando enormes poderes administrativos em suas mãos, o chefe de Estado vê fugir-lhe pela Federação e pelo mecanismo das instituições republicanas, o poder político que havia caracterizado seu igual até 1889. Sua legitimidade, conquanto sancionada formalmente por e fundada no sufrágio, assenta no apoio das Forças Armadas e no jogo dos grandes caudilhos e dos governadores dos Estados eleitoralmente mais densos — com o que ele passa a ser a expressão de determinados interesses bem marcados, aos quais não pode contrariar, e não tem mais, por via de conseqüência desse fato, a possibilidade de apreender a racionalidade a cumprir-se da economia e da sociedade.

Com isso, o processo político deveria ter sofrido inversão fundamental, no sentido de que a Sociedade Civil (antes de constituir-se como Nação), tendo-se privatizado o Poder de Estado, passaria a assumir a hegemonia do processo, que até então fora desse. Isso teria acontecido se dois elementos não tivessem obrigado o Estado a reagir, lutando por reconquistar uma posição que a História e a Geografia lhe haviam conferido: a organização nacional das Forças Armadas e o Espaço.

Foi realmente a imensidão continental do Brasil que, impedindo os estados federados hegemônicos do Centro-Sul de terem uma proposição de Destino consentânea com o Continente, forçou o Estado central a reagir contra a excessiva privatização do Poder e a tentar eliminar as seqüelas sucessivas à República. Em outras palavras, o Estado para realizar a unidade nacional ameaçada pela Federação (sendo a unidade a condição básica de qualquer Destino nacional), foi obrigado a lutar contra sua privatização e, ao longo do processo inverteu os dados da equação teoricamente proposta a partir da realidade, submetendo totalmente a Sociedade Civil à sua hegemonia — burocrática, por excelência. Nesse processo de restabelecimento da unidade perdida, o Estado teve a apoiá-lo a organização nacional das Forças Armadas. Tivessem elas se privatizado juntamente com o Estado na primeira República, e o país não teria suportado íntegro as crises que se sucederam desde o 15 de novembro.

 

A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA

 

Muito se tem falado do papel que o choque de interesses das classes sociais desempenhou e ainda desempenha no processo da Revolução Brasileira. Convém, portanto, tentar estabelecer como ele se deu e dá ainda, isto é, quais as forças em presença, qual o espírito que as animou e em que quadros institucionais elas conduziram sua luta econômico-social. Um problema melhor se compreende quando se faz a sua história — esse o melhor método da análise política. Tentemos, pois, reconstruir o Brasil, agora da perspectiva do ajustamento entre as classes sociais.

Para o fim que temos em mira, não basta adjudicar aos vários segmentos que compõem uma sociedade, diversas e antagônicas perspectivas de ver o mundo, estabelecidas em função da posição que ocupam no processo de produção, por um lado, de uma racionalidade atribuída, por outro. A racionalidade atribuída ao comportamento das diferentes classes sociais pela teoria marxista decorre, enquanto proposição teórica — é sempre conveniente lembrá-lo — de uma análise dos diferentes comportamentos reais das diversas classes que aparecem no cenário político europeu a partir do século XI com o Renascimento Comercial, as quais, a par de objetivos econômico-sociais distintos, perseguiam fins políticos antagônicos.

O Burgo se opõe ao Feudo enquanto expressão total de vida: surge em virtude de a organização senhorial não mais permitir o desabrochar de formas novas de cada um viver sua vida livre e independente, e tende a afirmar-se sempre contra a maneira peculiar do Feudo encarar a posição do Homem no Universo. A racionalidade implícita no comércio, a circunstância de a vida urbana, com o desenvolvimento das trocas comerciais, criar um novo fundamento para a Liberdade (não mais a Propriedade fundiária, mas o dinheiro), afora a urbanização, que contribui para a secularização dos comportamentos — esses elementos todos emprestam ao Burgo uma nova importância: é não apenas a oposição política ao Feudo, o lugar em que a Liberdade pode ser alcançada no sentido mais amplo permitido pela Baixa Idade Média, mas é também o centro onde se nega a primazia da Fé e, conseqüentemente, da Igreja sobre os indivíduos.

A Cidade surge a um tempo como negação do modo de vida do Campo e como o centro social criador de um universo secular, racional — urbano em suma. É essa oposição entre esses dois grandes segmentos da sociedade européia em formação, a Cidade e o Campo, que explica a peculiar estrutura política dessa mesma sociedade; e é a circunstância de suas relações não serem íntimas, mas antagônicas e excludentes (da perspectiva do “ethos”), que diferencia esses segmentos, marcando para sempre a estrutura social da Europa ocidental como uma estrutura de classes. Durkheim já apontava, quase ao tempo de Marx, a maneira de caracterizar a estrutura política de uma sociedade. Ela nada mais é, dizia, “do que o modo pelo qual os diversos segmentos que a formam adquirem o hábito de viver uns com os outros. Se suas relações são tradicionalmente íntimas, os segmentos tendem a se confundir; caso contrário, tendem a se diferençar” (As regras do método).

Ora, no Brasil — e já o apontamos mais acima — os diversos segmentos da Sociedade Civil adquiriram o hábito de viver em relação tradicionalmente íntima. A Cidade nasceu ou como centro administrativo — e nessa circunstância não teve expressão — ou decorreu da extensão do latifúndio, autônomo e auto-suficiente. Quando ela não é a sede de vilegiatura dos senhores, é o mero entreposto para receber as mercadorias que o latifúndio não produz e a ele encaminhá-las, ou para exportar aquelas que produz para o mercado externo. Não chegam, assim, as cidades, a criar as condições para que nelas se gere um “ethos” diverso daquele que domina e constrange toda a sociedade brasileira. É que elas surgem dependentes e não opostas ao Campo; são núcleos populacionais em que as condições de existência social não propiciam o surgimento de características urbanas; em que o horizonte intelectual não se faz abstrato porque a vida social não reclama a abstração indispensável a compreender o processo da atividade econômica capitalista, abstrato e racional por excelência. Elas se submetem à Natureza — porque é da Natureza trabalhada pelo escravo que dependem para sobreviver. Sem a atividade agrária e o comércio a ela ligado, a Cidade não teria sentido no Brasil — quando aquela não existe como básica e é substituída pela mineração (atividade ainda extrativa, mas em que o prestígio não decorre da Terra, mas do ouro enquanto medida de valor econômico), a Cidade floresce como manifestação urbana e o Brasil encontra sua expressão cultural autóctone mais legítima, que é o Barroco Mineiro, que, no entanto, fenece no último quartel do século XVIII.

A Agricultura e o Comércio são, assim, as duas únicas atividades econômicas básicas do Brasil até o amanhecer do século XX — e o segundo não pode competir com a primeira em termos criadores. Aquela, a Agricultura, é telúrica e o seu telurismo prende o homem, de certa forma aliviando sua alienação pelo trabalho que se vê frutificar a cada estação; esse é meramente intermediário, não criador, alienador por excelência: subsidiário da primeira, ou da Indústria, quando ela surge e rompe o equilíbrio bucólico da vida agrária. Sequer o artesanato chegou a florescer no Brasil — e ele teria permitido introduzir no universo do brasileiro uma nova atividade criadora, estética, social e econômica. O Pacto Colonial sufocou o desabrochar urbano das cidades, e foi o Estado, na pessoa de D. João VI, quem permitiu que as indústrias aqui se estabelecessem — não o Burgo.

Esses fatos marcam indelevelmente a realidade política brasileira — e o liberalismo antes, e o revolucionarismo, hoje, de nossos políticos, mais que traduzir a revolta da Cidade contra o Campo, a racionalidade da Ciência e da Técnica contra o romantismo das letras jurídicas, reflete sua impotência criadora, que então extravasa na revolta contra a realidade que lhes deu origem, indo buscar lá fora, na realidade européia trabalhada por mil anos de lutas e de civilização, a fórmula salvadora para as nossas crises. Não que o liberalismo não tivesse produzido seus frutos positivos; deu-os no reclamar as garantias dos direitos individuais sem as quais não há desenvolvimento social e político. Elas, porém, só se tornaram efetivas quando o centralismo do Estado, organicamente ligado com as condições que lhe deram origem, conseguiu sobrepor-se ao caudilhismo e ao domínio das instituições pelas minorias senhoriais. Com a República e a Federação, triunfa o liberalismo puro e exacerbado — apesar de Ruy Barbosa ter sido obrigado a reconhecer a pouca valia de uma corte de justiça que não tem a quem apelar, se o Poder discricionário do Estado resolve suprimir as garantias que outorgou.

 

A JUVENTUDE

 

É apenas no século XX que as Cidades vêem aparecer, no Brasil, as condições para representar o papel que sempre foi seu na Europa, de oposição política ao Campo. É que apesar das ligações efetivas entre os setores dominantes urbanos e rurais, o crescimento demográfico vegetativo e aquele decorrente da imigração, associado ao surto de industrialização — incipiente embora, mas já transformador das relações de trabalho — impeliu à mudança. Na linguagem de Wiesenecker, o “estrangeiro secular” introduziu-se no universo “sagrado” e começou a agitá-lo: e pôde agitá-lo exatamente porque as estruturas políticas sendo de uma extrema rigidez, não permitiam que os elementos jovens, sempre crescentes e sempre em maior número, participassem da vida política. Se houve tempo em que “le rouge et le noir” se constituíam na válvula de escape para as energias jovens que não conseguiam se colocar na estrutura, no Brasil dos anos 20 tal não era possível: o Clero não exercia mais sedução sobre os espíritos, e o Exército tinha sido batido pelo estigma que os civilistas nele imprimiram, incapazes de compreender os excessos da “ditadura republicana”. Só restava a Política — e os canais que a ela conduziam estavam fechados. Na ausência da grande Indústria, que canalizasse as energias dos jovens que ambicionavam transformar o mundo, duas opções se lhes ofereciam: a resignação, o fechar-se sobre si mesmos, ou a revolução. Os tenentes seguiram o último caminho; os bacharéis preferiram o primeiro, que acabou por conduzi-los à burocracia de Estado, transformada no grande elemento de absorção da mão-de-obra educada que não tinha profissão certa. Separaram-se, assim, para sempre, o mundo civil e o mundo militar, e o bacharel, longe de ser o elemento aglutinadcr das grandes transformações, viu-se reduzido à condição de pensionista do Estado, que abominava, mas servia, pois apenas servindo podia compensar sua frustração existencial.

Contudo, quando a Indústria surge, é nesse quadro que ela se insere; ela não deve apenas vencer as resistências que a Ética católica opunha, no século XIV, ao lucro, nem o horror que a acumulação primitiva suscitava na consciência humanitária da Europa do XVIII e do XIX. Vencer essas barreiras morais, naquela época, foi-lhe fácil, porque a Cidade já construira um “ethos” em que a racionalidade, a frieza e o cálculo da Indústria surgiam como elementos se não normais, pelo menos de uma normalidade possível. No Brasil era tudo diferente e mais difícil; a esses fatores de resistência, havia de acrescentar o próprio “ethos” de que provinha o capitão de indústria e a circunstância de a Cidade ainda favorecer a maneira “nobre de viver”. Daí a Indústria ter cedido ao universo agrário, pré-capitalista, trazendo para o campo das relações de trabalho fabril — conforme acentuo em trabalho anterior — “o paternalismo dos velhos tempos imperiais, e para o da propriedade o domínio familiar e não anônimo das empresas, a par da mentalidade do ‘homem cordial’, que colonizara a terra e exaurira o solo despreocupado do futuro e de sermos parte de uma constelação internacional de Poder. E assim como o ‘homem cordial’, que desbravara os sertões e fixara a população, esgotara a terra, assim o ‘homem cordial’ que ocupou as fábricas delas retirou o máximo sem lhes dar nada em troca... na imensidão do mercado e no aviltamento do trabalho fácil encontrando o substituto para a renovação de suas técnicas de produção”.

 

A LIGAÇÃO DE INTERESSES

 

Se houve essa subordinação da Indústria ao “ethos” rural, tal se deu entre outras coisas porque a industrialização, no seu início, dependeu inteiramente do café, único produto essencial — em termos do balanço comercial — através do qual se estabelecia o contato entre o Brasil e o mercado internacional, e também porque a necessidade de defender o café — mais exatamente a posição política dos senhores do café — contra a desvalorização, e a indústria contra a concorrência estrangeira fez que entre um e outra se estabelecesse uma solidariedade de interesses políticos no plano do Estado. O protecionismo alfandegário, tentado em 1844, retomado na República e agravado com a taxa ouro sobre as importações em 1893, associado ao confisco cambial que os produtores de café estabeleceram em 1906 com o convênio de Taubaté, representa uma violação da racionalidade geral do sistema mundial da época sem que na realidade brasileira houvessem desabrochado os elementos que permitissem uma política dessa natureza.

O protecionismo mercantilista responsável pelo progresso das grandes nações européias, assentara, afora as condições estruturais diversas, em um dado inteiramente diferente daquele que se dava no Brasil republicano: fôra uma política de Estado para fortalecer inicialmente o Estado e apenas por via de conseqüência o privatismo capitalista. No Brasil, eram os privatismos da indústria e do café que estabeleciam, apoiados na Federação, o protecionismo, forçando com isso a descapitalização de regiões que não podiam concorrer no mercado internacional pela ausência de produtos exportáveis em condições competitivas, e impedindo que a livre concorrência eliminasse os menos aptos a enfrentar a “struggle for life” típica da economia de mercado. A circunstância de as indústrias terem iniciado seu desenvolvimento no mesmo complexo sócio-político em que o café fizera seu aparecimento, contribuiu ainda mais para fortalecer a solidariedade objetiva de interesses entre a Indústria nascente e a Agricultura já em decadência pela superprodução pressentida no início do século. É que os senhores do café, dos quais os governos estaduais eram mera expressão, controlavam — através deles e da dependência em que se encontrava a União das rendas da exportação do produto — o Poder Central, de seu acordo dependendo a adoção de qualquer política a ser adotada pela República.

O café dava ao País a capacidade de importar de que todo o Brasil necessitava — esse o primeiro dado a assinalar e que marcará, do ponto de vista da análise política, toda a primeira República; o que é mais importante, dava essa capacidade em condição por assim dizer exclusiva, de monopólio, com o que a Agricultura era a um tempo a força dirigente e dominante, pois estabelecia a direção cultural, intelectual e política da sociedade, mediante o predomínio do “ethos” rural, e por deter os postos de comando da política. A Indústria tinha de submeter-se a essa hegemonia, se desejasse estabelecer as condições mínimas para realizar seu desenvolvimento — e submetia-se seja pela integração dos capitães de indústria na mesma visão do Universo que a da Agricultura, seja pelos benefícios materiais que decorriam dessa submissão, embora seguramente não lhes fosse estranho que o predomínio do café só se fazia à custa da “socialização das perdas”, fenômeno que José Maria dos Santos já apontava em 1930 como típico da economia republicana. O acordo com a Agricultura — na condição de sócio menor — era assim a condição política em que se encontrava a Indústria para poder sobreviver; acordo que eliminava, no plano político mais amplo, que é o do Estado, o antagonismo teórico pressentido entre a atividade industrial e a rural.

Diante da grande massa miserável da população (expressão já usada em 1905 por Bernardino de Campos), apresentavam-se portanto a Agricultura e a Indústria como detentoras, em situação de monopólio, das mais altas posições políticas relativas; o café, pelas condições geo-econômicas que lhe haviam permitido sustar o desenvolvimento de qualquer outra atividade agrária concorrencial, o que teria permitido a diversificação da produção agrária e a introdução de elementos divergentes no plano dos interesses imediatos no contexto político da Agricultura; a Indústria, pelo protecionismo alfandegário, que num país em que a energia ainda não era suficiente para o desenvolvimento industrial, e o mercado restrito, impedia que a introdução de produtos manufaturados estrangeiros a obrigasse ou a desaparecer (o que teria sido o caso), ou a modernizar-se, lançando-se contra a rotina dos métodos de trabalho consagrados pelo café. Quando algum expoente mais lúcido da classe dirigente enuncia a necessidade de fundar-se a prosperidade do Estado num amplo programa destinado a fazer que antes de tudo o Brasil produza tudo aquilo indispensável à sua alimentação, e que se reveja a legislação aduaneira e tributária a fim de que a concorrência beneficie o público consumidor, é sumariamente afastado das lides políticas pela violenta reação dos grandes caudilhos, como foi o caso de Bernardino de Campos em 1905.

Falta dos capitais — que se jogam todos no café — que lhe permitissem desenvolver-se autonomamente, a Indústria é objetiva e politicamente caudatária da Agricultura, que por sua vez depende da finança internacional para manter sua posição hegemônica no mercado internacional do café. A Agricultura e a Indústria dividem assim o poder de Estado ao sabor de suas conveniências, essa dependente daquela, e a primeira, por sua vez, ligando-se — comprometendo nisso o poder de Estado — ao mercado internacional de capitais. A Indústria, por sua pouca densidade no conjunto do território, não tem força política bastante para inverter em seu favor o fluxo de distribuição de renda, que se dirige em sua maior parte ao setor rural — o confisco, longe de permitir a industrialização, aumenta, pela socialização das perdas conseqüente à quebra da taxa cambial, o poder da aristocracia cafeeira, pelo reforço de sua posição política. (As grandes massas urbanas, nas quais o proletariado já começa a representar elemento ponderável de pressão econômico-social, possuem um peso político específico muito relativo em virtude do sistema eleitoral).

É este, portanto, o quadro da primeira fase do Sistema, quando se dá a Revolução de 1930: um poder de Estado enfraquecido pela Federação, mas tendendo a restabelecer (pela visão do Espaço que é apenas sua, e pela concentração de maiores recursos financeiros em suas mãos) o seu antigo predomínio; um Governo central dominado pelos privatismos e realizando, na abstração de um liberalismo contrariado na prática pelo confisco e pelo protecionismo alfandegário, a política tendente a aumentar o predomínio político desses privatismos sobre o conjunto da sociedade; a Agricultura detendo a hegemonia e a liderança do processo, sendo a Indústria mera caudatária sua; um Proletariado crescente, mas ainda não se constituindo em classe por falta de organização nacional; um Exército trabalhado pela insatisfação das cidades, mas incapaz de formular um Projeto nacional apto a arregimentar em torno de si as grandes camadas populares.


 

 

 

V — O ESTADO NOVO E A CLT

 

 

A Revolução de 1930 não foi a revolta da Indústria contra a Agricultura, embora tenha sido a revolução da Cidade contra o Campo, das grandes e frustradas massas urbanas jovens contra o aparelho jurídico-político que impedia sua ascensão política e sua influência na vida da “polis”. Foi uma revolução das camadas urbanas e da organização burocrática que é o Exército — mas se fez sob a hegemonia ainda persistente dos homens do Café em íntima associação com seus aliados das cidades, os industriais. Daí a solução dada ao problema econômico-financeiro — a qual, se por um lado, como acentua Celso Furtado, foi aquela que permitiu ao país recuperar-se da crise de 1929 mais rapidamente que outras nações, inclusive desenvolvidas, por outro ofereceu a possibilidade de manutenção da aristocracia cafeeira no poder.

É a circunstância de não ter sido, no plano econômico-social, uma Revolução, que explica a falência do movimento de 1930, o qual encontrara pela primeira vez, em virtude da instituição do serviço militar obrigatório, o povo praticamente em armas e não soube dirigi-lo para a realização de um grande projeto nacional — porque os civis buscavam as mesmas soluções que aqueles que tinham sido apeados, e o Exército não soube entender o seu momento. Foi o malogro da classe média que desejava se erguer contra o predomínio patriarcal do “ethos” rural, contra cujos aspectos mais superficiais já se havia rebelado em 1922, com a Semana de Arte Moderna.

Não se tendo equacionado o verdadeiro inimigo da Revolução e frustrada a possibilidade de dar aos cem mil civis que formaram com a Aliança Liberal (os números são do general Góes Monteiro) um Destino mais amplo que simplesmente substituir o presidente Washington Luís, os jovens não tiveram muito o que fazer. As associações revolucionárias que se constituíram após a entrada de Vargas no Rio de Janeiro, faltas de um apoio político do Governo Provisório (e talvez mesmo privadas dele por cálculo político frio) e de uma grande idéia diretora, cedo se estiolaram na luta de personalismos e a Nação, uma vez mais, refluiu para dentro de si, sendo a Juventude integrada, paulatinamente, nos velhos hábitos e modos de ser do passado que se pensara haver derrubado pelas armas. Os tenentes promoveram-se, e os jovens civis aderiram à mentalidade dominante. Aqueles que se recusaram a adaptar-se ao “status quo” continuaram a sua revolução — e desaguaram, uns, em 1935, e outros em 1938, quando se encerra a fase de fermentação revolucionária.

Não se deve esquecer que a Revolução de 30 é também o triunfo dos privatismos — pelo menos no momento em que vence, pois foram eles, exemplarizados na Federação, que a fizeram. Quando, trabalhada por dois elementos novos de capitai importância, aos quais se juntou a luta quadrissecular do Poder Central contra os privatismos regionais, a Revolução parece encaminhar-se para rumos outros que os desejados pelos que a haviam feito, há a Revolução de 1932, a qual permite a reversão do processo proposto em 30 e, nisso auxiliada historicamente pelo movimento comunista de 35, conduz inapelavelmente a 1937, conclusão histórica necessária do movimento iniciado em 30 com os tenentes-interventores.

Desse ponto de vista, a Revolução de 30 é bifronte como Janus: por um lado, é o desejo de retirar de São Paulo a direção política do Brasil, colocando-a em mãos de outros Estados (o que significa o entredevoramento dos privatismos), e por outro é a culminância da revolta de 22, a organização nacional do Exército tendendo a impor-se à desorganização política das classes, a qual colocava o Estado à mercê dcs privatismos regionais e não de grupos nacionalmente organizados para a defesa de seus interesses sócio-econômicos objetivos. A organização tenderia, mais uma vez, a triunfar sobre a desordem do privatismo e um coronel dirigiria durante anos, já como general, os destinos do Exército, desde 1893 a força hegemônica no terreno militar: Pedro Aurélio de Góes Monteiro.

 

OS ELEMENTOS NOVOS

 

Os dois elementos novos acima apontados são os seguintes:

1 — Com a Revolução de 30, houve a possibilidade de um grupo intelectual com uma clara visão do problema institucional do Brasil passar a influir sobre o Poder Central: o grupo civil liderado intelectualmente por Oliveira Vianna, e o grupo militar sob a condução, às vezes turva, mas, sempre conseqüente, de Góes Monteiro;

2 — A conduta do proletariado urbano, especialmente de São Paulo e do Rio de Janeiro, mais próximos do Poder, criando um problema novo para as classes dirigentes, o qual exigia solução pronta sob pena de as idéias políticas radicais em germe desde a “Coluna Prestes” se apoderarem do Exército e os tenentes realizarem um programa diverso daquele pretendido pelos setores dirigentes da sociedade brasileira.

O processo que se inicia com a revolução contra Washington Luís e Júlio Prestes, militarmente dirigida por Pedro Aurélio, e termina em 1945, com a deposição de Vargas por Góes Monteiro, marca, pela política fiscal e cambial adotada (embora sem consciência clara dos resultados finais que iria produzir), uma inversão do fluxo da renda, que passa dos fazendeiros do café para os industriais, acelerando o surto de industrialização de forma a comprometer a hegemonia da Agricultura. Todavia, as condições institucionais em que se deu essa transferência, associadas ao fato de a “maneira nobre de viver” ainda continuar marcando o pensamento e o modo de ser dos estratos urbanos superiores, impediram que a Indústria assumisse a hegemonia e a liderança do processo, sendo obrigada a partilhar uma e outra com a Agricultura e as duas a se submeterem ao Estado.

Por sobre as lutas internas no setor que fez a Revolução de 30, as quais conduziram, como vimos acima, a 32 e 37, há o esforço consciente de alguns grupos com o objetivo de realizar uma política anti-regionalista e antiprivativista. O grupo militar deseja fazer do Exército uma organização a serviço da política exterior do país, retirando-lhe as funções policiais que assumira desde há muito. Isso só seria possível pela diminuição da autonomia das milícias estaduais, tarefa que se por um lado foi facilitada pela Revolução paulista, por outro tornou-se possível pela circunstância de o grupo intelectual que influenciava o Poder Central pensar também em extinguir a Federação.

Desejando fortalecer o poder do Centro contra os privatismos regionais — a fim de permitir que a história brasileira reencontrasse o leito a duras penas cavado e mantido no II Reinado — e pretendendo que a participação dos vários grupos sociais no processo político se desse como conseqüência do amadurecimento de sua consciência social — da consciência da solidariedade dos interesses no campo da produção — o grupo civil pretende que através da ação do Estado se criem as classes sociais, de cuja luta, assim pensa, resultará a democracia.

 

A CLT

 

O esforço conjugado do grupo militar e do grupo civil leva por um lado à Carta de 37, de suma importância pelo aspecto unitário que lhe foi conferido pelas Leis Constitucionais subseqüentes: a Federação é extinta e o Poder Central, por ser ditatorial, passa a retirar sua legitimidade de elementos não racionais (Weber), e a repousar não no apoio dos segmentos privados, mas na boa disposição do Exército. Ele possui, portanto, as condições para realizar o desenvolvimento do país de acordo com a racionalidade que supõe deva impor-se. Por outro lado, essa conjugação de esforços, dando-se no quadro da reação neo-corporativista ao bolchevismo, conduz à Consolidação das Leis do Trabalho, pela qual as classes são burocraticamente organizadas e seus instrumentos de luta, os sindicatos, passam a ser órgãos de colaboração do Estado.

Assim, enquanto a ditadura permite teoricamente a desprivatização do Estado — rompendo um dos elementos componentes do Sistema anterior —, a CLT burocratiza os sindicatos e impede que a luta de classes se dê, com isso retirando do processo social livre (objetivo último de Oliveira Vianna), um dos seus componentes mais importantes, que é a agonia dos interesses sociais objetivamente diversos. A isso cabe acrescer que apesar de teoricamente estar dissociada dos privatismos, por depender não da Sociedade Civil, mas do Exército para se manter, a ditadura conserva ainda a forma presidencialista de governo, com o que o Estado se confunde com o Governo, e o chefe de Estado, também chefe de Governo, se vê, por essa identificação funesta, solicitado a atender aos reclamos dos setores sociais com posição política alta e, por via de conseqüência, dos privatismos, não podendo, por isso, ter a liberdade suficiente para propor ao Brasil a realização de um Destino consentâneo com seu Espaço.

Dessa forma, quando a distribuição da renda começa a favorecer o grupo industrial urbano, o Estado vai, pela organização burocrática do sindicalismo, retirar do processo social o único elemento transformador das técnicas e das relações de produção, o qual é a luta autônoma da classe operária por melhores salários reais e não meramente nominais. Identifica, ao nível governamental, os interesses políticos da liderança operária — cuja legalidade é burocrática e não orgânica — com os interesses sócio-econômicos da Indústria e, mais importante ainda, permite que o jogo político do sindicalismo ministerialista leve os dirigentes sindicais, os “pelegos”, a procurar no setor industrial o apoio e a proteção necessárias a defendê-los, quando é o caso, contra a ação do Ministério, dos quais são funcional e penalmente dependentes. A classe operária, assim, viu cortados pela base todos esforços que vinha fazendo desde os inícios do século para afirmar seu lugar ao sol; a cooperação necessária da liderança burocrática do proletariado com os capitães de indústria e os altos funcionários governamentais impediu que, apenas por sua organização, a classe adquirisse consciência de si, porquanto não tinha a possibilidade de identificar no empregador o Objeto que a negava enquanto Sujeito de um determinado processo de produzir e viver em conjunto.

O protecionismo que continuou caracterizando a política aduaneira do Estado Novo, juntamente com essa paralisação da luta social, permitiu que o Estado submetesse a seu controle toda a Indústria — controle acentuado pelo fato de a “maneira nobre de viver” haver impedido os industriais de pouparem de seus lucros para reinvestir numa taxa adequada às exigências nacionais e ter ao mesmo tempo capital de giro indispensável a que a Indústria se desenvolvesse autônoma, devendo buscá-lo no Banco do Brasil. O Estado, nessas circunstâncias, passou a ser o supridor desses capitais — e através desse mecanismo em que os prejuízos eram sempre computados à coletividade, fez da Indústria sua dependente e propôs-se a assumir claramente a hegemonia do processo.

Havia a Agricultura, que no entanto ainda conservava essa hegemonia por seus aspectos negativos: o “ethos” rural, a organização familiar patriarcal e o bacharelismo dos liberais e mesmo dos ditatoriais. Vencê-la, entretanto, na disputa pela liderança (sem afetar, no entanto, o fundamental de sua direcão, que era o “ethos”), não foi difícil. Tornada impossível, já na República Velha, a contratação de empréstimos externos pelos Estados para financiar a retenção do café (impossibilidade mais material que propriamente institucional), o regulador do comércio exterior voltou a ser integralmente o Poder Central. Era de suas decisões que dependia a Agricultura para sobreviver, muito embora ele fosse consciente de que sem o café os esforços de industrialização não poderiam ser levados avante pela inexistência de uma constante e sólida receita cambial. Ademais, se o fluxo da renda estava-se invertendo em favor do setor industrial, à Agricultura ainda era oferecida pelo Governo (apesar das expressas disposições em contrário da CLT) a possibilidade de acumular em níveis mais ou menos sempre estáveis pela não organização dos trabalhadores rurais, donde decorria a realidade de os industriais terem, embora burlando quando possível a determinação legal, de pagar salário mínimo, enquanto os fazendeiros a tal não eram obrigados pela inconsciência em que se achava a massa de seus direitos assegurados em Lei. Sendo os sindicatos oficiais, bastaria ao Poder de Estado havê-los organizado no campo para quebrar qualquer resistência da Agricultura — a ditadura não o fez, e o sacrifício da massa rural em troca do apoio da Agricultura ao Governo foi, assim, o instrumento de que se lançou mão para alcançar o objetivo colimado.

Assim se encerra em 1945 a segunda fase do Sistema: a Federação destruída, mas os privatismos ativos pela identificação entre Governo e Estado que a ditadura conservou; todas as classes, política, jurídica, econômica e administrativamente presas ao Estado, que é o grande distribuidor das benesses. A Indústria ganhando corpo, mas buscando seu espírito na Agricultura. O Exército incorporado conformadamente ao Sistema, e os jovens conspirando para restabelecer um regime sobre o qual a História havia proferido, há quinze anos, seu veredicto inapelável.


 

 

 

VI — A NAÇÃO SEM PROJETO

 

 

A redemocratização, em 1946, não alterou fundamentalmente os dados do problema. Há, sem dúvida, o retorno à Federação e a tentativa de formar — legalmente apenas — partidos nacionais, mas esses fatos são insuficientes para diminuir a preeminência do Estado e do Poder Central. É que a Federação renasce frágil, privada de muitos dos mecanismos que eram seus na República Velha, cerceada em seu poder militar pelo controle mais estrito que as Forças Armadas passaram a exercer sobre o armamento das milícias estaduais, e combalida pela inflação. Assim, não é mais inimigo a temer-se — desde que não se alie à força que sustenta o governo e o Estado, que é o Exército. Ao mesmo tempo, a inflação e a imprevidência da Indústria haviam permitido que o Estado paulatinamente se fosse tornando o grande empresário da Nação — fazendo que os trabalhadores das indústrias estatais, para-estatais e mistas, das autarquias e institutos se transformassem no grande “gado eleitoral do Estado”, vale dizer, no grande “gado eleitoral” dos partidos que controlavam o governo.

A racionalidade do processo industrial, no entanto, deveria levar à ruptura dessa estagnação e desse predomínio do “ethos” rural sobre o conjunto da sociedade — manifestado na organização da família e na maneira “nobre de viver” — pois uma indústria em expansão requer mercados para poder consolidar-se, os quais se conquistariam pela incorporação da Agricultura ao modo de produzir capitalista específico da Indústria em sua racionalidade típica. E assim deveria ter sido se as relações políticas estabelecidas entre os vários setores sociais não tivessem vindo entravar a perfeita colocação e solução do problema.

Vejamos, por um instante, como se apresenta o Sistema no fim do período Kubitschek — e se escolho esse período é porque nele as características do Sistema são mais marcadas e não tinha havido ainda a intromissão do elemento ideológico, que foi o ingresso do PC no governo.

1. A Agricultura está em franco declínio no seu processo de dominação, sendo forçada a conformar-se com uma participação menor na liderança política. Essa liderança é dividida entre a Indústria, que dela tem a porção maior, as Finanças, a Agricultura, o “pelegato” e os tecnocratas, que as necessidades do planejamento do desenvolvimento fizeram surgir como nova força na tomada de decisões. A estreita dependência em que todos esses setores se encontram do Estado, faz dele o elemento diretor da liderança, embora o governo esteja solidariamente ligado aos setores sociais de posição política relativa mais alta.

2. A Indústria não acompanha, pela sua visão do processo, a racionalidade econômica geral; favorece a inflação, que estimula o consumo de bens duráveis por parte da classe média e das elites proletárias e resolve a curto prazo alguns de seus problemas de financiamento, despreocupando-se do futuro por ter no Estado o sócio maior que lhe fornece o capital de giro indispensável numa espécie de resseguro contra a crise; os setores mais dinâmicos associam-se (participação de capital, ou know how) ao Exterior, mas todos, ou boa parte, trabalhando no mesmo regime inflacionário. Os tecnocratas que entrevêem o rumo a que a corrida inflacionária vai levar, não conseguem disciplinar as emissões em virtude da pressão do próprio governo e dos grupos industriais e financeiros nelas interessados.

3. A inflação, aumentando as distorções regionais, funciona como canal de suprimento de mão-de-obra barata e não organizada para a indústria. Ademais, não permite que se coloque perante a consciência da massa operária — dada a vinculação do “pelegato” ao aparelho de Estado e aos industriais da inflação — o problema da defesa dos salários reais, sempre confundido com aquele da recuperação do salário nominal. Essa defesa do salário real teria funcionado como elemento de modernização das técnicas e permitiria se vislumbrasse a racionalidade mais geral do modo produção capitalista, a qual era mister respeitar.

4. A inflação e a ação do Estado como supridor de capital de giro, além da função promocional do desenvolvimento, pela realização das grandes obras de infra-estrutura, não estimulam a concorrência entre os setores industriais, donde, ao lado do aparecimento de grupos privilegiados, que especulam com a inflação, a possibilidade do surgimento de um grande número de empresas que trabalham abaixo da produtividade média da indústria nacional (por sua vez em boa parte abaixo dos níveis médios mundiais), passando essa baixa produtividade a ser elemento de influência no mecanismo de formação de preços das grandes indústrias, que, ao invés de afastar as pequenas empresas não produtivas do mercado, mantém-nas para auferir maiores lucros.

Não há, dess’arte, elemento algum que force a expansão real do mercado interno pelo rompimento das relações de trabalho no campo e reformulação da política agrária nacional. Pelo contrário, satisfeita a necessidade de colocar alguns excedentes pela abertura de mercados internacionais, a massa da população urbana é capaz de absorver o aumento da produção, ou aquela que permanece estacionária.

Há, além disso, um outro elemento decisório na não formulação do problema da transformação do modo de produzir geral no campo: a consciência dos grupos políticos dirigentes — consciência não expressa — de que uma transformação das relações de trabalho no campo, acompanhada de um maior esclarecimento do eleitorado e de um aumento absoluto do corpo eleitoral nacional e relativo daquele dos Estados periféricos na constelação de poder brasileira, só será prejudicial ao controle do governo pelos setores dirigentes dos grandes Estados da Federação, exatamente aqueles onde a Indústria tem seu centro de expansão e a Agricultura o seu centro político, pois é onde se encontra o café.

A não diversificação ponderável da Agricultura como fator gerador de cambiais continua responsável pela solidariedade objetiva entre a Indústria e os homens do café, tal qual se apresentou concretamente com a República, pela necessidade de o governo atender, embora sempre menos, às exigências desse setor agrário, e pela impossibilidade de o Estado contra ele voltar-se abertamente sob pena de extinguir sua principal fonte de receitas cambiais e seu ponto de contacto com o Exterior (considerado o problema da perspectiva da economia e da política liberais que informam manifestamente o comportamento da classe política). É por isso que a Indústria, por uma parte, e o Estado, por outra, não podem propor a reforma agrária; e é por não poderem propô-la, conservando-se o sistema sindical tal qual o formulou o Estado Novo, que não há, na realidade política brasileira, elemento algum propulsor do desenvolvimento livre do país.

 

A ÚLTIMA FACE

 

Essa é a face última do Sistema quando as crises se precipitam com a renúncia de Quadros, o governo Goulart e o movimento de março de 1964: um emaranhado de interesses teoricamente postulados como contraditórios, os quais se tornam realmente solidários no campo do governo (confundido com o Estado pelo presidencialismo), embora essa confusão entre o “cérebro social” que é o Estado e seu executor, que é o governo, permita que esse utilize a força e o poder daquele para realizar objetivos próprios e personalizáveis, atendendo assim, em determinados momentos, aos interesses de um grupo contra os de outros.

O Sistema poderia ter sido rompido com o Estado Novo, não houvesse sido conservado o Presidencialismo e a liderança sindical não tivesse sido introduzida na antecâmara da Agricultura, da Indústria, das Finanças e do Comércio, fazendo que a classe teoricamente dada como a negação das demais a elas se vinculasse na defesa de posições políticas específicas do “pelegato”. Poderia ter sido rompido em 1946, não se tivesse restabelecido a Federação, mantido o Presidencialismo e conservado a estrutura sindical do Estado Novo. E deveria ter sido deitado abaixo em março de 1964, quando a ruptura da ordem política foi total.

Em nenhuma dessas três oportunidades que a História ofereceu ao Brasil para reencontrar seu Destino e forjar de seus milhões de habitantes uma Nação, a organização nacional sobre a qual repousava, pelo fato mesmo de ser a expressão da unidade nacional, o poder político e constituinte do país, soube entender o chamado do Destino. Em 1930, não tinha Projeto Nacional e entregou sua elaboração aos civis que buscavam entender a Nação, os quais se deixaram levar pelo modelo corporativo do sindicalismo fascista; em 1945, novamente sem Projeto, entregou aos civis liberais e antifascistas a tarefa de democratizar o país, e eles conservaram a estrutura fascista do sindicalismo estadonovista, além de imaginar que bastava entregar ao jogo dos partidos a condução da coisa pública para que a Nação se forjasse e se temperasse. Em 1964, descrentes do mundo civil, as Forças Armadas assumiram o Poder, dizendo-se representantes dos civis e recusaram-se a ver que elas eram, pela falência da Constituição de 1946, provada em 1954, 1955, 1961, 1962 e nos idos de março daquele ano, o único poder real do país. Nesse recusar-se a assumir a plena responsabilidade de seus atos, abrogaram, com o Ato Institucional n.° 2 a Constituição de 1946, vinte anos exatamente após a primeira destituição de Vargas, e em seu lugar não colocaram outra. Com isso, o Brasil não está, hoje, politicamente organizado, e a Nação não tem para onde ir.

Mas o Sistema continua intacto. E continua intocado, apesar de estar-se tentando estabelecer a racionalidade da economia, porque o movimento de março não percebeu que só será realmente uma Revolução capaz de promover o progresso econômico e social com liberdade no instante em que devolver à classe operária a sua condição de Sujeito de sua própria agonia, a qual lhe foi retirada pelo Estado Novo e a qual, até hoje, a Esquerda, a Direita e o Centro; os Civis e os Militares; a Indústria, a Agricultura, as Finanças e o Comércio teimam em não lhe devolver, consagrando o Sistema e impedindo a transformação social no Brasil.

 

N.B. — Publicado em 1966 — no ano seguinte, 1967, uma nova Constituição seria outorgada ao País — votada pelo Congresso, que sofrera os efeitos de cassações — esse estudo parece-me conservar, em 1985, sua atualidade. Faltaria sem dúvida ampliá-lo com um capítulo sobre “O triunfo final do Sistema”. As contribuições que enfeixo neste opúsculo, embora esparsas, cumprem essa função, pois o Sistema triunfou com a oligarquia e a Coisa Nossa.   O.S.F.


 

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