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ADEUS,
MR. CHIPS

James Hilton


 

Adeus, Mr. Chips - James Hilton
Tradução de Erico Veríssimo
Título do original inglês
Goodbye, Mr. Chips

Fonte digital
Digitalização de edição em papel
Livraria do Globo S.A.
Porto Alegre - 1941

Transcrição para eBook
eBooksBrasil

© 2008 James Hilton
USO NÃO COMERCIAL * VEDADO USO COMERCIAL

* * *


I

Quando vamos avançando em idade (mas de boa saúde, é claro) ficamos às vezes em estado de grande sonolência, e as horas parecem passar como um lerdo rebanho a se mover através da paisagem. Era o que acontecia com Chips, à medida que o trimestre de outono progredia e se encurtavam de tal modo os dias, que antes da chamada geral estava tão escuro que se podia acender o gás. Porque Chips, como esses velhos lobos do mar, media ainda o tempo pelos sinais do passado; e bem podia fazer isso, pois morava na casa da senhora Wickett, na frente da escola. Achava-se ali havia mais de uma década, desde que deixara definitivamente o magistério. Tanto ele como a senhoria observavam mais a hora de Brookfield que a de Greenwich.

— Senhora Wickett — cantarolava Chips, com sua voz espasmódica e aguda, que ainda conservava boa dose de vivacidade — podia me trazer uma chícara de chá antes da hora do estudo, sim?

Quando vamos avançando em idade é agradável ficar sentado ao pé do fogo, tomando uma taça de chá e escutando o sino da escola a dar os sinais: jantar, chamada geral, estudo, apagar as luzes... Chips sempre dava corda ao relógio após o último toque; punha a seguir o anteparo de tela diante do fogo, apagava o gás e levava para a cama uma novela policial. Raramente lia mais de uma página antes de adormecer: o sono chegava lépido e apaziguador e era mais uma intensificação mística da percepção do que qualquer entrada, rica de mudanças, num outro mundo. Porque os dias e as noites do professor estavam igualmente povoados de sonhos.

Chips ia avançando em idade (mas de boa saúde, é claro); com efeito, como afirmava o doutor Merivale, ele se achava em perfeita forma.

— Companheiro velho, você está em melhores condições que eu — dizia Merivale, bebericando o seu xerez, por ocasião das visitas quinzenais. — Você já passou da idade em que as pessoas adquirem essas doenças horríveis; é dos poucos felizardos que vão morrer verdadeiramente de morte natural. E isto se chegar mesmo a morrer, já se vê... Meu velho, com um tipo tão extraordinário como você, a gente nunca sabe...

Mas quando Chips apanhava um resfriado ou quando os ventos de leste uivavam por sobre os pantanais, Merivale às vezes chamava confidencialmente a senhora Wickett para o vestíbulo e lhe cochichava:

— Cuide do velho. O peito dele... está forçando muito o coração. Não que ele tenha mesmo alguma coisa de anormal... São os anno domini, só isso. Mas, no fim de contas, de todas as doenças essa é a mais fatal.

Anno domini... Céus! Mas, sim... O homem nascera em 1848 e fora à Grande Exposição nos seus passinhos incertos de bebê. Poucas eram as pessoas vivas que se podiam vangloriar de ter feito o mesmo. Além do mais, Chips lembrava-se até de Brookfield nos tempos de Wetherby. Um fenômeno, isso. Naquela época — 1870 — Wetherby já estava velho; era fácil a gente lembrar-se dele por causa da guerra franco-prussiana. Chips candidatara-se a um lugar em Brookfield, depois de passar um ano em Melbury, onde, muito azucrinado, não se dera bem. Mas de Brookfield ele gostara quase desde o princípio. Lembrava-se de sua entrevista preliminar — num dia de julho, claro de sol, cheio o ar do perfume das flores e do plic-ploc que vinha do campo de cricket. Brookfield jogava com Barnhurst e um dos rapazes de Barnhurst, um sujeitinho rechonchudo, fizera uma brilhante arremetida de cem jardas. Era estranho que uma coisa como essa lhe ficasse tão claramente na memória. O próprio Wetherby se mostrara muito paternal e cortês, devia estar doente naquela época, pobre homem, pois morrera durante as férias de verão, antes de Chips começar o primeiro período letivo. Mas, fosse como fosse, ambos se haviam visto e falado. Sentado ao pé do fogo, na casa da senhora Wickett, Chips muita vez pensava: Sou provavelmente o único homem no mundo que tem uma lembrança bem viva do velho Wetherby... Viva, sim; era um quadro freqüente em seu espírito, aquele dia de verão com a luz do sol a se filtrar através da poeira, no gabinete de Wetherby.

— O senhor é moço, Mr. Chipping, e Brookfield é uma velha instituição. Mocidade e velhice por vezes se casam bem. Dê o seu entusiasmo a Brookfield e Brookfield em troca lhe há de dar alguma coisa. E não permita que ninguém lhe pregue peças. Eu... aaa... estou informado de que a disciplina não era o seu forte em Melbury, hein?

— É, sim, senhor. Talvez não fosse.

— Não importa. O senhor está em plena juventude. Isso em grande parte é questão de experiência. Aqui terá uma nova oportunidade. Assumir desde o princípio uma atitude firme, eis o segredo.

Talvez fosse mesmo. Chips lembrava-se da tremenda provação que lhe fora o tomar conta dos alunos na hora de estudo. Mais de meio século atrás, num anoitecer de setembro. O Salão Geral apinhado daqueles bárbaros cheios de exuberância, prontos a aferrar-lhe as garras, como numa presa legítima. De cútis fresca, colarinho alto e suíças (esquisitas, as modas daquele tempo), sua mocidade ali ficou à mercê de quinhentos brutamontes sem princípios, para quem o atormentar os professores novatos era uma bela-arte, um esporte excitante e uma espécie de tradição. Como indivíduos, os marotos eram tipos decentes, mas em multidão tornavam-se simplesmente cruéis e implacáveis. O súbito silêncio que se fez quando tomou o seu lugar à mesa, em cima do estrado; o ar carrancudo que assumiu para esconder o nervosismo interior; o tique-taque do relógio alto atrás dele, o cheiro de tinta de escrever e de verniz; os últimos raios de sol, dum vermelho de sangue, entrando em fitas oblíquas através das janelas de vidro-corado... Alguém deixou tombar a tampa da carteira... Rápido! Ele precisava apanhar todos de surpresa: tinha de mostrar que não era nenhum tolo.

— Você aí na quinta fila... O de cabelo ruivo. Como é o seu nome?

— Colley, professor.

— Muito bem, Colley, escreva cem linhas.

Depois disso, nenhum distúrbio mais. Chips tinha vencido o primeiro round.

E, anos mais tarde, já vereador da Cidade de Londres, baronete e várias outras coisas, Colley mandaria o filho (também ruivo) para Brookfield e Chips lhe diria:

— Colley, seu pai foi o primeiro aluno que puni quando aqui cheguei há vinte e cinco anos. Foi um castigo merecido como o que lhe vou infligir agora.

Como todos riram; e como Sir Richard riu, quando o filho lhe contou a história na carta que escreveu para casa no domingo seguinte!

E da outra vez, anos, muitos anos depois disso, a pilhéria foi ainda melhor. Porque acabava de chegar um outro Colley — filho do Colley que era filho do primeiro Colley. E, pontilhando as suas observações com os pequenos “am” que se lhe tinham tornado um hábito, Chips disse:

— Colley, você — am — é um esplêndido exemplo de — am — tradições herdadas. Lembro-me de que seu avô — am — nunca pôde compreender o ablativo absoluto. Um tipo obtuso, seu avô. E seu pai — am —.... também me lembro dele, costumava sentar-se lá no fundo naquela carteira junto da parede — seu pai não era muito melhor. Mas eu acredito, meu caro Colley, que você — am — é o mais tolo de todos!.

Risos estrepitosos.

Boa pilhéria, essa de envelhecer, mas uma pilhéria triste também, sob certos aspectos. E, sentado junto de seu fogo, enquanto os ventos do outono faziam tremer as vidraças, Chips sentia-se arrebatado muitas vezes por essas ondas de recordações alegres e tristes, que acabavam por lhe provocar lágrimas. Assim, ao entrar com a chícara de chá, a senhora Wickett não ficava sabendo se o velho estivera a rir ou a chorar. Nem o próprio Chips o saberia dizer.

* * *


II

Do outro lado da rua, por trás dum baluarte formado de olmos antigos, ficava Brookfield, dum pardo avermelhado sob o seu manto outonal de trepadeiras. Um grupo de edifícios do século dezoito, no centro dum quadrilátero; para além dele se estendiam os campos de jogos; vinha depois a pequena povoação dependente da escola e por fim o campo aberto, de pantanais. Brookfield, como dissera Wetherby, era uma velha instituição. Estabelecida no reinado de Elisabeth como uma escola secundária, ter-lhe-ia sido possível, com melhor sorte, tornar-se tão famosa quanto Harrow. Sua fortuna, entretanto, não fora tão boa assim; a escola tivera altos e baixos, numa ocasião chegara quase a um estado de não-existência, aproximando-se doutra feita da notoriedade. Foi durante um destes últimos períodos, no reinado do primeiro George, que se reconstruiu a estrutura principal e que se fizeram grandes aumentos. Mais tarde, depois das guerras napoleônicas e até meados da era vitoriana, a escola tornou a declinar, tanto em matrícula como em reputação. Wetherby, que ali chegara em 1840, restaurou-lhe de certo modo a fazenda; mas a história subseqüente da casa nunca a elevou a uma posição de primeira fila. Era, não obstante, uma boa escola de segunda categoria. Mantida por várias famílias notáveis, forneceu razoáveis espécimes de homens que fizeram época no século — juízes, membros do Parlamento, administradores coloniais, alguns pares e bispos. Em maior cópia, entretanto, dava ela comerciantes, industrialistas, homens de profissão liberal e uma boa dose de morgados e sacerdotes. Era dessas espécies de escolas que, quando mencionadas em palestra, fazem às vezes que as pessoas confessem: “Creio que esse nome não me é estranho...”

Mas, se Brookfield não fosse um estabelecimento dessa categoria, provavelmente não teria contratado Chips. Porque Chips, em qualquer sentido social ou acadêmico, era tão respeitável quanto a própria Brookfield, conquanto não mais brilhante que esta.

No princípio levara algum tempo para perceber isso. Não porque fosse jactancioso e presumido, mas acontecia que, quando na casa dos vinte, alimentara as ambições da maioria dos outros moços dessa idade. Sonhava conseguir um eventual cargo de diretor ou pelo menos uma cadeira em alguma escola realmente de primeira classe. Foi só aos poucos, depois de repetidas tentativas e fracassos, que ele compreendeu a insuficiência de suas habilitações. Suas credenciais, por exemplo, não eram particularmente boas, e sua disciplina, conquanto bastante apreciável, e em via de aperfeiçoamento, não era, dum modo absoluto, digna de confiança sob todas as condições. Chips não tinha bens particulares e nem ligações de família de qualquer importância. Por voltas de 1880, depois duma estadia de dez anos em Brookfield, começou a reconhecer que as probabilidades de melhorar de vida se se mudasse para outro lugar eram absolutamente nulas. Mas também por esse tempo a possibilidade de permanecer onde estava começou a ocupar-lhe um confortável lugar no espírito. Aos quarenta, achava-se ele enraizado, estabelecido e completamente feliz. Aos cinqüenta, era decano do corpo docente. Aos sessenta, sob as ordens dum novo e jovem Diretor, ele era Brookfield; o convidado de honra dos jantares dos velhos Brookfieldianos, a corte de apelação em todos os assuntos referentes à história e à tradição de Brookfield. E em 1913, ao completar sessenta e cinco anos, aposentou-se. Ganhou de presente um cheque, uma escrivaninha e um relógio, e atravessou a rua para ir morar na casa da senhora Wickett. Uma carreira decente, decentemente encerrada; três vivas para o velho Chips, gritaram todos naquele ruidoso jantar de fim de ano letivo.

Com efeito, três vivas; mas outros mais viriam, um epílogo insuspeitado, um bis dedicado a um auditório trágico.

* * *


III

O quarto que a senhora Wickett lhe alugou era pequeno, porém mui confortável e claro. A casa mesma era feia e pretensiosa; mas isso não importava; era conveniente, aí estava o principal. Porque, se era doce o tempo, Chips gostava de ir à tarde aos campos de esporte, em repousado passeio, a olhar os jogos. Achava prazer em sorrir e trocar umas poucas palavras com os rapazes que o cumprimentavam, tocando nos gorros. Punha especial empenho em travar conhecimento com os alunos novos e em levá-los a tomar chá em sua residência, durante o primeiro período. Pedia sempre à confeitaria Reddaway da povoação, um bolo de nozes com açúcar cristalizado cor-de-rosa; durante o período de inverno tinha também torradas numa pequena pilha diante do fogo, tão embebidas de manteiga que a bem debaixo ficava num raso lago miniatural. Os convidados de Chips divertiam-se vendo o velho fazer chá — misturando cuidadosas colheradas que tirava de diferentes latas. Perguntava aos alunos novos onde moravam e se tinham parentes em Brookfield. Mantinha-se vigilante para que nunca o prato dos rapazes ficasse vazio e, às cinco em ponto, depois de a reunião se ter prolongado por uma hora, lançava rápido olhar para o relógio e dizia:

— Bom — am — foi muito agradável esta — am — reunião, sinto muito — am — mas vocês não podem ficar...

Sorria, apertava-lhes as mãos no alpendre, deixando depois que atravessassem a rua a correr rumo da escola, com os seus comentários.

— Bom sujeito, esse Chips. Dá-nos um excelente chá e a verdade é que sempre se sabe quando ele quer que a gente dê o fora.

Chips também ficava a fazer seus comentários para a senhora Wickett, quando ela entrava no quarto para tirar da mesa os restos da festa.

— Uma reunião — am — muito interessante, senhora Wickett. O jovem Branksome me contou — am — que é sobrinho do Major Collingwood, o Collingwood que tivemos aqui na escola em novecentos e dois, se não me falha a memória. Valha-me Deus!, lembro-me muito bem de Collingwood. Uma vez dei-lhe umas palmadas — am — por ele ter subido ao telhado da sala de ginástica para tirar uma bola da goteira. Podia ter — am — quebrado o pescoço, o maluquinho. Lembra-se dele, senhora Wickett? Deve ter sido de seu tempo.

Antes de ter feito economias, a senhora Wickett tomava conta da rouparia da escola.

— Sim, esse eu conheci, professor. Por sinal era quase sempre muito maroto p’ra mim. Mas nunca tivemos nenhum bate-boca. Só maroteiras. Ele não fazia por maldade. Meninos assim nunca fazem, professor. Não foi ele que ganhou uma medalha?

— Sim, recebeu uma condecoração da “Distinguished Service Order”.

— O senhor vai querer mais alguma coisa?

— Agora, nada mais, — am — até a hora do culto. O major foi morto... no Egito, creio... sim — am — a senhora pode me trazer uma sopa um pouco antes de eu sair para a capela.

— Sim, senhor.

Uma vida plácida e agradável, a que ele levava na casa da senhora Wickett. Não tinha aborrecimentos; recebia uma pensão suficiente e além disso economizava algum dinheiro. Podia comprar o que queria ou viesse a querer. Tinha o quarto mobilado com simplicidade e com um gosto de mestre-escola; umas poucas prateleiras com livros e troféus de esporte; sobre o console da chaminé, viam-se cartões que ele guardava como lembranças e fotografias autografadas de meninos e homens; um surrado tapete turco; grandes cadeiras preguiçosas; na parede, quadros da Acrópole e do Fórum. Quase tudo tinha vindo de seu quarto de Brookfield, no tempo em que ele cuidava do internato. Os livros em sua maioria eram clássicos, porque essa era a matéria de Chips; entretanto, havia também um pouco de história e belas-letras. Na divisão bem debaixo empilhavam-se novelas policiais. em edições baratas. Chips gostava delas. Tirava às vezes da prateleira Virgílio ou Xenofonte e lia-os por alguns momentos, mas em breve voltava ao Doutor Thorndyke ou ao Inspector French. A despeito dos longos anos de assídua atividade didática, não era um profundo cultor dos clássicos. Na realidade achava que o latim e o grego eram mais línguas mortas das quais os gentlemen ingleses devem aprender algumas frases, do que línguas vivas que um dia tivessem sido faladas por pessoas vivas. Gostava desses artigos do Times em que vinham citações que ele reconhecia. Achar-se entre o minguado número das pessoas que compreendiam essas coisas era para ele uma espécie de maçonaria secreta e valiosa; isso representava, sentia ele, um dos principais benefícios que se podem tirar duma educação clássica.

E assim vivia Chips, na casa da senhora Wickett, com seus plácidos prazeres da leitura, da conversa e das recordações. Velho, de cabeça branca e um nadinha calvo, ainda apreciavelmente ativo para a sua idade, lá estava ele a beber chá, a receber visitas, a ocupar-se com as correções para a próxima edição do Guia de Brookfield, e a escrever suas cartas ocasionais com uma letra esguia e cheia de rabiscos, mas muito legível. Tinha agora para o chá novos mestres, bem como novos alunos. Naquele trimestre de outono, quando certo dia dois professores deixavam a sua casa, depois da visita, um deles comentou:

— Um belo caráter, esse velhote, não? E que alvoroço ele faz para misturar o chá. Um solteirão típico, como talvez não haja outro.

Observação estranhamente incorreta; porque Chips não era absolutamente um solteirão. Casara-se; mas fazia tanto tempo, que nenhum membro do corpo-docente de Brookfield podia lembrar-se de sua mulher.

* * *


IV

Despertadas pelo calor do fogo e pelo suave aroma do chá, vieram-lhe milhares de recordações emaranhadas dos velhos tempos. Primavera — a primavera de 1896. Tinha Chips quarenta e oito anos, uma idade em que uma permanência de hábitos começa a se fazer predizível. Acabava de ser nomeado diretor do internato; com isso e com suas aulas de clássicos ele tinha arranjado na vida um lugarzinho confortável e movimentado. Durante as férias de verão, subiu Chips ao Lake District com Rowden, um colega seu; caminharam e escalaram montanhas uma semana inteira, até que Rowden teve de partir subitamente por causa de assuntos de família. Chips ficou sozinho em Wasdale Head, onde se hospedou em pequena granja. Um dia, escalando o Great Gable, deu com uma rapariga que acenava excitadamente do alto dum recife de aspecto perigoso. Julgando-a em dificuldades, Chips precipitou-se na direção dela mas, ao fazer isso, escorregou e deslocou o tornozelo. Acontecia que a moça não se achava absolutamente em apuros, mas estava apenas a fazer sinais para uma amiga lá em baixo na encosta da montanha. Tratava-se duma alpinista experimentada, muito melhor que Chips, que já era bastante bom. Foi assim que ele se viu na posição de socorrido em vez de na de socorredor; e para nenhum desses dois papéis tinha Chips muito gosto. Porque, como ele próprio dizia sempre, não fazia caso das mulheres; nunca se sentia bem ou à vontade na companhia delas. E aquela criatura monstruosa a respeito de quem se começava a falar — a Mulher Nova do fim do século — enchia-o de horror. Era ele uma pessoa tranqüila e convencional e o mundo, olhado do seu refúgio de Brookfield, parecia-lhe cheio de inovações intragáveis. Havia um sujeito chamado Bernard Shaw que tinha as opiniões mais estranhas e censuráveis; havia também um tal Ibsen, com suas peças perturbadoras; e ainda aquela mania doida pela bicicleta que se estava apoderando tanto dos homens como das mulheres. Chips não concordava com todas essas novidades e liberdades modernas. Tinha a vaga noção, talvez jamais formulada, de que as mulheres deviam ser frágeis, tímidas e delicadas e que os homens deviam tratá-las com um cavalheirismo polido mas um pouco distante. Não esperava, portanto, encontrar uma mulher no Great Gable; mas como se lhe tivesse deparado uma que lhe pareceu necessitar de apoio masculino, o mais horrível ainda foi que os papéis se invertessem e viesse ela socorrê-lo. Porque isso foi o que a moça fez. Ela e a amiga. Chips mal podia caminhar e difícil tarefa foi fazê-lo descer a íngreme trilha que levava a Wasdale.

Chamava-se Katherine Bridges; com os seus vinte e cinco anos, bem podia ser filha de Chips. Tinha olhos azuis e fulgurantes, faces pintalgadas de sardas e cabelos lisos cor-de-palha. Achava-se também hospedada na granja, gozando férias em companhia da amiga. Como se considerasse responsável pelo acidente de Chips, costumava montar na sua bicicleta e, perlongando a margem do lago, ir até a casa onde aquele tranqüilo senhor de ar sério se encontrava em repouso. Foram estas as suas primeiras impressões dele. E Chips, porque a visse andar de bicicleta a visitar sozinha e sem medo um homem na sala duma casa de campo, ficou a fazer reflexões sobre os rumos que o mundo ia tomar. A luxação de Chips pô-lo à mercê da rapariga. E em breve ele havia de ter a revelação do quanto podia precisar daquela mercê. Miss Bridges era uma governanta em disponibilidade e senhora de pequenas economias; lia e admirava Ibsen; acreditava em que as mulheres deviam ser admitidas nas Universidades; achava mesmo que deviam ter o direito de voto. Em política, era radical com inclinações pelas doutrinas de homens como Bernard Shaw e William Morris. Durante aquelas tardes de verão em Wasdale Head, ela expôs livremente a Chips todas as suas idéias e opiniões. E ele, que não era muito palrador, a princípio achou que não valia a pena contradizê-la. A amiga de Katherine Bridges foi embora, mas ela ficou. Que é que a gente pode fazer com uma criatura assim? — pensou Chips. Apoiado em bastões, costumava sair a manquejar pela estrada que conduzia à minúscula igreja. Havia uma prancha de pedra junto da parede e era agradável ficar sentado ali, com o rosto voltado para a luz do sol e para a majestade pardo-esverdeada do Gable, a escutar a charla duma — certo, Chips tinha de reconhecer — duma linda moça.

Nunca encontrara ninguém como ela. Sempre achava que o tipo moderno, aquela história de “mulher nova”, havia de causar-lhe repulsa. E lá estava Miss Bridges a fazer que ele ficasse positivamente ansioso por avistar a sua bicicleta baixa a correr pela estrada que beirava o lago. Ela por sua vez não conhecia ninguém como ele. Achara sempre que esses senhores de meia-idade que lêm o Times e não aprovam as coisas modernas, são terríveis maçadores; no entanto lá estava Chips, a atrair-lhe a atenção e o interesse mais do que muitos moços da idade dela. Miss Bridges gostava de Mr. Chipping, inicialmente porque ele era tão difícil de se conquistar, porque tinha maneiras tranqüilas e delicadas, porque suas opiniões datavam daquela incribilíssima época da casa dos setenta e dos oitenta no século passado e mesmo de antes, nas opiniões, entretanto, que por tudo isso mesmo eram absolutamente honestas; e porque — porque seus olhos eram castanhos e ele ficava encantador quando sorria.

— Está claro que eu vou te tratar por Chips também — declarou ela quando soube que era esse o seu apelido na escola.

Dentro de uma semana estavam perdidamente enamorados um do outro; antes de Chips poder caminhar sem a ajuda de bengalas, eles se consideraram noivos. Casaram-se em Londres uma semana antes do princípio do trimestre de outono.

* * *


V

Quando Chips, sonhando através das horas na casa da senhora Wickett, relembrava esses dias, costumava baixar os olhos para os pés e perguntar a si mesmo qual deles lhe teria prestado um serviço tão assinalado. Essa, a causa trivial de tantos acontecimentos momentosos, era a única coisa cujos detalhes lhe fugiam. Mas ele reviu a corcova gloriosa do Gable (depois daquelas férias nunca mais tornara a visitar Lake District) e as profundidades dum opaco amarelo-avermelhado da Wastwater, sob os Taludes. Podia até sentir de novo o cheiro do ar lavado depois do forte aguaceiro, seguir outra vez a trilha, estreita como uma fita, que atravessa o passo rumo de Sty Head. E com que clareza lhe vinha à mente, em demorada visita, aquele tempo de estonteante felicidade, aquelas lentas caminhadas à beira do lago, a fresca voz da rapariga, a sua risada alegre... Ela sempre fora uma criatura muito feliz. Juntos e com grande ardor ambos haviam feito planos de futuro; mas ele se mostrara um tanto grave a esse respeito e até mesmo um pouco receoso. Ela iria para Brookfield, claro, e tudo correria muito bem; havia outros professores internos também casados. Kathie declarara que gostava de crianças e teria prazer em viver no meio delas.

— Oh, Chips, estou tão contente por seres o que és! Eu temia que fosses um corretor, um procurador, um dentista ou um grande negociante de algodão em Manchester. Quero dizer; quando te vi pela primeira vez... Lecionar é tão diferente, tão importante, não achas? Exercer influência sobre essas criaturinhas que vão crescer e ter importância no mundo...

Chips disse que não tinha encarado o assunto por esse lado — ou, pelo menos, não pensava nisso com freqüência. Esforçava-se o mais possível; era tudo que uma pessoa podia fazer em qualquer profissão.

— Sim, Chips, naturalmente. Eu te amo, e muito, por dizeres coisas simples assim.

E certa manhã — outra lembrança duma limpidez de jóia — afligia-o por qualquer razão um agudo desejo de se depreciar a si mesmo e a todas as suas realizações. Contou a Kathie de seus estudos medíocres, de suas dificuldades ocasionais em matéria de disciplina, da certeza de que nunca seria promovido, e de sua completa inelegibilidade para marido de uma mulher jovem e ambiciosa. E, ao cabo de toda a conversa, a única resposta de Kathie tinha sido uma risada.

Como Miss Bridges não tivesse pai nem mãe, o casamento se fez na casa de sua tia, em Ealing. Na noite anterior, quando Chips se despedia da noiva para voltar ao hotel, ela lhe disse com fingida gravidade:

— Este é um momento solene, tu compreendes... O nosso último adeus. Eu me sinto mais ou menos assim como um aluno no primeiro dia de aula contigo. O que tenho não é medo, note bem, mas apenas respeito, muito respeito. Devo dar-te senhoria? Ou o direito será dizer “Mr. Chips?” Acho que “Mr. Chips” fica melhor. Adeus, então. Adeus, Mr. Chips...

(Um coche fazendo clop-clop no chão da rua; lâmpadas a gás dum verde pálido, a lançar reflexos trêmulos nas calçadas úmidas; jornaleiros gritando alguma coisa sobre a África do Sul; Sherlock Holmes em Baker Street)

“Adeus, Mr. Chips...”

* * *


VI

Seguira-se então uma época de tanta felicidade que Chips, relembrando-a muito tempo depois, mal podia acreditar que tivesse havido outra assim na história do mundo. Porque seu casamento foi um triunfante sucesso. Katherine conquistou Brookfield como havia conquistado Chips; era imensamente popular tanto entre os rapazes como entre os professores. Até mesmo as esposas destes últimos, tentadas de início a ter ciúmes duma criatura tão moça e deliciosa, não puderam por muito tempo resistir-lhe aos encantos.

O mais notável de tudo, porém, foi a mudança que Katherine operou em Chips. Antes do casamento era ele uma dessas pessoas secas e um tanto neutras; Brookfield, dum modo geral, tinha-o em boa conta e estima, mas não era Chips desses tipos que conseguem grande popularidade ou despertam funda afeição. Fazia mais de um quarto de século que ele estava em Brookfield, tempo suficiente para se impor como um sujeito decente e um grande trabalhador, mas tempo bastante, também, para que qualquer um visse que ele não era capaz de muito mais. De fato Chips já tinha começado a afundar na pútrida estagnação de certo método pedagógico que é a suprema e a mais traiçoeira armadilha da profissão. O hábito de repetir as mesmas lições ano após ano havia como que formado um sulco dentro do qual os outros assuntos de sua vida se ajustavam com insidiosa facilidade. Chips trabalhava bem; era conciencioso: algo de permanente que prestava serviços, despertava confiança, dava satisfação, dava tudo, menos inspiração.

Surgira então aquela surpreendente e jovem esposa que ninguém, e Chips muito menos que qualquer outro, esperava. A julgar por todas as aparências, a criatura fizera dele um homem novo, embora a maior parte da novidade consistisse realmente num reaquecimento que despertava para a vida coisas velhas, prisioneiras e insuspeitadas. Os olhos de Chips ganharam fulgor; o espírito, que estava equipado de maneira conveniente, senão brilhante, começou a se mover mais aventurosamente. Sua veia humorística, coisa que sempre tivera, florescera numa súbita riqueza a que a idade emprestava madureza. Começou ele a sentir uma força maior; sua disciplina melhorou, indo até um ponto no qual se podia tornar, em certo sentido, menos rígida; o homem tornou-se mais popular. Quando chegara pela primeira vez a Brookfield trazia um objetivo: ser amado, honrado e obedecido — mas obedecido fosse como fosse. A obediência, tinha-a ele assegurada; a honra lhe fora conferida; mas só agora vinha o amor, o repentino amor dos rapazes por um homem que era bondoso sem ser fraco, um homem que os compreendia bastante bem, mas não em excesso, e cuja felicidade particular o ligava à deles próprios. Chips começou a dar pequenas piadas, dessas que os alunos gostam — expressões mnemônicas e trocadilhos que provocavam riso e ao mesmo tempo gravavam alguma coisa no espírito. Havia uma que nunca deixava de agradar, embora fosse apenas um exemplo de muitas outras. Sempre que em suas aulas de História de Roma tinha de falar na Lex Canuleia, a lei que permitia o casamento entre patrícios e plebeus, Chips costumava acrescentar:

— Desse modo, vocês vêem, se a senhorita Plebe queria que o senhor Patrício casasse com ela e ele declarava que não podia, a moça provavelmente exclamava: “Por Vulcano... leia a lei!”

Risadas estrepitosas.

E Kathie alargou as perspectivas e as opiniões de Chips, dando-lhe também um campo de visão que ia muito além dos telhados e torreões de Brookfield, de sorte que ele via sua pátria como uma espécie de lago profundo e cheio de graça, do qual Brookfield não era senão um dos muitos tributários. Era ela mais inteligente que ele e Chips não lhe podia refutar as idéias nem mesmo quando discordava delas. Permaneceu, por exemplo, conservador em política, a despeito de todas as dissertações radical-socialistas da esposa. Mas, mesmo quando não aceitava, ele absorvia; o idealismo jovem de Kathie contagiava-lhe a maturidade, produzindo um amálgama muito suave e sábio.

Às vezes ela o convencia de maneira completa. Brookfield, por exemplo, mantinha no East End de Londres u’a missão para a qual os alunos e seus pais contribuíam generosamente com dinheiro mas raramente com contacto pessoal. Katherine sugeriu que um team da missão viesse a Brookfield jogar com um dos quadros de futebol da Escola. A idéia era tão revolucionária que, se houvesse partido de outra pessoa, não teria sobrevivido ao gelo com que de início foi recebida. Introduzir um grupo de filhos de proletários, nos agradáveis domínios de rapazes duma classe mais rica, pareceu a princípio o mesmo que provocar uma agitação capaz de trazer à tona um mundo de coisas que era melhor ficassem no fundo, esquecidas.

O corpo docente inteiro manifestou-se contra a idéia e a Escola, se fosse consultada, seria provavelmente da mesma opinião. Toda a gente estava convencida de que os rapazes do East End londrino eram garotos desordeiros, ou então de que iam sentir-se constrangidos; fosse como fosse, sobreviriam “incidentes”, haveria confusão e transtorno. Mesmo assim Katherine insistiu:

— Chips, eles estão errados, tu sabes, e quem tem razão sou eu. Estou com os olhos no futuro, tu e eles estão de olhos voltados para o passado. A Inglaterra não vai ficar eternamente dividida em “oficiais” e “outros postos”. E esses rapazes de Poplar são tão importantes para a Inglaterra quanto Brookfield. É preciso trazê-los para cá, Chips. Não podes satisfazer tua conciência assinando um cheque de alguns guinéus e conservando-os à distância. Além do mais, eles têm por Brookfield o mesmo orgulho que tu tens. Daqui a anos, talvez, os rapazes como esses hão de vir para cá, pelo menos alguns deles. Por que não? Por que não, mesmo? Chips, meu querido, lembra-te de que estamos em mil oitocentos e noventa e sete e não sessenta e sete, quando te achavas em Cambridge. Naquele tempo vocês se apegavam muito às idéias... muitas delas por sinal eram boas... Mas há algumas — só algumas, Chips — que precisamos abandonar...

Com uma tal ou qual surpresa, ela o viu de súbito ceder e tornar-se um ardoroso advogado da idéia. A reviravolta foi tão completa, que as autoridades foram apanhadas de surpresa e acabaram por consentir na perigosa experiência. Os rapazes de Poplar chegaram a Brookfield numa tarde de sábado, jogaram futebol com o segundo team da escola, foram honrosamente derrotados por sete a cinco e depois tomaram um substancioso lanche com chá em companhia da equipe local, no Refeitório. Foram depois apresentados ao Diretor, visitaram o edifício da Escola e Chips à noite foi despedir-se deles à estação. Tudo se passara sem a menor dificuldade, fosse qual fosse, fez-se evidente que os visitantes levavam uma impressão tão boa quanto a que haviam deixado.

Foi com eles também a lembrança duma senhora encantadora que os acolhera, que lhes falara. E certa vez, anos mais tarde, durante a Guerra, um soldado que se achava num grande acampamento militar perto de Brookfield, visitou Chips e lhe contou que fizera parte do primeiro team de visitantes. Chips ofereceu-lhe chá e palestrou com ele até que por fim, apertando-lhe a mão, o homem perguntou:

— E como vai a patroa, professor? Lembro-me muito bem dela.

— Lembra-se mesmo? — avançou Chips vivamente. — Lembra-se dela?

— Então? Quem não havia de se lembrar?...

E Chips:

— Eles não se lembram, sabe? Pelo menos aqui. Os rapazes vêm e se vão, sempre novas caras, as lembranças não perduram. Nem mesmo os professores ficam para sempre. Desde o ano passado, quando o velho Gribble se aposentou... ele é o... am... o ecônomo da escola... desde o ano passado não há aqui ninguém que tenha conhecido minha senhora. Ela morreu, sabe?, pouco menos de um ano depois da visita de vocês. Foi em noventa e oito.

— Eu não sabia, professor. Sinto muito... Seja como for, tenho dois ou três camaradas que, apesar de terem visto a sua senhora só aquela vez, ainda se lembram dela muito bem. Sim senhor, nós nos lembramos dela bem direitinho.

— Fico muito contente... Aquele foi um grande dia para todos nós... e um grande jogo, também.

— Um dos dias melhores de toda a minha vida. Eu preferia estar naquele tempo e não agora, palavra de honra. Vou embarcar amanhã para a França.

Mais ou menos um mês depois desse encontro, Chips ouviu dizer que o rapaz havia tombado morto em Passchendaele.

* * *


VII

E lá estava aquela fase de sua vida, como um foco ardente e vivo, a lançar uma radiação feita de mil recordações. À hora de crepúsculo, na casa da senhora Wickett, o sino da escola a badalar anunciando a chamada — trazia à mente de Chips, numa nuvem, estes quadros: Kathie a precipitar-se pelos corredores de pedra; Kathie a rir, a seu lado, de alguma “rata” numa redação que ele está corrigindo; Kathie tirando a parte do violoncelo dum trio de Mozart para o concerto da Escola, o seu braço cor-de-creme passado por sobre o lustro pardo do instrumento. Ela era uma bela musicista e uma boa intérprete. Chips revia também Katherine toda abrigada em peles para assistir aos jogos internos de dezembro; Katherine no garden party que se seguiu à cerimônia da entrega dos prêmios; Katherine oferecendo o seu conselho em qualquer probleminha que surgia... E bom conselho, por sinal — conselho que nem sempre ele aceitava, mas que sempre exercia influência em seu espírito.

— Chips querido, eu lhes perdoava, se fosse tu. No fim de contas não se trata de nada muito sério.

— Eu sei. Gostaria de perdoar-lhes, mas receio que eles reincidam.

— Procura explicar-lhes com franqueza, e dá-lhes uma oportunidade.

— Eu podia fazer isso.

E, uma vez ou outra, havia coisas que eram mesmo sérias.

— Tu sabes, Chips, pensando bem, não é natural ter tantas centenas de rapazes engaiolados dessa maneira. Assim, quando acontece alguma coisa que não devia acontecer, não achas que é um pouco injusto precipitar-se a gente em cima deles como se os meninos tivessem a culpa de estar aqui?

— Não sei que pensar disso, Kathie, mas o que sei é que, para o bem geral, precisamos ser muito severos diante de fatos como esse. Uma ovelha negra pode contaminar todo o rebanho.

— Mas é preciso admitir que primeiro alguém contaminou essa ovelha. No fim de contas foi o que provavelmente aconteceu, não achas?

— Talvez. Isso é inevitável. Seja como for, creio que Brookfield é melhor do que um mundo de outras escolas. Razão maior para que a conservemos tal como ela é.

— Mas esse rapaz, Chips... vais expulsá-lo?

— O Diretor provavelmente o expulsará quando eu lhe contar.

— E tu vais contar ao Diretor?

— Parece-me que esse é o meu dever.

— Não podias refletir um pouquinho sobre o caso?... conversar de novo com o rapaz... descobrir como foi que isso começou... No fim de contas... pondo de parte essa história... não se trata dum belo rapaz?

— Oh, sem dúvida.

— Então, Chips querido, não achas que podia haver outra solução?...

E assim por diante. Mais ou menos uma vez em dez ele se mostrava inflexível e não se deixava convencer. Aproximadamente na metade desses casos excepcionais ele mais tarde quase se arrependia de não ter seguido o conselho dela. E passados alguns anos, sempre que algum aluno lhe causava qualquer aborrecimento, ficava à mercê duma onda amolecedora de recordações. E o rapaz que de pé em sua frente esperava a sentença, se fosse observador, havia de ver aqueles olhos castanhos brilharem duma luz que lhe dizia: tudo está bem. Mas não adivinharia que naquele momento Chips estava a relembrar uma coisa que havia acontecido antes de ele ter vindo ao mundo, e que em sua cabeça havia este pensamento: “Seu” grande patife, macacos me mordam se eu puder achar uma razão para te perdoar, mas aposto como ela te perdoaria!

Mas nem sempre Kathie lhe pedira brandura. Em ocasiões mais ou menos raras ela exigia severidade quando Chips estava inclinado a perdoar.

— Não gosto do tipo dele, Chips. Tem uma confiança exagerada em si mesmo. Se ele quer fazer desordem, pois que faça.

E, como esse, lhe vinham à memória, em multidão, pequenos incidentes, todos enterrados fundamente no passado — problemas que em seu tempo haviam sido prementes, discussões que se acirraram, anedotas que só eram engraçadas porque a gente lhes recordava a graça... Se é verdade que uma emoção tem só realmente importância quando o seu último traço desaparece da memória dos homens, que mundo de emoções se apegava a ele buscando um último abrigo antes do aniquilamento! Chips devia tratá-las com bondade, devia estesourá-las no espírito antes que elas caíssem no seu longo sono. O caso da resignação de Archer, por exemplo — um caso estranho, esse. E o do rato que Dunster pôs na galeria do órgão, na hora em que o velho Ogilvie dirigia o ensaio do coro. Ogilvie tinha morrido e Dunster fora para o fundo do mar em Jutlândia; os outros que haviam sido testemunhas do incidente ou dele tiveram notícia, com toda a probabilidade já o haviam esquecido. E o mesmo se passara com os demais casos, no decorrer de séculos. Chips teve a súbita visão de milhares e milhares de rapazes, desde a era Elisabetana para diante; dinastia após dinastia de professores; longas épocas da história de Brookfield que não haviam deixado nem um espectro de recordação. Quem sabia por que a velha sala da quinta-classe era conhecida pelo nome de “o Poço”? Havia provavelmente uma razão para isso, mas essa razão se estraviara no tempo — perdera-se bem como os livros perdidos de Tito Lívio. E que acontecera a Brookfield quando Cromwell lutara em Naseby, nas suas proximidades? Como reagira a Escola ao grande pânico de quarenta e cinco? Decretara feriado ao receber as novas de Waterloo? E assim por diante, até os tempos mais recentes que ele, Chips, guardava na memória — 1870, com Wetherby a dizer à guisa de conversação ociosa, depois daquele primeiro e único encontro:

— Parece que um destes dias temos de ajustar conta com os prussianos, hein?

Quando Chips se lembrava de coisas como essa, tinha muitas vezes a impressão de que devia escrevê-las e enfeixá-las em livro; e durante os anos que passara na casa da senhora Wickett não raro ele chegava ao ponto de tomar notas a esmo num caderno de exercícios. Mas logo se lhe deparavam dificuldades — e a principal delas era que o escrever deixava-o cansado tanto mental como fisicamente. De certo modo também essas recordações perdiam muito do seu sabor ao tomar a forma gráfica; aquela história de Rushton e o saco de batatas, por exemplo, havia de ficar absolutamente insípida em letra de forma; mas, Senhor!, como a coisa tivera graça a seu tempo! Era engraçado, também recordá-la, embora a gente não se lembrasse de Rushton... Quem seria pois capaz de se lembrar, após todos aqueles anos? Fazia tanto, tanto tempo... Senhora Wickett, chegou a conhecer um sujeito chamado Rushton? Não é de seu tempo, presumo... Foi para a Birmânia, com um cargo do governo... ou para o Bornéu... sujeito muito engraçado, o Rushton...

E lá estava Mr. Chips, de novo a sonhar diante do fogo, a sonhar com os tempos e com os incidentes em que só ele podia ter um secreto interesse. O engraçado e o triste, o cômico e o trágico, tudo se lhe misturava no espírito e algum dia, por mais difícil que isso fosse, ele havia de pôr as memórias em ordem e fazer com elas um livro...

* * *


VIII

Não lhe saía do espírito aquele dia de primavera, em noventa e oito, quando ele se pusera a caminhar pela povoação de Brookfield como em horrendo pesadelo numa vaga luta por fugir rumo dum mundo exterior onde o sol ainda brilhasse e onde tudo se passasse de modo diferente. O jovem Faulkner encontrara-o na ruela do lado de fora da Escola.

— Desculpe, professor, posso sair hoje à tarde? Minha gente vem me visitar.

— Hein? Que é que há? Ah, sim, sim...

— Posso faltar ao culto também, professor?

— Pode... Pode...

— E posso ir à estação esperá-los?

Ele quase chegara a responder:

— Pode ir para o inferno, pelo muito que se me dá. Minha mulher morreu, meu filho morreu, eu quisera estar morto também.

Fez um sinal afirmativo com a cabeça e saiu a andar com passos arrastados. Não queria falar com ninguém nem receber pêsames; desejava acostumar-se com as coisas, caso isso fosse possível, antes de fazer frente às palavras de bondade dos outros. Deu a sua quarta aula, como de costume, depois da chamada, marcando a lição de gramática para que os alunos aprendessem de cor enquanto ele se deixava ficar à sua mesa num êxtase frio e continuado. De súbito alguém disse:

— Com licença, professor, há um maço de cartas para o senhor.

— Ah... Cartas?

Ele estivera todo aquele tempo com os cotovelos em cima delas; traziam todas o seu nome no envelope. Abriu-as uma a uma, mas elas nada mais continham que uma tira de papel em branco. Dum modo distante ele achou a coisa um tanto exquisita, mas não fez comentários; o incidente mal chegou a ferir a superfície de suas preocupações vastamente maiores. Foi só alguns dias depois que ele compreendeu que lhe tinham passado um primeiro de abril.

A mãe e o filho recém-nascido haviam morrido no mesmo dia: 1.º de abril de 1898.

* * *


IX

Chips trocou os seus apartamentos mais confortáveis do edifício da escola pelos antigos alojamentos de solteiro. Pensou a princípio em abandonar seu posto no internato, mas o Diretor dissuadiu-o disso; mais tarde Chips se alegrou de ter ficado. O cargo dava-lhe o que fazer, enchia-lhe o enorme vácuo do espírito e do coração. Ele andava diferente, todos notavam. A dor, bem como o casamento, tinha-lhe acrescentado alguma coisa; depois do primeiro estupor do sofrimento ele de súbito se transformava nessa espécie de homem que os rapazes sempre classificam sem hesitação de “velho”. Não que sua atividade tivesse diminuído, pois ele conseguia ainda fazer corridas de cinqüenta jardas no campo de cricket; nem que ele houvesse perdido qualquer interesse ou entusiasmo pelo trabalho. Efetivamente seu cabelo também havia anos que se vinha fazendo grisalho; no entanto só agora, pela primeira vez, as pessoas pareciam dar por isso. Chips estava com cinqüenta anos. Duma feita, após alguns fives, durante os quais ele jogara tão bem como muitos tipos que tinham a metade de sua idade, Chips ouviu um rapaz dizer:

— Não está mal para um camarada velho como ele.

Passados os oitenta anos, Chips costumava contar o incidente com muitas risadinhas mal contidas:

— Velho aos cinqüenta, hein? — Am... — foi o Naylor quem disse isso, e o Naylor agora não pode estar muito longe dos cinqüenta! Eu só queria saber se ele ainda acha que cinqüenta é velhice! A última notícia que tive do Naylor foi a de que ele estava advogando, e os advogados têm vida longa... Olhem para o Halsbury — am — Chanceler aos oitenta e dois e falecido aos noventa e nove. Isso é que é idade! Velho demais aos cinqüenta, essa é boa!, sujeitos assim são mas é moços demais aos cinqüenta. Eu por exemplo... era um mero infante...

E, num certo sentido, isso era verdade. Porque o novo século trouxera para Chips certa madureza que lhe amalgamava todos os crescentes maneirismos e as multi-repetidas pilhérias numa única harmonia. Ele já não tinha mais aquelas pequenas e eventuais dificuldades em matéria de disciplina, não se sentia mais desconfiado de seu trabalho e de seu próprio valor. Achou que seu orgulho por Brookfield voltava num reflexo, trazendo-lhe um motivo para orgulhar-se de si mesmo e da sua posição. Aquele posto lhe dava a liberdade de ser ele mesmo de maneira suprema e integral. Havia conquistado, por antiguidade e madureza, uma zona de privilégio que não existia no mapa, uma espécie de terra de ninguém; tinha direitos adquiridos para fazer essas brandas excentricidades que tantas vezes ocorrem aos professores e aos pastores. Usava a beca até ela ficar tão poída que quase caía aos pedaços. E quando se postava ao pé da escada do Salão Geral para fazer a chamada, era com o ar de quem se abandona misticamente a um ritual. Segurava a lista dos nomes, uma longa tira que caía pelas bordas duma tábua; e cada rapaz, ao passar, dizia o nome para Chips procurá-lo no papel e fazer as devidas marcas. Esse olhar “conferidor” era um assunto favorito de imitações em toda a Escola: óculos com aros de aço escorregando pelo nariz, sobrancelhas erguidas, uma um pouco mais alçada que a outra, olhar entre extático e inquisidor... E, nos dias ventosos, a beca, os cabelos brancos de Chips e a lista de chamada a ondular no ar numa confusão ruidosa, — tudo aquilo constituía uma cena cômica que se metia como um sanduíche entre os jogos da tarde e a volta às aulas.

Alguns daqueles nomes, em pequenos fragmentos dum coro, vinham depois à mente de Chips com freqüência, sem o menor esforço de memória. “...Ainsworth, Attwood, Avonmore, Babcock, Baggs, Barnard, Bassenthwaite, Battersby, Beccles, Bedford-Marshall, Bentley, Best...”

Outro grupo: “...Unsley, Vailes, Wadham, Wagstaff, Wallington, Waters Primus, Waters Secundus, Watling, Waveney, Webb...”

E ainda mais outro que oferecia, como ele costumava dizer aos seus latinistas da quarta-classe, um excelente exemplo de hexâmetro: “...Lancaster, Latton, Lemare, Lytton-Bosworth, MacGonigall, Mansfield...”

Muita vez ficava a refletir sobre que destino teria levado todos esses rapazes. Essas contas que um dia ele tivera reunidas no mesmo rosário, por onde se haveriam elas dispersado, umas para se quebrarem, outras para formarem desenhos desconhecidos? Os estranhos desacertos da vida o iludiam; por causa desses desencontros, enquanto o mundo fosse mundo, nunca mais aqueles coros tornariam a ter sentido.

E por trás de Brookfield, bem assim como a gente pode vislumbrar uma montanha atrás de outra montanha quando o nevoeiro se ergue, ele viu um mundo de mudanças e conflitos; e viu-o, mais do que o concebeu, como os olhos relembrados de Kathie. Ela não pudera deixar ao marido, como um legado, todo o seu espírito, e muito menos o seu brilho; mas deixara-o com uma tranqüilidade e um equilíbrio que iam bem com as suas próprias emoções íntimas. Era típico dele o não participar do geral azedume patrioteiro contra os boers. Não que ele fosse um pro-boer, pois seu apego à tradição tal não permitiria; também não gostava dos que tomavam o partido dos boers; no entanto às vezes cruzava-lhe o espírito a idéia de que os boers estavam empenhados numa luta que tinha curiosa semelhança com a de certos heróis ingleses dos livros de história — Hereward the Wake, por exemplo, ou Caractacus. Tentou certa vez escandalizar a quinta-classe sugerindo essa idéia, mas os rapazes pensaram que a coisa não passasse de mais uma das brincadeiras de Chips.

Por mais heterodoxo que fosse no caso dos boers, era ortodoxo com relação a Mr. Lloyd George e o famoso Orçamento. Não dava nem a um nem a outro a menor importância. E quando, anos mais tarde, L. G. foi hóspede de honra no Speech Day de Brookfield, Chips ao lhe ser apresentado teve estas palavras:

— Mr. Lloyd George, tenho idade suficiente — am — para me lembrar dos tempos em que o senhor era — am — moço. Confesso que o senhor me parece — am — ter progredido — am — muito.

O Diretor, que se achava entre ambos, pareceu ficar um tanto espantado. Mas Lloyd George riu cordialmente e durante a cerimônia que se seguiu conversou mais com Chips do que com qualquer outro.

— Essa é bem do Chips — comentou-se depois. — E saíu-se bem. Acho que nessa idade tudo que a gente diz para as pessoas está certo...

* * *


X

Em 1900 o velho Meldrum, que sucedera Wetherby na direção da Escola, na qual se mantivera durante três décadas, morreu subitamente de pneumonia. No intervalo que precedeu a indicação de seu sucessor, Chips ficou como diretor interino de Brookfield. Eram mínimas as probabilidades de que os membros da Junta dessem caráter permanente à nomeação; mas Chips, para falar a verdade, não ficou desapontado quando trouxeram para a direção da Escola um simples moço de trinta e sete anos, todo rebrilhante de condecorações esportivas — e senhor duma dessas personalidades capazes de reduzir o Salão Geral ao silêncio com um simples erguer de sobrancelha. Chips não podia competir com uma criatura assim; nunca tivera nem havia de ter capacidade para tal, bem o sabia. Era decididamente um animal mais pacífico e menos feroz.

Aqueles anos que precederam sua aposentadoria em 1913 foram semeados de quadros de que ele guardava aguda memória.

Manhã de maio; o retinir do sino da Escola num momento inesperado; todos chamados a se reunirem no Salão Geral. Ralston, o novo Diretor, muito pontifical e conscio de si mesmo, fitando os olhos na multidão com uma severidade fria e pressaga.

— Todos vós heis de ficar profundamente consternados ao saber que Sua Majestade o Rei Eduardo Sétimo morreu esta manhã... Não haverá aula hoje à tarde, mas teremos culto na Capela às quatro e trinta.

Manhã de verão, na linha férrea perto de Brookfield. Os ferroviários estão em greve, os soldados conduzem as máquinas, os trens são apedrejados. Os rapazes de Brookfield patrulham a linha, achando toda aquela história muito divertida. Chips, que está de plantão, mantém-se um pouco afastado, conversando com um homem ao portão duma cottage. O jovem Criklade se aproxima:

— Com licença, professor. Que devemos fazer se encontrarmos grevistas?

— Gostarias de encontrar um grevista?

— Eu... eu não sei, professor.

Que Deus tivesse piedade daquele rapaz... Falava dos grevistas como se eles fossem estranhos animais fugidos dum jardim zoológico!

— Bom, já que estás aqui — am — quero te apresentar a Mr. Jones... que é um dos grevistas. Quando está de serviço, toma conta da sinaleira da estação. Muitas vezes tua vida esteve nas mãos dele.

A história depois correu a roda na escola: Chips estava conversando com um grevista. Conversando com um grevista! Pelo jeito como falavam, pareciam em ótima camaradagem.

Pensando muitas e muitas vezes no assunto, Chips sempre acrescentava para si mesmo que Kathie havia de aprovar o seu gesto e de achar também a coisa divertida.

Porque, acontecesse o que acontecesse, e por mais sinuosos e tortos que fossem os caminhos da política, ele sempre tinha fé na Inglaterra, no sangue e na carne da Inglaterra, e em Brookfield como um lugar cuja suprema nobreza dependia de ajustar-se ele ou não, com dignidade e senso de proporção, no cenário inglês. Guardava Chips uma visão que ia ficando cada vez mais clara à medida que os anos passavam — a visão duma Inglaterra para a qual os dias de sossego tinham já quase terminado, uma nação que entrava em canais onde um erro infinitesimal de navegação podia determinar uma catástrofe. Lembrava-se do Jubileu de Diamante; houvera feriado inteiro em Brookfield e ele levara Kathie a Londres para ver o cortejo. Aquela velha dama legendária, sentada na sua carruagem como uma boneca de madeira, simbolizava inúmeras coisas impressionantes que, como ela, se estavam aproximando do fim. Seria apenas o século ou era uma época?

E viera depois a frenética década Eduardiana, qual uma lâmpada elétrica que fica mais brilhante e mais branca pouco antes de se extinguir.

Greves de operários e de patrões, ceias de champanha e passeatas de desempregados, a questão dos trabalhadores chineses, reforma tarifária, H. M. S. Dreadnought, Marconi, governo próprio para a Irlanda, o Doutor Crippen, sufragistas, as linhas férreas de Chatalja...

Uma tarde de abril, de chuva e vento; a quarta-classe analisando sintaticamente Virgílio, não com muita inteligência, porque havia nos jornais notícias sensacionais: o jovem Grayson, mais que qualquer outro estava desatento e preocupado. Era um rapaz calado e nervoso.

— Grayson, quando os outros forem embora — am — fique para trás.

Depois:

— Grayson, não quero ser —am — severo porque em geral você é um aluno apreciável — am — quanto aos estudos, mas hoje... você não parece — am — estar fazendo o menor esforço. Aconteceu alguma coisa?

— N... não, professor.

— Bem — am — não falemos mais nisso, mas — am — espero que da próxima vez as coisas melhorem.

Na manhã seguinte correu pela Escola a notícia de que o pai de Grayson havia embarcado no Titanic, não se sabendo ainda a sorte que tivera.

Grayson foi dispensado das lições; por todo um dia a Escola se concentrou emocionalmente na ansiedade do rapaz. Veio depois a comunicação de que seu pai estava entre os que haviam sido salvos.

Chips apertou a mão do aluno.

— Bem — am — estou muito contente, Grayson. Um desfecho feliz. Você deve estar se sentindo satisfeito da vida.

— S... sim, senhor.

Um rapaz calado, nervoso. E era a Grayson pai e não a Grayson filho que Chips estava destinado a apresentar mais tarde suas condolências.

* * *


XI

E depois, a briga com Ralston. Engraçado, Chips nunca chegara a gostar dele. O homem era eficiente, inflexível e ambicioso mas, fosse como fosse, não se fazia muito simpático. Ninguém negava que ele tivesse elevado o nivel de Brookfield como escola; e não se tinha memória na vida do estabelecimento duma lista tão grande de candidatos a matrícula. Ralston era um verdadeiro dínamo; um belo transmissor de energia, mas a gente precisava tomar cuidado com ele.

Chips nunca tomara tais precauções; não se sentia atraído pelo homem, mas servia-o de boa vontade e dum modo absolutamente leal. Ou, melhor, servia Brookfield. Sabia que Ralston por sua vez não gostava dele; mas isso lhe parecia coisa sem importância. Ele sentia que sua idade e prioridade o defendiam suficientemente da sorte de outros professores que não caíram nas graças de Ralston.

Mas, de súbito, em 1908, exatamente quando Chips acabava de completar sessenta anos, chegou-lhe o ultimato cortês de Ralston.

— Mr. Chipping, o senhor ainda não pensou em se aposentar?

Surpreendido pela pergunta, Chips atônito olhou em torno daquele gabinete rodeado de livros, sem atinar com a razão daquelas palavras.

— Não — respondeu por fim. — Não posso dizer — am — que tenha — am — pensado muito nisso... por enquanto.

— Bem, Mr. Chipping, deixo-lhe a sugestão. Reflita. Os membros da Junta naturalmente hão de concordar em lhe conceder uma pensão razoável.

E, ex abrupto, Chips explodiu:

— Mas — am — eu não quero me aposentar. Nem preciso — am — pensar em tal coisa.

— Não obstante, aconselho-o a refletir.

— Mas — am — não vejo... ora... não vejo razão...

— Nesse caso as coisas vão se tornar um pouco difíceis.

— Difíceis? Por que... difíceis?

E depois ambos se mediram: Ralston cada vez mais frio e inflexível, e Chips cada vez mais acalorado e cheio de paixão.

— Mr. Chipping — disse por fim Ralston, com ar glacial — uma vez que me força a usar palavras claras, palavras claras terá. Faz algum tempo que o senhor tem estado a fazer o que entende. Seus métodos são ronceiros e antiquados, seus hábitos pessoais, relaxados; e o senhor ignora as minhas instruções dum modo tal que, num homem mais jovem, podia ser olhado como insubordinação. Isso assim não dá certo, Mr. Chipping, e o senhor deve reconhecer que fui tolerante em ter suportado essa situação por tanto tempo.

— Mas... — começou Chips, completamente desnorteado. E depois, tomou palavras isoladas daquela extraordinária acusação. — Relaxado — am — o senhor disse?

— Sim, olhe para a beca que usa. Pois acontece que eu sei que essa beca é objeto de contínuo ridículo em toda a Escola.

Chips também sabia, mas nunca lhe parecera que aquilo fosse motivo de pesar.

Continuou:

— E o senhor também disse — am — alguma coisa a respeito de insubordinação?

— Não, não disse. Disse que num homem mais moço eu teria classificado sua atitude como insubordinação. No seu caso trata-se provavelmente de uma mistura de atraso e teimosia. Essa questão da pronúncia latina, por exemplo... Creio que lhe disse há anos que queria se usasse o novo estilo em toda a Escola. Os outros professores me obedeceram; o senhor preferiu aferrar-se aos seus velhos métodos e o resultado foi simplesmente o caos e a ineficácia.

Chips tinha por fim alguma coisa tangível a que se agarrar.

— Era isso? — replicou ele com desdém. — Pois bem, eu — am — admito que não estou de acordo com a pronúncia nova. Nunca estive. Um mundo de asneiras — am — na minha opinião. Obrigar os rapazes a dizer Quíquero na escola quando — am — o resto de suas vidas eles vão dizer Cícero, e isso — am — isso se chegarem a dizer. E em vez de “Ceres” Queres — santo Deus! Am... am! — Ficou por algum tempo rindo um risinho gutural, esquecendo-se de que estava no gabinete de Ralston e não na sua aula amiga.

— Pois, Mr. Chipping, aí está um exemplo perfeito desses fatos que eu estava censurando. O senhor tem uma opinião e eu tenho outra, e uma vez que o senhor não quer ceder, não pode de modo algum haver qualquer alternativa. O meu objetivo é fazer de Brookfield uma escola absolutamente modernizada. Eu sou um homem de ciência, mas nem por isso tenho qualquer objeção aos clássicos — contanto que eles sejam ensinados com proficiência. Nem por serem mortas essas línguas devem ser tratadas com uma técnica educacional também morta. Quer me parecer, Mr. Chipping, que as suas atuais lições de latim e de grego são exatamente iguais às que o senhor dava quando pela primeira vez aqui cheguei, há dez anos, não?

Lentamente e com orgulho Chips respondeu:

— Para falar a verdade — am — são as mesmas do tempo em que veio para cá o seu predecessor, Mr. Meldrum — am — há trinta e oito anos. Nós começamos aqui, Mr. Meldrum e eu, em — am — 1870. E foi — am — Mr. Wetherby o predecessor de Mr. Meldrum, quem primeiro aprovou o meu syllabus. “Dê Cícero ao quarto ano — disse-me ele. — Cícero e não Quíquero!”

— Muito interessante, Mr. Chipping, mas isso ainda mais uma vez vem em apoio de meu ponto de vista. O senhor vive demais no passado e não suficientemente no presente e no futuro. Os tempos estão mudando, quer o senhor perceba quer não. Os pais de hoje em dia exigem em troca do que pagam anualmente alguma coisa mais que umas poucas migalhas de línguas que ninguém mais fala. Além disso, seus alunos não aprendem nem o que julgam aprender. Nenhum deles obteve o ano passado nem mesmo a média condicional.

E, de súbito, numa torrente de pensamentos urgentes demais para serem postos em palavras, Chips formulou interiormente uma resposta. Aqueles exames e certificados e o mais que seguia — que importância tinham? E toda aquela eficiência, e toda aquela atualidade — que importavam também? Ralston estava procurando dirigir Brookfield como quem dirige uma fábrica — uma fábrica para produzir uma cultura snob, baseada no dinheiro e nas máquinas. As velhas tradições cavalheirescas de família e de latifúndios estava sofrendo mudanças, como tinha inevitavelmente de acontecer; mas em vez de alargá-las a fim de formar uma genuína democracia que incluísse tanto os duques como os lixeiros, Ralston as estava reduzindo às simples proporções duma gorda conta bancária. Nunca houvera tantos filhos de homens ricos em Brookfield como agora. Na festa do Speech Day a gente tinha a impressão de estar em Ascot. Ralston conhecia esses sujeitos ricos nos clubes de Londres e convencia-os de que Brookfield era a escola do futuro. E como o dinheiro lhes não pudesse abrir as portas de Eton ou Harrow eles engoliam gulosamente a isca. Sujeitos detestáveis, alguns deles, embora outros fossem bem decentes. Financistas, organizadores de empresas, fabricantes de pílulas. Um deles dava ao filho cinco libras por semana para as despesas miúdas. Vulgaridade... ostentação... frutos peculiares dum século que estava a apodrecer de maduro... E uma vez Chips tinha se visto em apuros por causa duma piada que fizera em torno do nome e da ascendência de um aluno chamado Isaacstein. O rapaz escreveu para casa, contando a história, e Isaacstein père mandou uma carta colérica a Ralston. Verdadeiras sensitivas, tipos sem gosto pelo humorístico e sem o menor senso de proporção — eis o que era aquela gente... Não tinham o menor senso de proporção. E o que acima de de todas as coisas Brookfield devia ensinar era a ter senso de medida — não era preciso tanto latim, grego, química ou mecânica. E não se podia esperar pôr à prova esse senso de medida conferindo certificados e diplomas...

Todas essas idéias relampaguearam na mente de Chips num instante de protesto e indignação, mas ele não disse uma palavra de tudo isso. Colheu simplesmente a ponta da surrada beca e fazendo am... am afastou-se. Bastava de discussão. À porta, voltou-se e disse:

— Não pretendo — am — pedir demissão... e o senhor pode — am — fazer o que bem entender!

Recordando essa cena na tranqüila perspectiva de um quarto de século, Chips ainda encontrava no fundo do coração um pouco de piedade por aquele Ralston. Particularmente porque Ralston vivia, como ficou evidente, numa completa ignorância das forças com que lidava. E para falar a verdade, era o mesmo que se passava com ele, Chips. Nenhum dos dois tinha estimado com exatidão a rijeza da tradição de Brookfield e sua decidida rapidez no se defender a si mesma e a seus defensores. Porque aconteceu que um rapazelho que naquela mesma manhã fora à procura de Ralston, tinha ficado do lado de fora do gabinete a escutar toda a conversa; emocionado naturalmente com o que ouvira, contara tudo aos colegas. Alguns destes, num espaço de tempo surpreendentemente curto, transmitiram o fato aos pais; e assim, dentro de muito breve, toda a gente sabia que Ralston havia insultado Chips e exigido a sua demissão. O espantoso resultado da história foi um surto de simpatia e de partidarismo que Chips nunca imaginara, nem nos seus sonhos mais doidos. Descobriu, um tanto surpreso, que Ralston era absolutamente impopular; era temido e respeitado, mas não amado; e nesse caso de Chips o desagrado subiu a um tal ponto que chegou a dominar o medo e demolir até mesmo o respeito. Murmurou-se que haveria um motin público na Escola se Ralston conseguisse banir Chips. Os professores, entre os quais havia muitos moços que concordavam em que Chips era um caso perdido com seus métodos fora de moda, reuniram-se mesmo assim em torno dele porque odiavam o espírito tirânico de Ralston e viam no velho veterano um provável campeão. E um dia o Presidente da Junta, Sir John Rivers, visitou Brookfield, ignorou Ralston e foi direito a Chips: — Um belo tipo, esse Rivers — diria Chips mais tarde ao contar a história à senhora Wickett pela décima segunda vez. — Não — am — foi lá muito brilhante como aluno... eu me lembro de que ele nunca pôde — am — dominar os verbos. E agora — am — li nos jornais que vão fazê-lo — am — baronete. Aí está a prova — am — aí está a prova...

Segurando o braço de Chips enquanto passeavam ao redor dos desertos campos de cricket, naquela manhã de 1908, Sir John lhe dizia:

— Chips, meu velho, ouvi dizer que você teve uma rixa tremenda com Ralston. Sinto muito, por sua causa... mas quero que você saiba que os membros da Junta estão de seu lado como um só homem. Não gostamos nada desse sujeito. Muito inteligente, e tudo mais, mas um pouquinho inteligente demais, para falar com sinceridade. Alega que dobrou os fundos da Escola jogando na Bolsa... Teve a ousadia de dizer isso. Um camarada assim precisa ser vigiado. De sorte que se ele começar a fazer carga em você, diga-lhe muito delicadamente que pode ir para o diabo. Os membros da Junta não querem que você resigne. Brookfield não seria a mesma sem a sua pessoa, e eles sabem disso. Nós todos sabemos. Pode ficar aqui até completar o seu centenário, se tiver disposição... E para falar a verdade a nossa esperança é que isso aconteça.

E nessa altura — e o mesmo acontecia depois nas muitas vezes em que recontava a história — Chips deixou-se dominar pela emoção.

* * *


XII

Assim, ficou ele em Brookfield, evitando o mais possível ter negócios com Ralston. E em 1911 Ralston pediu demissão do cargo, “para melhorar de vida”; haviam-lhe oferecido a direção de uma das maiores escolas públicas. Seu sucessor foi um homem chamado Chatteris, de quem Chips gostava; ainda mais moço que Ralston, tinha trinta e quatro anos. Era tido como homem muito brilhante e, fosse como fosse, era moderno (Ciências Naturais com distinção) cordial e simpático. Reconhecendo em Chips uma instituição de Brookfiedl, aceitou cortês e prudentemente a situação.

Em 1913, atacado de bronquite Chips ficou inativo quase todo o período de inverno. Foi isso que o fez decidir-se a aposentar-se aquele verão, ao completar sessenta e cinco anos. No fim de contas, era uma idade boa e madura; as palavras diretas de Ralston de certo modo haviam produzido seu efeito. Chips sentiu que não seria justo insistir, uma vez que não podia desempenhar decentemente as suas funções. Além disso não cortaria completamente as suas ligações com a Escola. Tomaria quartos do outro lado da rua, na casa da excelente senhora Wickett que em tempos passados tivera a seu cargo a rouparia; ser-lhe-ia possível visitar a Escola sempre que quisesse e, num certo sentido, podia continuar fazendo parte dela.

No jantar do fim do ano letivo, em julho de 1913, Chips discursou ao receber as suas despedidas. O speech não foi muito longo, mas estava cheio de boas piadas e ficou duas vezes mais comprido por causa das risadas que o interrompiam. Tinha também várias citações latinas, bem como uma referência ao Capitão da Escola que, afirmava Chips, se fizera réu de crime de exagero ao falar nos serviços que ele (Chips) prestara a Brookfield.

— Mas é que — am — o rapaz descende de — am — uma família exagerada. Eu — am — me lembro de que... certa vez, tive de castigar o pai dele pela mesma falta. (Risadas) Dei-lhe um ponto — am — na tradução do latim e o rapaz — am —, como seu amor ao exagero, aumentou-o para sete! Am-am! (Risos estrepitosos e um tumulto de vivas!)

— Essa é bem de Chips, — acharam todos.

Depois o orador declarou que estava em Brookfield havia quarenta e dois anos e que tinha sido muito feliz ali.

— A Escola tem sido a minha vida — disse com simplicidade. — O mihi praeteritos referat si Jupiter annos ...Am... Está claro que não preciso traduzir... (Muitas risadas.) Lembro-me de um mundo de mudanças em Brookfield. Recordo-me — am — da primeira bicicleta. Lembro-me de quando não havia gás nem luz elétrica e tínhamos entre o pessoal da casa o que se chamava o menino do lampião. Ele não fazia outra coisa senão limpar e arrumar os lampiões de toda a Escola. Recordo-me de uma nevasca que durou sete semanas, no trimestre de inverno: não houve jogos e toda a Escola aprendeu a patinar sobre os pantanais. Mil oitocentos e oitenta e alguma coisa, isso mesmo. Lembro-me de quando dois terços da Escola caiu de cama com rubéola e o Salão Geral foi transformado em enfermaria. Lembro-me também da grande fogueira na noite da tomada de Mafeking. Acenderam-na perto demais do pavilhão e acabamos sendo obrigados a chamar os bombeiros para apagá-la. E os bombeiros também estavam comemorando o acontecimento, de sorte que a maioria deles se encontrava — am — numa condição lamentável. (Risadas.) Lembro-me da senhora Brool, cuja fotografia se acha ainda na confeitaria; ela se manteve em seu posto até o dia que por morte de um tio da Austrália recebeu um mundo de dinheiro. Para falar a verdade, lembro-me de tantas coisas que muitas vezes eu acho que devia escrever um livro. Agora, que nome lhe devemos dar? “Memórias de uma Palmatória”. Que dizem? (Exclamações de aplausos e risos. Aquela era boa! — acharam todos. Uma das melhores de Chips.) Bom, bom, talvez um dia eu chegue a escrever um livro. Mas a verdade é que prefiro contar o livro a escrevê-lo. Eu guardo na memória... guardo na memória... mas eu guardo principalmente a cara de todos vocês. Nunca as esqueço. Tenho milhares de fisionomias no meu espírito — fisionomias de rapazes. Se vocês me vierem visitar daqui a anos — como espero que todos façam — procurarei lembrar-me de todas as caras, então mais velhas, de vocês, mas é bem possível que não consiga. E depois, um belo dia vocês me encontrarão em alguma parte e, vendo que eu não os reconheço, hão de dizer com os seus botões: “O velhote não se lembra de mim”. (Risos.) Mas eu me lembro de vocês como vocês são agora. Essa é a questão. No meu espírito vocês nunca crescem. Nunca. Às vezes, por exemplo, quando as pessoas me falam de nosso respeitável Presidente da Junta, penso cá comigo: “Ah, sim, um rapazito alegre de cabelo espetado para cima e que não tem absolutamente a menor idéia de qual seja a diferença entre o gerúndio e o gerundivo”. (Estrepitosas gargalhadas.) Bom, bom, não devo continuar — am — falando a noite inteira. Pensem em mim de quando em quando na certeza de que eu hei de pensar em vocês. “Haec olim meminisse juvabit... isto também não é preciso traduzir. (Muitas risadas, gritos e aclamações prolongadas.)

Agosto de 1913. Chips partiu para uma estação de cura em Wiesbaden, onde se hospedou na casa do professor de alemão em Brookfield, Herr Staefel, de quem se tornou amigo. Staefel tinha trinta anos menos que ele, mas os dois homens se entenderam à maravilha. Em setembro, terminado o trimestre, Chips voltou e se estabeleceu na casa da senhora Wickett. Sentia-se muito mais forte e mais disposto depois de suas férias e quase se arrependia de ter solicitado aposentadoria. Não obstante, achou muita coisa a fazer. Convidava para o chá todos os alunos novos. Assistia a todos os jogos importantes nos campos de esporte de Brookfield. Uma vez por trimestre jantava com o Diretor e uma vez também com os professores. Começou a trabalhar na preparação e direção dum novo Guia de Brookfield. Aceitou a presidência do “Clube dos ex-Alunos” e ia a jantares em Londres. Escrevia uma vez que outra artigos cheio de piadas e citações latinas, para a revista periódica de Brookfield. Lia o Times todas as manhãs de fio a pavio; e começou a ler também histórias policiais dos quais era entusiasta desde as primeiras aventuras de Sherlock Holmes. Sim, ele vivia completamente ocupado, e completamente feliz, também.

Um ano mais tarde, em 1914, compareceu de novo ao jantar do fim do período letivo. Falava-se muito em guerra —guerra civil em Ulster e distúrbios entre a Áustria e a Sérvia. Herr Staefel, que ia partir para a Alemanha no dia seguinte, disse a Chips que, na sua opinião, o caso dos Bálcans ia dar em nada.

* * *


XIII

Os anos da guerra.

O primeiro choque e, depois, o primeiro otimismo. A Batalha do Marne, o rolo compressor russo, Kitchener.

— Acha que a coisa vai durar muito, professor?

Interrogado no momento em que assistia ao primeiro treino da temporada, Chips deu uma resposta bastante alegre. Estava, como milhares de outros, redondamente enganado; mas, ao contrário de milhares de outros, não escondeu mais tarde o fato.

— Devíamos ter terminado — am — a coisa... pelo Natal. Os alemães já estão derrotados. Mas por que perguntas? Estás pensando — am — em te alistar, Forrester?

Pilhéria — porque Forrester era o menor dos novos alunos que Brookfield tivera em todos tempos. Erguia-se cerca de um metro e vinte acima de suas enlameadas botinas de futebol. (Mas a coisa deixaria um pouco de ser pilhéria quando a gente pensasse nela tempos depois; porque o rapaz morreu em 1918 — o seu avião foi derrubado em chamas sobre Cambrai.) Mas a gente nunca adivinha o que está pela frente. Foi um acontecimento tragicamente sensacional quando o primeiro “Velho Brookfeldiano” foi morto em ação em setembro. Ao chegarem as notícias, Chips pensou: cem anos atrás os rapazes desta escola estavam lutando contra os franceses. É de certo modo estranho que os sacrifícios de uma geração possam cancelar assim os de outra. Tentou exprimir essa idéia a Blades, o encarregado do internato; mas Blades, que tinha dezoito anos de idade e estava se preparando para obter o posto de cadete, limitou-se a rir. Que tinha toda aquela história a ver com a coisa? Tratava-se apenas do velho Chips com mais uma de suas exquisitas idéias, só isso.

1915. Exércitos parados por atravancamento desde o mar até a Suíça. Os Dardanelos. Gallipoli. Acampamentos militares a surgir muito perto de Brookfield; soldados a utilizar os grounds da Escola para esporte e exercícios; rápido desenvolvimento do Campo de Treinamento de Oficiais, de Brookfield. A maioria dos professores mais jovens partiram para a frente de batalha ou vestiram o uniforme. Todos os domingos à noite, na capela, depois do serviço vespertino, Chatteris lia em voz alta os nomes dos velhos alunos mortos, juntamente com biografias curtas. Muito comovente; mas Chips, no banco reservado lá no fundo, debaixo da galeria, pensava: são apenas nomes para ele, que não lhes vê as fisionomias como eu vejo...

1916. A Batalha do Somme. Vinte e três nomes lidos na noite de domingo.

Foi pelo fim daquele desastroso mês de julho. Chatteris procurou Chips uma tarde na casa da senhora Wickett. Estava super-carregado de trabalho, cheio de aborrecimentos e apresentava um aspecto muito doentio.

— Para lhe falar a verdade, Chipping, a coisa não me tem corrido lá muito fácil aqui. Estou com trinta e nove anos, você sabe, e sou solteiro. Tenho a impressão de que muita gente julga saber qual devia ser a minha atitude... Acontece, também, que sou diabético e não conseguiria passar num exame médico nem que ele fosse feito por um cego. Mas não vejo razão para pregar um atestado de saúde na porta da minha casa.

Chips ignorava tudo isso; a notícia foi-lhe um choque, pois ele gostava de Chatteris. Este último prosseguiu:

— Você vê a situação... Ralston encheu a Escola de homens moços, tudo muito bem, não há dúvida... Mas agora a maioria deles se alistou e os substitutos dum modo geral são bastante maus. Um dos rapazes derramou tinta no pescoço dum colega, à hora do estudo, uma noite destas e o pobre diabo teve um acesso de nervos. Eu tenho de tomar as lições pessoalmente, cuidar do estudo desses malucos, trabalhar diariamente até a meia-noite e ainda por cima sou olhado com antipatia, como se fosse um desertor... Não posso suportar isso por muito mais tempo. Se as coisas não melhoram no próximo trimestre, vou ter na certa um colapso.

— Conte com a minha simpatia — disse Chips.

— Era o que eu esperava. Foi por essa razão que vim aqui fazer-lhe um pedido. Em suma, minha sugestão é a seguinte: se você estiver disposto e achar exequível... que me diz de voltar para a Escola por algum tempo? Está em apreciáveis condições de saúde e, que diabo!, entende do riscado como ninguém. Não digo que eu vá sobrecarregá-lo de serviço... Você não precisará esforçar-se demais em coisa alguma... Só uma coisinha aqui e ali, à sua escolha. Está claro que o trabalho material que você vai fazer há de me ser valioso, mas não é tanto por ele que peço a sua volta. Mais do que qualquer outra coisa, o que eu quero é o seu auxílio num outro sentido: o de simplesmente estar em Brookfield. Nunca ninguém teve na Escola a popularidade de que você gozou e ainda goza. Você me ajudaria a manter a coisa de pé, no caso de haver o perigo de tudo vir abaixo. E talvez haja esse perigo...

Todo ofegante, e com uma santa alegria no coração, Chips respondeu:

— Eu vou...

* * *


XIV

Conservou seus alojamentos na casa da senhora Wickett; com efeito, continuou a morar lá; mas todas as manhãs, cerca das dez e meia, vestia o casacão, enrolava a manta no pescoço e atravessava a rua na direção da Escola. Sentia-se em boas condições e o serviço efetivo não exigia esforço. Tratava-se apenas de algumas aulas de latim, e História Romana — as velhas lições — e até a velha pronúncia. A mesma pilhéria em torno da Lex Canuleia. Havia agora uma nova geração que não a conhecia e Chips ficou absurdamente satisfeito com o sucesso obtido por ela. Sentia-se como uma favorita de café-concerto que volta ao tablado depois de uma despedida definitiva.

Todos diziam que era maravilhosa a maneira como ele conhecia rapidamente o nome e a cara de todos os rapazes. Não adivinhavam o quão de perto Chips se mantivera em contacto com eles, lá do outro lado da rua.

Dum modo geral a volta de Mr. Chipping foi um grande sucesso. Duma certa e estranha maneira ele facilitava as coisas; e todos percebiam isso. Pela primeira vez em sua vida Chips se sentiu necessário — e necessário a algo que estava muito perto de seu coração. Não há no mundo sensação mais sublime e por fim ele a tinha.

Fez também novas pilhérias, a respeito do Campo de Treinamento dos Oficiais, do sistema de racionamento da alimentação e das cortinas contra os raids aéreos que tinham de ser ajustadas em todas as janelas. Havia uma misteriosa espécie de almôndega que começava a aparecer nos cardápios dominicais da Escola. Chips chamava-lhes “abhorrendum” — “carne para ser aborrecida”. A história correu a roda. Já ouviram a última de Chips?

Chatteris caiu de cama, doente, durante o inverno de 1917, e de novo, pela segunda vez em sua vida, Chips ocupou o cargo de diretor interino de Brookfield. Depois, em abril, quando Chatteris morreu, os membros da Junta perguntaram a Chips se queria ser efetivado no posto. Chips respondeu-lhes que sim, se lhe prometessem não tornar pública a nomeação. Dessa suprema honra, que finalmente chegara a seu alcance, ele se esquivou instintivamente, sentindo-se em muitos respeitos inferior a ela. Disse a Rivers:

— Você vê, não sou nenhum moço e não quero que as pessoas — am — esperem muita coisa de mim. Sou como todos esses novos coronéis e majores que se vêem por toda a parte: apenas produtos do tempo de guerra. Para falar a verdade, não passo dum oficial comissionado...

1917. 1918. Chips sobreviveu a tudo. Sentava-se todas as manhãs no gabinete do diretor, lidando com problemas, tratando de queixas e requerimentos. De sua vasta experiência havia emergido uma doce e benigna confiança em si mesmo. O principal era guardar o senso de medida, essa coisa que o mundo estava a perder em grande escala. E conservá-lo no lugar onde ele tinha ou devia ter a sua morada ideal.

Aos dominges na capela era ele quem lia agora a lista trágica. Às vezes era visto a chorar sobre ela. Mas... e por que não? — dizia a Escola; Chips era um velho; teriam desprezado outro qualquer que revelasse tamanha fraqueza.

Um dia Chips recebeu uma carta de amigos que tinha na Suíça; estava ela muito censurada, mas trazia algumas notícias. No domingo seguinte, depois dos nomes e biografias dos antigos alunos, mortos em ação, fez uma pausa momentânea e finalmente acrescentou:

— Os dentre vocês que se achavam aqui antes da Guerra hão de se lembrar de Max Staefel, o professor de alemão. Estava ele na Alemanha, em visita à família, quando a guerra deflagrou. Era muito estimado aqui e fez inúmeras amizades. Os que o conheceram hão de ficar tristes ao saber que ele foi morto a semana passada na Frente Ocidental.

Estava um pouco pálido quando se sentou depois, certo de que tinha feito algo fora do comum. Fosse como fosse, não havia consultado ninguém a esse respeito; ninguém mais podia ser censurado. Mais tarde, fora da capela, ouviu uma discussão:

— Na Frente Ocidental, foi o que Chips disse. Então quer dizer que o homem estava lutando do lado dos alemães?

— Acho que sim.

— Engraçado, então, ler o nome dele em voz alta junto com todos os outros. No fim de contas, tratava-se de um inimigo.

— Ora, é apenas uma dessas idéias de Chips, acho. O velhote ainda tem das suas...

De volta ao seu quarto, Chips ficou a pensar no comentário sem desagrado. Sim, ele ainda tinha das suas: essas idéias de dignidade e generosidade que se iam tornando cada vez mais raras naquele mundo frenético. E pensou: Brookfield há de aceitá-las de mim; mas não as aceitaria de ninguém mais.

Uma vez, ao lhe pedirem a opinião sobre os exercícios de baioneta que se faziam perto do pavilhão de cricket, ele respondeu com aquele seu tom de voz lerdo e levemente asmático que fora tantas vezes tão extravagantemente imitado:

— Parece-me — am — um meio muito vulgar de matar as pessoas.

O caso foi passado adiante e todos repetiam com alegria — a história de como Chips havia dito a um “galão dourado” do Ministério da Guerra que a luta a baioneta era uma coisa vulgar. Essa era bem do Chips. E acharam para ele um adjetivo: uma expressão que começava a ser usada: ele era de antes-da-Guerra.

* * *


XV

E uma vez, certa noite de lua cheia, as sirenas de alarme soaram anunciando um ataque aéreo, quando Chips estava dando sua quarta-classe de latim. Ouviram-se quase instantaneamente os primeiros tiros de canhões e, fora, começaram a cair aqui e ali muitas granadas. Chips teve a impressão de que eles podiam ficar exatamente onde se encontravam, no rés do chão do internato. Edifício de construção sólida, era dos melhores abrigos que Brookfield podia oferecer; e, quanto ao caso de uma granada acertar-lhes em cheio, em tal conjuntura não podiam esperar salvação, estivessem onde estivessem.

Desse modo, continuou Chips com o seu latim, erguendo mais a voz no meio das detonações retumbantes dos canhões e do uivo agudo das granadas anti-aéreas. Alguns dos rapazes estavam nervosos; poucos conseguiam prestar atenção. Chips falou com brandura:

— Pode parecer-lhe, Robertson, neste particular momento da história do mundo — am — que os assuntos de César nas Gálias uns dois mil anos passados — am — sejam de importância um tanto secundária e que — am — a conjugação irregular do verbo tollo seja — am — menos importante ainda. Mas, creia-me, — am — o caso não é realmente esse.

Nesse instante sobreveio uma explosão particularmente forte e muito perto.

— Vocês não podem — prosseguiu Chips — julgar da importância — am — das coisas pelo barulho que elas fazem. Oh, não, valha-nos Deus. — Uma risadinha abafada. — E essas coisas — am — que tiveram importância durante milhares de anos... não vão desaparecer... só... porque algum Professor Zorrilho... no seu laboratório inventa uma nova espécie de calamidade.

Risinhos reprimidos e nervosos; porque Burrow, o pálido, chupado e fisicamente incapaz professor de química, tinha o apelido de Professor Zorrilho. Outra explosão — ainda mais perto.

— Vamos — am — retomar o trabalho. Se o destino quiser que sejamos em breve — am interrompidos, que nos encontrem pois empenhados em alguma coisa — am — realmente apropriada. Algum de vocês quer analisar?

Maynard, o rechonchudo, intrépido, inteligente e descarado Maynard respondeu:

— Eu, professor.

— Muito bem. Procure a página quarenta e comece na última linha.

As explosões ainda continuavam, ensurdecedoras; o edifício inteiro tremia, como se fosse saltar dos alicerces. Maynard achou a página, que ficava um pouco para a frente, e começou com sua voz estrídula:

Genus hoc erat pugnae — esta era a espécie de luta — quo se Germani exercuerant — na qual os alemães se empenhavam. Oh, professor, esta é boa, é mesmo muito engraçada, professor, uma das suas melhores pilhérias...

As risadas começaram, e Chips acrescentou:

— Bom — am — vocês podem ver... agora... que essas línguas mortas — am —podem ressuscitar de novo... às vezes... hein? Hein?

Ficaram sabendo depois que haviam caído cinco bombas nos arredores de Brookfield, sendo que a mais próxima delas pouco para fora dos grounds da Escola. Tinham matado nove pessoas.

A história foi contada, recontada e embelecida.

— O nosso esplêndido velhote nem chegou a mover um cabelo. Achou até uma frasezinha antiga para ilustrar o que estava acontecendo. Uma história de César a respeito da maneira como os alemães combatiam. Quem diria que podia haver uma coisa como essa em César, não é mesmo? E o jeito como Chips ria... tu sabes o jeito dele rir... as lágrimas escorrendo pelo rosto... nunca vi o homem rir tanto assim...

Chips era uma lenda.

Sempre a velha e surrada beca, aquele andar que estava começando a ficar arrastado, os olhos meigos a espiar por cima dos óculos de aros de aço, e os estranhos ditos chistosos: Brookfield não conseguiria descobrir nele a diferença dum átomo.

11 de novembro de 1918.

Chegaram as notícias pela manhã; foi decretado feriado inteiro na Escola e suplicaram ao pessoal da cozinha que proporcionasse o mais alegre festim que as rações de tempo de guerra permitissem. Houve muitos vivas e cantigas e uma batalha de pão no refeitório. Quando Chips entrou no meio do tumulto, fez-se um silêncio brusco seguido de ondas sobre ondas de aclamações; toda a gente olhava para aquele homem com olhos ávidos, brilhantes, como para um símbolo de vitória. Ele se dirigiu para o estrado, como se quisesse falar; fizeram silêncio, mas, depois dum momento, Chips sacudiu a cabeça, sorriu e tornou a se retirar.

Era um dia úmido e nevoento e a caminhada através do quadrilátero até o refeitório fizera-o apanhar um resfriado. No dia seguinte Chips caiu de cama com bronquite e lá ficou até o Natal. Mas já naquela noite de 11 de novembro, depois de sua visita ao refeitório, havia mandado seu pedido de demissão à Junta.

Quando a escola reabriu depois das férias, Chips voltou para a casa da senhora Wickett. A seu próprio pedido, não houve mais despedidas nem apresentações: apenas um aperto de mão com seu sucessor e a palavra “em exercício” riscada dos papéis oficiais. A “gestão” de Chips tinha terminado.

* * *


XVI

E agora, quinze anos depois, ele podia relembrar tudo isso com uma profunda e suntuosa tranqüilidade. Não estava doente, era claro, sentia-se às vezes um pouco cansado, só isso, e sua respiração não era boa nos meses de inverno. Não saía para o estrangeiro. Experimentara viajar uma vez, mas acontecera-lhe chegar a Riviera durante uma de suas inesperadas ondas de frio.

— Prefiro apanhar — am — meus resfriados na minha própria — am — pátria, — costumava ele dizer, depois disso.

Tinha de cuidar-se quando soprava o vento de leste, mas o outono e o inverno não eram tão maus; lá estavam o calor do fogo e os livros, e a gente podia com eles esperar o verão. Naturalmente era do verão que ele gostava mais; além do tempo, que lhe convinha, havia as visitas contínuas de antigos alunos. Todos os fins de semana alguns deles subiam de automóvel até Brookfield para visitar Chips. Com freqüência o deixavam cansado, se vinham muitos ao mesmo tempo; mas aquilo na verdade não lhe importava porque depois ele podia sempre descansar e dormir. E gostava dessas visitas — mais que de qualquer outra coisa no mundo de todas as que ainda podia gozar.

— Então, Gregson — am — eu me lembro de você — am — sempre chegando tarde para tudo — hein — hein? Talvez chegues tarde à velhice — am — como eu — am — hein?

E algum tempo depois, estando ele de novo a sós, a senhora Wickett entrou para tirar a mesa do chá.

— Senhora Wickett — disse ele — o jovem Gregson me visitou — am. A senhora lembra-se dele, não? Um rapaz alto, de óculos. Sempre chegava tarde. Conseguiu um emprego — am — na Liga das Nações — onde — eu acho — que a sua — am —negligência em matéria de pontualidade — am — não se fará notada — hein?

E algumas vezes, quando o sino soava para a chamada, ele ia à janela e olhava através da rua e das grades da Escola e via na distância os rapazes a desfilar... Novos tempos, novos nomes... Mas os velhos ainda permaneciam... Jefferson, Jennings, Jolyon, Jupp, Kingsley Primus, Kingsley Secundus, Kingsley Tertius, Kingston... Onde estão vocês... Para onde foram?... Senhora Wickett, traga-me uma chícara de chá um pouco antes do estudo, sim?

A primeira década depois da Guerra voou numa algazarra de mudanças e adaptações defeituosas; Chips, que viveu toda essa época, ficou profundamente desapontado quando olhou para o estrangeiro. O Ruhr, Chanak, Corfu; existiam no mundo bastantes causas de mal-estar. Mas perto dele em Brookfield e mesmo, num sentido mais largo, na Inglaterra, havia alguma coisa que lhe encantava o coração porque era antiga — e tinha sobrevivido. Cada vez mais ele via o resto do mundo como uma vasta desordem pela qual a Inglaterra havia feito bastantes sacrifícios — talvez excessivos. Mas ele estava satisfeito com Brookfield. Ela tinha suas raízes em coisas que suportavam a prova do tempo, da mudança e da guerra. Curioso: neste sentido mais profundo, como ela havia mudado pouco! Os rapazes eram uma raça mais polida; já não existia mais fanfarronice; não se ouviam mais palavrões nem se pregavam peças. Existia agora uma camaradagem mais genuína entre aluno e professor — menos pomposidade de um lado, menos untuosidade do outro. Um dos novos mestres, recém-saído de Oxford, chegou até a permitir que o sexto ano o chamasse pelo nome de batismo. Chips não suportava essas liberdades; para falar a verdade estava um tantinho escandalizado.

— O homem podia então — comentou ele — assinar os seus — am — relatórios de fim de ano — am — com um “seu, de todo o coração” — hein — hein?

Durante a Greve Geral de 1926 os rapazes de Brookfield carregaram caminhões com gêneros alimentícios. Quando tudo terminou, Chips sentiu uma agitação emocional que havia muito não sentia, desde a Guerra. Acontecera algo cuja suprema significação ainda não tinha sido avaliada; mas uma coisa estava clara: a Inglaterra mais uma vez levara o fogo para o seu próprio assado. E quando, por ocasião do Speech Day daquele ano, um visitante americano insistiu nas vastas somas que a greve havia custado ao país, Chips respondeu:

— Sim, mas — am — a publicidade... sempre custa dinheiro...

— Publicidade?

— Então, não foi — am — publicidade... e por sinal ótima publicidade? Uma semana inteira — am — sem o preço de uma vida — sem que se disparasse um único tiro! No seu país — am — se derrama mais sangue — am — numa simples incursão da polícia numa casa de bebidas!

Risadas ... Risadas... Onde quer que Chips fosse e o que quer que dissesse, havia risadas. Ele conquistara a reputação de ser um grande humorista, e todos esperavam dele coisas humorísticas. Sempre que ele se erguia para falar numa reunião, ou mesmo quando falava a uma mesa, as pessoas preparavam os espíritos e as fisionomias para a pilhéria. Escutavam com a predisposição de se divertirem e era fácil deixá-las satisfeitas. Riam às vezes antes de Chips chegar ao desfecho.

— O velho Chips estava em boa forma — comentavam depois. — É maravilhoso como ele pode sempre enxergar o lado cômico das coisas...

Depois de 1929 Chips não deixou Brookfield nem mesmo para os jantares dos Antigos Alunos em Londres. Temia os resfriados e as noitadas tardias deixavam-no demasiadamente fatigado. No entanto, nos dias bonitos atravessava a rua e ia até a Escola; e continuava a manter uma larga e contínua hospitalidade em seu quarto. Conservava intactas todas as faculdades e não tinha aborrecimentos pessoais de nenhuma espécie. Os seus rendimentos iam além de suas necessidades, e seu pequeno capital, empregado em títulos do governo absolutamente garantidos, nada sofria por ocasião das baixas. Dava muito de seu dinheiro a pessoas que lhe apareciam contando desgraças, a vários fundos destinados a escolas. Contribuía também para a missão de Brookfield. Em 1930 Chips fez o seu testamento. Àparte legados à missão e à senhora Wickett, destinava ele tudo o que tinha a um fundo para matrículas gratuitas na Escola. 1931... 1932...

— Que é que o senhor pensa de Hoover, professor?

— O senhor acha que ainda vamos voltar para o padrão ouro?

— Qual é a sua impressão a respeito das coisas em geral, professor? Vê alguma clareira nas nuvens?

— Quando é que a maré vai voltar, Chips, meu velho? Você deve saber, com toda essa sua experiência das coisas.

Todos lhe faziam perguntas, como se ele fosse uma espécie de profeta combinado com enciclopédia — não só por isso, mas principalmente porque eles gostavam que suas perguntas fossem transformadas em pilhérias. Chips dizia:

— Então, Henderson, quando eu —am — era muito mais jovem do que sou hoje... havia alguém que — am — prometia às pessoas dar nove pence em troca de quatro. Não tenho notícia — am — de ninguém — am — que tenha chegado a ganhar esses nove pence. Nossos governadores de hoje — am — parecem ter resolvido o problema de dar — am — quatro pence em troca de nove.

Risadas.

Outras vezes, quando Chips caminhava repousadamente pelas cercanias da Escola, meninos, desses mais atrevidos, lhe faziam perguntas, simplesmente pelo prazer de ouvir “a última” de Chips para depois saírem a contá-la.

— Com licença, professor. Que é que o senhor pensa do Plano Quinqüenal?

— Professor, o senhor acha que a Alemanha quer brigar de novo?

— Já esteve no novo cinema, professor? Fui com meus pais o outro dia. Um negócio muito importante para um lugarzinho como Brookfield. Compraram um Wurlitzer.

— E que diabo — am — que diabo vem a ser um Wurlitzer?

— É um órgão, professor, um órgão de cinema.

— Céus... Vi esse nome nos cartazes, mas sempre — am — imaginei — que fosse alguma espécie — am — de salsicha...

Risadas. Ah! uma nova piada de Chips, rapazes, uma piada formidável. Eu estava conversando fiado com o velho, fazendo perguntas sobre o novo cinema, e ele...

* * *


XVII

Chips estava sentado na sala da frente, na casa da senhora Wickett, numa tarde de novembro de mil novecentos e trinta e três. Era um dia frio e nevoento, e ele não ousava sair. Não se sentia bem desde o Dia do Armistício; calculava tivesse apanhado um pequeno resfriado durante o serviço religioso na capela. Merivale aparecera aquela manhã para a sua costumada prosa quinzenal.

— Vai tudo correndo bem? Está se sentindo disposto? Isso é que é! Com um tempo assim, fica-se em casa. Há muita gripe por aí. Eu quisera poder levar a tua vida por um dia ou dois.

A vida dele... e que vida tinha sido! Ela desfilou em sua frente em pomposo cortejo enquanto ele se deixava ficar aquela tarde, sentado ao pé do fogo. As coisas que havia feito e visto; Cambridge na casa dos sessenta, Great Gable numa manhã de agosto; Brookfield em todos os tempos e estações, através dos anos. E, a propósito disso tudo, lembrava-se também das coisas que não fizera, que nunca mais faria, agora que as deixara tão para trás: nunca viajara de avião, por exemplo, e não conhecia cinema sonoro. Destarte tinha ele ao mesmo tempo mais e menos experiência que o mais novo dos rapazes da Escola. E era a esse paradoxo de velhice e de mocidade que o mundo dava o nome de progresso.

A senhora Wickett tinha saído a visitar parentes numa aldeia das redondezas; deixara prontas as coisas do chá em cima da mesa: pão, manteiga e chícaras a mais para o caso de aparecer de visita algum aluno. Num dia como aquele, entretanto, era pouco provável que surgissem visitantes; como lá fora o nevoeiro se adensasse de hora para hora, tudo fazia crer que Chips continuasse a sós.

Mas não. Cerca de um quarto para as quatro, soou a campainha e Chips, indo em pessoa abrir a porta da rua (coisa que não devia ter feito) deu com um rapazito um tanto miúdo que trazia na cabeça o gorro de Brookfield e no rosto uma expressão de ansiosa timidez.

— Com licença, senhor — começou ele. — É aqui que mora Mr. Chips?

— Am — é melhor você entrar — respondeu Chips. E no quarto, um momento depois, acrescentou: — Sou eu — am — sou eu a pessoa que você procura. Então, em quê — am — em quê posso serví-lo?

— Disseram que o senhor queria falar comigo, professor.

Chips sorriu. Uma velha pilhéria — um velho “trote” e ele, mais do que qualquer outro, ele que em sua vida pregara tantas peças não devia agora ficar zangado com aquela. E era-lhe divertido replicar por assim dizer àquela pilhéria com uma das suas; fazê-los ver que ele, mesmo agora, ainda tinha a cabeça no lugar. Disse então com os olhos a brilhar:

— Está certo, meu rapaz, eu queria que você tomasse chá comigo. Não quer sentar-se — am — perto do fogo? Am — parece-me que sua fisionomia não é familiar. Como se explica isso?

— Acabo de sair do hospital, professor, estive lá desde o princípio do trimestre, com sarampo.

— Ah, eis a razão.

Chips começou o rito habitual da mistura de chá de diferentes latas; felizmente havia no guarda-comida meio bolo de nozes com açúcar cristalizado cor-de-rosa. Descobriu que o rapaz se chamava Linford, morava em Shropshire e era o primeiro de sua família a freqüentar Brookfield.

— Você verá — am — Linford — como vai gostar de Brookfield quando ficar acostumado. O lugar não é tão horrível... como você imagina. Tem um pouco de medo dele — am — não é, hein? Foi o que aconteceu comigo, meu caro rapaz, no princípio. Mas isso — am — faz muito tempo. Para falar com exatidão — am — foi há sessenta e três anos. Quando entrei — am — pela primeira vez no Salão Geral e — am — vi todos aqueles rapazes... eu lhe asseguro... fiquei positivamente assustado. Para falar a verdade — am — acho que nunca fiquei tão alarmado em toda a minha vida. Nem mesmo — am — quando os alemães nos bombardearam — am — durante a guerra. Mas — am — a coisa não durou muito tempo... — refiro-me a essa sensação de medo. Logo fiquei — am — como se estivesse em casa.

— Havia muitos outros alunos novos como o senhor aquele trimestre, professor? — indagou Linford timidamente.

— Hein? Mas—louvado seja Deus! — eu não era rapaz... era um homem... um moço de vinte e dois anos! E a próxima vez que você vir um moço... um novo professor... cuidando pela primeira vez do estudo no Salão Geral — am — procure imaginar... o que ele está sentindo!

— Mas se naquele tempo, professor, o senhor tinha vinte e dois, então...

— Sim? Então quê?

— Então o senhor deve ser... muito velho... agora, professor.

Chips riu tranqüila e prolongadamente para si mesmo. Era uma boa piada.

— Bom — am — está claro que não sou — am — nenhum franguinho...

Continuou a rir interiormente, por muito tempo.

Depois falou de outros assuntos, de Shropshire, de escolas, da vida escolar em geral, das notícias do jornal daquele dia.

— Vocês estão crescendo numa espécie — am — muito tormentosa de mundo, Linford. Pode ser que alguma dessas borrascas tenham já passado — am — quando vocês estiverem em condições de enfrentá-las. Pelo menos — am — devemos esperar que assim seja... Bom... — E com um olhar rápido para o relógio, ele se entregou à velha fórmula familiar. — Sinto muito — am — mas você não pode ficar...

À porta da rua, apertou a mão do menino.

— Adeus, meu rapaz.

E a resposta veio numa voz estrídula de falsete:

— Adeus, Mr. Chips...

Chips tornou a sentar-se junto do fogo, com aquelas palavras a lhe ecoarem nos corredores do espírito. “Adeus, Mr. Chips...” Uma velha pilhéria, essa de fazer os alunos novos pensar que o nome dele era realmente Chips; a brincadeira era quase tradicional. Pouco lhe importava. “Adeus, Mr. Chips...” Lembrava-se de que, na véspera do dia de seu casamento, Kathie usara essa mesma frase, troçando delicadamente do ar sério que ele tinha naquele tempo. Pensou: Ninguém há de me considerar sério hoje em dia, disso tenho plena certeza...

De súbito as lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces — uma fraqueza de velho; tolice, talvez, mas ele não o podia evitar. Sentia-se muito cansado. Aquela conversa com Linford deixara-o exausto. Mas ele estava satisfeito por ter conhecido Linford. Bom rapaz. Havia de ser alguém.

Através do ar pesado de névoa veio o som trêmulo e abafado do sino, anunciando a hora da chamada. Chips olhou para a janela que ia ficando cinzenta ao crepúsculo; era hora de acender a luz. Quando, porém, principiou a mover-se, sentiu que não podia; estava extremamente cansado; e fosse como fosse, não importava. Reclinou-se na cadeira. Não era nenhum franguinho — então, hein? — isso era bem verdade. A história de Linford tinha sido divertida. Lavrara um tento contra os trocistas que lhe haviam mandado o rapaz. Adeus, Mr. Chips... Mas era esquisito que ele tivesse dito exatamente essas palavras...

* * *


XVIII

Quando acordou, pois parecera ter estado a dormir, foi para descobrir que o haviam levado para a cama; e Merivale lá estava, inclinado sobre ele, a sorrir.

— Então, patife velho, está se sentindo bem? Belo susto você nos pregou!

Chips murmurou alguma coisa, depois de uma pausa, e com uma voz de que ele próprio se surpreendia, de tão fraca:

— Ora — am — que foi que houve?

— Você simplesmente teve um desmaio. A senhora Wickett entrou e por sorte o encontrou aqui. Agora está tudo bem. Sossegue. Durma de novo, se tiver vontade.

Chips ficou contente por lhe terem sugerido uma idéia tão boa. Sentia-se tão fraco, que nem ficou curioso por conhecer os pormenores da história: como o tinham trazido para cima, o que dissera a senhora Wickett e assim por diante. Mas depois, de súbito, avistou a dona da casa no outro lado da cama. Ela sorria. Chips pensou: Louvado seja Deus, que será que ela está fazendo aqui? E foi então que, na sombra, por trás de Merivale, ele viu também Cartwright, o novo Diretor (Chips o considerava “novo”, embora o homem estivesse em Brookfield desde 1919) e mais o velho Buffles, comumente conhecido pelo nome de “Roddy”. Engraçado, o jeito de toda aquela gente, ali. Seja como for — refletiu Chips — não posso me dar o trabalho de ficar procurando descobrir a razão disso tudo. Eu vou mas é dormir.

Aquilo, porém, não era sono e não era também vigília; era uma espécie de estado intermediário, cheio de sonhos, fisionomias e vozes. Velhas cenas e velhos farrapos de melodias — um trio de Mozart que Kathie tocara uma vez — aclamações e risadas, o troar de canhões — e por cima de tudo, os sinos de Brookfield, os sinos de Brookfield. “Desse modo, vocês vêem se a Senhorita Plebe queria que o Senhor Patrício casasse com ela... “Por Vulcano... leia a lei”. Pilhéria. Carne para ser aborrecida... Piadas... É você, Max? Sim, pode entrar. Que notícias tem da pátria?... O mihi praeteritos... Ralston disse que eu era ronceiro e ineficiente... mas eles não podiam passar sem mim... Obile heres ago fortibus es in aro... Algum de vocês pode traduzir isto? É um trocadilho...

Num dado momento, Chips ouviu falarem a seu respeito no quarto.

Cartwright cochichava a Merivale.

— Pobre velho... Deve ter levado uma vida muito desolada, assim sozinho.

Merivale respondeu:

— Nem sempre sozinho. Já foi casado, não sabia?

— Casado? Nunca ouvi dizer.

— A mulher morreu. Isto deve ter sido... oh, faz aí uns bons trinta anos. Talvez mais.

— É pena. É pena que ele não tenha filhos.

Nesse ponto, Chips abriu os olhos tanto quanto lhe foi possível, para chamar a atenção dos interlocutores. Era-lhe difícil falar alto, mas ele conseguiu murmurar alguma coisa, e todos olharam em torno e depois se aproximaram dele.

Chips lutou, lentamente, com as palavras:

— Que... que foi — am — que vocês estavam dizendo... de mim... agora?

O velho Buffles sorriu e disse:

— Nada, amigo velho... Absolutamente nada. Estávamos apenas perguntando quando era que você ia acordar desse sono de bela-adormecida.

— Mas —am — eu ouvi vocês... falando a meu respeito...

— Nada, absolutamente nada de importância, meu caro. Dou-lhe a minha palavra...

— Pensei ter ouvido vocês — um de vocês — dizer que era pena — am — pena eu não ter filhos... não? Mas eu tenho, vocês sabem... Eu tenho...

Os outros sorriram sem responder e, depois duma pausa, Chips começou a rir um riso fraco, abafado e estertoroso.

— Sim — am — eu tenho — acrescentou, com uma alegria trêmula. — Milhares de filhos... milhares... e todos rapazes...

E depois o coro ressoou-lhe aos ouvidos numa harmonia final, com mais grandiosidade e doçura do que nunca, e também dum modo mais consolador... Pettifer, Pollett, Porson, Potts, Pullman, Purvis, Pym-Wilson, Radlett, Rapson, Reade, Reaper, Reddy Primus... reunam-se todos agora ao redor de mim, todos vocês, para a última palavra, a última pilhéria... Harper, Haslett, Hatfield, Haterley... minha última piada... estão ouvindo?... acharam graça?... Bone, Boston, Bovey, Bradford, Bradley, Bramhall-Anderson... Onde quer que vocês estejam, o que quer que tenha acontecido, deixem que eu passe este momento com vocês... este último momento... meus rapazes...

E em breve Chips adormeceu.

Tinha um aspecto de tão grande paz, que os outros não o despertaram para lhe dizer boa noite; mas, pela manhã, quando o sino da Escola soou chamando para a primeira refeição do dia, Brookfield soube da notícia. “Brookfield jamais esquecerá essa figura querida” — disse Cartwright, num discurso na Escola. O que era um absurdo, porque no fim todas as coisas são esquecidas. Mas, fosse como fosse, Linford mais tarde havia de recordar e contar a história: Eu disse adeus a Chips na noite anterior à de sua morte...

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O Autor

[imagem]

 

“James Hilton (9 de setembro de 1900 - 20 de dezembro de 1954) foi escritor inglês de romances e roteiros para o cinema. Sua obra de maior destaque é o romance de 1933 Lost Horizon (Horizonte Perdido), em que idealiza o mito de Shangri-La.

Nasceu em Leigh, Lancashire, Inglaterra, a 9 de setembro de 1900, e morreu em Long Beach, Califórnia, EUA, a 20 de dezembro de 1954. Realizou os primeiros estudos em Londres, onde seu pai era mestre-escola e, em 1921, formou-se em história pela Universidade de Cambridge. Mas na adolescência já revelava marcante inclinação literária, escrevendo seu primeiro romance, Catherine Herself (1920), com apenas dezessete anos de idade. Escrevia também uma apreciada coluna semanal para o jornal universitário Iris Independent. Saindo da Universidade, passou a colaborar em vários jornais e continuou a escrever romances, pretendendo uma carreira de sucesso no mundo literário. Publicou seu segundo romance, E Agora Adeus (And Now Goodbye), em 1931, conseguindo uma discreta acolhida do público e da crítica. Mas o verdadeiro sucesso veio com Adeus Mr. Chips (Goodbye Mr. Chips), em 1934, romance sobre um velho professor, narrado de maneira singela e despretenciosa. O sucesso trouxe a redescoberta de outros romances escritos anteriormente, principalmente Fúria no Céu (Rage in Heaven, 1932) e Horizonte Perdido (Lost Horizon, 1933).

Este último, um verdadeiro best-seller, fala simbolicamente da ambição humana e do ideal de paz e sabedoria, tal como se manifesta no reino de Shangri-La. Combinando habilmente aventura com uma bela mensagem, o romance recebeu o prêmio Hawthorden. Em 1935, Hilton partiu para Hollywood, onde permaneceu até o final de sua vida, escrevendo roteiros originais e adaptações cinematográficas de seus próprios romances. Tornou-se figura extremamente popular nos Estados Unidos, não somente por seus livros e filmes, mas também por artigos em revistas, críticas literárias e aparições no rádio. Excelente narrador, sobre ele disse um crítico do The New York Times: ‘Poderia contar uma história absorvente e excitante sobre quase nada’. Hilton escreveu muitos romances. Além dos já citados, destacam-se ainda: O Amor Nasceu do Ódio (Knight Without Armour, 1933), Não Estamos Sós (We Are Not Alone, 1937), Na Noite do Passado (Random Harvest, 1941), Aquele Dia Inesquecível (So Well Remembered, 1945) e Jornada Matutina (Morning Journey, 1951). Entre seus trabalhos para o cinema destacam-se os roteiros para Madame Curie (1943) e A Dama das Camélias (1936), além das adaptações que fez para seus próprios romances, a maioria deles levados à tela com grande sucesso.” — Fonte: wikipedia

Para preservar e difundir suas obras, foi constituída na Inglaterra a James Hilton Society

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