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A CEGA QUE “VIA”

Cleusa Sarzêdas

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A CEGA
QUE “VIA”

 

Cleusa Sarzêdas


A CEGA QUE “VIA”

Cleusa Sarzêdas

 

Dezoito de julho de 1899. Nasceu numa casa simples situada num bairro do subúrbio da Central do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, uma menina de nome Kette Sanches Aquine com cegueira congênita.

Com um ano de idade seu pai faleceu em grave acidente de automóvel. Karina, sua mãe, dedicou-se à filha, rejeitando novos pedidos de matrimônio.

Aos três anos foi para um colégio de “crianças especiais” onde passava as tardes. Sua inteligência e vivacidade superavam as expectativas dos professores que se encantavam com ela. De início achavam muita graça quando ela apontava para algum lugar e dizia:

— “Olha o papai! Ele tá sorrindo pra mim”. Certa ocasião, durante o recreio, perguntou ao professor:

— Quem é aquela mulher brincando de roda com as crianças? Ele respondeu que ali não havia nenhuma mulher. Ela insistiu.

— Tem sim, ela tá bem ali.

— Como ela é? Indagou o professor com curiosidade.

— Ela é gorda, o rosto é bem branco e gordo e tem uma pinta preta bem perto da boca. A roupa é uma porção de pano preto que vai até o pé. No pescoço o pano é branco e o chapéu também é branco. O professor lembrou-se do retrato da antiga diretora daquele colégio; uma freira desencarnada há muitos anos. Preocupado, achou melhor não alimentar aquele diálogo por julgá-lo perigoso para a mente de uma menina de apenas três anos. Colocou-a no colo e disse-lhe carinhosamente:

— Aquela senhora está morando com papai do céu, veio aqui para nos visitar, por isso não conta pra ninguém que você a viu, fica sendo um segredo só nosso, está bem? Ela concordou sorrindo.

Aos sete anos um acontecimento viria marcar definitivamente sua existência. Sentindo-se cansada, recolheu-se mais cedo. Eram dezenove horas. Debruçou-se na janela para sentir o frescor da noite e subitamente, uma brisa fria tocou-lhe o corpo e seguiu-se um estremecimento. Virou-se esfregando os braços e afastou-se da janela em direção à cama quando viu uma menina com longos cabelos louros, olhos bem azuis num rosto angelical. Confusa, inquietou-se; novo estremecimento. Com passos incertos aproximou-se do leito, fez uma prece e deitou-se pensativa: “Aquela menina, seria eu? Não tem mais ninguém aqui! Como é possível alguém ocupar dois lugares ao mesmo tempo? Por que senti aquela sensação de toque e tremor?” Suas pálpebras pesaram. Ela adormeceu. Seu pai aproximou-se envolto em luz azul clara e com voz suave falou-lhe:

— Kette, o que aconteceu hoje foi real. Você se viu com os olhos da alma, que é o espírito encarnado. Cegos, são os olhos do corpo. Somos um grupo com permissão para ajudá-la a cumprir sua missão na terra. Você será o veículo que levará auxílio a muitas pessoas, terá dificuldades, sofrerá pressões e críticas. Não desanime, nós a protegeremos e a orientaremos sempre que for necessário. Confie em Deus, mas lembre-se, o trabalho é seu. Deus a abençe.

Na manhã seguinte acordou e todo seu receio havia se dissipado. Uma sensação de paz iluminava seu rosto angelical. Compreendera a mensagem. Ajoelhou-se e rezou agradecendo a Deus. Nesse instante sua mãe entrou para ajudá-la a vestir-se. Sem se virar, disse:

— Mamãe, você é tão bonita com esses cabelos louros e olhos azuis, iguais aos meus! Ontem, vi pela primeira vez a cor dos meus olhos. São claros e bonitos.

A mãe, comovida, abraçou a filha.

— Kette querida, como poderia! Você sabe o que os médicos disseram sobre seus olhos.

— Não mamãe, não vi com os olhos do corpo e sim com os da alma; e narrou os acontecimentos da noite anterior com todos os detalhes.

Karina, mulher católica praticante, devota de Santa Luzia, nada sabia da vida espiritual, não acreditava em outros ensinamentos de caráter religioso fora da igreja católica que sempre freqüentara.

— Filha, foi só um sonho, os mortos não voltam.

— Não, não foi um sonho. Estava acordada quando avistei a mim mesma; no sonho, vi e ouvi meu pai dando-me instruções exatamente como contei.

Ficaram ainda conversando por algum tempo. Karina afastou-se alegando qualquer coisa e foi postar-se, com o terço entre os dedos, em frente ao pequeno altar de Santa Luzia e outras imagens. Rezou ardorosamente pedindo a Deus que a livrasse de tamanha dor. Não suportaria ver a filha tão querida perder a razão. Com os olhos vermelhos e inchados pelo pranto convulsivo acrescentou:

— Creio em ti Senhor, e entrego meu corpo e minha alma aos maiores flagelos que me impuseres, mas livre minha filha da loucura. Imploro a tua piedade. Caiu desacordada pelo profundo esforço e sofrimento.

Kette percebeu algo estranho na atitude da mãe, saiu a sua procura e entrou em seus aposentos.

— Mamãe! — Não obteve resposta, deu mais um passo e tropeçou. Agachou-se, era o corpo de Karina no chão.

Aflita, chamou-a várias vezes, o medo apoderou-se dela. Como acudi-la se estava só, a quem chamar? Levantou-se, esbarrou em vários objetos. Lembrou-se das instruções do pai, ajoelhou-se e pediu:

— Pai, ajude-me a socorrer a mamãe.

O quarto iluminou-se. Ela impôs as mãos sobre a cabeça de Karina que se levantou ainda atordoada.

— Que houve, por que você está aqui?

— Como está se sentindo? Precisa procurar um médico, prometa-me que fará isso ainda hoje.

— Estou um pouco tonta, vou descansar e mais tarde estarei recuperada. Marcarei uma consulta com o doutor Rogério. Obrigada filha, estou bem, não se preocupe. Kette ajudou-a a deitar-se na cama, beijou-lhe o rosto e saiu.

Passavam das quinze horas quando Karina avisou que iria ao consultório médico mas foi à igreja procurar o padre. Dirigiu-se a ele na sacristia visivelmente aflita e narrou-lhe os últimos acontecimentos, demonstrando sua preocupação com relação à saúde mental da filha.

O bondoso padre ouviu-a atento aconselhando-a a voltar para casa e observar o comportamento da jovem. Caso houvesse repetição do fato, tomaria as providências para o seu tratamento. Que ela não se preocupasse tanto porque acreditava ser um sonho que a impressionara.

Desde aquele episódio nada mais foi comentado. O fato parecia esquecido.

Ao completar nove anos Kette é acometida de febre alta. Chamado o médico e providenciado vários exames nada foi apurado quanto às causas de tão alta temperatura. Passaram-se seis dias e a febre não cedia apesar dos antitérmicos. Karina a alimentava com sopa rala e aplicava-lhe compressas frias na testa, dia e noite.

No décimo dia a febre atingiu 42 graus. O médico foi chamado com urgência, eram vinte horas do dia 26 de julho, ele não estava no consultório, deixaram recado em caráter de urgência.

Karina, desesperada com a hipótese de internação da filha, pediu a Deus que iluminasse a mente dos médicos para que descobrissem a razão de tanta febre e libertassem sua menina daquele sofrimento. Não suportaria a dor de vê-la definhando. Kette abriu os olhos e pediu com fraca voz :

— Mamãe, se deseja minha cura ajoelhe-se, faça uma prece fervorosa e chame o papai.

— Filha, a igreja ensina que não devemos mexer com os mortos. Eles não podem fazer nada por nós.

— Mãe, por favor, se você não fizer o que peço vou morrer. Chame o papai.

— Está bem filha, que Deus me perdoe mas vou atender o seu pedido. Ajoelhou-se, fechou os olhos e rezou invocando a presença do marido mesmo não acreditando na estada dos “mortos” entre os vivos; precisava fazer alguma coisa em benefício daquela que tanto amava.

Um facho de luz penetrou suave no ambiente. Uma imagem aos poucos se formou e aproximou-se da doente; cobriu seu corpo com luz violeta. Karina sentiu frio e uma forte emoção a invadiu, abriu os olhos, levou as mãos à boca para conter um grito de assombro. À sua frente estava o homem com quem se casara, envolto em penumbra e sorrindo, perplexa, deixou escapar um soluço enquanto a figura se desfazia. Refeita, aproximou-se da filha. Não havia mais febre, ela dormia profundamente. Agradeceu a Deus o que julgou ser um milagre. Quanto à imagem que vira presumiu ser fruto da sua imaginação.

Já passavam das dez horas quando o médico chegou, acompanhado de dois enfermeiros com a ambulância e a decisão de removê-la para o hospital. Surpreso, indagou se ela havia tomado algum medicamento sem o seu conhecimento, obtendo como resposta que nada fora feito além do tratamento prescrito. Karina não revelou os últimos acontecimentos com receio de ser considerada demente. Voltaram à clínica com a certeza de que algum remédio ministrado fizera efeito tardiamente.

Dois meses depois, Kette recebia pequenas mensagens psicografadas que traziam o cunho dos ensinamentos da “Lei de Deus” assinadas por mestres da espiritualidade, preparando-a para tarefas às quais estava destinada.

Karina, apesar de ter visto o marido morto há oito anos salvando a própria filha praticamente desenganada pela medicina terrena, não acreditava na interferência dos mortos e se afligia, julgando ser obra do demônio induzindo a filha a escrever aquelas coisas, embora falassem da lei de Deus. Se inquiria angustiada:

— A Igreja sempre ensina que os mortos não voltam e que somente o diabo é capaz de induzir ao mal. Será manobra do Satanás para levá-la à perdição? Sentiu remorsos de ter chamado o marido naquela noite. Será ele o próprio demônio e quer levar minha filha a um desequilíbrio mental? Decidiu pedir conselhos ao padre para aplacar sua aflição e medo.

O padre ficou indignado por não ter sido informado há mais tempo de tamanha aberração e exigiu que a levassem à igreja para se confessar antes que perdesse por completo a razão. Ele a convenceria não escrever aquelas bobagens, era um contra-senso.

Karina levou a filha ao confessionário, o que resultou em forte discussão com a recusa dela em deixar de receber as mensagens.

O padre irritado com a desobediência disse estar ela possuída pelo demônio, precisava ser exorcizada e ainda ameaçou interná-la num manicômio, caso não acatasse suas instruções.

No dia seguinte pela manhã, o sacerdote chegou à casa dos Aquine e se dirigiu ao quarto de Kette, seguido por Karina. Encontrou-a ajoelhada, numa prece.

— Deite-se! Vamos tirar o demônio que está no seu corpo. Ordenou.

— Filha, obedeça ao padre, ele só quer o seu bem; ela continuou em prece. Alguém bateu à porta, era o ajudante da igreja solicitando a presença do padre para atender uma religiosa que necessitava de extrema-unção. O sacerdote acompanhou, contrafeito, o ajudante. Antes, porém, afirmou:

— Voltarei amanhã para o tratamento. Soube-se mais tarde que a religiosa mencionada havia morrido há dois anos.

Depois daquele incidente ela, para não preocupar a mãe, mantinha-se acordada até altas horas da noite em seu quarto, onde recebia as mensagens que traziam instruções para seu trabalho futuro. Nunca mais freqüentou a igreja. O padre ficou convencido de que suas ameaças surtiram o efeito desejado e não mais a incomodou. Karina se tranqüilizou e aceitou a decisão da filha de se afastar da igreja sob promessa de que não receberia mais os escritos.

Aos doze anos veio uma mensagem de cunho pessoal dizendo:

“Em três encarnações anteriores você era famosa e rica oftalmologista. Vaidosa e orgulhosa do seu saber. Tinha uma clínica ricamente aparelhada, situada em rua de grande movimento no centro da cidade do Rio de Janeiro. Certa manhã de segunda-feira, ocorreu um acidente em frente à clinica envolvendo um ônibus e dois automóveis, nenhuma morte. Somente uma mulher de cinqüenta e cinco anos, aspecto humilde, fora projetada do banco onde estava até a dianteira do veículo, ferindo os olhos. Levada a sua clínica sangrando muito, você se recusou a atendê-la alegando estar muito ocupada e mandou que a conduzissem a um hospital público, o que acarretou perda total da visão por falta de socorro urgente. Ela a odiou por isso. Essa mulher é hoje sua mãe”. Assinado, Adolfo Aquine, seu pai.

Kette terminou a psicografia em prantos. Pela manhã chamou a mãe e abraçou-se a ela pedindo perdão por um passado tão distante e tão presente. Karina recebeu o abraço sem entender a razão.

— Que foi querida? Por que tanta emoção, o que aconteceu?

— Mamãe, vamos nos sentar. Quero que você leia esta mensagem com bastante atenção.

— Novamente isso, Kette! Você me prometeu que não mais escreveria essas coisas.

— Calma, mãe! Você quer saber por que nasci cega?

— Isso eu já sei, foi-me explicado pelos médicos na época.

— Não. A razão é bem mais profunda do que supõe. Leia esta mensagem, irá entender o que digo.

Karina leu a mensagem. Ficou tão perplexa que nada disse. A partir daí passou a olhar com mais boa vontade as psicografias e, com o tempo, se convenceu de que os “mortos” interferem e ajudam os vivos da terra.

Numa manhã saíram de casa para um passeio matinal e, ao se aproximarem de um cruzamento, Kette sentiu ligeiro tremor.

— Mamãe, leve-me até a uma pequena rua a nossa direita, uma criança está com dificuldades para nascer.

Uma grávida deitada no chão se contorcia e gemia, quase sem forças. Kette viu o bebê no ventre da mãe com o cordão umbilical envolvendo seu pescocinho, sufocando-o. Imediatamente se agachou e aplicou passes rotativos desfazendo o nó. A mulher acalmou-se e belo menino nasceu. Terminado o parto ela se levantou e surpreendeu-se com o vozerio de curiosos. Alguém havia chamado uma ambulância.

Quando se afastou apoiada no braço da mãe, o povo surpreso indagou:

— Como uma cega pôde fazer um parto? A notícia se espalhou, os jornais publicaram. Todos queriam saber mais sobre a cega que fez um parto.

Jornalistas desejosos de notícias descobriram a residência simples dos Aquine e invadiram-na. Kette não sabia lidar com aquela situação e pediu que viessem noutro dia quando estivesse mais tranqüila. Dois dias depois os jornalistas voltaram:

— A mãe do bebê disse que estava sem forças quando você chegou e passou as mãos em círculo sobre seu ventre. A partir daí as dores foram diminuindo e a criança nasceu. O que aconteceu?

— Vi o cordão umbilical envolto no pescoço do bebê estrangulando-o . Se desfez após a aplicação do passe.

— Como pôde ter visto tudo isso dentro do ventre e fazer um parto se não enxerga? E o que é passe?

— Enxergo com os olhos da alma. Para a alma não existem fronteiras. Cegos, são os olhos do meu corpo. E passe é energia transmitida. Os espíritos fizeram todo o serviço. Eu sou apenas o veículo.

— Você está me vendo?

— Não, só quando é permitido e necessário.

— Como é enxergar com os olhos da alma?

— Somos espíritos imortais. Quando encarnados somos chamados de alma. O espírito toma um corpo de carne para se purificar, ou seja, para expiar faltas cometidas pelo seu livre arbítrio portanto, os defeitos do corpo somente atingem a alma moralmente. Ela fica prisioneira de um corpo deficiente e sofre até resgatar suas faltas. Isso poderá ocorrer em uma ou em várias reencarnações, dependendo de como cada um se comporta diante das tarefas a desempenhar.

— Como você sabe tudo isso?

— Pelos ensinamentos dos espíritos, codificados por Allan Kardec. Leia O Livro dos Espíritos. E, também, pelas psicografias que recebo dando-me instruções.

— Você pode ler?

— Não. Minha mãe lê em voz alta. Estudamos juntas.

— Você é uma privilegiada?

— Não, sou uma devedora, infringi as leis Divinas em encarnações anteriores, hoje estou tendo a oportunidade de resgatá-las, em parte.

— Você pretende ajudar todos que a procurarem? De que maneira?

— É a minha tarefa. Os Espíritos me instruirão.

— Como a instruirão?

— Através da psicografia, da audição, da intuição e, principalmente à noite, quando meu corpo dorme.

— Quando você dorme, seu espírito também não dorme?

— Quem necessita de descanso é o corpo, não o espírito.

— Você não é muito jovem para essa tarefa ?

— Não existe idade para a caridade.

— Essa caridade será paga?

— Não, paga não seria caridade.

Kette deu por encerrada a entrevista. Precisava repousar.

A reportagem saiu em letras garrafais com o título.

CEGA, DIZ ENXERGAR COM “OLHOS DA ALMA”

Na manhã seguinte a família Aquine é despertada com falatórios e enorme fila formada em frente à casa. Queriam se consultar com a “cega que via”, alguns por acreditar na espiritualidade, outros por pura curiosidade. Foi assim que ela iniciou sua jornada de atendimentos através de mensagens psicografadas. Dava notícias de desencarnados confortando corações saudosos e aflitos. Orientava os curiosos que desejavam saber o futuro ou outros assuntos não condizentes com o trabalho. Para esses, ela instruía e indicava livros sobre a doutrina espírita. As reuniões de evangelização eram realizadas às quartas-feiras, às 20 horas.

Um ano mais tarde teve início o trabalho de cura fluídica sob a orientação dos seus mentores, duas vezes por semana. As senhas eram distribuídas para 50 pessoas, mas sempre eram atendidos números cada vez maiores. Os doentes curados ofereciam-se como voluntários revezando-se em tarefas. Alimentos e materiais eram doados aos mais pobres. No canto da sala foi improvisado o ambulatório com cama forrada com lençol branco, onde eram feitas as cirurgias. Devido ao pequeno espaço, o paciente após a cirurgia sentava-se numa cadeira para o descanso necessário e dava lugar a outro.

Os casos de maior gravidade eram atendidos de emergência. O povo que aguardava na fila, protestava por desconhecer a gravidade da enfermidade daquele irmão; eles não podiam ver, embora tivessem visão física perfeita. O trabalho transcorria até às dezenove horas.

O padre, considerando o fato um engodo à população e ultraje à igreja denunciou Karina à justiça, alegando exploração de menor deficiente e também pela prática ilegal da medicina.

O juizado de menores proibiu o atendimento sob pena de prisão. A população se revoltou contra o padre e boicotou suas missas. A polícia foi acionada e dispersou o povo chamando-o de agitadores. A imprensa se dividiu e alguns atacaram a família Aquine acusando-a de fraudulenta e de iludir a boa fé da população.

O processo durou dois anos e meio. Nada foi provado com relação à acusação, mas o Juiz entendeu que uma menor de idade não poderia ter amadurecimento suficiente para exercer tal atividade e deu o veredicto: a menor Kette Sanches Aquine somente poderá fazer atendimento ao público, em caráter de doação social, após completar dezoito anos de idade. O que ocorreria três meses depois.

Em agradecimento pela cura de um dos seus três filhos com grave doença, uma família doou um grande galpão e afiliaram-se aos trabalhos. Outros forneceram cadeiras, camas, lençóis e objetos necessários. Alguns jornais criticaram as doações e insinuaram, com maldade, sua destinação. As perguntas eram capciosas: “De que ela vive se não tem profissão? Como ganha dinheiro para o sustento da casa? Serão mesmo para os necessitados as doações, ou será para sua própria sobrevivência?” Com a pérfida intenção de desacreditá-la.

Em muitas oportunidades ela esclarecia:

— Vivo da pensão deixada pelo meu pai, engenheiro mecânico, desencarnado há alguns anos. Mas..., os desejosos de escândalos estavam sempre procurando falhas no seu comportamento com o intuito de desmoralizá-la. À noite, no silêncio do quarto, chorava pelas agressões não só dos profissionais da imprensa, mas também de incrédulos que a acusavam de interesseira, oportunista e até de bruxa. Ajoelhava-se e recuperava a paz no conforto da prece, amanhecia mais confiante.

O primeiro dia no galpão foi de muito trabalho. Sua mãe, juntamente com outros colaboradores, organizavam o atendimento. A fila dobrava o quarteirão e muitos que lá estavam chegaram na madrugada e, ansiosos, aguardavam com muita fé a cura para seus males. A notícia chegou aos outros estados e romarias se prostravam diante do galpão. O atendimento passou a ser feito três dias por semana e mesmo assim, pessoas batiam à sua porta. Ela os atendia.

Era sábado, dez de abril. A família foi surpreendida com a polícia e um grupo de jornalistas invadindo sua residência e acusando-na de assassina. O corpo de um homem fora encontrado na porta do galpão.

A imprensa alardeou o assunto, chegando a destratar Kette com perguntas ardilosas:

— Por que você não chama os espíritos agora, onde eles estão que não vêm te ajudar? Ela com humildemente respondeu:

— Eles estão aqui, por toda parte, você é que não pode vê-los porque é céptico.

— Não vai me impressionar com essa conversa, não acredito em espíritos. Você inventa essas coisas para explorar as pessoas, é um meio desonesto de ganhar a vida.

— Como posso explorar se não cobro pelo que faço?

— Não cobra consulta, mas recebe doações valiosas, como o galpão, por exemplo.

— Além de me ofender você não sabe o que está dizendo. Quando assumi essa tarefa sabia das dificuldades que teria de enfrentar. A ignorância com relação ao mundo espiritual é uma delas. Muitos como você só olham a vida pelo lado material das coisas. Não têm fé, acreditam somente no poder do dinheiro. O egoísta só vê os outros através da sua própria imagem. Por isso não consegue ver atributos morais em ninguém. Portanto amigo, reflita sobre sua vida depois, analise e julgue a si próprio antes de julgar os outros. Já dizia Jesus: Atire a primeira pedra aquele que estiver isento de pecado. O jornalista desconcertado, resmungou alguma coisa e se afastou.

A polícia investigou durante muito tempo mas não encontrou provas suficientes para acusá-la, mesmo assim manteve o galpão fechado até que as investigações fossem confirmadas. O povo, beneficiado com os trabalhos ali realizados durante tanto tempo, se revoltou contra a atitude policial e compareceu à delegacia, como voluntário, para prestar depoimentos. O processo já contava com seis volumes, sendo quatro de testemunhos a favor de Kette.

Três meses haviam se passado desde aquele episódio. Kette completava dezenove anos e os amigos vieram abraçá-la e prestar sua solidariedade. Dentro do grupo estava um rapaz alto, claro, cabelos pretos , volumosos e ondulados, bem apessoado, vestindo calça jeans e camisa de linho na cor azul clara, aparentando vinte cinco anos; trazia uma bolsa a tiracolo marrom e apresentou-se num português arrastado:

— Meu nome é Tiago Douglas Toledo, sou jornalista policial, americano , filho de brasileiros. Vim em busca de material para o meu jornal. Há seis meses acompanho os trabalhos realizados aqui; ele é sério e poderá continuar para benefício de todos aqueles que buscam na fé a cura para seus males. O crime atribuído a esta casa levou-me a uma investigação e descobri a verdade. Gostaria de expô-la e, caso estejam de acordo, irei à policia comprovar os fatos. Os amigos ouviram o relato e no final, agradecidos, convidaram o jornalista para participar da comemoração de aniversário e também, do sucesso da investigação. Ele aceitou com alegria.

Tiago compareceu à Central de polícia e comprovou, através de fotografias, testemunhos e endereços que, um grupo ligado a magia negra, colocou o corpo de um homem morto na madrugada de sexta-feira para sábado, de acordo com a autópsia realizada , na porta do galpão. Depois, avisaram à polícia.

Os responsáveis foram indiciados, o galpão reaberto e o trabalho em ritmo intenso prosseguiu sem outras interferências, com exceção de alguns jornalistas impiedosos buscando fama através de mentiras que pudessem enxovalhar a moral dos que viviam em prol dos seus semelhantes e cumprindo sua tarefa no mundo terreno. Para muitos, Kette era o anjo bom que salvava os desvalidos. Para outros, a megera que iludia prometendo curas milagrosas. Os médicos, descontentes, aliaram-se ao ataque dizendo ser fraudulenta a chamada “cirurgia fluídica” porque, na verdade, não era cirurgia e sim uma impressão de cura enviada ao subconsciente que registrava como tal e o doente pensava estar curado, mas o problema voltaria agravado e, provavelmente, sem solução.

Kette não se importava com os falatórios da imprensa. Se mantinha afastada para manter o equilíbrio e assim prosseguir nas atividades a que estava destinada.

Tiago, que se tornou amigo da família, freqüentava as reuniões e ficava os fins de semana com os Aquine. Sua presença era um bálsamo para as duas mulheres que se divertiam com os casos que contava. Ele e Kette passavam as tardes estudando a doutrina. Trocavam opiniões sobre muitos assuntos. A amizade se solidificou e se transformou. Descobriram o amor em cada gesto. O toque suave e a emoção juntou suas almas.

Janeiro de l918. Quarta-feira. Passava das dezoito horas quando Tiago entrou no galpão extremamente pálido, os olhos vermelhos pelo pranto, as mãos trêmulas balançando um papel sem conseguir articular palavra. Karina pediu que se sentasse e procurou acalmá-lo. Ele entregou-lhe o papel. Era uma carta da sede do jornal nos Estados Unidos. O texto dizia:

“..., necessitamos da sua presença aqui, com urgência, para compor o grupo de jornalistas em missão ao paradeiro de um psicopata que já assassinou mais de 20 pessoas na cidade de Nova Iorque com resquício de crueldade e...”

Kette acabara de operar um homem com paralisia nas pernas. O nervo ciático muito inflamado provocava fortes dores. Ela aplicava compressas de ervas como tratamento auxiliar quando sua mãe entrou e falou-lhe ao ouvido. Ela terminou o trabalho e pediu mais detalhes sobre o assunto. Parou por instantes, sentiu forte compressão na cabeça. Aparentemente calma, foi ao encontro do noivo que a esperava num estado deplorável de angústia.

— Meu amor, essa dolorosa separação será por pouco tempo, tenho certeza. Logo, logo, estaremos unidos novamente.

— Tenho a estranha sensação de que não a verei mais. Apertou-a em seus braços num pranto convulsivo.

— Claro que nos veremos! Quando você voltar nos casaremos e teremos filhos, quantos você quiser e nunca mais nos separaremos. Confie em Deus, querido! Para tudo que acontece há uma razão e, dependendo do nosso ponto de vista, poderá ser suportável ou não. Vamos para casa, lá conversaremos melhor. Tiago a abraçou novamente, seu corpo tremia. Naquela noite ficaram juntos.

Domingo às vinte horas Tiago embarcou num navio, com destino à cidade de Nova Iorque. Quando Kette retornou a casa recolheu-se aos seus aposentos e permitiu que a dor da separação aflorasse.

Trinta dias passados desde a partida de Tiago, ela se preparava na prece para dar início aos trabalhos do dia quando sentiu-se mal . Voltou ao quarto, deitou-se. Sua mãe preocupada disse-lhe que deveria consultar o Dr. Rogério mas ela se recusou alegando cansaço. No fim do dia pediu à mãe que fizesse a prece final, não se sentia bem. À noite alimentou-se pouco e, no momento em que se preparava para deitar-se, desmaiou. Karina, que a ajudava, retornou ao galpão aflita e pediu que alguém fosse chamar o Dr. Rogério para atender sua filha que não estava bem. Voltou ao quarto e a encontrou refeita, porém muito pálida e com náuseas. O médico chegou, mediu seu pulso, diagnosticou: Você não está doente. Está grávida.

Ela empalideceu. A mãe observou o constrangimento da sua doce menina. Abraçou-a carinhosamente.

— Parabéns querida! Este é o presente mais formoso que alguém pode receber; estou muito feliz com a expectativa de ser avó. Deus a abençoe e a este espírito que reencarnará entre nós.

— Obrigada mamãe pela sua compreensão. Comovida.

— A partir de hoje a futura mamãe trabalhará menos e repousará mais, pelo menos durante os próximos três primeiros meses, e irá ao consultório uma vez por mês para que possamos acompanhar o desenvolvimento do feto. Estamos em fevereiro. A gestação data de aproximadamente trinta dias; isso significa que o bebê nascerá em setembro, mês das flores. Faremos uma festa. Elas riram satisfeitas. Receitou algumas vitaminas, deu-lhe os parabéns e retirou-se.

Preocupada com a opinião pública e com Tiago, seu sono naquela noite foi agitado. Acordou pela manhã com aspecto cansado, atendeu poucas pessoas e à tarde foi com a mãe à farmácia comprar as vitaminas receitadas. Na volta, ouviram vozes exaltadas vindas do interior de um bar próximo, atraindo pequena multidão de curiosos que se prostravam na porta para ver o que ocorria. Elas pararam temerosas.

— Mãe, estou vendo dois homens naquele bar enraivecidos e armados, vamos nos unir numa prece e pedir ajuda para que vidas não sejam ceifadas. Após alguns minutos a discussão foi diminuindo, os ânimos acalmando, o povo se dispersando. Tranqüilas, retornaram ao lar.

Naquele mesmo dia escreveu uma carta para Tiago falando da gravidez; da preocupação com relação à opinião pública e da alegria em ter dentro dela um ser gerado com amor, por eles. Falou também da data do nascimento do bebê e da saudade que sentia.

Como era previsto, a opinião pública se dividiu. A imprensa marrom não perdeu a oportunidade e publicou, em letras garrafais, sua gravidez e a classificou de imoral dizendo que seu comportamento desairoso ofendia as religiões.

Era sábado. A campainha tocou. Karina abriu a porta; um mensageiro com grande caixa:

— Encomenda para a senhorita Kette, assine aqui por favor! Ela assinou o papel, deu-lhe uma gorjeta e o despachou.

— Kette, encomenda pra você!

— Quem mandou?

— Não sei, tem uma carta.

— Leia rápido, por favor, só pode ser de Tiago. Será que ele está voltando?

Nova Iorque, 20 de maio de 19l8.

Querida Kette,

Estou com muita saudade. Meu coração foi aquecido com a notícia de ser pai. Como gostaria de estar aí para compartilhar com você dessa alegria, mas no momento é impossível. Estou em devaneio desde que recebi sua carta. Sonho com você e o bebê todas as noites. São muitos os bebês dos meus sonhos. Estou ansioso para voltar, rezo e peço a Deus para que isso aconteça o mais breve possível. Será a maior alegria de toda minha vida. Junto a esta carta há documentos necessários para o registro do nosso(s) herdeiro(s) ou herdeira (s) e, na caixa, parte do enxoval para agasalhar seu miúdo corpinho que amo tanto. Estou com vocês em pensamento todo o tempo. É grande o meu sofrimento em não poder estar aí acompanhando sua gravidez.

Quero que todas as noites, às oito horas, você ponha a mão sobre a barriga e converse com o nosso bebê. Diga que a distância que nos separa é pequena em comparação ao amor que nos une. Diga que estarei sempre ao lado de vocês. Que logo, logo, nos encontraremos para unirmos nossos corpos num forte abraço. Quanto ao nome deixo a seu critério, tenho certeza que escolherá o que for melhor para ele (a). Como está sua mãe, contente com a perspectiva de ser avó? Meus pais a procuraram? Se não o fizeram um dia o farão. Eles não são maus. São de um tempo em que o preconceito é maior que o sentimento. Porém, um dia, descobrirão que o nosso amor está acima de qualquer preconceito.

Aqui em New York a luta é grande para encontrar o maníaco que ...

Tiago, o futuro papai mais feliz de todos os tempos. Amo vocês. Muitos beijos. Até breve.

— Ah, mamãe! Ele não chegará para o nascimento do bebê.

— Não fique triste, filha. Ainda faltam quatro meses. Muita coisa pode acontecer nesse tempo. Uma delas poderá ser a chegada de Tiago. Vamos pedir a Deus que o traga de volta o mais breve possível.

Dia vinte de setembro de 19l8 nasceu uma robusta menina pesando 4 quilos e 53 centímetros. Seus fartos cabelos pretos caíam em cachos sobre os olhos negros contrastando com a alvura da sua pele.

O padre, intransigente, se recusou a batizar a menina por julgá-la fruto de ligação ilícita, apesar da certidão de nascimento constar ser ela filha legítima, com o nome de: Tianne Aquine Toledo, filha de Kette Sanches Aquine e Tiago Douglas Toledo. Um mês depois batizaram-na numa outra igreja, em bairro vizinho. Amigos se reuniram e festejaram.

Em março de l919 Tianne completou seis meses e um telegrama, datado de 10 de fevereiro, chegou. Em letras garrafais dizia: ESTOU A CAMINHO. CHEGAREI NO DIA 31 DE MARÇO. MAL POSSO CONTER MINHA ANSIEDADE. MUITOS BEIJOS. TIAGO

A notícia agitou o galpão. Os amigos queriam saber os detalhes. Kette estava exultante, mas procurava manter a serenidade. À noite, sozinha nos seus aposentos, apertava o telegrama contra o peito, beijando-o muitas vezes. Se sentia feliz. Finalmente o teria de volta e Tianne conheceria o pai. De repente, uma tristeza invadiu sua alma. Um vento frio a fez estremecer. “Por que essa sensação desagradável num momento tão importante para mim?” Pensou apreensiva. Fez uma prece pedindo proteção para o navio em que Tiago viajava e seus ocupantes.

29 de março de 1919. Eram doze horas. A rádio local tocou música de notícias urgentes. A voz do locutor se fez ouvir:

— Atenção. “Devido ao forte nevoeiro, um navio oriundo dos Estado Unidos, com destino ao Brasil chocou-se contra um cargueiro. Informaremos a qualquer momento.

No galpão, os amigos perderam o rumo com a notícia. Tianne, que brincava num cercado, começou a chorar. Karina correu para junto da filha que nada ouvira por estar atendendo um paciente. Esperou e, antes que ela saísse, pediu:

— Filha, sente-se aqui.

— Pra que, mamãe!? Tenho trabalho a fazer.

— Eu sei. Aconteceu um pequeno acidente.

— Tiago, foi com ele, não foi! Eu pressenti. Como ele está? Fala mamãe! Onde ele está?— Se agitou tanto que pela primeira vez perdeu o controle e gritava— Não, ele não pode morrer! Deus não vai permitir.

— Calma, filha. O navio sofreu uma pane. Não se sabe ao certo o que houve.

Nesse momento a rádio tocou música de notícias urgentes. Kette parou.

— Atenção! O navio que chocou-se com o cargueiro na altura da costa brasileira partiu-se em dois pedaços. Equipes de socorro estão no local, não sabemos se há sobreviventes... ela desmaiou. O tumulto se generalizou. Muitos choravam; outros corriam sem saberem exatamente o que fazer. Alguém pegou a menina. Reanimada Kette sofria tanto que doía a quem visse. Passada a tensão maior, lembrou-se de Tianne e foi buscá-la, não a encontrou . Novo pânico. Ninguém sabia do paradeiro da menina. Todos a procuravam dentro e fora do galpão. O desespero crescia a cada notícia no rádio. O povo aglomerado não sabia se procurava a criança ou se ouvia as notícias. Buscavam nos arredores imaginando que ela pudesse ter engatinhado para ruas próximas. Já eram quatro horas da tarde e Tianne não aparecia. O desespero crescia. Nisso, uma mulher baixa, cheia de corpo aparentando cinqüenta anos e de aspecto humilde entrou no galpão, abriu caminho dentro aquele alvoroço e dirigiu-se a Kette.

— Sua filha está em minha casa muito bem cuidada. Ela chorava muito e se debatia nervosa, com tanto tumulto. Demorei porque custei a acalmá-la. Me perdoem se fiz mal. Minha intenção foi protegê-la.

Muitos sentiram ímpetos de bater na mulher pela aflição que causou. Porém Kette e sua mãe, aliviadas, agradeceram à boa senhora e foram buscá-la. Os amigos mais íntimos acompanharam-nas até a residência e lá permaneceram para auxiliá-las, se necessário.

A cada informação aumentava a expectativa. No fim da tarde foi lida a primeira relação de sobreviventes. Posteriormente, muitas outras listas foram divulgadas. Após uma semana, deram por encerradas as buscas. Ninguém sabia do paradeiro de Tiago. Porém, uma leve esperança permaneceu. Ele poderia estar entre os feridos sem documentos.

A sede do jornal nos Estados Unidos autorizou à agência Rio de Janeiro a procurá-lo em todos os hospitais para onde foram levados os feridos no acidente. Não foi encontrado em nenhum deles.

Os pais de Tiago que não aceitaram a ligação do filho com uma mulher que, além de cega, praticava bruxarias, segundo eles, vieram bater na residência dos Aquine em busca de alguma notícia que pudesse amenizar sua dor. Recebidos com amabilidade por Karina foram apresentados a Kette que estava brincando com a filha no chão da sala de jantar. Ela levantou-se e cumprimentou-os, seu abatimento era visível. A menina chorou chamando a atenção da avó paterna que pegou-a no colo recebendo um abraço carinhoso da neta. O avô enciumado:

— Também quero um abraço bem gostoso. A menina atirou-se em seus braços num abraço apertado o tanto das suas forças. Passada a ternura daquele momento eles lamentaram a necessidade de uma tragédia para abater-lhes o orgulho e o preconceito. Permaneceram no bairro e junto da família que seu filho escolhera. Partilhavam de tudo que ocorria mas não se envolviam com os trabalhos do galpão. Eram católicos praticantes.

Dois de abril. O coração tão sofrido de Kette exultou quando soube que numa das listas constava o nome Tiago, sem sobrenome. O jornal verificou. O único internado no hospital citado era outra pessoa. A busca continuou por muito tempo ainda até que, se esgotando todas as possibilidades, deram por encerrado o assunto. Comunicaram aos familiares a decisão.

Kette sofria muito com a ausência dele. À noite, punha a filha para dormir e se deixava abater por profunda angústia. Permanecia em prece por horas na tentativa de desatar a dor que sentia e pedia fosse dado a ela a oportunidade de ver o corpo do seu amado, uma única vez, para despedida. Depois, ajoelhava-se e implorava a Deus perdão pela sua fraqueza. Adormecia exausta e no dia seguinte levantava-se abatida; mal se alimentava. O trabalho durante o dia e a brincadeira com a filha à noite eram os únicos motivos que a faziam se sentir viva.

Numa quarta-feira após a reunião doutrinária, deitou-se mais cedo e adormeceu com sensação de leveza. Seu espírito afastou-se mostrando o laço fluídico e luminoso que o prendia ao corpo carnal. Juntou-se a pequeno grupo de trabalhadores no bem, desencarnados, que a esperavam e ganharam o espaço dentro da noite. Chegaram numa cabana de pescadores, as margens de um rio distante. Entraram. Sobre a cama pobre jazia um homem jovem, pele clara, cabelos pretos, barba crescida. Seu estado de saúde inspirava cuidados, a febre o consumia e ele delirava numa linguagem incompreensível. Sem recursos e desolado, o casal de pescadores aplicavam-lhe compressas de folhas úmidas de abacateiro sobre a testa para abaixar a temperatura. O grupo aproximou-se da cama, aplicou fluidos energéticos sobre o corpo febril durante alguns minutos e abandonou o local. O casal sentiu ligeiro tremor. Instantes depois perceberam que o doente se acalmara, a fisionomia estava serena e ele dormia profundamente. Não tinha mais febre. Aliviados disseram: Graças a Deus!

Kette é despertada pela filha que dentro do berço solicita, no seu linguajar, o repasto da manhã. Ela atende as necessidades da pequena e volta a deitar-se para refletir sobre os últimos acontecimentos.

“Aquele homem deixou-me forte impressão. Essa visita não foi como tantas outras. Tenho a sensação de que o conheço. Será Tiago? Por que não fui avisada? Provavelmente prejudicaria o tratamento devido minha emoção ao revê-lo. Carrego os inconvenientes da encarnação. Acredito tenha sido por isso. Mas deixaram esta sensação para eu possa refletir”.

Karina entrou no quarto e viu a filha ainda deitada preocupou-se:

— Você está bem?

— Sim, estou. A noite, fui numa cabana de pescadores, longe daqui, socorrer um homem com grave infecção, prestes a desencarnar por falta de socorro médico. Tenho quase certeza tratar-se de Tiago. Você pode levar Tianne ao parque pra mim? Preciso pensar numa maneira de alguém ir até o local e conferir minhas suspeitas. Oh mãe! Reze para que seja ele. Karina acariciou a cabeça da filha .

— Se Deus permitiu sua presença no local, com toda certeza permitirá também que descubra a verdade. Disfarça a emoção e dirige-se à neta:

— Vamos passear com a vovó? Saíram deixando Kette recolhida na prece na tentativa de visualizar a noite anterior, numa busca desesperada para reconhecer o local e o enfermo. Não conseguiu. Sua tensão e desejo, no momento, eram maiores que sua fé.

Naquele mesmo dia mandou recado ao grupo encarregado de descobrir o paradeiro de Tiago na época, pedindo que viessem a sua casa. Eles chegaram por volta das 15 horas e, com um mapa da região onde acontecera o acidente com o navio, procuraram em todos os rios próximos aquele que se prestava a pescaria. A grande dificuldade era distinguir qual deles. Kette orientava, porém, nada havia que pudesse avistar e identificar o local. Tratava-se de uma área muito extensa.

Já passava das vinte horas quando o grupo se despediu. O encarregado desculpou-se e lamentou, mas não poderiam investir numa busca infrutífera; caso outros indícios surgissem que fossem avisados. Saíram deixando Kette na mais profunda frustração.

Eram seis horas da tarde do dia vinte e quatro de agosto de 1919. O frio era intenso. Tianne, com onze meses, estava sentada no chão da sala brincando. Súbito, engatinhou até a porta fechada que dava acesso à rua, e bateu com uma das mãos pronunciando — papa.

— Você quer papa Tianne? Perguntou a avó.

— Mãe, temos visita — disse Kette. Nesse momento a campainha tocou. Karina abriu a porta e diante dela um homem jovem de aspecto deplorável, extremamente magro, olheiras profundas, exalando mau cheiro com longa barba. Ela sentiu medo e profunda piedade.

— Sente-se ai nessa cadeira por favor. Vou buscar algum alimento pra você.

— Sou eu Karina, Tiago. Estou irreconhecível eu sei. Sua voz saiu com dificuldade. Ela o olhou petrificada. Não podia acreditar no que via.

— Mamãe, quem está ai?

Tianne disse: — Papa.

Karina despertando do seu torpor:

— Espere só um pouco. Encostou a porta, dirigiu-se a filha e, com muito tato, disse: —Kette, ai está um homem dizendo ser Tiago mas eu não tenho certeza, que faço! Ela levantou-se num salto e nervosamente dirigiu-se à porta.

— Faça-o entrar mamãe. Ele entrou, postou-se diante dela segurou suas mãos e as levou ao rosto. Ela, sob tensão, o apalpou e com certa dificuldade o reconheceu. Abraçaram-se fortemente. A emoção tomou conta até da menina que chorou.

— Esta é Tianne, sua filha. Disse Karina. Ele a olhou enternecido e pediu: posso tomar um banho e depois abraça-las com todo o amor que guardo aqui dentro — comprimiu o peito com as mãos— por todos esses longos meses! Houve momentos que pensei estar enlouquecendo. Imensa angústia se apoderava de mim e julgava que jamais voltaria a vê-las, mas minha vontade era tão forte que, quando não conseguia carona, caminhava por dias e dias nos matos e nos rios comendo frutas que não conheço. Não podia morrer antes de revê-las. Dormia ao relento olhava para o céu e pedia a Deus forças para continuar e chegar aqui. Ele me atendeu. Minha filha querida, graças a Deus o papai está junto de vocês! Muitas vezes a vi em sonhos. As lágrimas inundavam seu rosto e se misturavam à barba longa e suja. Suas pernas dobraram pela emoção e fraqueza. Karina o amparou.

Após o banho vestiu roupas limpas, cortou a barba, deitou-se e se alimentou devagar, ao terminar suas pálpebras se fecharam lentamente. Na manhã seguinte acordou às dezesseis horas. Ao seu lado a família, inclusive seus pais, esperava ansiosa seu despertar. Ele tentou levantar-se mas seu corpo enfraquecido não obedeceu.

— Não se levante, por favor, alimente-se primeiro. O Dr. Rogério chegará a qualquer momento, disse Kette.

Após o repasto e o abraço dos pais ele pediu:

— Deixe eu ficar um pouco com minha filha. Ponha-a aqui perto de mim. Tianne aconchegou-se a ele e recostou a cabeça sobre seu peito.

— Sou seu pai e te amo muito. Falou do desejo de conhecê-la, da saudade que sentira e da emoção de estar junto dela; prometeu nunca mais se separarem. Ela retribuía em linguagem própria. Ouvia tão atentamente que parecia entender o que ele dizia.

A campainha soou, o médico entra e examinou o paciente: Ele está com hepatite, terá que ser internado para tratamento — todos ficaram muito nervosos. O médico interveio — Acalmem-se. A doença está no início, ele ficará bom. Terá uma saúde frágil, é verdade, mas poderá viver por muitos anos se seguir as recomendações.

Tiago, dois meses depois, mais fortalecido, voltou a casa. Seu aspecto frágil inspirava cuidados. Seus pais compraram uma casa grande e confortável próximo ao galpão e a deram de presente de casamento, acontecido no primeiro aniversário de Tianne, dia vinte de setembro de 1919. Em cerimonia simples no Cartório local foi oficializado o casamento de Kette e Tiago. À noite comemoraram com os mais íntimos, inclusive os companheiros do jornal que se tornaram amigos da família. A viagem de núpcias ficou programada para outra ocasião. O noivo ainda se encontrava em convalescença. Nas suas noites de insônia ele passava sentado na poltrona para não incomodar sua mulher que dormia após um dia exaustivo (de trabalho). Em muitas ocasiões ela era despertada por abafados gemidos. Levantava-se e levava-o de volta para a cama; punha a cabeça dele sobre o colo e cantava bem baixinho um hino de louvor a Deus enquanto o acariciava. Ele dormia o restante da noite. O dia clareava, ela cansada deitava-se ao seu lado.

Natal. A saúde de Tiago piorava. Além da hepatite, ele contraíra uma bactéria desconhecida da medicina na época . Os médicos receitavam remédios diferentes, porém nenhum matava o microorganismo que o consumia.

Manhã de 18 de março de 1920, sexta-feira. Kette aplicava compressas em uma mulher com queimaduras no abdome, causada por água quente, quando ouviu um sussurro . “Tiago te chama”. Ela imediatamente pediu à ajudante que terminasse o trabalho e foi para casa. Entrou muito depressa no quarto, foi até à cama e o chamou baixinho:

— Querido, você está bem? Ele, com muito esforço, respondeu:

— Eu te amo. Uma lágrima brotou dos olhos semicerrados e se escondeu.

— Eu também te amo muito. Beijou sua face úmida. Acariciou-a com seus lábios. Perguntou novamente:

— Querido, você está bem? Não obteve resposta. Percebeu sua quietude, auscultou o coração. O órgão que inspira belas canções e eleva muitas vozes em seu louvor como sede do amor não mais pulsava. As lágrimas rolaram pelas alvas faces de Kette. Ela sabia daquele desencarne, mas sempre pedia a Deus que a deixasse desfrutar um pouco mais daquela companhia que preenchia sua vida com tantas alegrias. Desabafou toda sua dor num pranto sofrido depois, ainda debruçada sobre o corpo e mais calma, elevou seu pensamento ao alto e, em preces, pediu aos mentores espirituais que o viessem ajudar. Ao levantar o semblante viu os trabalhadores no bem retirarem, do corpo inerte, o espírito adormecido. Sua aparência era a mesma da que ficara sobre a cama; com muito cuidado e o levaram , sobre os braços, para outra esfera. O corpo de Tiago permanecia na leito como se dormindo estivesse. Agora, nenhuma dor poderia mais afligi-lo. Ela ainda ficou por mais de uma hora ao seu lado despedindo-se e agradecendo pela felicidade que sentira em sua companhia, durante aquele curto espaço de tempo no entender do mundo, porém grandioso na afeição que os unia.

A morte de Tiago trouxe tristeza ao galpão que permaneceu fechado por algum tempo. Kette se sentia fraca pela ausência física do seu amado. Ele terminara sua missão na terra. Ela ainda tinha etapas a cumprir.

Tianne completou quinze anos. Seus avós paternos lhe ofereceram uma festa em comemoração. Ela estava vestida com lindo traje branco. Seus cabelos longos, negros e ondulados emolduravam feições suaves com olhos sonhadores e penetrantes da cor da jabuticaba; gestos delicados, voz macia, semelhante ao pai. Tinha grande amor pela família e se comportava de maneira digna. Ajudava a mãe e avó nos afazeres do galpão nas horas vagas em que os estudos permitiam. A residência estava repleta de amigos. Se preparavam para cantar “parabéns pra você” quando a atenção de Kette foi despertada para um ponto da sala. Seu pai e seu marido sorriam para ela que se comoveu, embora já os tivesse visto em outras ocasiões, principalmente em sonhos, Tianne percebeu.

— Você se comoveu com a presença do vovô e do papai não foi? Eles estão ali desde o início da festa. Já conversamos bastante. Não lhe disse nada para que você não se entristecesse. Eles estão muito bem, mamãe. Ela respondeu com voz embargada:

— Eu sei filha.

Dezembro. No galpão, os preparativos para o natal era intenso. Separavam brinquedos, alimentos, vestuários e tudo mais para distribuição aos carentes desprovidos do necessário. A alegria das crianças ao receber um brinquedo contagiava os doadores. As mães mostravam no rosto o sorriso em vendo a felicidade dos filhos e, também, por levarem para casa o único alimento que os sustentaria. A festa, regada com comidas, refrigerantes e muita alegria transcorreu animada até às dezoito horas quando então todos retornaram aos seus domicílios. Karina não participava do movimento, permanecia sentada a uma cadeira. A neta aproximou-se:

— Você está se sentido bem, vovó? Está tão quieta, o que você tem?

— Não é nada, só estou um pouco cansada. Vou para casa deitar-me.

No dia seguinte pela manhã levantou-se bem cedo, preparou o café e voltou a deitar-se. Kette estranhou. Foi ao seu quarto e quando entrou, pressentiu algo. Aproximou-se da cama, tocou-lhe o corpo:

— Mamãe, mamãe! —Não houve resposta. —Oh, mamãe! Você nos deixou, nem se despediu! Vou sentir tanto sua ausência! Você é muito importante para mim! Colocou a cabeça de Karina sobre o colo e ali permaneceu acariciando-a, numa despedida longa e silenciosa.

Os freqüentadores do galpão lamentaram a morte de Karina, seu enterro foi acompanhado por milhares de pessoas que prestaram as últimas homenagens àquela que muito fez em prol dos semelhantes.

Kette continuou seu trabalho de assistência. A mãe de Tiago, viúva e com idade avançada veio se juntar a elas. Tianne casou-se e teve um casal de filhos. Adolfo e Tamise.

Aos setenta e cinco anos Kette ainda era uma mulher bem disposta e saudável. Sentava-se, todas as tardes na varanda, numa cadeira de balanço, e avaliava seu dia. Procurava nos atos que praticara se havia feito algo contra seu semelhante ou se ofendera a Deus com algum pensamento indigno. Lembrava de Karina, do pai e de Tiago, o homem que a fez tão feliz. As lágrimas molhavam seu rosto e assim se encontrava quando foi despertada por uma voz infantil.

— Vozinha , você tá chorando?

— Oh Tiago! Meu bisneto querido, a vozinha não está chorando, só está pedindo perdão a Deus.

— Então, por que essa lágrima no seu rosto? Deus não te perdoou? Vou pedir a Ele pra perdoar você. Assim, você não chora nunca mais.

Ela comovida, — Suba aqui. — batendo nas pernas — Prometo nunca mais chorar, está bem assim? Ele dependurou-se no seu pescoço e respondeu.

— Tá.


 

©2001,2006 — Cleusa Sarzêdas
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