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Causos

Marcos Soares Ramos Cabete

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Causos
Marcos Soares Ramos Cabete

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©2002 — Marcos Soares Ramos Cabete


 

Marcos Soares
Ramos Cabete

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CAUSOS

 

Aqui você encontrará um apanhado de causos que tenho escrito e na maioria das vezes enviado ao site www.eptv.globo.com/caipira/ que é o site do “Sítio do Caipira”. Se você entrar no site e quiser ver outros causos meus ou de outros autores procure a página dos causos e nesta página encontrará os 4 ou 5 últimos causos. No final da página encontrará a frase: “ver mais causos” que o levará a um grande arquivo de causos.

Esta obra, no atual estágio em que se encontra não tem pretensões literárias, desejo apenas relatar-lhes os verdadeiros fatos que normalmente ocorrem com nossos caipiras, qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é porque as histórias são reais mesmo!

Espero que gostem e se divirtam um pouco, obrigado pela atenção e pelo seu tempo.

Marcos Soares Ramos Cabete
Ribeirão Preto. Abril de 2002.
cabete@brascopper.com.br
mcabete@ig.com.br


 

índice

Caipiras Aviadores
O Palhaço da Folia de Reis
O Tempo Avua
Porquinho e o Galo Severino
Boi Véio, o Caipira e a Reciclagem
O Caipira e a Astronomia
O Galo Capão
João de Deus
A Esperteza dos Bichos
Perdigueiro Bem Treinado
Falta de Mistura Pode Matar
Mané I - A sopa especial de Sexta-feira Santa
Mané II - Pode trazer o frango?
Mané III - O coelho desencarnado
Coitada da Moça
A Coragem do Caipira
O Caipira, a Radioestesia e o Leite de Onça
O Primo Ventania


 

CAIPIRAS AVIADORES

 

A paixão de nosso caipira pela aviação começou há muito tempo. Aqui ao lado de Ribeirão Preto uma pequena cidade homenageia em seu nome o mais ilustre de seus caipiras que ali teve fazenda e sonhou com os ares. Dumont.

Em meu tempo de faculdade lá em Guaratinguetá encontrei muitos caipiras encantados com os ares. Um deles em especial, meu amigo, judiou bastante de mim fazendo piruetas, parafusos e outros malabarismos com um aviãozinho paulistinha.

Em um de nossos passeios malucos o Hortão, este meu amigo piloto, viu uns pescadores com redes armadas no rio Paraíba, coisa que não era proibida naquela época, e resolveu dar uma ajudazinha aos pescadores.

Descemos alguns quilômetros no rio e o Hortão foi abaixando o avião sobre o rio Paraíba e eu fui me desesperando. A certa altura ele encostou as rodas do teco-teco na água, com a pequena frenagem da água o avião inclinou-se para a frente e tocou com a ponta da hélice no rio, ele segurou a aeronave nesta posição e foi subindo o rio tocando os peixes para as redes dos pescadores.

Era água que voava para todo lado, parecia que estávamos dentro de um liqüidificador.

Próximo das redes ele subiu e deixou os atônitos pescadores com as redes abarrotadas e uma “história de pescador” inacreditável. Quem for pescar pelos rios de Guaratinguetá certamente ouvirá esta história de algum pescador. A brincadeira custou-lhe caro. A hélice do avião desbalanceou e teve que ser substituída. Quem lucrou fui eu que ganhei a bela hélice de pau marfim que hoje está enfeitando a varanda de minha casa.

Mudei-me para São Paulo em 1978 e logo, minha esposa e eu, fizemos amizade com mais um caipira aviador e sua esposa. O descendente de italianos Ângelo fala alto, xinga bastante e se acha destemido, desbravador, inventor, etc. Inventou de fazer três filhos e quase não deu conta, cada um foi saindo com a boca maior que a do outro. O mais novo cada vez que chorava engastalhava os dentes nas orelhas, dava o maior trabalho desengastalhar o menino. Acabou ficando com o apelido de “O Boca”.

Destemido, de certa feita o Ângelo vinha chegando do trabalho, de terno, pasta 007 na mão, viu a prancha de skate das crianças no corredor. Tomou impulso e com muita velocidade pulou sobre o skate. A prancha rodou suavemente até o fim do corredor, no exato tempo que o Ângelo levou para subir e cair de costas quebrando duas costelas.

Após fazer seu pé de meia na cidade, tirar brevê de piloto, tomar raiva de computadores (trabalhava como analista de sistemas), o Ângelo resolveu voltar às raízes.

Juntou um bom patrimônio que havia constituído mais uma boa herança de sua esposa e foi alimentar bicho de pé em uma bela fazenda que adquiriram em Tupi Paulista, interior de São Paulo.

Como na época a moda era plantar cana de cara ele plantou 100 hectares. Plantou e cuidou muito bem pois tinha dinheiro na poupança. O canavial ficou lindo.

Se esqueceu de combinar a venda da cana antecipadamente. Quando foi tratar na destilaria ficou sabendo que àquela altura da colheita a destilaria só aceitaria a cana se ele a colhesse e entregasse pois toda mão de obra e frota estava comprometida.

Aquela foi uma noite terrivelmente mal dormida, se perdesse o canavial o fiasco seria grande e sua carreira como fazendeiro terminava ali. Acostumado a administrar crises em seu trabalho na cidade agora tinha que aplicar ali toda sua experiência.

Pela manhã o Ângelo pulou da cama cedo, avisou a esposa para fechar os porcos no chiqueiro e não deixar as crianças saírem de casa, ninguém poderia se aproximar do canavial! Foi sua ordem expressa para a esposa e empregados. Saiu em disparada, com a caminhonete, em direção à cidade.

Antes do almoço ouviram um barulho estranho ao longe que foi crescendo em direção à fazenda. Era o Ângelo com um helicóptero!

Assim que foi chegando começou a balançar o helicóptero lateralmente e o mesmo parecia o pêndulo do relógio cuco que tinham na sala. Quando estava bem próximo do canavial com uma oscilação maior ficou de ponta cabeça com o helicóptero. Abaixou até quase tocar o solo e entrou pelo canavial afora.

Nunca se viu nada igual. A nuvem de poeira que se levantou era enorme e quando se abaixava a poeira não se podia acreditar na cena: havia uma verdadeira estrada limpinha no meio do canavial com duas leiras de cana amontoadas a suas margens.

Após quase uma hora em que o Ângelo estava cortando a cana com seu aparador de grama gigantesco começaram a chegar caminhões e carregadeiras que havia contratado na cidade. Até o final da tarde ele já havia cortado os 100 hectares, só parando para abastecer o helicóptero e limpar e afiar as hélices.

Os caminhões trabalharam a noite toda e o dia seguinte todo para conseguirem transportar toda a cana. A história correu toda a região e os fazendeiros fizeram fila na estrada para ver aquela enorme área totalmente limpa quando no dia anterior era um imenso canavial.

A partir deste dia os coitados dos gansos da fazenda ao ouvirem barulho de avião ou helicóptero passaram a andar de cabeça baixa o que para eles é bastante difícil e desengonçado devido o enorme pescoço.

Infelizmente nem tudo é alegria. A aeronáutica ficou sabendo do feito e caçou o brevê do Ângelo por pilotagem perigosa.

Famoso mas desgostoso com o episódio da cana ele resolveu investir em outra cultura. Estudou, pesquisou, conversou muito e decidiu plantar uva de mesa, aquela que todos nós compramos no natal, diferente das outras que são usadas na fabricação de vinhos.

Iniciou com 10 hectares de parreiras. Comprou as melhores mudas, contratou especialistas para orientarem seus empregados e novamente o resultado foi um sucesso.

Na primeira safra os cachos de uva estavam lindos e as uvas doces como mel. Mas mais uma vez a sorte não o ajudou. A produção de uvas no sul do país também foi excepcionalmente boa neste ano e o mercado foi inundado com uma quantidade de uvas que nunca se viu. O preço caiu a patamares que não pagavam o trabalho da colheita.

Nosso amigo esgotou todo seu repertório de palavrões (que era respeitável) e foi parando de falar aos poucos até entregar-se a uma introspecção total.

Sua esposa, vendo-o naquele estado, dia após dia e cada vez pior percebeu que deveria fazer algo para reverter a situação pois naquela depressão ele não iria conseguir achar solução para o problema. Precisava distraí-lo do assunto por algum tempo para que pudesse relaxar um pouco daí talvez viesse alguma boa idéia.

Imaginou que a melhor distração para o homem é o sexo. Preparou-se com especial esmero para aquela noite. Depilou-se, fez as unhas, tomou banho de ervas cheirosas e colocou uma roupa extremamente sexy para esperar o marido.

O marido chegou de cabeça baixa e mal a notou. Após muita insistência foi tomar um banho. Jantaram à luz de vela, ele pensou que a energia elétrica tinha acabado, fato comum na zona rural.

Foram para a cama e ela começou a entrelaçar-se sobre o corpo do marido que parecia um boneco de cera. Sua cabeça só conseguia pensar nas uvas se perdendo nas parreiras.

Após tentar várias carícias e provocações e vendo que ele não se armava adequadamente para o sexo ela tentou a última cartada que conhecia:

— Benzinho, disse ela com voz melosa, você quer que eu chupe?

Ao que ele respondeu:

—Mas são dez hectares meu bem, você vai conseguir?


 

O Palhaço da Folia de Reis.

 

Naquele final de tarde o Milton estava muito pensativo. Terminou sua lida diária tirando o burro do arado e soltando-o no piquete com o merecido prêmio de 4 espigas de milho.

Pegou um balaio de milho colocou nas costas e dirigiu-se ao chiqueiro. Jogou as espigas aos porcos e antes que a última caísse ao chão já estava caminhando em direção a sua casa.

Parou junto à bica de água e tirou o grosso da poeira do rosto e dos braços.

No interior da modesta e limpíssima casinha com piso de saibro socado já tremia a tênue luz de uma lamparina a querosene.

O Milton entrou calado, sentou-se à mesa na sua cadeira predileta que ficava ao lado da janela por onde podia observar as estrelas e o luar da noite clara e quente.

A comida foi rapidamente servida por suas irmãs entre um e outro comentário sobre a porca que havia parido e os bernes da vaca malhada que foram curados com óleo queimado cedido pelo homem do caminhão que recolhia os latões de leite.

O Milton só ouvia e comia o arroz com feijão e pele de porco, colherada após colherada. A coxa de frango reservou para o final.

Terminado o jantar sentou-se do lado de fora da casa onde tomou um café com rapadura e fumou calmamente um bem enrolado cigarro de palha.

Esperou exatamente duas horas após o jantar e foi tomar um “banho de caneca” e colocar seu pijama listrado de azul e branco.

Pela abertura do forro afofou as palhas de milho desfiadas, do enchimento de seu colchão, fazendo o típico barulho que avisava a todos da casa sem forro que estava na hora de fazer silêncio e apagar as lamparinas.

Quem dorme em colchão de palha cria o hábito de não se mexer. Tem que ficar bem quietinho pois a cada mexida o barulho das palhas informa à casa inteira que tem alguém acordado. Naquela noite não teve jeito. O Milton se remexeu por um bom tempo pensando na promessa que havia feito ao pai em seu leito de morte dois anos atrás. Só parou de se remexer quando tomou a decisão de sair como palhaço na Folia de Reis deste ano assumindo assim o compromisso de pagar uma promessa que seu pai havia feito em vida e que ele havia se comprometido a pagar mas vinha adiando pois era muito reservado e não se via fazendo as estripulias de um Palhaço de Folia de Reis.

O tempo de preparação foi curto pois já estavam em novembro. As irmãs costuraram à mão a fantasia e com a ajuda de uns vizinhos ele conseguiu fazer uma máscara bem rudimentar e colorida. Feia como convém ao palhaço que representa “o Coisa Ruim” na Folia.

Acertado com a Companhia de Foliões pediu licença ao patrão para se ausentar do serviço explicando que era motivo de força maior pois tinha de cumprir a promessa feita pelo pai. Não sabia qual era a graça pedida pelo mesmo e nem se a havia alcançado ou não mas promessa feita tem que ser cumprida.

Nas andanças da Companhia descobriu que só dava para desempenhar bem o papel do “Coisa Ruim” após um meio litro de Tomba Perna, cachaça da boa!

Assim foi que o Milton cumpriu a promessa do pai mas tornou-se um alcoólatra.

O caboclo de mãos calejadas e pele grossa do sol já não era mais o mesmo responsável e trabalhador de sempre. A garrafa de cachaça passou a acompanhá-lo na matula e acabava dormindo na sombra de um pé de café.

Ele se desesperou com a situação e certa manhã, quando suas mãos trêmulas não conseguiam tirar o leite das tetas da malhada, amarrou a corda de pear as vacas em um esteio do barracão e quase conseguiu dar fim a seu sofrimento.

Namorou uma moça de muita personalidade e força interior que já conhecia sua história e acabaram por se casar. Sua esposa conhecia as rezas secretas das benzedeiras e passou a benzê-lo todas as noites quando dormia o sono dos bêbados.

Após algum tempo lhes foi oferecido pelo patrão um pozinho que era acrescentado à sua comida, com o seu consentimento, e lhe trouxe um verdadeiro pesadelo de vida com vômitos intermináveis quando tomava algum trago.

Após poucas semanas já não sentia tanto a falta da cachaça e passou a freqüentar a venda novamente apenas para um bate-papo com os amigos. O cheiro da pinga ainda o incomodou por vários anos.

Hoje, quando o Milton assiste às famosas Folias de Reis de Altinópolis fica muito emocionado e sente sua fé aumentar mais ainda quando se lembra que quem o salvou, sua forte e amada esposa, se chama Divina.


 

O TEMPO AVUA

 

Naquele tempo, que não está tão longe como alguns irão imaginar, havia uma preocupação muito maior com os relacionamentos humanos, gastava-se muito mais tempo com um bom bate papo e com a preparação de um “agrado” para as crianças.

Eu e meu irmão mais velho (dois anos) Tadeu estávamos na escola de roça do Congonhal, que era também uma estação de parada (e partida é claro) das composições da São Paulo e Minas com suas barulhentas “Marias Fumaça” movidas a lenha.

Cerca de 10 quilômetros atrás, ou adiante conforme o sentido, estava a nossa querida e já bem conhecida Altinópolis.

Nosso avô, Manoel Joaquim Soares, português legítimo, foi o primeiro prefeito da cidade e quando em viagem pela “São Paulo e Minas” chegava a fazer uso de sua autoridade para parar o trem ao lado de algum canavial e junto com outros senhores colher cana para adoçar a viagem das senhoras e moças alojadas nos vagões de madeira da composição. Alguém já imaginou hoje, um prefeito de São Paulo, tentando parar o Metrô para descer e comprar refrigerante em algum boteco ao longo da linha?

Nossa avó materna, Celuta, era uma pessoa rara. De físico franzino e personalidade robusta sabia cativar a todos e cuidar de nós com muito carinho.

Nesta época, no sítio, não tínhamos energia elétrica e nenhum de seus confortos. As carnes eram conservadas em latas de banha ou andando sobre suas próprias pernas.

Quando raramente íamos à cidade nosso maior prazer eram os picolés de coco queimado da padaria do Corchini.

Pois às vezes éramos surpreendidos durante as aulas, que reuniam alunos da primeira segunda e terceira séries em uma mesma classe, por visitas do Chefe da Estação do Congonhal que nos avisava que chegara alguma “encomenda” da cidade que deveríamos retirar no final das aulas para levarmos a nossos país.

Quando a tal “encomenda” era um grande caldeirão de alumínio todo suado e com a tampa presa com um elástico de câmara de ar de bicicleta nosso coração batia mais rápido e tomávamos o rumo do sítio o mais rápido que podíamos andar pois sabíamos que a carga era preciosa.

Chegando em casa todos os irmãos se reuniam à volta do famoso caldeirão suado, éramos um punhado nesta época, não me lembro bem se seis ou sete ou oito.

Nossa mãe, fazendo o maior suspense, abria a tampa do caldeirão e revelava em seu interior outro caldeirão menor sendo que o espaço entre um e outro estava preenchido com água e gelo que rapidamente disputávamos.

Dentro do caldeirão menor estava a maior prova de estima e carinho de nossa avó Celuta: um punhado de picolés de coco queimado!

Meus amigos, esta prova de amor aconteceu por várias vezes a apenas quarenta anos atrás.

Hoje ainda vejo, raramente, algumas provas de amor de tamanha grandiosidade e simplicidade.

O maior presente para nossos filhos e netos neste natal e início de 2002 não precisa ter pilhas alcalinas, megabytes de memória e nem botões coloridos.

O nosso maior presente precisa ter uma sincera dose de amor e com certeza nunca será esquecido assim como nunca esquecerei minha querida e meiga Vó Celuta. Que doce de leite delicioso ela sabia fazer!

Um bom Natal e um ano novo cheio de carinho e amor para todos vocês.

PS: Este causo foi escrito em dezembro de 2001 como uma mensagem de natal aos amigos, parentes e leitores.


 

Porquinho e o Galo Severino.

 

Nosso amigo a quem chamávamos carinhosamente de Porquinho era baixinho, gordinho, falava muito e xingava à vontade, como todo bom descendente de italiano. Se não estivesse gritando e xingando, estava distribuindo uma farta gargalhada. Era daqueles que preenchiam o espaço à sua volta, principalmente, o coração dos muitos amigos.

Homem irrequieto, amava as corridas de Kart e todas as coisas belas da natureza, principalmente as do sexo feminino.

Cansado do serviço repetitivo por detrás do balcão de sua loja de parafusos, resolveu adquirir um pequeno sítio para criar galinhas e se distrair no final do expediente e finais de semana.

A criação de galinhas cresceu rapidamente chegando a 180 galinhas e nenhum galo.

Certo dia lhe disseram que ovo bom tem que ser ovo galado. O Porquinho foi até o sítio vizinho e pediu ao “Seu” Mané um galo “dos bons” pois não queria colocar mais que um para não dar briga.

Seu Mané entrou pelo galinheiro com uma caneca de milho debulhado e foi um estardalhaço de asas batendo e bicos disputando cada um dos grãos.

Com um bote certeiro Seu Mané pegou de qualquer jeito um Galo índio.

— É o melhor que tenho! É belo, forte e com certeza não vai lhe decepcionar, disse Seu Manuel.

O Porquinho “peou” o galo amarrando suas pernas com uma tira de pano que a patroa do Seu Mané lhe arranjou e foi pela trilha de vaca admirando a plumagem vermelha, os olhos azuis e a crista de vermelho vivo.

No dia seguinte o Porquinho nem foi cedo para a loja. Soltou o galo no terreiro e ficou observando. O índio pegou uma galinha, pegou a segunda e antes de terminar o serviço caiu mortinho da silva com a língua escapando para um dos lados do bico.

O Porquinho soltou uma meia dúzia daqueles palavrões que não dá prá se escrever, juntou o galo pelo pescoço e foi ver o Seu Mané que levou o maior susto com aquele galo caindo a seus pés e com a gritaria do Porquinho.

— Carma, seu Porquinho! A gente arresorve! Gaguejou o Seu Mané e lá se foi galinheiro adentro com outra caneca de milho.

— Vamos experimentar este aqui. Não é tão vistoso quanto o índio mas tenho visto ele trabalhar bastante as galinhas.

Lá se foi o Porquinho com o novo galo, todo preto e com uma estranha crista amarelada. Prendeu-o debaixo de um balaio para soltar na manhã seguinte. Logo cedo, o galo preto é solto. Parte todo empinado e traça a primeira galinha de pé. A segunda perde sua virgindade encostada na cerca do galinheiro. Parte para a terceira sem muita pressa e após a quarta cai morto no meio do terreiro com um monte de galinha à sua volta. O Porquinho chega distribuindo pontapés e joga galinha prá tudo quanto é lado. É uma verdadeira chuva de penas. Agarra o galo preto e sai rodando ele em direção a sítio do Seu Mané.

De longe Seu Mané já escuta o xingatório e corre a pegar outro galo.

— Seu Porquinho, vai logo dizendo, este é o ultimo que tenho. É baixinho, cabeçudo, tem a cabeça chata e quase não tem pescoço. Seu nome é Severino.

O Porquinho olha desolado o galo corcunda, com olheiras, sem crista e pensa alto:

— Era só o que me faltava. Um galo cearense!

Pega o galo pelas pernas e vai arrastando-o com a cabeça batendo no chão e o pequeno pescoço pelado espetando nos espinhos dos juás.

Chegando no sítio resolve fazer o teste na hora. Solta o Severino no terreiro. Todas as galinhas param de comer e levantam as cabeças observando a estranha figura. Severino balança a cabeça para tirar o pó e parte com tudo para cima da galinhada. Enlouquecido come as 180 galinhas. Dá uma respirada profunda e come as 180 de novo. Sai correndo e sobe no pastor alemão. O Porquinho pega o Severino dá-lhe dois sopapos para acalmá-lo e tranca-o na gaiola.

As galinhas estavam enlouquecidas, era Severino prá cá, Severino prá lá, que o Severino é isto, que o Severino é aquilo... No dia seguinte, ao soltar o Severino só se vê poeira. O safado do galo dá duas voltas completas faturando tudo quanto é buraco com penas, pega o cachorro, as porcas e quando está chegando no curral é alcançado pelo Porquinho que pega-o pelo pescoço enfia no tanque de água fria para acalmá-lo e o joga na gaiola.

O Porquinho é todo sorrisos. Êta galinho fera! Este vai dar conta do sítio inteiro sozinho, pensa em voz alta.

No outro dia o nosso amigo se descabela ao encontrar a gaiola toda arrebentada.

No terreiro, as galinhas fumando e assoviando. No chiqueiro, o porco com o rabo para o sol, as duas vacas coçando as ancas em um toco e falando do Severino.

O cachorro, com o rabo quebrado para um dos lados, vê que o rastro vai em direção ao sítio do vizinho e se desespera.

O Porquinho pega um cavalo e sai no rastro do Severino, sem descanso.

Encontra cabras suspirando, uma tartaruga que perdeu o casco no tranco, três capivaras esfriando suas partes íntimas na água do rio, um tatu entrando de marcha à ré no buraco... até que, de repente, vê o Severino caído no chão. Uma cena estarrecedora!! Os urubus voando em círculos já farejavam a comida.

Quando viu os urubus, o Porquinho entendeu de imediato a situação.

— Nããããooo, Severinooooo!!! Morreuuu o Severinooo!! Logo agora que eu tinha encontrado um galo de verdade!!

E no meio do lamento, cuidadosamente o Severino abre um olho, olha para o Porquinho e diz:

— Shhhhhhhhh!!! Fica quieto que eles estão quase descendo!

A amizade que se formou entre os dois era coisa linda de se ver. O porquinho levava o Severino até no bordel e fazia o maior sucesso.

O Severino ainda está por aí. Depois que o Porquinho se foi, o Severino ficou desgostoso e passou a beber pinga. Já não é mais o mesmo. As galinhas não gostam do bafo dele.

Quanto ao nosso querido Porquinho, ele deixou saudades e um vazio imenso. Sua querida esposa deu-lhe a maior prova de amor após sua morte. Plantou sobre o túmulo mudas de Marias-Gomes, Marias-Rosas, Marias-Pereiras e a prova maior de seu bem querer: um canteiro de Maria-Sem-Vergonha a lhe fazer companhia!

PS: Com este causo procurei lembrar um pouco meu grande amigo Marco Pace que partiu prematuramente e o desprendimento e amor de sua esposa Ana.


 

Boi Véio, o caipira e a reciclagem.

 

Nesta terceira semana de setembro de 2001, o programa Nossa Gente, da EPTV, me fez uma deliciosa e nostálgica surpresa.

Era uma matéria sobre o famoso Boi Véio, caipira já bem conhecido e tombado pela mídia regional. A lembrança bateu fundo em minha alma e resgatou-me experiências de infância indeléveis em minha memória.

É que eu tive o privilégio de conhecer este verdadeiro bicho-homem no meu tempo de moleque. Boi Véio, João-de-Deus, Seu Alvino e tantos outros autênticos caipiras são bichos-homem, homens integrados à natureza e dela usufruem, mas sem destruí-la, e deixam para os seus próximos lindas lições de vida.

Quando conheci o Boi Véio eu tinha pouco mais que sete janeiros e ainda não tínhamos entrado nos anos de trevas da ditadura militar quando os nossos caipiras foram incentivados a saírem da roça pra ir morar na periferia das cidades para depois voltarem às roças sobre as carrocerias de caminhões com suas enxadas enferrujadas e suas marmitas frias: os bóias frias.

Boi Véio saía dos cafundó de Santo Antônio da Alegria e vinha até a venda da Dona Helena, minha avó, ali no Congonhal, já bem mais perto de Altinópolis.

Ali na venda, entre garrafas de cachaça, latas de sardinha, doces em pedaço, fumo de corda, peças de panos embrulhadas, botinas, querosene em lata e tantas outras coisas, havia sempre uma boa prosa enquanto se fazia calmamente a despesa do mês.

Feita a compra, o Boi Véio escutava o barulho do velho motor diesel que tocava a máquina de beneficiar arroz do Cidonio, filho da Dona Helena e meu pai. Lá ia ele para mais uns dois dedos de prosa. A conversa acabava na cozinha do sobradão de 1919 onde a Dona Ruth, minha mãe, sempre tinha um bolo de fubá e um cafezinho fresco para as visitas.

Creio eu que foi o Boi Véio que despertou no Cidonio o interesse por colecionar estribos de arreio, peças que ficavam expostas na máquina de arroz. Tinha até algumas da cavalaria do Império.

Numa destas visitas, a prosa foi interrompida pela chegada do Dito Chicão, um homem lá do Brejão, uma região de muita areia e capim barba-de-bode. Morava num casebre de pau-a-pique com suas duas irmãs e uma meia centena de barbeiros e algumas dezenas de percevejos. Toda a família dele tinha enormes bócios que chamavam a atenção da criançada.

O Dito Chicão, que aporrinhávamos chamando de Dito Areia, ia até a máquina pra ganhar fubá e quirela de arroz, aproveitando a ida também para ganhar mais algumas coisas na venda da Dona Helena. Na volta para o Brejão, ele completava a carga com algumas rapaduras do engenho do Seu Tino, pai do saudoso Lyseas, o Coco, de Altinópolis.

Conversa vai, conversa vem, o Cidonio falou para o Boi Véio de uma idéia que tinha de conseguir algumas doações e, num mutirão, construir uma casinha mais decente para a família do Dito Chicão. Pronto! Bastou falar e o Boi Véio já ficou todo assanhado. Caipira bom é assim: falou em fazer mutirão para ajudar alguém que os olhos brilham e ele não vê a hora de começar.

Foram incontáveis finais de semana que o Boi Véio saía de seu rancho e fazia uma longa viagem até nosso sítio. Lá o Cidonio já o esperava com uma charrete cheia de ferramentas e um borná com o almoço e café. Lá iam os dois tagarelando rumo à fazenda do Seu Corchini onde conseguiram a doação de uma gleba para levantarem a casinha. Eu bem que tentava ir junto mas não me levavam.

Um belo dia meu pai me chamou cedo. Ia me levar junto para conhecer a casinha que já estava pronta. A viagem foi interminável e deliciosa, escutando a prosa do alegre Boi Véio e do meu pai.

Quando chegamos à casinha eu não entendi como que já tinha uma roça de mandioca ao lado da casa. É que enquanto eles levantavam a casa o Dito Chicão, as suas irmãs já tinham cuidado de plantar mandioca, fazer uma cerca, plantar erva-cidreira, trazer a bacia com cebolinha verde...

A casinha, construída naquele areal era impecavelmente limpa. Na cozinha, uma prateleira feita com tábuas de caixote de bacalhau tinha canecas feitas de latas de massa-de-tomate, panelas de latas de óleo, frigideiras de latas de marmelada e muitas outras criações do Boi Véio que, sem saber, já praticava na década de 1960 algo que só foram inventar o nome recentemente: a reciclagem.


 

O caipira e a astronomia.

 

Nosso caipira observa o céu e conhece muito pouco sobre ele. Às vezes acredita que São Jorge vive na lua matando o dragão. Minha avó presenciou pela tv a ida do homem à lua e até a sua morte anos depois não acreditava que aquilo realmente ocorreu. Dizia que era mais um truque do cinema americano.

Em 1975 fui estudar engenharia mecânica em Guaratinguetá, terra do presidente Rodrigues Alves. Morávamos em nove amigos em uma república estudantil que formamos à beira do rio Paraíba bem próximo à ponte metálica ou ponte velha.

Meu maior amigo desta época é de Cruzeiro, estava mais adiantado na faculdade, seu pai tinha uma fazenda no município de Guaratinguetá a qual visitávamos com freqüência para noitadas regadas a vinho, queijo fresco, violão e muitos causos contados e ouvidos.

Certa ocasião o Guto, este meu amigo, foi fazer um curso de astronomia no planetário em São Paulo. Viajava todo final de semana para as aulas, aprendeu sobre as constelações e também como fazer um telescópio. Não precisa dizer que o assunto de muito tempo foram as estrelas, os planetas, as galáxias e tudo relacionado. Por muito tempo demos boas risadas do Guto quando teimava em nos fazer acreditar que um de seus professores de astronomia era cego.

Muitos anos depois, já residindo em São Paulo, vim a descobrir que o tal professor cego realmente existia!

Curso feito, telescópio construído, lá fomos nós no Jeep 54 do Guto para a fazenda pois lá não haveria tanta iluminação a atrapalhar a observação dos astros.

À noite, telescópio a postos, céu maravilhoso, chamamos o Sr. Francisco, administrador da fazenda, para participar do evento. Após uma breve aula de astronomia, da diferença entre estrelas e planetas, de quantos planetas temos no sistema solar, etc.., o Guto apontou o telescópio para Saturno e foi realmente um espetáculo. O danado parecia uma bolinha de gude, do tamanho de uma jabuticaba graúda e com os tais aneizinhos à sua volta. Era uma coisa linda realmente.

Chamamos o Sr. Francisco para ver. Ele olhou pelo telescópio, olhou para o céu, olhou novamente pelo telescópio, olhou outra vez para o céu e tornou a olhar pelo telescópio.

— E aí Sr. Francisco, o Sr. viu Saturno? Perguntou o Guto.

— Vê eu vi, respondeu, mas não acreditei não!

Assim é nosso caipira, às vezes não acredita no que vê, mas acredita naquilo que lhe foi contado por seus avós e compadres, como Saci Pererê, Curupira, Mula sem cabeça... Para ele a informação oral é a que vale. O nosso caipira é um bicheiro às avessas, um São Tomé de ponta-cabeça. Não vale o que está escrito, nem há a necessidade de se ver para crer. A tradição oral passada a gerações é a história e também a ciência. O resto são esquisitices ou invencionices como sinhôzinho Guto tentou ensinar.


 

O GALO CAPÃO

 

O Zé Alves era um destes homens caprichosos. Fazenda sempre bonita, bem cuidada, pomar com os troncos das árvores sempre caiados de branco, igualmente à sua sede, sempre pintadinha de novo, de branco e azul.

Cafezal todo alinhadinho e bem carpido, gado holandês sadio e roliço, chiqueiro limpinho com aqueles porções cor de rosa e os caipiras, de brinquinho, com manchas negras sobre o fundo branco.

A bomba d’água cabeçuda batendo dia e noite e dando suas golfadas de água para toda a criação. A galinhada solta no terreiro correndo atrás das tanajuras era uma verdadeira festa naquela mistura de raças.

Tinha carijó, pescoço pelado, garnizé, galo índio, peru, pato, ganso, galinha d’angola e outros tantos bichos de pena e bico.

O Zé Alves só não era muito caprichoso consigo mesmo. A calça sempre caindo, só não não acabava de cair por milagre, pois não tinha onde se engarranchar.

O homem parecia uma tábua bem aplainadinha quando visto por trás. O seu andar rápido e elétrico o livrou de muitas picadas de cobra. Eu mesmo vi uma jararaca tentar acertar sua perna e errar o bote. Foi num trilho de gado na beira do rio Sapucaí, lá no poço do Rancho Azul, em nossa querida Altinópolis.

O Homem tinha também duas coisas que fazia com esmero e carinho: tocar violão com um grupo de amigos e capar porco.

Seu canivete Róger, com as talas do cabo de chifre bem polido, estava sempre afiadíssimo e era cobiçado por todo capador da redondeza. Era um verdadeiro instrumento cirúrgico, o tal Róger em sua inseparável bainha de couro.

O Zé Alves era também muito brincalhão e estava sempre aprontando das suas.

Dizia-se que ele tinha um pouco do espírito dos porcos que capava.

Na beira de um rio, era impossível continuar-se a pescar a partir do momento em que ele resolvesse que a pescaria tinha acabado. Jogava lata no rio, ficava treinando tiro ao alvo com a carabina, batia o pé no chão e fazia de tudo para atrapalhar aqueles que sempre tinham a esperança de pegar um peixe para não voltar de mão abanando.

Certa vez estava ele na alta varanda da porta da cozinha de sua casa (vocês já repararam que na roça, a varanda na porta da sala só serve prá juntar folha seca?) olhando a galinhada e começou a ficar invocado com o galo índio que teimava em brigar com tudo quanto era galo que chegava perto. E foi aí que uma idéia maluca começou a tomar conta de sua cabeça. Quando a dona Doca, sua esposa, foi limpar um frangão que já era quase galo, ele ficou remexendo nas partes íntimas do tal com a ponta de seu Róger.

No Sábado, após terminar o giro pela fazenda, ele pegou uma espiga de milho e começou a debulhar, chamando a galinhada. Num bote certeiro ele pegou o galo índio pelas pernas e foi uma gritaria só.

Amarrou as pernas do tal e com uma colher, foi lhe enfiando pinga pela guela abaixo. Quando o galo estava bem bêbado, ele deu um toque final na afiação do Róger em uma tira de couro. Depois fez dois pequenos cortes nas costas do galo, bem próximo do rabo, e com muito cuidado retirou os dois baguinhos e jogou pro garnizé se refestelar. Desinfetou, costurou os cortes e soltou o bicho.

Passada a bebedeira, o galo índio ficou de ressaca uns dois dias e depois começou a mudar o comportamento. Parou de brigar com os demais rivais, não quis mais saber de correr atrás de galinha e, com o tempo, foi ficando mais vistoso, cuidadoso com suas penas que ajeitava uma a uma com o bico, em um ritual interminável. No segundo mês, ele já estava cuidando de uma ninhada de pintinhos e não deixou morrer nenhum.

Ninguém esperava que o galo capão ficasse tão dócil e atencioso com todo tipo de cria. Passou a adotar perus, galinhas d’angola e até marrecos.

A galinhada só se assustou quando ele apareceu com dois filhotes de lagarto teiú.

E foi daí que em pouco tempo não havia mais uma única fazenda, sítio ou chácara em Altinópolis que não tivesse um galo capão. Dizem até que algumas mulheres andaram tentanto capar os maridos prá ver se ficavam mais dóceis.

Corre o boato que algumas conseguiram e quando a gente vê aquele homão grandão e peludo correndo atrás das crianças prá cima e prá baixo, com o maior cuidado e carinho, tem logo alguém que diz:

— Olha lá, o Galo Capão!!


 

JOÃO DE DEUS

 

— Como o senhor se chama?

— João.

— João de que?

— João de Deus.

Era assim que ele se apresentava e era o nome perfeito para ele.

João de Deus era um andarilho que uma vez ao ano passava pelo nosso sítio em Altinópolis. Trocava raízes e ervas medicinais por rapadura, café, sal, arroz, pinga e outros gêneros de primeira necessidade. Tudo que ganhava era repartido meio a meio com seu companheiro de jornada que era um jumentinho no qual nunca cavalgou, ia sempre ao lado dele que levava dois sacos bem leves com as ervas, raízes e algumas latas a serem usadas como panelas.

João de Deus vivia em sintonia com a natureza, dormia no mato quando o tempo estava bom ou procurava abrigo no curral de alguma fazenda.

Nunca aceitou dormir no paiol ou outro lugar melhor, que fosse fechado. Tinha que dormir em local onde pudesse fazer uma fogueirinha para cozinhar sua comida e fazer os seus chás.

João de Deus visitou nosso sítio por muitos anos mas só me lembro de duas ou três visitas pois quando fiz oito anos foi o ano em que ele adoeceu e meu pai, o Cidonio, foi à cidade chamar o médico, Dr. Alberto, e o farmacêutico Sr. Célio. Não houve meio de convencê-lo a ir para a cidade, João de Deus não iria se separar de seu jumento. O médico receitou algumas injeções que o precavido farmacêutico já tinha em sua maleta. Meu pai ficou encarregado de aplicar as injeções pois já fazia isto para toda a redondeza e era experiente na tarefa.

Na primeira tentativa a agulha da injeção entortou e não entrou na grossa carapaça do braço de João de Deus que só via água quando chovia. Foi necessário apelar para uma grossa agulha de aplicar injeção no gado e é claro que doeu bastante. Nesta madrugada João de Deus foi-se embora com seu jumento e nunca mais o vimos ou soubemos se havia sarado ou morrido.

Naquela noite, após o médico ter ido embora, enquanto meu pai fervia a seringa, João de Deus me contou que certa vez ficou seis semanas de cama, com muita febre, em uma fazenda abandonada.

— Mas e como você não morreu de fome e sede?

Perguntei-lhe.

— Olha menino, Deus é grande e cuida dos seus. A minha sorte é que nunca amarro meu jumento e ele pegava uma lata nos dentes e ia buscar água para mim em um córrego próximo.

— Mas e a comida João de Deus, não me diga que o jumento cozinhava para você?

— Não, é claro que não, eu nunca deixei ele lidar com fogo! A última alma bondosa que lá morou deixou umas galinhas prá trás, as galinhas foram aumentando e tinha bem umas vinte ou trinta. Eu nunca tinha visto um bando de galinha tão inteligente! Elas foram se aproximando da minha cama improvisada, acho que prá comer os pernilongão que vinham chupar meu sangue e mais pareciam aqueles lava bunda que ficam sobre as poças de água, de tão grandes. Depois de comer bastante a galinhada se ajeitava nos meu pé e botava os ovos, era cerca de dúzia e meia por dia. Elas eram tão espertas que depois de botar saíam bem quietinhas prá não me acordar e só iam cantar quando chegavam bem longe no terreiro.

— Mas então você ficou este tempo todo comendo ovo cru?

— Não, a febre realmente era forte demais, eu pegava e punha um ovo em cada suvaco. Um minuto e comia ovo quente, dois minutos e comia ovo cozido! Eu até engordei uns quilos!

Esta foi a última prosa que tive com esta magnífica pessoa perfeitamente integrada na natureza. Nunca me esquecerei dele.


 

A esperteza dos bichos

 

Lá na minha terra, em Altinópolis, as coisas não são como nos outros lugares.

Pra começar, o vento de lá é danado de persistente. Venta quase o tempo todo e no nosso sítio, todas as galinhas tem o rabo torto pro mesmo lado. O lado que o vento vai.

E o pior do vento é que fica zunindo na oreia, parecendo um bando de abeia.

Me lembro que no nosso sítio tinha também um burro muito esperto que atendia por nome Castelo. Era um animal perfeito, mas ninguém se metia a besta de montá-lo pois o trote do danado tirava o rim do lugar e o sujeito ficava aleijado uns dois meses.

Na carroça ele era imbatível, parecendo até que ela fazia parte de seu corpo.

Nunca bateu com ela num mourão de cerca ou num esteio de porteira. Podia ser até em marcha a ré que o danado manobrava com perfeição. Pra pulverizar café então, era uma máquina perfeita.

Saía de uma rua e entrava na outra sem esbarrar num pé e sem ninguém precisar falar nada.

Os dois únicos problemas do Castelo eram os sustos que levava com qualquer papel ou vulto aparecesse no seu caminho. Ele empacava e dava um trabalhão para tirá-lo de lá. O outro problema era a preguiça do Castelo.

Quando meu irmão ia pegá-lo no pasto era outra complicação. Cada vez o danado se escondia em algum lugar diferente, ora no meio de uma moita de capim ou dentro de uma grota. Não havia quem achasse o burro.

Mas teve um dia que o Castelo fez o que parecia impossível.

Bem no meio no pasto tinha uma árvore linda, enorme, com trinta metros de diâmetro de copa. Era um Óleo de Copaúva com galhos que chegam bem perto do chão.

Naquele dia, o meu irmão já pressentindo que o Castelo ia dar trabalho, levou umas espigas de milho como atrativo. Andou por todo o pasto e nada. Bateu todas as cercas pra ver se tinha alguma arrombada e, cadê o Castelo?

Depois de horas de caminhada resolveu descansar sob o olhão (diga ólhão) que é como conhecíamos aquela árvore única.

Meu irmão tirou o borná com as espigas de milho, catou umas gabirobas para adoçar a boca e sentou sob a árvore, encostando no seu tronco. Qual não foi o seu susto quando viu, a uns 5 ou sete metros de altura, na árvore, o danado do Castelo bem quietinho se equilibrando em dois galhos que partiam desde o chão!

O burro tinha aprendido a subir na árvore pra se esconder e não ir trabalhar!

É a pura verdade.

Nesta mesma época, meu pai, que era assíduo leitor da “Chácaras e Quintais”, viu em uma destas revistas um paiol de milho que era à prova de rato.

Mais que depressa derrubou um belo eucalipto e o transformou em tábuas, caibros e vigas na quantidade necessária para o miraculoso paiol.

Ficou uma beleza. Montado sobre pilastras de cimento, o intento era impedir a subida dos ratos. Tinha uma escada de cimento afastada do paiol e a porta descia sobre a escada como nos antigos castelos medievais. Com a porta fechada, não tinha como os ratos entrar... Até que um dia, o paiol deixou de ser novidade e o vão sob ele passou a servir para guardar lenha e um monte de quinquilharias que deveriam ser jogada fora. Tinha alguém que sempre dizia: ‘guarda debaixo do paiol que uma hora serve para alguma coisa’. Aí foi uma festa para os ratos. Tinha uns que pareciam preá, de tão grande e gordo.

Foi aí que meu pai se esqueceu que o paiol era “à prova de rato” e resolveu arrumar uma gata de três cores, as melhores para tal função.

No início foi um sucesso. A cada dia a danada matava pelo menos uns três. Era uma malabarista na arte da caça. Dava uns saltos espetaculares dentro do paiol e daí a pouco saía com um ratão na boca, feliz da vida. Só não matava mais porque passava horas brincando com a sua presa antes da refeição.

Um belo dia, de repente, ela parou de caçar. Entrava no paiol e saía correndo, deitando no rabo do fogão e ali ficava, o dia inteiro. No outro dia era a mesma coisa. Meu pai baixava a porta sobre a escada e da janela da cozinha ficava só observando. A gata ia entrando no paiol, meio que desconfiada e, em segundos, saía correndo.

Resolvi tirar a limpo aquela história.

Pensei que poderia ser alguma jararaca, pois o pessoal dizia que as cobras eram atraídas por metal e lá tinha muita enxada velha, foice e rastelo. Fui com a minha cartucheira calibre 32 e fiquei escondido perto da escada. A gata entrou e em seguida escutei uns latidinhos bem baixos, meio esquisitos. A gata saiu correndo e eu entrei em tempo de ver o danado de um rato latindo que nem cachorro, o que espantava a gata. Foi uma pena que, na hora, fiquei com tanta raiva do bichinho que o despachei com um tiro certeiro... Podem acreditar, foi a pura verdade.

Os bichos lá de Altinópolis são muito espertos. Alguns dizem que é a água, outros que é a vida tranqüila e também a comida sadia que tem por lá. Outros falam que é porque o pessoal respeita os animais e conversa muito com eles.

Tem até um pessoal da USP querendo fazer uma pesquisa num outro sítio vizinho ao nosso. Encontraram um bugio que joga xadrez.


 

Perdigueiro bem treinado.

 

No tempo em que se podia caçar perdiz e tinha perdiz prá ser caçada Altinópolis tinha mais cachorro perdigueiro que qualquer outro bicho.

Prá se treiná bem um perdigueiro tem que ter paciência, eles são ótimos de faro mas são um pouco lerdos dos miolo.

O Zezim da venda era especialista em treiná perdigueiro, arte que ele aprendeu lá no Monte Santo de Minhas e acrescento mais umas invenção própria.

Fazia uma bola de meia recheada com penas de perdiz e codorna. Começava com uma brincadeira em que se joga a bola e o cachorro vai buscar só que esta brincadeira ia virando coisa séria onde a bola era escondida e o cachorro tinha que ir encontrar, depois chegava no ponto em que ele encontrava mas não podia pegar. Tinha apenas que apontar onde estava, tinha que “amarrar” a perdiz ou codorna, situação em que o cachorro fica todo duro, do fucinho à ponta do rabo fica tudo esticado como se o mesmo fosse uma flexa indicando em que moita estava o passarinho.

Neste ponto, quando o cachorro “amarrava” a perdiz o caçador atento chegava por trás do cachorro e já tendo armado sua espingarda dava um cutucão com o joelho na bunda do cachorro, o cachorro dava um salto espantando a perdiz que voava e era abatida pelo caçador.

Deixar um perdigueiro neste ponto era tarefa de muita paciência e perseverança.

O Zezim da venda sempre que tinha um perdigueiro já velho começava a treinar outro filhote pois precisava também de tempo para saber se o cachorro tinha vocação prá caçador. Tem cachorro bagunceiro, que só quer brincar, tem cachorro que come a caça, e tem aqueles que nasceram pro serviço.

O Sultão era um destes, aprendeu fácil, prendia na boca a bolinha de meia com a maior delicadeza sem danificá-la, quando “amarrava” uma perdiz ficava totalmente imóvel parecia uma seta de placa indicando onde a danada tava amoitada, nem piscava, seu rabo ficava alinhado com sua espinha dorsal parecendo um espinho enorme de tão duro e imóvel, assim ele ficava quanto tempo fosse necessário até que o Zezim o visse e viesse matar mais uma pois este nunca errou um tiro, a não ser aquele de quando o marimbondo fez casa dentro do cano de sua pica-pau e o cano estourou na hora do disparo deixando-o surdo de uma oreia.

Naquela caçada o Zezim tava meio disperso, vorta e meia perdia de vista o Sultão distraido com a beleza da paisagem ou com algum pé-de-fruta.

Teve uma hora que o Sultão sumiu de veiz, o Zezim da venda assoviou, chamou, chegou até a dar um tiro a esmo prá ver se o Sultão aparecia e nada!

Já tava ficando tarde e o Zezim pensou com seu borná: vai vê ele foi prá casa, canhorro novo é assim mesmo meio destrambelhado. E pensando estas coisas ele foi-se embora. Chegou no seu sítio já bem tardinha com o sol se pondo e logo foi dar uma olhada no cantinho onde o Sultão costumava ficar deitado, debaixo do fogão de lenha, não tava lá.

Começaram os pensamentos ruins: será que foi jararaca?

Os dias foram se passando e o Zezim foi se conformando que o Sultão não ia mais aparecer. Como tinha um irmão do Sultão que levava jeito prá coisa pegou firme no treinamento do mesmo para poder deixá-lo preparado para a temporada de caça do próximo ano pois como bom caçador que sempre foi só caçava na época certa.

No próximo ano foi levar o Sheike para sua primeira caçada, o danado também era bom!

De perdiz em perdiz foram andando e sem se dar conta acabaram chegando na mesma região onde o Sultão tinha sumido.

De repente o Sheike amarrou de uma forma diferente, com os pés meio de lado como quem qué sair correndo mas é obrigado a fazer aquela tarefa.

O Zezim foi se chegando devagar com cuidado, espingarda armada, vai que é um murundum de jararaca enrolada esperando prá dar o bote.

Qual não foi sua surpresa quando encontrou o esqueleto do Sultão em pé, em posição de quem tava amarrando uma perdiz com o rabo esticado e tudo o mais... o Zezim não acreditava no que via e acreditou menos ainda quando foi fuçar na moita para onde estava apontanto o esqueleto do Sultão e encontrou um esqueleto de uma perdiz abaixadinha dentro da moita!!

Foi uma pena que quando voltou ao local dali uma semana prá fotografar o fato tinha dado um temporá danado de granizo e desmontou os esqueletinhos, agora só podemos contar com a descrição da cena que o Zezim da venda faz com os olhos cheios de água.


 

Falta de mistura pode matar.

 

Ao passarmos por aquela tenebrosa grota da estrada, comentei com meu pai que toda vez que passava por lá, a qualquer hora do dia, sentia arrepios.

O velho começou me tranqüilizando:

— Estes lugares escuros e frios, devido à sombra das árvores, nos deixam apreensivos e com medo. Cada sombra se parece com um animal ou uma pessoa, mas é só isso, uma sombra.

Quando estávamos bem debaixo daquela lúgubre árvore, toda retorcida, com os fiapos de parasitas caindo de seus galhos parecendo farrapos, o meu velho pai continuou:

— O Dionísio, um negro muito bom, se enforcou ali naquele galho.

Eu senti um gelado na espinha e apertei o passo, apesar de ser pouco mais das dez horas da manhã. Mas como não sei se assombração sabe ver a hora o melhor é prevenir!

Quando íamos saindo da grota e o sol esquentou novamente minha espinha, arrisquei perguntar:

— Mas porque foi que ele se matou?

— Por falta de mistura! Emendou meu pai. O Dionísio não era muito bom de serviço e casou-se com uma mulher que não levantava os pés para andar. Seus rastos pareciam os rastos de um casal de cobra que anda lado a lado, de braços dados. Até as verduras que eles ganhavam dos vizinhos a mulher deixava perder, só de preguiça de lavar. Foram sete anos sem mistura. Só arroz e feijão, no almoço e no jantar.

— Eu, continuou meu pai, bem que tentei ajudar. Mas a gente segue o que a bíblia prega. Não podia ficar dando o peixe, tinha que ensiná-lo a pescar, ou melhor dizendo, a caçar. Comprei uma socadeira usada (espingarda de carregar pela boca) e fui levar para o Dionísio, num domingo, pensando em ensiná-lo a atirar pois, naquela época, tinha muita caça. E se o homem tivesse uma espingarda não faltaria mistura na mesa. Quá! Não adiantou nada, o rapaz morria de medo de espingarda, não chegava nem perto! Deu no que deu, sete anos sem mistura é muito prá qualquer um. Ele não agüentou mais e deu um fim na sua vida, ali naquele galho. Foi uma pena!


 

Mané I - A sopa especial de Sexta-Feira Santa.

 

Nosso primo, Mané, é uma pessoa cativante e que se destaca em qualquer lugar que estiver pela sua simpatia e bom papo.

De temperamento irrequieto já fez um pouco de tudo mas adaptou-se melhor mesmo foi na lida com plantações de café assunto no qual é mestre.

O Mané sempre foi muito brincalhão, herdou o bom humor de seu pai, o Tita, eternos moleques arteiros, sempre maquinando alguma brincadeira com os amigos.

Ele encontrou a esposa ideal, de temperamento calmo a Dorinha sempre teve paciência com suas traquinagens... quase sempre! A Dorinha teve que aprender a fazer parto de leitão atravessado, fato que presenciei, fazer comida para a peãozada toda e também a participar das artes do marido.

Passaram por altos e baixos econômicos mas sempre houve a criatividade para não faltar mistura para as crianças. Quem mora na roça e não tem preguiça sempre terá o que comer.

Problema sério foi em uma sexta-feira santa de muitos anos atrás, não havia dinheiro para o bacalhau e nem tempo para ir pescar. Na quinta-feira ainda não tinham providenciado a mistura. Na hora do almoço a Dorinha lembrou ao Mané que no dia seguinte não podiam comer carne e que os ovos estavam sendo reservados para chocar uma ninhada de pintinhos. O Mané não se apertou.

Finalzinho do dia, encerrado o trabalho e dispensados os peões o Mané tomou um bom banho, colocou uma roupa limpa e foi até a venda do “Seu” Joaquim, típica venda de roça que tinha de tudo um pouco. Caderneta de fiado já estourada, sem crédito na venda ele chegou e ficou assuntando o movimento e as prosas.

Quando o movimento diminuiu e Seu Joaquim estava fazendo anotações no livro de fiados o Mané perguntou:

— Seu Joaquim, qual o melhor bacalhau que o senhor tem?

Seu Joaquim absorto em suas contas respondeu:

— O melhor bacalhau é o de minha querida terra, o português, é claro!

— O Senhor poderia me arrumar um caixote vazio deste bacalhau? Emendou o Mané.

Seu Joaquim foi até os fundos da venda e voltou com um dos fedidos caixotes de bacalhau.

O Mané voltou para o sítio serrou o caixote em pequenas tábuas de cerca de 5 cm e entregou à Dorinha uma cesta cheia daquelas ripinhas com a recomendação:

— Amanhã é dia de jejum e abstinência, faça uma boa sopa de bacalhau para as crianças!

A Dorinha ficou olhando incrédula para aquelas ripinhas fedidas e levou um tempo até “cair a ficha”.

No dia seguinte, no almoço, teve uma deliciosa sopa de legumes com sabor e cheiro de bacalhau. No caderno de receitas da Dorinha ainda existe até hoje a receita de “Sopa de caixote de bacalhau”.


 

Mané II - Pode trazer o frango?

 

Meu primo Mané mudou-se de Franca para uma fazenda de Itirapuã onde foi administrar uma grande plantação de café.

Ocorreu por lá uma verdadeira infestação de cigarras. Mal se conseguia conversar com aquela gritaria toda nos ouvidos.

Como as cigarras, em uma fase de seu crescimento, sugam as raizes do pé de café prejudicando seu desenvolvimento chamaram a atenção de alguns cientistas pesquisadores de um destes centros especializados como EMATER ou EMBRAPA, não me lembro mais de qual deles.

Os cientistas chegaram, visitaram várias fazendas e se defrontaram com um sério problema a ser resolvido: como capturar uma população significativa das cigarras se ao se aproximarem das árvores onde ficavam ocorria uma grande revoada e poucas sobravam?

O Mané, tinhoso que é, foi logo dizendo:

— Vão prá cidade e deixem comigo. Quando eu pegar as cigarras mando chamá-los.

Ele comprou uma peça inteira de filó e um rolo de mangueira preta daquelas duras. Escolheu uma bela árvore próxima do cafezal. Enterrou um poste fino junto a seu tronco de tal forma que a ponta ultrapassava a altura de sua copa em alguns metros. Marcou no chão o diâmetro da copa da árvore e fez vários aros com a mangueira preta como enormes bambolês. Aos aros costurou o filó formando enorme saco que dava para vestir toda a árvore.

Mandou avisar aos cientistas que poderiam vir na segunda-feira para contarem as cigarras. No domingo subiu os aros até a ponta do poste e prendeu-os com uma longa corda formando uma armadilha.

Quando os cientistas chegaram na segunda-feira e perguntaram pelas cigarras o Mané levou-os até as proximidades da árvore onde estava a ponta da corda. A cantoria das cigarras era ensurdecedora. Puxou a ponta da corda e o enorme filó desceu aprisionando toda a árvore e suas cigarras.

— Podem entrar lá e fazer suas pesquisas! E o almoço é por minha conta. Disse ele indo embora e deixando os cientistas de boca aberta com a engenhosidade da armadilha.

Foi a partir deste episódio que em Itirapuã ele ficou conhecido como “Mané Cigarra”.

À hora do almoço as crianças foram chamar o grupo de cinco estudiosos que estavam dentro do filó coletando as cigarras.

Após se refrescarem do calor na bica que ficava na porta da cozinha todos se sentaram e a Dorinha, esposa do Mané, serviu o almoço que consistia de arroz, feijão e uma salada de chuchu com um ovo cozido picadinho no meio e uns fiapos de cebola.

Quando todos já haviam comido cerca de metade de suas porções a Dorinha apareceu na porta da cozinha para a copa e perguntou:

— Mané! Posso levar o frango?

— Ainda não! Disse o Mané. Espere mais um pouco.

Todos diminuiram o ritmo das garfadas esperando o frango que não vinha nunca. E as histórias e mais histórias do Mané distraindo a todos.

A cena da Dorinha vindo à porta perguntar se podia trazer o frango e a negativa do marido aconteceu por mais três vezes. Os convidados cansaram de esperar o tal frango e comeram todo o arroz com chuchu antes que esfriasse.

Na quinta vez o Mané disse:

— Tá bom Dorinha, pode trazer o frango!

Ela chegou com um frango vivo e soltou sobre a mesa para comer os restos dos pratos e as migalhas da toalha sob o olhar incrédulo das visitas.

Era mais uma das grandes brincadeiras do primo Mané!


 

Mané III - O coelho desencarnado.

 

Todos vocês já ouviram falar de espingarda que atrasa o tiro! Isto era muito comum de acontecer com as socadeiras (espingardas de carregar pela boca) que usavam pólvora preta feita com carvão vegetal, salitre e enxofre.

Esta pólvora é aquela mesma que foi descoberta pelos chineses e até hoje é muito usada no norte do país e também em “trabalhos espirituais” ou se preferem: em macumba. É uma pólvora que absorve muito facilmente a umidade e se mal armazenada pode “negar fogo” ou “retardar o tiro” e que faz muita fumaça.

Ao disparar fica um barulhinho como se estivesse fritando alguma coisa e após alguns segundos quando a pólvora aquece com o pequeno fogo que a está consumindo e o tiro ocorre. É um perigo pois o atirador pode pensar que o tiro não vai sair e apontar a arma para onde não deveria, como o seu próprio pé ou pior ainda para o seu olho! É verdade! Tem caboclo que vai olhar no cano para ver se a bala “lá invém vindo”!

Pois o meu primo Mané quando estava tocando o sítio de seu pai entre Altinópolis e Santo Antônio da Alegria vez ou outra saía para caçar uns inhambús com a sua socadeira. Lazer saudável que naquele tempo não era crime inafiançável como hoje.

Sua “Pica-Pau”, outro nome pelo qual se chama a socadeira nas roças, começou a retardar o tiro e tal defeito foi se agravando com o tempo. O estranho é que no caso dele o defeito era da arma e não da pólvora que até colocou para secar no sol sem resultado.

Chegou ao ponto de puxar o gatilho, ouvir o barulhinho de fritar e ele ficar na mira por longos minutos até o tiro sair. Às vezes o inhambú sumia, aparecia outro e ele continuava a mirar até que o tiro saía e abatia a mistura do dia.

Um dia ele mirou uns três ou quatro e nada do tiro sair. Desistiu pensando: — Vai ver que este negou!

Voltou para casa desanimado e passou pelo paiol para pegar umas palhas e fazer um cigarro. Pegou a espingarda pela ponta do cano para colocá-la encostada na sacaria de café e neste momento, mais de hora após ter disparado, o tiro saiu! Fez um grande estrago em sua mão sendo que um dos dedos ficou troncho até hoje.

Triste com o ocorrido e para poder se tratar adequadamente mudou-se com a família para a cidade de Franca. A Franca do Imperador como a chamamos.

Em Franca continuou a administrar fazendas mas viajando todos os dias e morando na cidade o que facilitava o estudo das filhas e de seu filho caçula.

Seu caçula, apegado que era ao cachorro levou o Totó para seu quintal e sempre que chegava da escola ia brincar com ele.

A cerca do quintal, como em muitas casas do interior era de taquaras de bambu, dava para um terreno baldio no qual fizeram uma horta e plantavam alguns pés de milho. Deste terreno havia outra cerca que dava para o quintal de uma bela casa com um grande gramado e que era a casa do delegado da cidade. Viviam arrumando a cerca para que o Totó não incomodasse aquele ilustre vizinho. Vai se saber qual seria a reação do mesmo?!

Um belo dia a filhinha do delegado ganhou em seu aniversário um belíssimo coelho daqueles bem peludos e branquinhos dos olhos vermelhos. Ganhou até casinha para o bichinho de estimação. O cuidado com a cerca e com o Totó passou a ser redobrado pois o danado do vira-lata vivia namorando o coelhinho da vizinha pelos vãos da cerca.

Em um sábado à noite, a família do delegado tinha viajado, aparece na cozinha o Totó feliz da vida com o coelho todo sujo de terra entre os dentes, mortinho da silva.

A tensão foi instantânea e geral. E agora! O que fazer?

O Mané, que não é de desistir fácil, tomou um aperitivo para clarear as idéias, matutou um bocado e decidiu:

— Não foi o Totó! Vamos fazer parecer que foi morte natural! Vamos lavar bem lavado o coelho, secá-lo e colocá-lo em sua casinha. Por via das dúvidas prendemos o Totó na coleira até eles voltarem da viagem!

E assim foi feito. Lavaram o coelho com o melhor shampoo que tinham, passaram creme rinse e secaram com o secador de cabelo. O coelho nunca esteve tão lindo cheiroso e morto!

Ajeitaram o bichinho em sua casinha e passaram o resto da noite de sábado e o domingo na maior tensão. Todos falavam baixo como se estivessem velando algum parente. Na realidade estavam tentando ouvir se os vizinhos já haviam chegado ou não.

Na tarde de domingo ouviram uma grande gritaria no quintal do delegado e correram até a cerca para ver o que acontecia. A cena era tétrica: a criança chorava e gritava em coro com a sua mãe ajoelhadas ao lado do coelho. O delegado andava de um lado para o outro sem saber o que fazer com a situação até que os viu espiando por sobre a cerca e foi até eles quando o Mané, com a maior cara de pau perguntou:

— O que foi que aconteceu? O coelhinho da menina morreu?

Ao que o delegado respondeu:

— Sim, o coelho morreu de sexta-feira para o sábado e antes de viajarmos eu e minha esposa resolvemos enterrá-lo. Iríamos dizer a minha filha que ele havia fugido! Agora o encontramos na sua casinha! E nem sujo ele está! Está até cheiroso! É um mistério!

Até hoje esta misteriosa história é contada em Franca e já a vimos até na internet.

Cada vez que alguém conta ela perto do Mané ele fica com um sorriso maroto e misterioso de quem sabe qual é o santo responsável pelo milagre do coelho desencarnado.


 

Coitada da moça

 

Alisson acordou mais cedo naquele dia, talvez pelo cansaço do dia anterior. Junto com seu irmão mais novo Antônio e com o vizinho Raimundo havia puxado quatro carretas de raízes de árvores de uma nova gleba que seu tio estava limpando e descarregado na pedreira. Êta coisa desajeitada para se lidar esta soca de árvores! De todo jeito que se pega tem sempre uma raiz a lhe cutucar. Fica-se torcendo para encontrar alguma cobra no meio das galhadas e garantir o almoço.

Com a mão em concha jogou dois punhados de água na boca e um no rosto para espantar o sono. Cutucou o Antônio e enquanto ele se aprumava pegou a velha foice e no escuro foi até a moita de palma e cortou um punhado que colocou no balaio e deixou do lado de fora da porta da cozinha. Aquele seria o almoço do dia para seus outros sete irmãos mais novos que ficariam com sua mãe. Seu pai tinha ido para São Paulo há dois anos atrás, quando ele ainda tinha treze anos e nunca mais deu notícias.

Apesar de todo o cansaço Alisson estava feliz e até arriscava uma “Mulher Rendeira” no assobio. O seu Deusdeti, do açougue lá da vila, havia encomendado umas vinte latas de brita para a ampliação que estava fazendo no seu comércio e tinha pedido da brita mais fina que valia R$0,15 cada lata de vinte litros bem cheia.

Seu irmão já estava pronto sobre seus chinelos de dedo tão gastos que pareciam dois pedaços de papel. Seguiram no escuro em direção à pedreira que ficava à beira da estrada uns dois quilômetros acima.

Quando estavam quase chegando à pedreira Antônio rompeu o silêncio:

— Alisson, disse, ainda bem que hoje não temos almoço! Sem parar acho que até à tarde conseguiremos completar as vinte latas do Seu Deusdeti! Vai dar prá comprar rapadura e farinha com os R$2,40 que vão sobrar depois de pagar os 20% do tio que arrumou as madeiras para amolecermos as pedras. Os irmão vão ficar feliz hoje na janta!

— Tá bão, falou o Alisson, vamos começar queimando aquela pedrona ali da beirada assim teremos trabalho até o meio da tarde enquanto queimamos outras duas.

Como era o mais experiente com toneladas e toneladas de pedras queimadas e quebradas na marreta Alisson foi orientando seu irmão no arranjo dos galhos ao redor da pedrona.

Puseram fogo e sentaram-se ao longe observando o fogo trepidar no escuro da madrugada, logo amanheceu e vez ou outra um se levantava para ajeitar os galhos sobre a pedra.

Lá pelas nove horas a pedra estava avermelhada. Alisson foi buscar uma lata d’água na cacimba, seguido pelo seu irmão. Chegaram ao lado da pedra e simultaneamente arremessaram suas águas sobre ela. A pedra chiou, rangeu, estralou e sob uma imensa nuvem de vapor rendeu-se e se quebrou em várias. Cada pedaço enfraquecido por dezenas de trincas.

Com uma velha enxada os irmãos arrastaram as brasas que sobraram. Alisson pegou um pedaço ainda quente arremessando-o ao ar para não queimar as mãos. Sentou-se sobre uma pedra e com uma pequena marreta passou a esfacelar aquele pedaço em pequenas pedrinhas que pareciam ter sido medidas uma a uma tamanha a uniformidade de tamanho.

Antônio foi colocar outra pedra sob a ação desintegradora do fogo e logo se juntou ao irmão no quebra-quebra.

Por volta das quatro da tarde, após marretarem o dia todo sob o calor do sol escaldante e sobre o calor das pedras aquecidas tinham a seus lados belos montes de pedra britada. Avaliaram bem os montes e juntando ao que tinham feito nos dias anteriores acharam que já era suficiente.

Pegaram uma velha carriola e fizeram inúmeras viagens levando as britas até a porta do açougue que ficava a uns 600 metros ou mais da pedreira.

Quando terminaram chamaram orgulhosos Seu Deusdeti para ver o monte de britas.

O açougueiro olhou, rodeou, cutucou com o pé e disparou:

— Não gostei do tamanho das britas! Ficaram muito pequenas! Só dou R$1,40 pelo monte todo!

— Mas, mas, Seu Deusdeti! Gaguejou o Antônio. Aí tem uma semana de nosso trabalho e muito suor!

— Se quiserem é 1,40! Se não quiserem podem levar de volta!

Antônio começou a chorar e o Alisson ficou olhando fixamente para o chão paralisado de cansaço e desânimo; finalmente falou: — Tá bom! Dá a grana!

Seguiram direto para a venda do Seu Genivaldo. Enquanto o Antônio comprava uma metade de rapadura o Alisson se acotovelou com um grupo de conterrâneos olhando para uma velha TV preto e branco. Tinha alguma coisa importante acontecendo!

No meio do caminho de volta foi o mais velho que quebrou o silêncio:

— Você viu só a sacanagem que fizeram com a moça?

— Num vi não, respondeu o mais novo.

— Pois é, eu vi lá na TV do Seu Genivaldo, a coitada da moça até chorou. Foi de cortar o coração! Aprontaram com ela e foi sacanagem das brabas feitas pelo pessoal lá de São Paulo! Uma moça tão boa! Queria fazer tanta coisa boa prá gente! Num deixaram não!

— Coitada da moça...

PS.: Este causo foi escrito em abril de 2002 coincidentemente logo após Roseana Sarney, governadora do Maranhão desistir de sua candidatura à presidência devido denuncias de corrupção em seu governo.


 

A CORAGEM DO CAIPIRA.

 

Tem caipira que vai caçar onça armado apenas de uma zagaia que é uma lança grande a qual apoia-se no chão para aparar a onça quando ela pula sobre a pessoa, haja coragem e agilidade!

Tem caipira que enfrenta cobra venenosa, outros pegam jacaré pelo rabo ou tiram enxame de abelha sem proteção nenhuma, passam em local mal assombrado, etc..

Este tipo de coragem podemos classificar muito mais como falta de responsabilidade, gosto pela aventura, ou até como “esporte radical” como fazem hoje.

A verdadeira coragem do caipira está no seu dia a dia. Para pegar empréstimo em banco e plantar sem saber se vai chover na hora certa ou fazer sol no momento em que precisa para a colheita ou se o preço de venda estará bom precisa ter uma coragem enorme.

Plantar café, cuidar durante anos e depois perder tudo com a geada e voltar a plantar mais café... tem que ter muita coragem!

Em minha adolescência já não morava mais em nosso sítio mas nas férias escolares sempre íamos para lá, eu e meus irmãos, para ajudarmos no que pudéssemos. Adubar café, pulverizar, tratar dos porcos e várias outras tarefas ficavam por nossa conta nestes períodos.

Eu gostava de trabalhar com os pulverizadores costais movidos a gasolina pois os danados sempre davam problemas e como sempre gostei de mecânica podia desmontá-los e tentar arrumar.

Em uma ocasião estávamos todos no sítio e à tarde chegou a notícia de que no sítio vizinho havia uma grande infestação de lagartas que estavam acabando com as plantações de milho e arroz e que estavam vindo em direção ao nosso sítio.

Ficamos todos apreensivos e por várias vezes, à noite, fomos verificar a divisa com o sítio vizinho.

Por volta das 23:00 horas elas começaram a chegar. Para quem nunca viu o espetáculo é terrível. Chegam como uma onda e fazem barulho para comer. Em poucos minutos pés inteiros de milho são devorados ficando apenas os talos.

Eu não suportei ver aquilo. Armei-me de um pulverizador à gasolina abastecido com BHC em pó. Veneno hoje banido mas muito usado na época. Entrei pelas plantações fazendo uma verdadeira nuvem branca de veneno.

Como estava bastante escuro eu não via onde estava a nuvem de BHC e acabava passando por dentro dela respirando aquele pó letal pois só usava um lenço no rosto como mascara de proteção.

Após muito veneno jogado e respirado percebi que aquela luta era desigual, as lagartas estavam em número muito maior e eu não iria conseguir para-las mesmo porque o veneno levava um tempo para agir e enquanto isto elas continuavam a devastar.

Quando parei para reabastecer o pulverizador e já estava sentindo o efeito tóxico do veneno meu pai aproximou-se de mim e disse:

— Deixe-as, elas também são filhas de Deus e também precisam comer. Deixe-as em paz, depois nós plantamos outro milho e outro arroz!

No momento não entendi aquela atitude. Julguei seu ato como sendo de resignação e conformismo.

Hoje tenho outra visão dos fatos, penso que precisa ter muita coragem para trabalhar-se dia a dia na dependência e em interação com a natureza. Às vezes perde-se em minutos meses ou até anos de trabalho em uma chuva de granizo, uma nuvem de gafanhotos, um raio, uma planta venenosa, uma tromba d’água ou outra catástrofe da natureza perante a qual o homem é impotente mas tem a coragem suficiente e necessária para recomeçar.

Em uma ocasião tivemos que matar mais de 20 animais entre cachorros e gatos de nosso sítio e vizinhos pois fomos visitados por um cachorro raivoso e não sabendo quais tinham sido contaminados tivemos que sacrificar todos. Foi uma choradeira danada. Minhas irmãs, que são em cinco, amontoaram-se sobre uma cama e choraram o dia todo encharcando a colcha e o lençol. Minha mãe que nunca foi de desperdiçar nada colocou os panos para secar no varal e depois de secos estendeu um pano de colher café sob os panos e foi batendo neles com um pau. O sal das lágrimas que caiu dos panos ela juntou e deu para cozinhar um mês inteiro!

Nosso tio Antônio a quem chamávamos de tio Tonho foi a única vítima humana desta tragédia. Um gato que escapou da matança contraiu a hidrofobia e atacou-o. Cravou seus dentes na batata da perna de nosso tio e não largou por nada deste mundo. Mataram o gato e ele continuou grudado. Parecia cabeça de saúva quando a gente gruda na beirada da camisa e arranca o corpo. Meu tio tomou todas as vacinas contra a raiva, que eram aplicadas na barriga.

Foi muito difícil para todos da família suportar o mal cheiro daquele gato que foi apodrecendo aos poucos dependurado na perna de nosso tio. Levou uns três meses para cair o corpo e ficar só o crânio do gato. Quando já estávamos todos acostumados a ver aqueles ossos dependurados em uma janela na perna da calça o crânio caiu lá pelo sexto mês após a mordida do gato. Meu tio se apegou ao gato com o qual teve que conviver por seis meses e guardou os ossos por muitos anos até que faleceu recentemente e em seu leito de morte pediu a seus filhos que colocassem junto a seu corpo no caixão um saquinho com os ossos do gato e assim foi feito.


 

O CAIPIRA, A RADIOESTESIA E O LEITE DE ONÇA.

 

Por volta de 1959 ou 1960 eu com meus seis ou sete anos tinha poucas preocupações, era responsável por fazer diariamente 100 litros de lavagem para os porcos usando fubá de milho, farelo de arroz, abóbora, inhame, galinha, gato, cachorro ou qualquer outra proteína que tivesse parado de respirar. Nesta minha tarefa acabei aprendendo a comer inhame e abóbora sem sal e cheguei a experimentar algumas carnes que não freqüentam habitualmente a mesa do caipira.

Outra tarefa que gostava muito era a de ajudar o Cidonio, meu pai, a marcar curvas de nível e regos d’água e de acompanhá-lo quando, fazendo uso da radioestesia, ele mapeava os veios de água de uma propriedade e determinava o melhor local para furar uma cisterna que não viesse a secar na época das estiagens.

Meu pai nunca cobrou por seus serviços relacionados à água, assunto que ele e seus irmãos dominavam como poucos e para “achar água” era mais procurado que giló em gaiola de canário. Com uma forquilha retirada de alguma árvore local percorria toda a propriedade, sentia os veios subterrâneos de água e seus volumes, estudava a topografia e finalmente definia o melhor ponto para se cavarem os poços não sendo raras as vezes em que acertava a profundidade em que se encontraria água e qual seria o seu volume.

Em nosso sítio em Altinópolis existe uma de suas obras primas. O poço fica na parte mais elevada da propriedade e o fundo do poço fica acima do nível das casas desta forma a água desce por gravidade da cisterna para as casas não havendo a necessidade de ser bombeada. Para chegar até o lençol de água teve que romper na picareta grossa camada de pedra o que lhe deixou vários caroços na musculatura dos braços.

Nesta época um fazendeiro pediu-lhe para ir analisar sua propriedade pois estava querendo aumentar o rebanho de gado e a água disponível era pouca. Conhecedor da propriedade por ter caçado algumas codornas por lá ele já saiu de casa com um propósito e levou-me como ajudante além de seu “aparelho de curva de nível” que havia construído conforme instruções da revista Chácaras e Quintais. Era constituído por dois sarrafos graduados com uns dois metros de altura aos quais era presa uma fina mangueira de plástico transparente cheia de água com uns 20 metros de comprimento e cujo simples funcionamento ele dominava com maestria.

Chegando à fazenda fomos direto para uma grande nascente de água que fica atrás de um morro próximo ao curral. Partindo da nascente fomos marcando onde seria o leito de um rego de água sempre colocando um desnível no sentido do curral e contornando o morro. Após algumas horas chegamos ao curral.

Meu pai pediu que o fazendeiro chamasse o tratorista e que o mesmo deveria vir fazendo um sulco profundo com o disco do arado seguindo nossas marcações desde a nascente até o curral.

O fazendeiro inicialmente se negou a fazer o serviço alegando que a água não iria subir o morro. Foi preciso prometer-lhe que se não desse certo a despesa do trator lhe seria reembolsada!

O rego foi feito e a água chegou ao curral logo atrás do trator.

Ocorreu que enquanto esperávamos o trator fazer o serviço fomos dar uma olhada em uma mata adjacente à nascente. Eu havia levado uma pequena carabina .22 da qual raramente me separava. Presente de meus tios.

Ouvimos um barulho suspeito e meu pai fez sinal para que fizesse silêncio. Logo apareceu uma onça e fato muito estranho uma outra vinha atrás segurando com a boca o rabo da primeira.

Mirei bem no pé da orelha da primeira e atirei. Distrai-me a recarregar a arma que era de uma única bala.

Percebemos que a primeira onça caiu fulminada pelo tiro e a segunda, apesar do susto, não largou o rabo da primeira e ficou bem quieta.

Rodeei a onça com a arma preparada mirando-a constantemente. Após uma detalhada observação constatamos que ela era cega e estava sendo guiada pela que havíamos matado.

Meu pai desembainhou sua inseparável faca Solinger, presente de seu irmão caçula, e com ela cortou bem no pé o rabo da onça morta. Tomou o rabo na mão e saiu andando sendo seguido pela onça cega que não largava o rabo por nada.

Tivemos que voltar à pé para o nosso sítio para levarmos o belíssimo felino.

Esta onça foi uma grande atração na redondeza, todos queriam ir vê-la. Uma vizinha, que havia parido uma menina prematura, pediu-nos leite da onça para dar à menina e foi um santo remédio. A menina arribou rapidamente e ficou um lindo bebê. Nós nunca fizemos questã de contar esta história aos outros pois sempre tem aquele que quer duvidar e isto nos magoa muito.

Vale ainda deixar aqui registrado que anos após a morte do Cidonio seu cunhado Zezim (o Zezim da Venda) enfrentou sérios problemas de falta d’água em sua fazenda de Goiás. Seu gado começou a sofrer e tinha que buscar água com o trator em uma longa distância o que estava inviabilizando o negócio.

Tentou abrir várias cisternas e para isto chamou os especialistas em “achar água” da região. Em nenhum dos cerca de seis poços que perfurou obteve sucesso.

Certo dia acordou desanimado da vida e resolvido a vender as vacas. Quando saiu na porta da casinha em que dormia viu em um pasto próximo a figura do Cidonio, vestido com uma daquelas longas capas de cavaleiro. Meu pai apontou para o chão no local onde se encontrava e sem dizer nada sumiu como uma nuvem que se desfaz.

Meu tio Zezim foi até o local e marcou-o com uma estaca. Chamou os cavadores de poços e mandou cavarem. A água apareceu logo e em abundância. Meu tio fica muito emocionado quando nos conta estes fatos, os quais não me arrisco a interpretar. Seria uma manifestação da radioestesia de meu próprio tio?


 

O Primo Ventania.

 

O primo Renato desde criança já manifestava sua preferência pelos gases e sólidos que tanto enojam aos outros.

Quando criança, em visita a seu avô materno em Altinópolis, acordava cedo e ia com as outras crianças buscar água fresca em uma bica no final da pequena rua principal.

A bica ficava em uma gostosa chácara e para chegar a ela passava-se por um pomar de mangueiras e jaboticabeiras atravessando-se depois um piquete com sua aparadíssima grama pontuada com inúmeros montículos de esterco fresco deixado pelas vacas que ali pastavam.

O Renato, longe da vista das demais crianças, apanhava vários pedregulhos escolhendo sempre os mais achatados e enchia os bolsos com eles.

Na volta, cada qual com seu latãozinho, caldeirão ou balde de água, iam conversando e caminhando distraidamente pelo gramado do piquete. Quando o primo via algum montículo de estrume bem fresco ia atrasando o passo e deixava os demais se adiantarem, quando acabavam de passar pela bosta fresca ele, com uma pontaria certeira, atirava um dos pedregulhos achatados. A pedra girando atingia o monte de estrume como um disco voador desgovernado em aterrissagem forçada. A pasta verde e pegajosa era arremessada em todas as direções lambuzando os moleques e suas vasilhas de água.

Era inevitável a gritaria e o corre-corre de todos. A partir deste ponto o Renato tinha de seguir sozinho, primeiro para não apanhar dos demais e segundo porque todos tinham que retornar à bica para se limparem e apanhar nova água.

O seu gosto pelas sonoras e fedidas sinfonias de gases começou junto com o gosto pelas balas de coco. Não havia nada igual para, depois de um aniversário de criança, incentivar uma divertidíssima disputa de quem soltava o mais alto, quem soltava o mais fedido, quem soltava o maior número em menor tempo e o prêmio máximo era daquele que conseguisse imitar alguma seqüência de notas musicais.

O Renato conseguia após uma estranha ginástica que envolvia coices ao ar e tapas na barriga imitar com perfeição uma longa seqüência de uma marchinha tocada pela banda do Seu Alcindo. Ele imitava o som da tuba.

Já na adolescência ele queimou vários pijamas e cuecas fazendo um show de “Homem Dragão” para os amigos. Pena que este número não tenha aceitação na televisão pois é simplesmente fantástico. Quando íamos com vários primos e irmãos passar as férias no casarão do sítio chegamos a segurá-lo em difícil posição sobre o fogão a lenha para conseguirmos acender o fogo com madeira úmida.

Muitos amigos passaram pelo terrível vexame de “carimbarem a cueca” tentando imitá-lo. Sempre foi insuperável.

O tempo passou e ao completarmos dezoito anos e tirarmos carteira de motorista fomos fazer nosso primeiro passeio ao litoral. Carro abarrotado de panelas, barracas, e toda tralha de camping mais cinco malucos fomos acampar em Bertioga.

A praia quase deserta logo nos incomodou e fomos dar um passeio em Santos. A caipirinha de pinga vagabunda mais os camarões fritos super gordurosos logo fizeram efeito no intestino sempre solto do primo.

Caipira apertado na praia logo pensa no “marzão besta” à sua frente e assim foi que ele entrou no mar até o pescoço, abaixou seu calção e aliviou sua aflição.

Assim que o “submarino amarelo” saiu da garagem começou a levantar a proa e quase a 90 graus subiu esfregando a popa pela suã do Renato até saltar fora d’água na altura de sua nuca deixando em suas costas uma faixa amarela e fedida que lhe valeu o apelido de gambá por muitos anos.

Entramos na faculdade e o Primo Ventania foi estudar em Bauru onde enamorou-se e acabou tendo que se casar, não que não quisesse casar mas ficava muito preocupado com seus terríveis e sonoros gases.

Caipira sem-vergonha não tem jeito. Solta um pequenininho hoje para testar a mulher, um pouco maior amanhã e até o final da semana já está soltando até na mesa de jantar e sob as cobertas. Para ele que tem perfeito controle da válvula foi muito fácil armar um plano para que a esposa se acostumasse com sua sina.

Quem mora em Ribeirão Preto sob seu causticante sol sabe que no “verão brabo” o melhor horário para se secar roupa é à noite pois pela manhã elas estão no ponto certo para passar enquanto se forem secadas durante o dia ficam esturricadas parecendo couro cru que foi seco esticado na parede do paiol.

Nossa prima por adesão, esposa do Renato, pendurou toda a roupa ao anoitecer e aquela noite foi se deitar muito cansada. Já estava quase dormindo, com as ondas cerebrais sintonizando em alfa quando o maridão soltou o seu peido número 8,6! A veneziana de alumínio do quarto tremeu por uns 15 segundos e o som ecoou e reverberou pelas paredes. A coitada da Helô deu um tremendo salto da cama e disparou:

— Renato, corre! Levanta e vem me ajudar a recolher as roupas que vai chover!

Já estava destrancando a porta da cozinha quando percebeu que o safado estava gargalhando no quarto!

O episódio do trovão lhe valeu mais de um mês de abstinência sexual!

O castigo demora mas um dia chega! Dia destes o Renato foi dormir.

Deu boa noite para a Helô e dormiu logo pois estava cansado. Havia viajado o dia todo comido algumas bobagens pela estrada e se sentia meio indisposto.

De madrugada acordou com um clarão e assustou-se com um grandão barbudo à sua frente. Êpa! O que é isto? O que tá fazendo no meu quarto? Perguntou.

— Eu sou São Pedro e você não está no quarto, está no céu! Afirmou o barbudo.

— Cê tá é doido! Eu não posso morrer não! Emendou o Renato. Tenho que acabar de pagar a casa, dar escola para os meus filhos! Eu trabalho como representante comercial e ainda não sobrou para deixar-lhes nada! Cancela isto! Me deixa voltar! Foi disparando como metralhadora.

E o velho São Pedro:

— Meu filho, as coisas não são assim tão fáceis, não tem como deixá-lo voltar pois seu corpo já entrou em decomposição! Só posso deixá-lo voltar se for encarnado em sua cachorra ou em uma galinha de seu galinheiro.

O Primo Ventania tentou pensar rápido: Naquela cachorra não vai dar. Quando entra no cio os cachorros da vizinhança toda fazem fila! Deus me livre! Como galinha... sei lá, nunca vi a ferramenta do galo. Deve ser bem pequena! Vou nessa!

— Tá bom, então me manda de galinha!

Mal deu tempo de acabar de falar e Zuuummmmm! Estava no galinheiro. Sentiu-se estranho, fofo e leve.

— Puxa! Có, virei mesmo galinha, có!

Viu então o galo vindo em sua direção...

— Cóóó, você é nova por có aqui?

— Có, sou sim, có! Có, que cóisa, não paro có, de cócarejar!

O Galo vai logo enumerando as regras do galinheiro.

— Có, aqui có, você tem só có duas cópções: có reprodutora ou có poedeira.

Novamente o rápido raciocínio funcionou: Se vou có chocar ovos os mesmos tem que ser cócó galados! Có, ovo para ser có frito não precisa galar coóóh!

— Eu có gostaria de có ser poedeira mas cócó não sei có botar ovo!!

— Isto é có muito có fácil, afirmou o galo, eu có ensino você. O necócio é assim: có senta aí! Agora có levanta có a asa direita cócó e abaixa có duas vezes có! Agora grita cócórecodeco duas vezes!

O Primo seguiu fielmente os passos e PLOC! Caiu um ovo quentinho, muito gostoso e confortável, não doeu nada, pelo contrário, foi prazeroso!

O Renato se empolgou com a façanha e começou a repetir os procedimentos...

— Que có delícia, estou começando a gostar có desta história de có ser galinha!

Quando começou a fazer o procedimento para colocar o quarto ovo ele ouviu os gritos de sua esposa:

— Acorda seu desgraçado! Agora você passou dos limites! Tá cagando na cama seu porco!!!

Na semana passada fiz uma visita a eles, mais por curiosidade, prá ver se a raiva da Helô já tinha passado.

Encontrei o Renato ensinando o seu filho a tocar a famosa primeira estrofe do hino nacional. O menino leva jeito! Só que os dele tem o som de trombone!


 

 

© 2002 — Marcos Soares Ramos Cabete

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Outubro 2002

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