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Jean de La Bruyère

CARACTERES

—Ridendo Castigat Mores—


 

Caracteres
Jean de La Bruyère
Edição
Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook
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Fonte Digital
www.ngarcia.org

Copyright ©
Autor: Jean de La Bruyère
Tradução
Luiz Fontoura
Edição eletrônica
Ed Ridendo Castigat Mores
www.ngarcia.org
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947-2002)


 

ÍNDICE

Biografia do autor
Prefácio
Das Obras do Espírito
Do Mérito Pessoal
Das Mulheres
Do Coração
Da Sociedade e da Conversação
Dos Bens de Fortuna
Da Cidade
Da Corte
Dos Nobres
Do Soberano ou da República
Notas


 

CARACTERES

[imagem]

Jean de
La Bruyère


 

BIOGRAFIA DO AUTOR

[imagem]

Jean de La Bruyère, moralista notável e um dos mais finos buriladores da frase francesa, nasceu em Paris em 1645 e morreu em Versalhes em 1696. De família burguesa, licenciou-se em direito pela Universidade de Poitiers e dedicou-se à advocacia, profissão que logo abandonou para comprar o cargo de tesoureiro geral de França no Tribunal das finanças da Generalidade de Caen. Finalmente revendeu o cargo, sendo nomeado preceptor do príncipe Louis de Condé.

Desambientado e descontente dos costumes e dos homens de seu tempo, a quem nunca conseguiu fazer valer seu mérito, La Bruyère, movido de forte tendência moralizadora e de reforma dos costumes, dedica-se ao estudo e observação de seus contemporâneos. O fruto desses estudos são “Os Caracteres”, um dos mais acabados retratos morais de todos os tempos. Deixou por terminar uma segunda obra — Diálogos sobre o Quietismo.

La Bruyère não foi o criador de um sistema de moral, porém o retratista e satirizador da moral de seu tempo. Como literato ocupa lugar de primeira linha entre os maiores escritores franceses, tendo-se notabilizado por seu estudo ameno, variegado e de grande força de expressão. Foi membro da Academia Francesa.


 

PREFÁCIO

 

Devolvo ao público o que ele me emprestou; dele tomei a matéria desta obra; justo é que ao terminá-la, com todo o respeito à verdade de que sou capaz, e que ele me merece, faça-lhe agora esta restituição. Pode mirar-se com alma neste retrato que lhe fiz, tomado do natural; e se reconhecer em si alguns dos defeitos que aponto, corrija-os. É o único fim que se deve ter em vista ao escrever, e também o sucesso com que menos se deve contar.

Mas como os homens não aborrecem o vício, por isso mesmo é preciso não se cansar também de reprová-los: talvez fossem piores se viessem a faltar-lhes censores ou críticos: é isso que faz com que se exorte e se escreva.

O orador e o escritor não saberiam vencer a alegria que têm de ser aplaudidos: mas deviam se envergonhar caso não procurassem, com discursos e escritos, mais do que elogios; além de que a aprovação mais certa e menos equívoca é a mudança de costumes e a reforma daqueles que os lêem ou que os ouvem. Não devemos falar, não devemos escrever, senão para instrução; e se acontecer agradarmos, nem por isso devemos arrepender-nos, quando o sucesso servir para insinuar e tornar aceitáveis as verdades que instruem. Quando, pois, escorregarem num livro alguns pensamentos e reflexões que não tenham a veemência, nem a forma, nem a vivacidade de outros, ainda que pareçam incluídos para variar, descansar o espírito, torná-lo mais presente, mais atento ao que se segue, quando não sejam suaves, naturais, instrutivos, acomodados ao simples do povo — que não é permitido desprezar —, pode o leitor condená-los e deve o autor prescrevê-los: eis a regra.

Há outra, que me interessa ver seguida: é não perder de vista o meu título, e pensar sempre, durante toda a leitura desta obra, que eu descrevo caracteres e costumes deste século: porque se bem me inspire freqüentemente na corte de França, não se pode restringi-los a uma só corte, nem limitá-los a um só país, sem que muito perca o livro de seu alcance e utilidade, se afaste do plano que me tracei — pintar os homens em geral —, como das razões que entram na ordem dos capítulos e uma certa seqüência insensível nas reflexões que os compõem. Depois dessa precaução tão necessária, cujas conseqüências tão bem se percebem, creio poder protestar contra toda mágoa, toda queixa, toda interpretação maligna, toda falsa aplicação e toda censura; contra os severos impertinentes e os leitores mal-intencionados.

É preciso saber ler, e em seguida silenciar, ou poder relatar o que se leu, e nem mais nem menos do que aquilo que se leu; e se às vezes se pode fazer isso, não basta; é preciso ainda querer fazê-lo. Sem essas condições, que um autor exato e escrupuloso tem o direito de exigir de certos espíritos, como única recompensa do seu trabalho, duvido que ele deva continuar a escrever, salvo se preferir sua própria satisfação ao aproveitamento alheio e ao zelo da verdade. Confesso, aliás, que desde o ano de 1690, e antes da quinta edição, hesitei entre a impaciência de dar ao meu livro mais amplitude e melhor forma introduzindo novos caracteres, o temor de que alguns dissessem: não acabam mais esses Caracteres, e não veremos mais outra coisa desse escritor? Por um lado, pessoas circunspectas me diziam: a matéria é sólida, útil, agradável, inesgotável; viva muito tempo, e trate-a sem interrupção enquanto viver: que poderia fazer de melhor? Não há ano em que a estultícia dos homens não possa dar um volume.

Outras, com muita razão, me punham de sobreaviso contra os caprichos da multidão e a leviandade do público, com o qual, aliás, tantos motivos tenho para estar contente; e não deixaram essas pessoas de me sugerir que ninguém nos últimos trinta anos lendo mais que por ler, eram precisos, para divertir os homens, novos capítulos e novo título: que essa indolência do público enchera as lojas e povoara o mundo, esse tempo todo, de livros insípidos e cacetes, de mau estilo e nenhum recurso, sem regras e desconchavados, contrários aos costumes e conveniências, escritos com precipitação e lidas da mesma forma, só por serem novidade; e que se eu só sabia ampliar um livro razoável, o melhor que podia fazer era descansar. Tomei então um pouco de cada um desses dois conselhos opostos, e adotei uma forma que os aproximava. Não hesitei em acrescentar algumas observações novas às que já tinham aumentado do dobro a primeira edição de minha obra; mas para que o público não fosse obrigado a reler o antigo para passar ao que havia de novo, e tivesse diante dos olhos apenas o que sentisse vontade de ler, tomei a precaução de lhe designar este segundo acréscimo por um sinal particular: julguei também que não seria inútil diferençar o primeiro acréscimo com outra marca mais simples, que servisses para mostrar os progressos dos meus “caracteres” e auxiliar a escolha da leitura que se quisesse fazer(1); e como se pudesse temer que esse progresso fosse infinito acrescentei a todos esses cuidados uma promessa sincera de não tentar mais nada no gênero. Se alguém me acusar de ter faltado à palavra, inserindo, nas três edições que se seguiram, grande número de observações novas, ao menos verá que ao misturá-las com as antigas pela completa supressão dessas diferenças que se vêm em notas aparte, pensei menos em fazer com que se leia algo novo do que em deixar, talvez, à posteridade, um estudo de costumes mais completo, mais rematado e mais regular.

De resto não foram máximas que eu quis escrever: elas são como leis no domínio da moral; e confesso que não tenho autoridade bastante, nem gênio, para me fazer legislador. Sei mesmo que teria pecado contra os usos das máximas, os quais determinam que elas sejam, à maneira dos oráculos, curtas e concisas. Algumas dessas observações são assim; outras são mais extensas: pensam-se as coisas de maneira diferente e se explicam, de uma forma também completamente diferente, por uma sentença, um raciocínio, uma metáfora ou outra figura qualquer, por um paralelo, uma simples comparação, por um fato completo, por um único pormenor, por uma descrição, por uma cena; daí a extensão ou brevidade de minhas reflexões. Finalmente: aqueles que fazem máximas querem ser acreditados: eu, ao contrário, consinto que se diga de mim que algumas vezes não observei bem.; contanto que se observe .melhor do que eu.


 

DAS OBRAS DO ESPÍRITO

 

Tudo está dito: e chegamos tarde, depois que existem homens há mais de sete mil anos e homens que pensam. No que concerne aos costumes, o mais belo e melhor foi feito; não se faz mais que respigar os antigos e os mais capazes dentre os modernos.

É preciso que se procure apenas pensamento e palavra justa, sem querer trazer os outros ao nosso gosto — e aos nossos sentimentos: é projeto grande demais.

Fazer um livro é ofício, como fazer um relógio. É preciso mais do que inteligência para ser autor. Um magistrado atingira, pelo seu mérito, à mais alta dignidade: era um homem sutil e prático nos negócios. Fez imprimir uma obra sobre moral, extraordinária pelo ridículo.

Não é tão fácil fazer nome por uma obra perfeita, quanto fazer valer uma obra medíocre pelo nome que já se fez.

Uma obra satírica ou de façanhas, distribuída em fascículos clandestinos, contanto que seja devolvida da mesma forma, se for medíocre, passa por maravilhosa: a impressão é que atrapalha.

Se tirar de muitas obras de moral a advertência ao leitor, a epístola dedicatória, o prefácio, o índice, as referências de aplauso, sobram apenas as páginas bastantes para merecerem o nome de livro.

Há certas coisas em que a mediocridade é insuportável: a poesia, a música, a pintura, a oratória.

Que suplício ouvir declamar pomposamente um discurso frio, ou pronunciar versos medíocres com toda a ênfase de um mau poeta

Certos poetas, no gênero dramático, são propensos a longas tiradas de versos pomposos, que parecem fortes, elevados e cheios de grandes sentimentos. O povo ouve avidamente, olhos arregalados e boca aberta, pensa que isso lhe agrada, e quanto menos compreende mais admira; não tem tempo de respirar, mal tem o de gritar e aplaudir. Antigamente, na minha primeira juventude, cheguei a pensar que essas passagens eram claras e inteligíveis para os atores, platéia e anfiteatro; que os autores se entendiam a si mesmas e que com toda a atenção que eu prestava à sua história, estava errado em não entender nada daquilo.

Estou desenganado.

Não se viu até hoje obra prima da inteligência que seja obra de vários. Homero escreveu a Ilíada; Virgílio, a Eneida; Tito Livio, suas Décadas; e o Orador Romano, seus Discursos.

Há na arte um ponto de perfeição, como de bondade ou maturidade na natureza:, aquele que o sente e o aprecia, tem o gosto perfeito; quem não o sente e o aprecia aquém ou além do verdadeiro valor, tem o gosto defeituoso. Existe, portanto, bom e mau gosto, e o gosto se discute com fundamento.

Há muito mais vivacidade que gosto entre os homens; ou melhor, poucos são os homens que a par de inteligência sejam dotados de gosto seguro e crítica judiciosa.

A vida dos heróis enriqueceu a história, e a história embelezou as ações dos heróis: assim, não sei quem deva mais ao outro, se os que escrevem a história aos que forneceram tão nobre matéria, se esses grandes homens aos seus historiadores.

Monte de epítetos: maus louvores; os fatos é que louvam, e a maneira de contá-los.

Todo o engenho do autor consiste em bem definir e bem pintar. Moisés(2), Homero, Platão, Virgílio, Horácio, só estão acima dos outros escritores pelas suas expressões e imagens: é preciso exprimir a verdade para escrever naturalmente, rijamente, delicadamente.

Foi preciso fazer com o estilo o que se fez com a arquitetura; abandonou-se inteiramente a ordem gótica que a barbaria introduzira nos palácios e templos; restabeleceu-se o dórico, o jônico e o coríntio; o que não se via mais senão nas ruínas da Roma antiga e da velha Grécia, tornado moderno, resplandece nos nossos pórticos e peristilos. Da mesma forma não se poderia, escrevendo, encontrar a perfeição, e se é possível, sobrepujar os antigos, senão imitando-os.

Quantos séculos se passaram antes que os homens, nas ciências e nas artes, tenham podido voltar ao gosto dos antigos, e retomar enfim, simplicidade e naturalidade!

A gente se alimenta dos antigos e dos mais capazes dentre os modernos; espremendo-os, tira-se deles o mais que se pode, enchem-se deles as obras; e quando afinal se é autor, e se pensa avançar sozinho, a gente se levanta contra eles, maltrata-os, como essas crianças atrevidas que criadas com o bom leite que sugaram, espancam sua ama.

Um autor moderno(3) prova geralmente de duas maneiras que os antigos são inferiores a nós; pela razão e pelo exemplo: tira a razão do seu gosto pessoal e o exemplo das obras deles. Confessa que os antigos, desiguais e pouco corretos que sejam, têm belas passagens e as cita; e são tão belos esses trechos, que nos fazem ler sua crítica.

Alguns entendidos(4) pronunciam-se a favor dos antigos contra os modernos; mas são suspeitos e parecem julgar em causa própria tanto suas obras são feitas ao gosto da antigüidade: a gente as recusa.

Devíamos gostar de ler nossas obras àqueles que sabem delas bastante para corrigi-las e avaliá-las.

Não querer conselhos nem correções para sua obra é pedantismo.

Um autor deve receber com igual modéstia os elogios e a crítica que se faz de suas obras.

Entre todas as diferentes expressões que podem representar um só dos nossos pensamentos, só há uma boa; nem sempre se pode encontrá-la falando ou escrevendo. É verdade, no entanto, que existe, e que tudo o que não seja ela é fraco e não satisfaz um homem inteligente que queira se fazer ouvido.

Um bom autor, que escreve com cuidado, verifica freqüentemente que a expressão que há tanto tempo procurava sem encontrar, e que afinal encontrou, é de todas a mais simples, a mais natural, a que parecia dever ter-lhe ocorrido em primeiro lugar e sem esforço.

Os que escrevem de acordo com as disposições de momento são propensos a retocar suas obras. Como não são sempre iguais e variam neles segundo a ocasião, cedo aborrecem as expressões e termos que mais amaram.

A mesma clareza de inteligência que nos faz escrever boas coisas, nos faz perceber quando não o são bastante para merecerem ser lidas.

Uma inteligência medíocre pensa escrever divinamente; uma inteligência boa pensa escrever razoavelmente.

Fizeram-me prometer, diz Aristo, ler minhas obras a Zoilo; li-as; a princípio o empolgaram e antes que tivesse calma para achá-las mas, elogiou-as modestamente na minha frente; depois não as elogiou mais diante de ninguém; eu o desculpo, e não peço a um autor mais do que isso; até o lamento por ter ouvido belas coisas que não foram feitas por ele.

Aqueles que pela sua condição se acham isentos da inveja de autor, têm paixões ou necessidades que os distraem e os tornam frios em relação às concepções alheias: quase ninguém, por disposição de espírito, de coração e de fortuna, se acha em estado de se entregar ao prazer que dá a perfeição de uma obra.

O prazer da crítica nos tira o de nos comovermos vivamente diante de coisas muito bonitas.

Muita gente chega a sentir o mérito de um manuscrito que se lhes lê, mas não se lhe pode declarar em favor antes de ter visto a aceitação que terá do público, depois de impresso, ou qual será sua sorte entre os entendidos. Não aventuram sufrágios, e querem ser levados pela turba, arrastados pela multidão. Então dizem que foram os primeiros a aprovar essa obra, e que o público participa de sua opinião.

Essa gente deixa passar as melhores ocasiões de nos convencer de que têm capacidade e luzes, que sabem julgar, achar bom o que é bom e melhor o que é melhor. Uma bela obra cai nas suas mãos; é uma obra de estréia, o autor ainda não fez grande nome, não tem nada que intervenha em seu favor; não se trata de cortejá-lo nem de agradar poderosos aplaudindo seus escritos. Não se pede a você, Zelotes, que grite: “É uma obra prima do pensamento; a humanidade não vai além dai; é o máximo a que a palavra humana pode se elevar: futuramente não se julgará o gosto de alguém senão na proporção em que gostar desta peça!”; frases excessivas, desprezíveis, que cheiram a pensionato ou abadia, prejudiciais mesmo ao que é louvável e que se quer louvar. Por que não disse simplesmente: eis um bom livro? Você diz isso, é verdade, com toda a França, com os estrangeiros como com os compatriotas, quando a obra está impressa em toda a Europa e traduzida em diversas línguas; não é mais tempo de dizer essas coisas.

Alguns dos que leram uma obra extraem dela certos trechos cujo sentido não compreenderam, e ainda os alteram, com tudo o que acrescentam por sua conta; e esses trechos assim corrompidos e desfigurados, que não são mais que seus próprios pensamentos e expressões, expõem-nos à censura, sustentando que são maus, e todo mundo concorda em que o são; mas o trecho da obra que esses críticos pensam citar, e que na realidade não citam, não é pior.

Que diz você do livro de Hermodoro? Que é mau, responde Antimo, que é mau; tão mau que não é um livro que pelo menos mereça que se fale dele. Mas já o leu? Não, diz Antimo. Por que não acrescenta que Fúlvio e Melânio o condenaram sem o ler, e que ele é amigo de Fulvio e de Melânio?

Arsênio, das culminâncias do seu espírito, contempla os homens; e da distância em que os vê, está como que assustado com a pequenez dos homens. Louvado, exaltado, elevado até os céus por certas pessoas que se prometeram admirar-se reciprocamente, acredita, com algum mérito que tem, possuir tudo o que se pode ter, e que ele jamais terá; ocupado e recheado dessas idéias sublimes, apenas se digna pronunciar alguns oráculos; elevado pelo seu caráter acima dos julgamentos humanos, abandona às almas comuns o mérito de uma vida conseqüente e uniforme; só é responsável pelas suas inconstâncias perante esse círculo de amigos que o idolatram. Só eles sabem julgar, sabem pensar, sabem escrever, devem escrever. Não há obra de pensamento, por melhor que seja recebida no mundo e universalmente apreciada pela gente de bem, não digo que ele queira aprovar, mas que se digne ler; é incapaz de ser corrigido por essa pintura, que ele não lerá.

Teócrines sabe coisas bastante inúteis, tem sempre opiniões singulares; é menos profundo que metódico, só exercita a memória; abstrato, desdenhoso, parece sempre rir para dentro, daqueles que pensa não valerem o que ele vale. O acaso faz com que eu leia minha obra para ele ouvir. Ele ouve. Acabo a leitura, ele me fala da obra dele. E da sua, perguntarão, que pensa ele? Já vos disse: fala da obra dele.

Não haveria obra bastante perfeita que não se liqüidasse inteiramente, no meio da crítica, se seu autor quisesse acreditar em todos os censores, cada um tirando o trecho que menos lhe agradar.

E uma experiência feita: quando se encontram dez pessoas que riscam de um livro uma expressão ou um sentimento, encontram-se facilmente outras tantas que os reclamam; estes perguntam: por que suprimir esse conceito? Ele é novo, belo, e a forma é admirável; aqueles afirmam, ao contrário, que teriam desprezado esse conceito ou que lhe teriam dado outra forma. Há um termo na sua obra, dizem uns, que é bem achado e exprime bem a realidade; há uma palavra, dizem outros, que é arriscada e aliás não significa muito claramente o que você talvez quisesse dar a entender: e é do mesmo trecho e da mesma palavra que toda essa gente fala assim; e todos são entendidos e tidos como tais. Que outro partido resta ao autor, senão ousar seguir a opinião dos que o aprovam?

Um autor que se preza não é obrigado a encher o espírito com todas as extravagâncias, todas as porcarias, todas as más palavras que lhe podem dizer e todas as ineptas aplicações que se podem fazer a propósito de alguns trechos de sua obra; e, ainda menos, suprimi-los. Está convencido de que, por mais escrupulosa exatidão que se tenha na maneira de escrever, a zombaria pueril dos impertinentes é um mal inevitável, e as melhores coisas freqüentemente só servem para faze-los achar uma tolice.

Se alguns espíritos vivos e decisivos fossem acreditados, seria ainda demais empregar termos para exprimir sentimentos; seria necessário falar-lhes por sinais, ou se fazer entendido sem falar. Por mais cuidado que se tenha em ser conciso e lacônico, e ainda que se seja reputado por isso, eles nos acham prolixos. É preciso deixar tudo para eles completarem, e escrever só para eles; concebem um período pela palavra que o começa; e por um período, todo o capítulo: leu-se para eles um único trecho da obra, basta: já penetraram tudo, e entendem a obra. Um tecido de enigmas ser-lhes-ia leitura divertida; e é uma pena para eles que esse estilo estropiado que os enleva seja raro, e poucos escritores se resignem a isso. As comparações tiradas de um rio cujo curso, apesar de rápido, é igual e uniforme, ou dum braseiro que empurrado pelos ventos se expande longe numa floresta em que consome carvalhos e pinheiros, não lhes fornece a menor idéia da eloqüência. Mostre-lhes um fogo que arde n’água, que os surpreende, o um relâmpago, que os ofusca: ficarão encantados com você.

Que prodigiosa distância entre uma bela obra e uma obra perfeita e regular! Não sei se se encontra desse último gênero. Talvez seja menos difícil nos raros gênios encontrar o grande e o sublime, que evitar alguns erros. O Cid só teve um voto por ele no seu aparecimento, e foi o voto da admiração: tornou-se mais forte que a autoridade e a política, que em vão tentaram destruí-lo; reuniu em seu favor espíritos sempre divididos em opiniões e sentimentos, os nobres e o povo; todos concordam em sabê-lo de cor e aplaudir no teatro os atores que o recitam. O Cid, enfim, é um dos mais belos poemas que se pode fazer; e uma das melhores críticas que foram feitas sobre qualquer assunto, foi a do Cid.

Quando uma leitura encanta o seu espírito, e lhe inspira sentimentos nobres e corajosos, não procure outra regra para julgar a obra; esta é boa, e feita com mão de bom operário.

Capis, que se arvora juiz do bom estilo, e pensa escrever como BOUHOURS e RABUTIN, resiste à voz do povo, e diz sozinho que Damis não é bom autor, Damis cede à multidão e diz ingênuamente, com o público, que Gapis é um escritor sem fibra.

O dever do jornalista é dizer: há um livro tal que está à venda, impresso por Cramoisy, em tipo tal; está bem encadernado em bonito papel; o preço é tanto. Deve saber até a marca do livreiro que o divulga; sua imprudência é querer criticá-lo.

O sublime do jornalista é o raciocínio oco sobre política.

O jornalista se deita de noite tranqüilamente sobre uma notícia que se corrompe durante a noite, e se, vê obrigado a abandoná-la de manhã ao acordar.

O filósofo consome sua vida observando os homens, usa seus talentos. para separar os vícios e o ridículo: se dá alguma forma aos pensamentos é menos por vaidade de autor que para trazer uma verdade que encontrou para, toda a luz necessária à impressão que deve servir ao seu objetivo. Alguns leitores, entretanto, pensam pagar com juros por dizerem doutoralmente que leram o livro, e que acharam engenho nele; mas ele devolve todos os elogios, que não procurou com seus trabalhos e vigílias. Tem mais altos projetos, e age para um fim mais elevado: pede aos homens um sucesso maior e mais extraordinário que louvores, e mesmo recompensas: tornarem-se melhores.

Os tolos lêem um livro, e não o entendem; os espíritos medíocres pensam entendê-lo perfeitamente; os grandes espíritos às vezes não o entendem de todo; acham obscuro o que está obscuro, como acham claro o que está claro. Os espíritos “brilhantes” querem achar obscuro o que não o é, e não entender o que é muito inteligível.

Em vão procura um autor fazer-se admirar por sua obra. Os tolos admiram às vezes; mas são tolos. As pessoas inteligentes têm em si a semente de todas as verdades e sentimentos; nada é novo para elas; admiram pouco; aprovam.

Não sei se jamais se poderá pôr nas cartas mais espírito, mais elegância, mais estilo, do que vemos nas de BALZAC e de VOITURE. São vazias de sentimentos que só reinaram depois deles, e que devem às mulheres seu advento. Esse sexo vai mais longe que o nosso em tal gênero de escrita. Elas acham na pena formas e expressões que para nós, às vezes, são o resultado de longo trabalho e penosa procura: são felizes na escolha dos termos e os empregam tão oportunos, que por conhecidos que sejam, têm encanto de novidade e parecem feitos apenas para o uso em que elas os tomam. Só elas fazem ler numa só palavra um sentimento inteiro, nos apresentam delicadamente um pensamento delicado. Têm um encadeamento de discurso inimitável, que se segue naturalmente e só se liga pelo sentido. Se as mulheres fossem sempre corretas, eu ousaria dizer que as cartas de algumas delas seriam talvez o que temos de melhor escrito na nossa língua(5) . Só faltou a Terêncio ser menos frio; que pureza, que exatidão, que polidez que elegância, que caracteres! Só faltou a Molière evitar a gíria e escrever com pureza: que vivacidade, que ingenuidade, que fonte de boa piada, que imitação dos costumes, que imagens, e que flagelo do ridículo! Mas que homem se poderia fazer com esses dois cômicos!

Li Malherbe e Teófilo. Todos dois conheceram a natureza, com a diferença que o primeiro, com estilo cheio e uniforme, mostra ao mesmo tempo o que ela tem de mais belo e mais nobre, de mais ingênuo e mais simples; faz-lhe a pintura ou a história. O outro, sem escolha, sem exatidão, com a pena livre e desigual, às vezes se encarrega das descrições, acentuando demais os pormenores; faz anatomia: às vezes claudica, exagera, despreza o verdadeiro na natureza, e faz-lhe o romance.

Ronsard e Balzac tiveram, cada um no seu gênero, coisas boas e más, bastantes para formar depois deles grandes homens em verso e prosa.

Marot, pela forma e pelo estilo, parece ter escrito depois de Ronsard: só existe, entre O primeiro e nós, a diferença de algumas palavras.

Ronsard e os autores seus contemporâneos mais perturbaram do que favoreceram o estilo. Retardaram-no no caminho da perfeição; expuseram-se a nunca atingir, a nunca mais voltar a ela. É de admirar que as obras de Marot, tão naturais e tão fáceis, não tenham sabido fazer, de Ronsard, tão cheio de estro e entusiasmo, maior poeta que Ronsard e Marot; e, ao contrário, que Belleau, Jodelle e Saint-Gelais, tenham sido logo seguidos por um Racan, um Malherbe; e que a nossa língua, mal fora corrompida, tenha sido restaurada.

Marot e Rabelais são indesculpáveis por ter espalhado imundície nos seus escritos;: tanto um como outro tinham bastante gênio e naturalidade para poder dispensá-la, mesmo para os que procuram menos admirar que rir de um autor. Rabelais, principalmente, é incompreensível. Seu livro é um enigma por mais que se diga, inexplicável; uma quimera: um rosto de mulher bonita com pés e cauda de víbora ou de outro animal mais disforme; é um amontoado monstruoso de moral fina e engenhosa e de corrupção porca. Onde ele é mau, passa muito além do que há de pior: é o encanto da canalha;, onde é bom, vai até o delicioso e o excelente, pode ser a iguaria dos mais exigentes.

Dois escritores(6), em suas obras, censuraram Montaigne, que, tanto quanto eles, não julgo isento de qualquer censura; parece que todos dois não o apreciaram de forma alguma. Um não pensava bastante para saborear um autor que pensa muito; o outro pensa com excesso de sutileza para se conformar com pensamentos que são naturais.

Um estilo grave, sério, escrupuloso, vai muito longe: Lê-se Amyot e Coeffeteau; qual de seus contemporâneos se lê ainda? Balzac, pelos termos e expressões, é mais antigo que Voiture: mas se este último, pela forma, por. espírito e por índole, não é moderno, e não se parece em nada com nossos escritores, é que lhes foi mais fácil desprezá-lo que o imitar; e o pequeno número dos que o seguem não pode atingi-lo.

O H. G.(7) está: imediatamente abaixo do nada: há muitas outras obras que se lhe assemelham. Há tanta habilidade em se enriquecer com um livro estúpido,: quanto de estupidez em comprá-lo: não ousar às vezes grandes tolices ignorar o gosto do povo.

Vê-se bem que a Ópera é o esboço de um grande espetáculo: dá uma idéia disso.

Não sei como a Ópera, com música tão perfeita e gastos tão régios pode chegar à perfeição de me cacetear.

Há trechos na Ópera que fazem desejar outros. As vezes arriscam fazer desejar o fim de todo o espetáculo: falta de teatro, de ação e de coisas que interessem.

A Ópera, até hoje, não é um poema: são versos; nem um espetáculo, depois que o artifício desapareceu, pelos bons ofícios de Anfion e sua raça(8): é um concerto, ou vozes amparadas por instrumentos. É se enganar completamente e cultivar o mau gosto dizer-se, como se diz, que o artifício não passa de brincadeira de crianças, e só convêm às marionetes; ele aumenta e embeleza a ficção, sustenta nos espectadores essa doce ilusão que é todo o prazer do teatro, onde acrescenta ainda o maravilhoso.

Não são necessários vôos, nem carruagens, nem mudanças, às Berenices(9) e a Penélope(10); as óperas é que precisam desses acessórios; e o característico desse espetáculo é manter espírito, olhos, ouvidos, num mesmo encantamento.

Esses abelhudos fizeram o teatro, enredo, bailados, versos, música, todo o espetáculo: até a sala em que se deu o espetáculo, isto é, teto e quatro paredes, desde os alicerces: quem duvida que a caça aquática, o encanto da mesa(11), a maravilha do labirinto(12), sejam invenção deles? Julgo assim pela agitação em que ficam e pelo ar contente com que se aplaudem a si próprios pelo sucesso. Se estou enganado, e eles não tiverem contribuído em nada para essa festa soberba, e tão galante, tanto tempo conservada e onde um só bastou para projeto e despesa, admiro duas coisas: a tranqüilidade e fleuma daquele que tudo movimentou e o embaraço e agitação dos que nada fizeram.

Os entendidos, ou os que assim se julgam, atribuem-se voto deliberativo e decisivo sobre os espetáculos, também se aboletam num canto, e se dividem em partidos contrários, nos quais cada um, levado por interesse muito diferente do interesse público ou da eqüidade, admira certo poema ou certa música e vaia quaisquer outros. Prejudicam igualmente, por esse calor em defender suas prevenções, a facção oposta e sua própria facção: desencorajam por mil contradições os poetas e os músicos, retardam o progresso das ciências e das artes, privando-as do fruto que elas podiam colher da emulação e liberdade que teriam diversos mestres excelentes fazendo, cada um no seu gênero e segundo seu gênio, muito boas obras.

Donde vem o costume de se rir tão livremente no teatro e ter vergonha de ali chorar?

Será menos natural enternecer-se com o que é comovente, que estourar de riso com o ridículo? Será a alteração dos traços que nos prende? Ela é maior num riso imoderado que na mais amarga dor; e a gente esconde o rosto, para chorar como para rir, na presença dos nobres e de todos aqueles que se respeitam. Será repugnância que se sente em deixar ver que se é meigo e demonstrar certa fraqueza, principalmente num tema fictício, em que parece ser-se logrado?

Mas sem levar em conta as pessoas graves ou espíritos fortes que acham fraqueza tanto num riso excessivo como no pranto, e evitam igualmente os dois, que se espera de uma cena trágica? Que faça rir?

E além do mais, a verdade não reina ali tão viva nas suas imagens quanto no cômico? A alma não chega até à verdade num e noutro gênero antes de se comover? Será ela tão fácil de contentar? Não será necessária ainda a verossimilhança? Assim como não é coisa do outro mundo ouvir levantar-se em todo o anfiteatro um riso unânime nalgum trecho da comédia, e ao contrário supõe que a comédia é agradável e representada com naturalidade, também a extrema violência a que cada um se obriga ao conter as lágrimas e o riso contrafeito com que se pretende disfarçá-las provam claramente que o efeito natural do grande trágico seria chorar francamente e em conjunto, à vista uns dos outros, sem outra preocupação que a de enxugar as lágrimas; ainda mais que depois de concordar em chorar sem constrangimento, ainda se verificaria que geralmente há menos razão para ter receio de chorar no teatro que de nele perder tempo.

O poema trágico comove de pronto o coração, mal deitando, em todo o seu desenvolvimento, liberdade e tempo de se recuperar a calma; se dá alguma folga é para reconduzir a novos abismos e novos lances. Chega ao assombro pelo sentimento de compaixão, ou, reciprocamente, chega à compaixão pelo sentimento de assombro; leva, por lágrimas, soluços, incerteza, esperança, temor, surpresa, horror, até a catástrofe. Não se trata, portanto, de uma trama de chistes, declarações ternas, palestras galantes, retratos agradáveis, palavras açucaradas, ou, às vezes, suficientemente divertidas para fazer rir, em seguida à verdade de uma última cena(13) em que os amotinados não atendem a nenhuma razão e, para geral satisfação, há sangue derramado se algum infeliz a quem isso custa a vida.

Não basta que os costumes do teatro não sejam maus: é preciso que sejam decentes e instrutivos. Pode haver nele um ridículo tão baixo e tão grosseiro, ou mesmo tão insípido e desinteressante, que não é permitido ao poeta prestar-lhe atenção, nem possível aos espectadores divertir-se com ele.

O camponês ou o ébrio fornecem algumas cenas a um farsista, mas mal penetra no verdadeiro cômico: como poderia ele constituir o fundo ou a ação principal da comédia? Esses caracteres, diz-se, são naturais: assim, por essa regra, breve todo o anfiteatro terá que se ocupar com um lacaio que assobia, um doente metido no seu roupão, um bêbado que dorme ou vomita: haverá coisa mais natural?

É próprio do afeminado levantar-se tarde, passar boa parte do dia na sua toalete, mirar-se no espelho, perfumar-se, colar sinais no rosto, receber bilhetinhos e respondê-los: leve esse papel à cena, quanto mais o fizer durar, um ato, dois atos, mais natural e conforme ao original ele será; mas também mais cacete e insípido há de ficar(14).

Parece que o romance e a comédia poderiam ser tão úteis quanto são prejudiciais: vêm-se neles tão grandes exemplos de constância, virtude, ternura e desinteresse, tão belos e perfeitos caracteres, que quando uma criatura jovem tira os olhos deles e vê tudo o que a cerca, não encontrando senão pessoas indignas e muito abaixo do que acaba de admirar, duvido que seja capaz da menor fraqueza por elas.

CORNEILLLE não pode ser igualado, nos trechos em que é eminente: possui ai um caráter original e inimitável; mas é desigual. Suas primeiras comédias são secas, insípidas, e não faziam esperar que ele fosse tão longe, assim como as últimas fazem com que nos espantemos de ver que ele tenha podido cair de tão alto. Em algumas de suas melhores peças, há erros indesculpáveis contra os costumes; um estilo de declamador que trava a ação e a faz esmorecer; negligências nos versos e na expressão, que não se podem compreender em tão grande homem. O que há nele de mais eminente é a inspiração, que tinha sublime, à qual ficou devendo certos versos, os mais felizes que já se leram até hoje, a maneira do seu teatro, que às vezes ousou conduzir contra as regras dos antigos, e, finalmente, os desfechos de suas peças, porque nem sempre se sujeitou ao gosto dos gregos e à sua grande simplicidade; ao contrário, gostava de sobrecarregar a cena com acontecimentos dos quais geralmente dava conta com sucesso admirável, principalmente pela extrema variedade e pouca relação que se encontra, quanto ao delineamento, entre tão grande número de poemas que compôs.

Parece haver mais uniformidade nos de Racine, e que tendem um pouco mais para um mesmo fim; ele é igual, firme, sempre o mesmo em toda parte, seja pelo plano de desenvolvimento e o modo de conduzir suas peças, que são justas, regulares, tomadas no bom sentido e na natureza, seja pela versificação que é correta, rica nas rimas, elegante, numerosa, harmoniosa; imitador exato dos antigos, cuja clareza e simplicidade de ação ele seguiu escrupulosamente; a quem o grandioso e o maravilhoso não faltaram, assim como a Corneille não faltaram o comovente e o patético.

Que maior ternura pode haver do que a que se difunde em todo o Cid, em Polieuctes, e em Os Horácios? Que grandeza não se nota em Mitridates, em Porus, em Burrus? Estas paixões, também favoritas dos antigos, que os trágicos gostavam de excitar nos teatros — terror e compaixão — foram conhecidas desses dois poetas: Orestes, na Andromaque, de Racine, e Pedro, do mesmo autor, como o Édipo e Os Horácios de Corneille, são a prova. Entretanto, se for permitido fazer alguma comparação entre eles, e marcá-los, um e outro, pelo que têm de mais característico e pelo que mais se destaca comumente nas suas obras, talvez se. pudesse dizer: Corneille nos prende a seus caracteres e suas idéias, Racine se conforma às nossas: aquele pinta os homens como deviam ser, este pinta os homens como são.

Há no primeiro mais daquilo que se admira, e mesmo do que se deve imitar; há no segundo aquilo que se reconhece nos outros, ou que se experimenta em si mesmo. Um eleva, assombra, domina, instrui; o outro agrada, perturba, comove, penetra. O que há de mais belo, de mais nobre, de mais imperioso na razão, é manejado pelo primeiro; e pelo outro, o que há de mais brando e delicado na paixão.

Encontram-se, naquele, máximas, regras, preceitos; neste, gosto e sentimento. A gente se absorve mais nas peças de Corneille; e mais se abala e se enternece nas de Racine. Comeille é mais moral; Racine, mais natural. Parece que um imita Sófocles e o outro deve mais a Eurípides.

O povo chama eloquência a facilidade que alguns têm de falar sozinhos muito tempo, aliada ao arrebatamento do gesto, ao fragor da voz e à força dos pulmões. Os pedantes também não a admitem senão no discurso oratório, e não a distinguem do amontoado de imagens, do uso de palavrório e dos períodos arredondados.

Parece que a lógica é, a arte de convencer de alguma verdade; e a eloqüência um dom da alma, que nos torna senhores do coração e do espirito dos outros; que nos faz inspirar ou convencer os outros de tudo o que nos apraz.

A eloqüência pode se encontrar nas palestras e em todo gênero de escrito Raramente está onde a procuram, e às vezes está onde não a procuram.

A eloqüência está para o sublime como o todo para a parte.

Que é o sublime? Não parece que o tenham definido. É uma imagem? Todo gênero de escrito comportará o sublime, ou só os grandes temas serão capazes disso? Poderá brilhar, outra coisa na égloga além de uma bela naturalidade e nas cartas familiares, como nas palestras, uma grande delicadeza? Ou naturalidade e delicadeza serão o sublime das obras, que tornam perfeitas? Que é o sublime? Onde está o sublime?

Os sinônimos são diversas dicções, ou diversas frases diferentes, que significam a mesma coisa.

A antítese é uma oposição de duas verdades que se dão à luz mutuamente. A metáfora, ou a comparação, tira de uma coisa estranha uma imagem sensível e natural de uma verdade.

A hipérbole exprime além da verdade, para permitir ao espírito conhecê-la melhor.

O sublime não pinta mais que a verdade, mas num tema nobre; pinta-a inteira, na causa e no efeito; é a expressão ou a imagem mais digna dessa verdade. Os espíritos medíocres não acham uma expressão única e usam sinônimos. Os jovens se deixam ofuscar pelo brilho da antítese, e se servem dela. Os espíritos justos, que gostam de imagens precisas, vão dar naturalmente na comparação e na metáfora. Os espíritos vivos, ardentes, e arrastados por vasta imaginação para fora das regras e da exatidão, não podem se contentar senão com a hipérbole. Ao sublime, mesmo entre os grandes gênios, só os mais elevados são capazes de atingir.

Todo escritor, para escrever claramente, deve colocar-se no lugar de seus leitores, examinar sua própria obra como algo novo para ele, algo que pela primeira vez ele esteja lendo, e que o autor tivesse submetido à sua crítica; e persuadir-se depois de que não somos entendidos quando nos entendemos, mas sim quando o que fazemos é de fato inteligível.

Só se escreve para ser ouvido: mas é preciso, pelo menos, ao escrever, fazer ouvir belas coisas. Deve-se ter dicção pura e usar termos adequados à verdade; mas é preciso que esses termos tão justos sejam expressão de pensamentos nobres, vivos, sólidos, e que contenham sentido muito belo.

É fazer mau uso da pureza e da clareza do discurso, fazê-lo servir a matéria árida, infrutífera, sem sal, sem utilidade, sem novidade: de que serve aos leitores compreender facilmente e sem esforço coisas frívolas e pueris, às vezes insípidas e vulgares, e estarem menos incertos em relação ao pensamento de um autor que caceteados com sua obra?

Quando se põe alguma profundidade em certos escritos, quando se afeta finura de estilo, e às vezes excesso de delicadeza, é apenas pela boa opinião que se tem dos leitores.

Temos de suportar este constrangimento(15) na leitura dos livros feitos por gente de partido e facção: de nem sempre ver aí a verdade. Os fatos são disfarçados, as razões recíprocas não são relatadas em toda sua força, nem com inteira exatidão; e o que esgota a mais longa paciência, é preciso ler grande. número de termos duros e injuriosos que homens graves se dizem, por fazerem de um ponto de doutrina, ou dum fato contestado, querela pessoal. Essas obras têm isso de particular, é não merecerem a voga prodigiosa de que gozam durante algum tempo, nem o profundo esquecimento em que caem quando, extinto o ardor da pendência, se transformam em almanaques do ano passado.

A glória ou o mérito de certos homens está em escrever bem, a de alguns outros, em não escrever

Escreve-se regularmente há vinte anos; é-se escravo da construção: enriqueceu-se a língua de palavras novas, sacudido o jugo do latinismo, e reduziu-se o estilo à frase puramente francesa: quase se encontrou o número que MALHERBE e BALZAC pela primeira vez tinham encontrado, e depois tantos autores deixaram fugir-lhes Estabeleceu-se, enfim, no discurso, toda a ordem e clareza de que ele é capaz; isso conduz sensivelmente a acrescentar-lhe espírito.

Existem artífices ou eruditos cuja inteligência é tão vasta quanto a arte ou a ciência que professam; retribuem-lhe com vantagem, pelo gênio e pela invenção, o que recebem dela e dos seus princípios: saem da arte para enobrecê-la, afastam-se das regras, se estas não conduzem ao grandioso e ao sublime; andam sozinhos e sem companhias, mas chegam bem alto e penetram bem longe, sempre seguros e confirmados pelo sucesso, das vantagens que às vezes se tiram da irregularidade.

Os espíritos justos, pacíficos, moderados, não só não os atingem, como não os compreendem, e menos ainda quereriam imitá-los. Permanecem tranqüilos nos confins de sua esfera, vão até certo ponto que enche os limites de sua capacidade e de suas luzes; não vão mais longe porque nada vêm além; não podem ser mais que os primeiros de uma segunda classe, e sobrepairar no medíocre.

Há inteligências, se assim me atrevo a dizer, inferiores e subalternas, que não parecem feitas senão para compilação, registro ou armazém de todas as produções dos outros gênios. São plagiários, tradutores, compiladores: não pensam, dizem o que os autores pensaram; e como a escolha dos pensamentos é invenção, têm má escolha, preferem relatar muitas coisas do que coisas excelentes: não têm nada de original, que lhes pertença: não sabem o que aprenderam; e só aprendem aquilo que todo mundo prefere ignorar, uma ciência vã, árida, despida de graça e de utilidade, que não surge na conversação, que está fora do comércio, feito moeda que não tem mais curso. Sua leitura nos espanta e ao mesmo tempo são cacetes suas conversas e suas obras.

Esses são os que os nobres e o vulgo confundem com os sábios e os homens de engenho encaminham ao pedantismo.

Em geral a crítica não é ciência: é um oficio em que se precisa mais de saúde que de espírito, mais trabalho que capacidade mais hábito que gênio. Se vem de um homem que tem menos discernimento que leitura, e se exerce sobre certos capítulos, corrompe os leitores e o escritor.

Aconselho a uma autor copista de nascença, que tem a extrema modéstia de trabalhar segundo alguém, a não escolher para modelo senão essa espécie de obras em que entram inteligência, imaginação ou mesmo erudição: se não atingir os seus originais, pelo menos se aproxime deles e assim se fará ler. Deve, ao contrário, evitar como um escolho o desejo de imitar os que escrevem por ímpeto, falam pelo coração que lhes inspira termos e imagens, e tiram, por assim dizer, das próprias entranhas, tudo o que expressam no papel; modelos perigosos, próprios para fazer cair na frieza, na baixeza e no ridículo os que se metem a segui-los. De fato eu riria de um homem que quisesse seriamente falar com o meu tom de voz ou parecer-se com meu rosto.

Um homem nascido cristão e francês se constrange na sátira: os grandes assuntos lhe são proibidos:, aborda-os às vezes e depois se afasta para pequenas coisas, a que ele dá relevo pela beleza do seu gênio e do seu estilo.

É preciso evitar-se o estilo vão e pueril, para não se parecer com Dorilas e Handburg(16).

Pode-se, ao contrário, em alguns gêneros de escrito, ousar certas expressões, usar termos transpostos que compõem a frase com vivacidade, e lamentar os que não sentem o prazer que existe em se servir desses recursos, ou ouvir os que deles se serviram.

Aquele que ao escrever só pensa no seu século pensa mais na sua pessoa que no que escreve. É preciso tender sempre para a perfeição; e então essa justiça que os contemporâneos nos recusam, a posteridade nos fará.

Não se deve pôr ridículo onde não existe: é estragar o gasto, corromper o julgamento próprio e o alheio.

Mas o ridículo que está em algum lugar, é preciso vê-lo aí, ressaltá-lo, com graça e de maneira que agrade e instrua.

HORÁCIO e DESPRÉAUX disseram isso antes de você. Mas eu disse como coisa minha. Não posso, então, pensar depois deles uma verdade que outros ainda irão pensar depois de mim?


 

DO MÉRITO PESSOAL

 

Quem poderá, com os mais raros talentos e mais excelente mérito, deixar de se convencer da própria inutilidade quando verifica que deixa, ao morrer, um mundo que não lhe sente a perda e no qual se acha tanta gente para substituí-lo?

De muitos nada mais existe, além do nome, capaz de valer alguma coisa. Quando os vemos de muito perto, são menos que nada: de longe, fazem figura.

Apesar de convencido de que os escolhidos para diferentes empregos, segundo seu gasto e profissão, saem-se bem, ouso dizer que pode acontecer existirem no mundo muitas pessoas conhecidas ou desconhecidas, que não são utilizadas, e que se sairiam muito bem: e sou induzido a esse sentimento pelo sucesso maravilhoso de certas pessoas que só o acaso colocou e das quais até então não se esperaram coisas muito notáveis.

Quantos homens admiráveis, possuidores de belas qualidades, morreram sem que se falasse deles! Quantos ainda vivem dos quais nada se fala e jamais nada se falará?

Que terrível trabalho tem um homem, sem padrinhos e sem cabala, sem estar inscrito em nenhuma corporação, sendo sozinho, e só tendo por recomendação um grande mérito, para fazer luz sobre a obscuridade em que se encontra, e chegar ao nível de um tolo bem cotado!

Quase ninguém percebe por si mesmo o mérito dos outros.

Os homens estão ocupados demais consigo mesmos para ter tempo de compreender e discernir os outros: daí o fato de que com grande mérito e modéstia ainda maior pode-se ficar muito tempo ignorado.

O gênio e os grandes talentos muitas vezes faltam, às vezes também faltam só as ocasiões: alguns podem ser louvados pelo que fizeram, outros pelo que teriam feito.

É menos raro encontrar espírito, do que pessoas que se sirvam do seu, ou façam valer o dos outros e o utilizem em alguma coisa.

Há mais ferramentas do que operários, e entre estes, há mais maus do que excelentes: que pensar de quem queira serrar com uma plaina e tome o serrote para aplainar?

Não há no mundo ofício mais penoso que o de fazer nome ilustre: a vida acaba quando apenas se esboçou a obra.

Que fazer com Egesipo, que pede emprego? Colocá-lo na Fazenda ou no Exército? Isso é indiferente, é preciso que só o interesse decida; porque ele é tão capaz de manejar com dinheiro, ou fazer contas, quanto de carregar armas. Serve para tudo, dizem os amigos: isso significa sempre que não tem mais jeito para uma coisa que para outra; ou, noutras palavras, que não serve para nada.

Assim a maior parte dos homens, preocupados consigo mesmos na juventude, corrompidos pela preguiça ou pela farra, pensam erradamente, numa idade mais avançada, que lhes basta ser inúteis ou indigentes para que a república deva colocá-los ou socorrê-los; e raramente aproveitam esta lição tão importante: os homens deveriam empregar os primeiros anos da vida em se tornarem tais, pelos seus estudos e trabalhos, que a própria república precisasse de sua inteligência e de suas luzes; fossem como uma peça necessária a todo o seu edifício, e ela se visse na contingência de, para sua própria vantagem, fazer-lhes a fortuna ou aumentá-la.

Devemos trabalhar para nos tornarmos muito dignos de qualquer emprego: o resto não é conosco, é com os outros.

Valorizar-se por coisas que não dependem dos outros, e sim de si próprio, ou desistir de se valorizar: máxima inestimável e de infinita aplicação na prática, útil aos fracos, aos virtuosos, às pessoas de espírito, que torna senhoras de sua sorte ou de sua tranqüilidade; perniciosa para os poderosos, pois diminuiria seu séquito, ou antes, o número de seus escravos destruiria sua arrogância com uma parte da sua autoridade, e os reduziria quase às suas baixelas e equipagens; iria privá-los do prazer que sentem em se fazer rogados, solicitados, fazer esperar ou recusar, prometer e não dar; iria desmanchar o prazer que às vezes têm de pôr em destaque os tolos e esmagar o mérito, quando lhes acontece discerni-lo; baniria das cortes as intrigas, cabalas, maus ofícios, baixeza, adulação, trapaça; faria de uma corte tempestuosa, cheia de agitações e intrigas, como que uma peça cômica, ou mesmo trágica, na qual os prudentes seriam apenas espectadores; restituiria dignidade às diferentes condições dos homens, serenidade a suas faces, hábito de trabalho e de exercício; iria levá-los à emulação, desejo de glória, amor da virtude; em vez de cortesãos vis, inquietos, inúteis, muitas vezes onerosos à república, far-se-iam administradores hábeis ou excelentes pais de família, juizes íntegros, bons oficiais, grandes capitães, oradores, filósofos; e não lhes daria, a todos, outro inconveniente que o de, talvez, deixar aos herdeiros menos tesouros do que bons exemplos.

É preciso, na França, muita firmeza e grande amplitude de espírito para dispensar as comissões e empregos e consentir, assim, em ficar em casa e não fazer nada. Quase ninguém tem mérito bastante para desempenhar esse papel com dignidade, nem bastantes fundos para encher o vazio do tempo com aquilo que o vulgo chama negócios. Entretanto só falta à ociosidade do homem prudente um melhor nome: que meditar, falar, ler, estar tranqüilo se chamasse: trabalhar.

Um homem de mérito que está no seu lugar nunca se aflige por vaidade; deslumbra-se menos com o posto que ocupa do que se sente humilde pelo posto maior que não ocupa, e do qual se acha digno; mais capaz de inquietação que de orgulho ou desprezo pelos outros, ele só pesa a si mesmo.

Custa a um homem de mérito comparecer à corte, mas por uma razão bem oposta à que se poderia imaginar. Não seria homem de mérito sem uma grande modéstia, que o impede de pensar que possa dar grande prazer aos príncipes postando-se à sua passagem, plantando-se diante, dos seus olhos e mostrando-lhes o rosto. Mais depressa se convence de que os importuna; e precisa de todos os argumentos tirados do uso e do dever, para resolver se mostrar. Ao contrário, aquele que tem boa opinião de si, e que o vulgo chama brilhante, sente prazer em se tornar visto e faz a corte com tanto maior confiança quanto é incapaz de imaginar que os poderosos, ao vê-lo, pensam sobre a sua pessoa diferente do que ele próprio pensa.

Um homem de bem se paga por suas mãos da aplicação ao dever, pelo prazer que sente em cumpri-lo, e se desinteressa dos elogios, estima e reconhecimento que algumas vezes lhe faltam.

Se eu ousasse fazer uma comparação entre duas condições completamente desiguais, diria que um homem de coragem pensa em cumprir seus deveres exatamente como o homem que faz telhados pensa em colocar telhas: nem um nem outro procuram expor sua vida, nem se afastam por medo do perigo; a morte, para eles, é um incidente do ofício, e nunca um obstáculo.

O primeiro, por ter estado na trincheira, tomado uma posição ou forçado um refúgio inimigo, não se vangloria mais do que este por ter subido na ponta das cumieiras ou no alto de um campanário. Todos dois trataram, apenas, de trabalhar bem; enquanto que O fanfarrão trabalha em fazer com que se diga que ele trabalhou bem.

A modéstia é para o mérito o que as sombras são para as figuras de um quadro: dá-lhe sombra e relevo.

Uma aparência simples é a vestimenta dos homens vulgares; talhada para eles, e sob medida. Mas é enfeite para os que encheram sua vida de grandes ações; comparo-a a uma beleza descuidada, por isso mais sedutora.

Certos homens, contentes consigo, com alguma ação ou obra que lhes saiu bem feita, tendo ouvido dizer que a modéstia assenta bem aos grandes homens, ousam ser modestos, arremedam os simples e naturais, como essas pessoas de estatura mediana que se abaixam nas portas por medo de bater com a cabeça no portal.

Seu filho é gago: não o faça subir à tribuna. Sua filha nasceu para o mundo: não a meta entre vestais. Xanto, seu liberto, é fraco e tímido: não hesite em retirá-lo das legiões e da milícia. Quero fazê-lo progredir, diz: encha-o de bens, sobrecarregue-o de terras, títulos e posses: siga o seu tempo: vivemos num século em que isso lhe dará mais honrarias que virtudes. Isso me custará muito. Falou sério, Crasso? Pensa você que basta uma gota d’água que tira do Tibre para enriquecer Xanto, de quem você gosta, e prevenir as conseqüências vergonhosas de um negócio em que ele não está muito limpo?

Não se deve olhar nos amigos senão a única virtude que nos prende a eles, sem nenhum exame da sua boa ou má fortuna; e quando nos sentimos capazes de segui-los na desgraça, é preciso freqüentá-los com decisão e confiança até na sua maior prosperidade.

Se é comum surpreendermo-nos com as coisas raras, por que nos surpreendemos tão pouco com a virtude?

Se é bom ter bom nascimento, não o é menos ser-se de tal forma que não se indague mais do nosso nascimento.

Aparecem de tempos em tempos na face da terra homens singulares, preciosos, que brilham pela virtude, e cujas qualidades eminentes lançam fulgor .prodigioso. Parecidos com essas estrelas extraordinárias das quais se ignoram as causas, e ainda menos se sabe o que será delas depois que desaparecerem, eles não têm antepassados nem descendentes: compõem sozinhos toda a sua raça.

O bom caráter nos revela nosso dever, nosso empenho em cumpri-lo; se há perigo, com perigo; inspira coragem e a substitui.

Quando se é inexcedível na sua arte, dando-lhe toda a perfeição de que ela é capaz, de qualquer maneira se sobressai, igualando-se ao que há de mais nobre e mais elevado. V... é um pintor, C... é um músico, o autor de Pyrame é um. poeta(17): mas MIGNARD é MIGNARD, LULLI é LULLI e CORNEILLE é CORNEILLE.

Um homem livre, que não tem mulher, se tiver algum engenho, pode transmontar à própria sorte, meter-se pelo mundo e se equiparar às pessoas mais notáveis: isso é menos fácil para aquele que está comprometido; parece que o casamento submete todo mundo às suas ordens.

Depois do mérito pessoal, é preciso confessar, é das dignidades extraordinárias e dos grandes títulos que os homens tiram mais distinção e maior brilho; quem não sabe ser um ERASMO deve pensar em ser bispo.

Alguns, para ampliar sua fama, amontoam sobre si os pariatos, cordões de ordem, primados, púrpura, teriam necessidade de uma tiara: mas que necessidade teria Trofines(18) de ser cardeal?

Você diz que o ouro cintila nas roupas de Filémon; mas também cintila nos ourives. Ele se veste com as mais lindas fazendas; mas por isso deixarão elas de ser desdobradas nas lojas, e vendidas a retalho? Mas os bordados e ornamentos acrescentam magnificência a essas roupas! Pagarei então o trabalho de um artífice. Se perguntam que horas são, Filémon saca um relógio que é obra prima; a guarda de sua espada é um ônix(19); tem no dedo um diamante enorme e perfeito, que faz ofuscar os olhos; não lhe falta nenhuma dessas curiosas bagatelas que se leva sobre si, tanto para uso como por vaidade; e não poupa toda sorte de enfeites, tal como um jovem casado com uma velha rica.

Afinal me desperta curiosidade: é preciso, ao menos, ver essas coisas tão preciosas: mandem-me essa roupa e essas jóias de Filémon; dispenso a pessoa.

Tu te enganas, Filémon, se com essa carruagem brilhante, esse grande número de velhacos que te seguem, e esses seis animais que te puxam, pensas que te respeitam mais. Afastam todo esse aparato que te é estranho, para penetrarem em ti, que não passas de um tolo.

Não é preciso perdoar, às vezes, aquele que com grande cortejo, roupa suntuosa, equipagem magnífica, se julga com melhor nascimento e mais inteligência: ele lê o perdão na atitude e nos olhos de quem lhe fala.

Um homem na corte, e às vezes na cidade, com um grande manto de seda ou tecido de holanda, cinto largo posto sobre o estômago, calçado de marroquim, lindo barrete cor de uva, gola bem feita e bem engomada, cabelos compostos e tez rubicunda; que além disso recorda algumas distinções metafísicas, explica o que é a luz da glória e sabe precisamente como se vê Deus: isso se chama um doutor.

Uma pessoa humilde, que mergulhou no seu gabinete, meditou, procurou, consultou, confrontou, leu ou escreveu durante toda a vida: é um homem douto.

Entre nós, o soldado é bravo e o homem de toga é sábio: não vamos além Entre os romanos, o homem togado era bravo e o soldado, sábio: um romano era ao mesmo tempo soldado e homem de toga.

Parece que o herói só tem um ofício, que é a guerra; e o grande homem tem todos os ofícios, o da toga, o da espada, o do gabinete, o da corte: um e outro juntos não valem um homem de bem.

Na guerra a diferença entre o herói e o grande homem é sutil: todas as virtudes militares fazem um e outro. Julga-se, entretanto, que o primeiro há de ser jovem, empreendedor, de grande coragem, firme no perigo, intrépido; que o outro é insuperável em bom senso, vasta previdência, alta capacidade, longa experiência. Talvez ALEXANDRE não fosse mais que herói e CÉSAR fosse um grande homem.

EMÍLIO(20) tinha de nascença o que os homens mais ilustres só conseguem a força de regras, meditação e exercício. Só teve de, nos primeiros anos, utilizar talentos que eram naturais e entregar-se ao seu gênio.

Fez, agiu, antes de saber, ou antes, soube o que nunca aprendera. Poderia dizer que os brinquedos da sua infância foram outras tantas vitórias? Uma vida ornada de extrema felicidade junto a uma longa experiência seria ilustre só com as ações praticadas desde a sua juventude. Todas as ocasiões de vencer que depois se apresentaram, ele as adotou; as que não eram, sua virtude e sua estréia fizeram-nas aparecer: admirável tanto pelas coisas que fez como pelas que poderia ter feito. Consideraram-no como um homem incapaz de ceder ao inimigo, dobrar-se ante o número e sob os obstáculos, como uma alma de primeira ordem, cheia de recursos e de luzes e que via mesmo onde ninguém via; como aquele que, à frente das legiões, era para elas um presságio de vitória, e valia, sozinho, por diversas legiões; grande na prosperidade, maior ainda quando a sorte lhe era contrária: levantar um sítio, uma retirada, enobreceram-no mais do que os triunfos das batalhas ganhas e das cidades tomadas; cheio de glória e de modéstia, ouviram-no dizer: Eu ia fugindo, com a mesma graça com que dizia: Nós os vencemos; homem dedicado ao Estado, à sua família, ao chefe de sua família; sincero para Deus e os homens, admirador do mérito como se este lhe fosse menos familiar: homem verdadeiro, simples, magnânimo, ao qual só faltaram as virtudes menores.

Os filhos dos deuses(21), por assim dizer, escapam às regras da natureza, e são como exceções: quase nada esperam do tempo e dos anos. O mérito, entre eles, antecede a idade. Nascem instruídos e são homens perfeitos antes que o comum dos homens tenha saldo da infância.

Os vistas-curtas, quer dizer, os espíritos estreitos e fechados na sua pequena esfera, não podem compreender a universalidade de talentos que se observa às vezes numa mesma pessoa: onde eles vêm o agradável, excluem o sólido; onde pensam descobrir as graças do corpo, agilidade, flexibilidade, destreza, não querem admitir os dons da alma, profundeza, reflexão, sabedoria: omitem, na história de Sócrates, o fato de ele ter dançado.

Não existe homem bastante perfeito e necessário aos seus que não tenha de que se tornar menos pranteado.

Um homem inteligente, de caráter simples e reto, pode cair nalguma peça; não pensa que alguém possa querer armar-lhe alguma, e escolhê-lo para objeto de logro: essa confiança torna-o menos precavido, e os espertalhões o agarram por aí. Só têm a perder os que venham para segunda tentativa: ele só se engana uma vez.

Se eu for justo, evitarei cuidadosamente ofender a quem quer que seja; mas sobretudo a um homem inteligente, se eu zelar, um pouco que seja, pelos meus interesses.

Não há nada bastante sutil, simples, imperceptível, em que não entre um que especial que nos revele. Um tolo não entra, nem sai, nem se senta, nem se levanta, nem se cala, nem fica em pé, como um homem de espírito.

Conheço Mopse de uma visita que me fez sem me conhecer. Ele pede a pessoas que não conhece para o levarem à casa de outras que não o conhecem; escreve a mulheres que conhece de vista, insinua-se num círculo de pessoas respeitáveis, que não sabem quem é ele; e aí, sem esperar que o interroguem, sem sentir que interrompe, fala, ininterruptamente, ridiculamente.

Outra vez, entra numa assembléia, fica onde entende, sem nenhuma atenção pelos outros, nem por si mesmo: tiram-no do lugar destinado a um ministro, ele se senta no de um duque, par do reino: aí está precisamente aquele de quem a multidão se ri, e só ele conserva-se grave e não ri.

Expulse-se um cachorro da poltrona do rei, ele subirá ao púlpito do pregador; olha o mundo com indiferença, sem inquietação, sem pudor; tal como o tolo, o cachorro não tem de que se envergonhar.

Celso é medíocre; mas alguns poderosos o suportam; não é sábio; mantém relações com sábios; tem pouco mérito; mas conhece pessoas que o têm muito; não é inteligente, mas tem uma língua que pode servir de intérprete e pés que podem levá-lo de um lugar a outro. É um homem nascido para idas e vindas, para ouvir proposições e mexericar, para fazer disso ocupação, ir além do seu recado e ser desmentido; reconciliar pessoas que discutem desde o primeiro encontro; ter sucesso em um negócio e falhar em mil; chamar a si toda a glória de um sucesso e desviar sobre os outros o ódio de um fracasso. Conhece os boatos correntes, as intriguinhas da cidade; não faz nada; diz ou escuta o que os outros fazem: é noticiarista; sabe até o segredo das famílias; penetra nos mais altos mistérios; pode dizer por que este foi exilado, e por que repatriaram aquele: conhece o fundo e as causas da discórdia entre irmãos e do rompimento de dois ministros. Não predisse, desde o começo, as tristes conseqüências dessa desinteligência? Não disse destes que sua união não seria longa? Não estava presente ouvindo certas palavras que foram ditas? Não tomou parte numa espécie de negociação? Quiseram acreditar nele? Ouviram-no? A quem vem você falar dessas coisas! Quem mais que Celso tomou parte nessas intrigas da corte? E se não fosse assim, se ele não tivesse, pelo menos, sonhado ou imaginado, pensaria ele em fazê-lo acreditar? Tomaria o ar importante e misterioso de homem que volta de embaixada?

Menipo é o pássaro enfeitado com penas alheias: não fala, não sente; repete sentimentos e discursos, serve-se até com tanta naturalidade da inteligência alheia, que é o primeiro a se enganar, e muitas vezes pensa dar sua opinião ou explicar seu pensamento, quando não é mais que o eco de alguém que acaba de deixar.

E um homem que aparenta bem um quarto de hora seguida; no momento seguinte se rebaixa, degenera, perde o pouco verniz que um pouco de memória lhe dava e se mostra tal qual é; só ele ignora quanto está abaixo do sublime e do heróico; incapaz de saber até onde se pode ter espírito, pensa ingenuamente que o seu é todo o espírito que os homens podem ter: por isso tem o ar e o aprumo de quem nada mais deseja nesse capítulo, e nada inveja de ninguém. Freqüentemente fala sozinho e não se esconde para isso: quem passa, vê; parece sempre tomar partido, ou decidir que tal coisa é incontestável.

Cumprimentá-lo alguma vez é metê-lo em dificuldade para saber se deve ou não responder à saudação; e enquanto delibera, já se está for a de alcance.

A vaidade fez dele homem correto; colocou-o acima de si mesmo, fez com que se tornasse o que não era. Julga-se, ao vê-lo, que só está ocupado com sua pessoa; sabe que tudo lhe assenta e que os enfeites lhe vão bem; pensa que todos os olhares estão fixados nele, e que os homens se revezam para contemplá-lo.

Aquele que, confortavelmente instalado num palácio, com dois apartamentos para inverno e verão, vem se deitar num sótão do Louvre, não o faz por modéstia.

O outro que para conservar talhe esbelto se abstém de vinho, e só toma uma refeição; não é sóbrio nem temperante; e de um terceiro que, importunado por um amigo, pobre, afinal lhe dá algum socorro, diz-se que compra o descanso, e nunca que é liberal.

Só o motivo faz o mérito das ações humanas, e o desinteresse acrescenta perfeição.

A falsa grandeza é intratável e inacessível: como sente seu fraco, esconde-se, ou pelo menos não mostra o rosto mais que o necessário para se impor e não aparecer tal como é, digo, uma autêntica pequenez.

A verdadeira grandeza é livre, afável, familiar, popular. Deixa-se tocar e examinar; não perde nada ao ser vista de perto: quanto mais a conhecem, mais a admiram. Curva-se, por bondade, para os seus inferiores e volta, sem esforço, ao seu natural.

As vezes se abandona, se descuida, dá uma folga à sua superioridade, podendo sempre retomá-la e fazê-la valer: ri, brinca e se diverte, mas com dignidade. A gente se aproxima dela com liberdade e respeito. Seu caráter é nobre a acessível, inspira respeito e confiança, e faz com que os príncipes nos pareçam grandes e muito grandes, sem nos fazer sentir que somos pequenos.

O homem de juízo cura-se da ambição com a própria ambição; tende a tão grandes coisas que não pode se limitar ao que chamam tesouros, postos, fortuna, proteções. Não vê, nessas vantagens tão minguadas, nada bastante bom e sólido para encher o coração e merecer seus cuidados e desejos; tem até necessidade de esforços para desdenhá-las. O único tem capaz de tentá-lo é essa espécie de glória que deveria nascer da virtude pura e simples: mas os homens não a concedem; ele a dispensa.

É bom aquele que faz o bem aos outros; se sofre pelo bem que faz, é muito bom; se recebe sofrimento daqueles a quem fez bem, tem uma bondade tão grande que só pode ser aumentada no caso de aumentarem seus sofrimentos; e se morre deles, sua virtude não podia ir mais longe: é heróica e perfeita.


 

DAS MULHERES

 

Os homens e as mulheres raramente concordam sobre o mérito de uma mulher: seus interesses são completamente diferentes. As mulheres não se agradam umas às outras pelas mesmas qualidades com que agradam aos homens: mil maneiras que acendem nestas grandes paixões, criam entre elas aversão e antipatia.

Há em algumas mulheres uma grandeza artificial relacionada com o movimento dos olhos, um jeito de cabeça, modos de andar, e não passa daí; um espírito encantador que se impõe e só se aprecia porque não é profundo. Há, noutras, uma grandeza simples, natural, independente do gesto e do andar, que brota do coração e é como uma conseqüência de seu alto nascimento; um mérito plácido, mas sólido, acompanhado de mil virtudes que elas não podem cobrir com sua modéstia: escapam desta e se mostram aos que têm olhos. Eu vi alguém desejar ser moça, e moça bonita, dos treze aos vinte e dois anos, e dessa idade em diante, se tornar homem.

Algumas jovens não conhecem suficientemente as vantagens duma natureza feliz, e quanto seria útil abandonar-se a ela. Desvirtuam esses dons do céu, tão raros, tão frágeis, com maneiras afetadas e má imitação. O som da voz e o andar são copiados. Elas se compõem, se procuram, olham no espelho a ver se se afastam bastante do natural: não é sem dificuldades que conseguem agradar menos.

Entre as mulheres, enfeitar-se e pintar-se não é — confesso — falar contra seu pensamento; também não eqüivale ao disfarce e à mascarada, em que ninguém procura passar pelo que não é; pensam apenas em se esconderem e se tornarem desconhecidas: procuram impor-se aos olhos e querem parecer, segundo seu exterior, contra a verdade; é uma espécie de mentira.

É preciso julgar as mulheres do calçado ao penteado, exclusivamente, mais ou menos como: se mede, o peixe entre a cauda e a cabeça.

Se as mulheres querem ser belas apenas aos seus próprios olhos, e agradar a si mesmas, podem, sem dúvida, seguir seu gosto e capricho na escolha dos trajes e enfeites: mas se é aos homens que querem agradar, se é para eles que se pintam e aplicam iluminuras, recolhi opiniões, e lhas transmito, da parte de todos os homens, ou da maior parte: acham eles que o branco e vermelho as tornam horríveis e repugnantes; que o vermelho só as envelhece e mascara; odeiam tanto vê-las com alvaiade no rosto quanto com dentes postiços na boca e bolas de cera nas mandíbulas; protestam seriamente contra todo artifício que usam para se tornarem feias; e longe de responder por isso diante de Deus, parece que, ao contrário, ele lhes reservou esse último e infalível meio de curar as mulheres.

Se as mulheres fossem, naturalmente, iguais ao que se tornam com artifícios, se perdessem num momento toda a frescura da pele e tivessem o rosto tão aceso e vidrado quanto fazem com o carmim e tintas com que se pintam, ficariam inconsoláveis.

Uma mulher vaidosa não desiste da paixão de agradar e da opinião que tem sobre sua beleza. Considera o tempo e os anos como algo que enruga e enfeia apenas as outras mulheres: esquece que pelo menos a idade está escrita no rosto. O mesmo enfeite que antes lhe embelezara a juventude, desfigura agora sua pessoa, ilumina os defeitos da sua velhice. Os requebros e a afetação acompanham-na na dor e na febre: morre enfeitada, e com fitas de cor.

Lise ouve dizer de outra vaidosa que ela gosta de afetar mocidade e quer usar adornos que não convêm mais a uma mulher de quarenta anos. Lise já completou quarenta; mas os anos para ela têm menos de doze meses e não a envelhecem. Assim acha ela; enquanto se olha no espelho, espalha carmim no rosto e coloca sinais, concorda que não é permitido a uma certa idade fingir de jovem, e que realmente Clarice, com seus sinais e seu carmim, é ridícula.

As mulheres se preparam para seus amantes, quando os esperam; mas se são surpreendidas, esquecem, quando eles chegam, o estado em que se acham; não se vêm mais. Com os que lhes são indiferentes, têm mais ócios; sentem a desordem em que estão, endireitam-se na presença deles, ou desaparecem um momento, para voltarem enfeitadas.

Um rosto bonito é o mais bonito de todos os espetáculos; a mais doce harmonia é o som da voz que a gente ama.

A graça é arbitrária; — a beleza — é algo mais real e mais independente do gosto e da opinião.

Pode-se ficar de tal maneira impressionado com belezas tão perfeitas, de tão grande mérito, que a gente se contente em vê-las e falar-lhes.

Uma mulher bonita com as qualidades de um homem de bem, é o que há de mais delicioso no mundo para o convívio: encontra-se nela todo o mérito dos dois sexos.

Sem sentir, uma jovem faz pequenas coisas que convencem e agradam sensivelmente aquele para quem essas coisas são feitas: os homens quase nada fazem sem sentir; suas carícias são voluntárias, eles falam, agem, são solícitos, e convencem menos.

O capricho, nas mulheres, está muito próximo da beleza; para ser o seu contraveneno, e para que faça menos mal aos homens, que não se curariam sem remédio.

As mulheres se prendem aos homens pelos favores que lhes concedem: os homens se desprendem por esses mesmos favores.

Uma mulher esquece, de um homem que ela já não ama, até os favores que ele recebeu dela.

Uma mulher que tem um amante pensa não ser namoradeira, a que tem diversos amantes pensa ser apenas namoradeira.

Certa mulher que evita ser leviana por sua firme dedicação a um só, passa por louca pela sua má escolha.

Um antigo amante depende de tão pouco que cede a um novo marido; e este dura tão pouco que um novo amante que lhe sucede, paga-lhe na mesma moeda.

Um antigo amante teme ou despreza um novo rival, segundo o caráter da pessoa a quem serve.

Muitas vezes só falta a um antigo amante, junto à mulher que o prende, o nome de marido: é muito; ele estaria mil vezes perdido sem esta circunstância.

Parece que a galanteria, numa mulher, aumenta a feminilidade. Um homem feminil, ao contrário, é algo pior que um homem galante. O homem feminil e a mulher galante se eqüivalem.

Há poucas galanterias secretas: muitas mulheres não são melhor designadas pelo nome dos maridos que pelo dos amantes.

Uma mulher amorosa quer ser amada: a uma namoradeira basta que a considerem amável e se contenta com isso. Aquela procura compromisso, esta se contenta em agradar. A primeira passa sucessivamente de um compromisso a outro; a segunda tem diversos ao mesmo tempo. O que domina numa, é a paixão e o prazer; na outra vaidade e leviandade. A galanteria é uma fraqueza sentimental, ou, talvez, um vício orgânico, a vaidade é um desregramento da inteligência; a mulher amorosa faz-se temer, a namoradeira faz-se odiar. Pode-se tirar desses dois caracteres o bastante para fazer um. terceiro, o pior de todos.

Fraca é a mulher a quem se reprova uma falta, que ela reprova a si mesma, cujo coração combate a razão; que quer se curar e não se curará, ou só muito tarde.

Inconstante é a mulher que já não ama; leviana é aquela que já ama outro; volúvel, a que não sabe se ama e a quem ama; indiferente, a que não ama.

A perfídia, se assim ouse dizer, é uma mentira de corpo inteiro: é, na mulher, a arte de proferir uma palavra ou praticar uma ação que enganam, e, às vezes, de fazer juramentos e promessas que não lhe custam mais fazer que violar.

Uma mulher infiel, quando conhecida como tal pela pessoa interessada, não passa de infiel; se essa pessoa pensa que ela é fiel, ela é pérfida.

Um beneficio resulta da perfídia das mulheres: cura o ciúme.

Algumas mulheres têm, durante a vida, um duplo compromisso a sustentar, igualmente difícil de romper e dissimular: só falta a um o contrato, e a outro, o coração.

A julgar esta mulher pela sua beleza, sua mocidade, seu orgulho e seus desdens, ninguém duvida que seja um herói quem há de um dia conquistá-la: ei-la que escolhe: trata-se de um monstrengo sem inteligência. Há mulheres já maculadas que por sua constituição orgânica, ou pelo mau caráter, são naturalmente o recurso dos rapazes que não têm bastantes bens. Não sei quem é mais lamentável, a mulher de idade avançada que precisa de um galã ou um galã que precisa de uma velha.

O rebotalho da corte é recebido na cidade numa ruazinha em que desbanca o próprio magistrado de gravata e roupa cinzenta, assim como o burguês de talabarte, afasta-os e se torna senhor da situação: é ouvido e amado; não se resiste mais que um momento contra um cinto de ouro e um penacho branco, contra um homem que fala aos reis e vê os ministros. Ele faz ciumentos e ciumentas; admiram-no, invejam-no: a quatro léguas daí, ele causa piedade.

Um homem da cidade é, para um mulher da província, o que é, para uma mulher da cidade, um homem da corte.

A um homem fátuo, indiscreto, falador e impertinente, que fala de si com confiança e dos outros com desprezo: impetuoso, presunçoso, audaz, sem costumes nem probidade, nenhum critério e imaginação muito livre, só falta, para ser adorado de certas mulheres, belos traços e boa estatura.

Será por ter em vista o segredo, ou por gosto hipocôndrio, que essa mulher ama um criado, a outra, um monge, e Dorina, o seu médico?

Róscio(22) entra em cena com geral agrado, sim, Lélia, e acrescento ainda que tem pernas bem torneadas, representa bem papéis de destaque e para declamar perfeitamente só lhe falta, como se diz, fazer falar a boca: mas será o único que agrade no que faz? E o que faz será a coisa mais nobre e mais honesta que se possa fazer? Róscio, aliás, não pode ser seu; já é de outra; e quando não fosse assim, está reservado: Cláudia espera, para tê-lo, que tenha aborrecido Messalina. Tome Batildo, Lélia: onde encontrará um jovem que chegue tão alto dançando e faça melhor a cabriola?

Queria o dançarino Cobus, que, jogando os pés para a frente, roda uma vez no ar antes de pousar na terra? Ignora você que ele é mais moço? Para Batildo, diz você, a solicitação é inumerável, ele recusa mais do que concede. Mas você tem Dracon, o flautista: nenhum outro, no seu ofício, enche mais docemente as bochechas soprando no oboé ou na gaita: porque é infinito o número de instrumentos que ele faz falar; engraçado, além do mais, faz rir até as crianças e as mulherinhas. Quem come e bebe melhor, numa refeição, do que Dracon? Embebeda todos os convivas e é o último a se render. Você suspira, Lélia: será que Dracon teria escolhido alguém, ou que desgraçadamente alguém a houvesse antecipado? Teria ele, afinal, se comprometido com Cesônia, que tanto o perseguiu, sacrificou-lhe um bando de amantes, direi mesmo, toda a flor dos Romanos; Cesônia que é de família patrícia, e tão jovem, e bela, e séria? Lamento, Lélia, se você apanhou por contágio esse novo gosto que têm tantas mulheres romanas pelo que se chamam homens públicos, expostos, pela sua condição, à vista dos outros. Que fará você, quando o melhor do gênero lhe for roubado? Ainda resta Bronte, o carrasco; o povo só fala na sua força e destreza; é um jovem de ombros largos e grande estatura, negro além do mais, um homem preto.

Para as mulheres mundanas um jardineiro é um jardineiro e um pedreiro é um pedreiro; para algumas outras, mais retraídas, um pedreiro é um homem, um jardineiro é um homem. Tudo é tentação para quem a teme.

Algumas mulheres doam aos conventos e aos amantes: amorosas e benfeitoras, têm até no âmbito do altar tribunas e oratórios em que lêem bilhetes de amor, onde ninguém vê que não estão rezando para Deus.

Que é uma mulher às direitas? Será uma mulher mais condescendente com o marido, mais indulgente com os criados, mais dedicada à família e às suas ocupações, mais ardente e mais sincera com os amigos; menos escrava de seus humores, menos agarrada a seus interesses; amando menos as comodidades da vida; não digo que faça larguezas aos filhos, que já são ricos, mas que, opulenta e repleta do supérfluo, lhes forneça o necessário, e faça ao menos a justiça que lhes deve; mais isenta de amor próprio e de hostilidade para com os outros; mais livre de todos os apegos humanos? Não, dizem, não é nada dessas coisas. Insisto e pergunto: que é então, uma mulher às direitas? Ouso dizer: é uma mulher que tem um diretor.

Se o confessor e o diretor não concordam sobre uma regra de conduta, quem será o terceiro que uma mulher tomará para super-árbitro? Fundamental para uma mulher não é ter um diretor, mas viver tão lealmente que possa dispensá-lo.

Se uma mulher pudesse dizer ao seu confessor, com suas outras fraquezas, as que tem pelo diretor e o tempo que com ele perde, talvez lhe fosse dado, como penitência, renunciar a isso.

Queria que fosse permitido gritar com todas as forças a esses santos homens que foram, antigamente, feridos pela mulher: fujam das mulheres, não as dirijam; deixem a outros o cuidado de salvá-las.

É demais, contra um marido, ser namoradeira e devota: a mulher devia optar.

Hesitei em dizê-lo, e sofri com isso; mas desabafo agora, e espero que minha franqueza será útil àquelas que, não achando bastante um confessor para conduzi-las, não têm nenhum discernimento na escolha de seus diretores. Não canso de me admirar e surpreender à vista de certas personagens cujo nome não digo. Arregalo os olhos para elas; contemplo-as: elas falam, sou todo ouvidos, me informo; contam-me fatos, recolho-os; e não compreendo como pessoas em que penso ver todas as coisas diametralmente opostas ao bom espírito, ao bom sentimento, à experiência dos negócios do mundo, ao conhecimento do homem, à ciência da religião e dos costumes, presumem que Deus deva renovar nos nossos dias a maravilha do apostolado e fazer um milagre nas suas pessoas, tornando-as capazes, espíritos estreitos e simplórios que são, do ministério de almas, o mais delicado e mais sublime; e se, ao contrário, se julgam aptos para um função tão elevada e difícil, concedida a tão poucas pessoas, se convencem de não estar fazendo mais do que aplicar seus talentos naturais e seguir uma vocação comum, ainda os entendo menos.

Sei muito bem que o prazer de se tornar depositário do segredo das famílias, de se tornar necessário para as conciliações, obter encomendas, e colocar empregados, ter todas as portas abertas na casa dos poderosos, comer freqüentemente em mesas opulentas, passear de carruagem numa grande cidade, e fazer deliciosos retiros no campo, ver diversas pessoas de nome e distinção interessar-se pela sua vida e sua saúde, dispor para os outros e para si mesmo de todos os interesses humanos: vejo perfeitamente, ainda uma vez, que só isso fez ignorar o especioso e irrepreensível pretexto de cuidar das almas, e espalhou no mundo essa escola inesgotável de diretores.

A devoção vem para alguns, e principalmente para as mulheres, como uma paixão ou a fraqueza de uma certa idade, ou uma moda que se tem de seguir. Antigamente elas contavam uma semana pelos dias de jogo, espetáculo, concerto, mascarada, e de sermão bonito. Iam na segunda feira perder dinheiro em casa de Ismênia, na terça, o tempo em casa de Climenes, na quarta, a reputação na de Climenes; sabiam de véspera toda a alegria que deviam ter no dia seguinte e no outro: desfrutavam, ao mesmo tempo, o prazer presente e o que não lhes podia faltar; desejariam poder juntá-los todos num dia só. Era, então, sua única inquietação, e todo o tema das suas distrações; e se elas compareciam às vezes à Ópera, era para lamentar a falta da comédia.

Outros tempos, outros costumes: afetam austeridade e retiro; não abrem mais os olhos que lhes foram dados para ver; não usam mais os sentidos para nada, e, coisa incrível! falam pouco: pensam bastante bem de si mesmas e bastante mal das outras. Há entre elas uma emulação de virtude e de reforma que se parece bastante com o ciúme. Não odeiam superar nesse novo gênero de vida, como faziam no que acabam de abandonar por política ou fastio. Perdiam-se alegremente por galanteria, pela boa farra, e ociosidade; e se perdem tristemente por presunção e inveja. Se desposo, Hermas,(23), uma mulher avara, ela não me arruinará; se for uma jogadora, poderá me enriquecer; se sábia, saberá me instruir; se dissimulada, não será geniosa; se geniosa, exercitará minha paciência; se faceira, há de querer me agradar; se amorosa, sê-lo-á talvez a ponto de me amar; se devota, responde, Hermas, que devo esperar de quem quer enganar a Deus, e se engana a si mesma?

Fácil é governar uma mulher; contanto que seja homem quem se dê a esse trabalho. Um só homem governa diversas; cultiva-lhes o espírito e a memória, fixa e determina a sua religião; ousa até regular-lhes o coração. Elas não aprovam nem desaprovam, não louvam nem condenam senão depois de lhe ter consultado os olhos e o rosto. Ele é depositário de suas alegrias e tristezas, desejos, ciúmes, ódios e amores, ele as faz romper com os amantes; fá-las brigar e as reconcilia com os maridos; e aproveita os interregnos. Trata dos negócios delas; advoga seus processos, e se entende com seus juizes; dá-lhes seu médico, seu freguês, seus operários; ocupa-se de instalá-las, mobiliá-las, e dispõe sobre a equipagem. A gente o vê com elas nas carruagens, nas ruas duma cidade e nos passeios, assim como nos bancos de igreja e no camarote da comédia. Faz com elas as mesmas visitas; acompanha-as ao banho, às águas, nas viagens; tem o apartamento mais cômodo da casa delas no campo; Envelhece sem decair na sua autoridade: um pouco de espírito e muito tempo a perder bastam-lhe para conservá-la. Os filhos, os herdeiros, a nora, a sobrinha, os empregados, todos dependem dele. Começou por se fazer estimado, acabou por se tornar temido. Esse amigo tão antigo, tão necessário, morre sem ser chorado; e dez mulheres de quem era o tirano, herdam, com sua morte, a liberdade.

Algumas mulheres quiseram esconder sua conduta sob aparência de modéstia; e tudo o que cada uma pode ganhar à custa de contínua afetação, nunca desmentida, foi fazer com que se dissesse dela: A gente a tomaria por uma vestal.

É, nas mulheres, irrecusável prova de reputação firme e irremovível, não ser nem sequer tocada pela familiaridade de algumas que não se parecem com elas; e que com toda a propensão que se tem para as explicações malignas, se recorra a uma razão bem diferente para esse comércio, que a da conveniência dos costumes.

Um cômico exagera, no palco as suas personagens; um poeta carrega nas suas descrições; um pintor que tira do natural, força e exagera uma paixão, contrastes, atitudes; e o que copia, se não mede com o compasso as grandezas e as proporções, amplia as figuras, dá a todas as peças que entram na disposição do quadro mais volume do que têm as do original: assim também a dissimulação de virtude é uma imitação do pudor.

Há uma falsa modéstia que é vaidade, uma falsa glória que é leviandade; uma falsa grandeza que é mediocridade; uma falsa virtude que é hipocrisia; um falso pudor que é afetação de virtude.

Uma mulher que finge virtude satisfaz com atitude e palavras; uma mulher digna satisfaz com sua conduta. Aquela segue seu humor e sua natureza, esta segue a razão e o coração. Uma é séria e austera; outra é, em todas as situações, precisamente o que deve ser. A primeira esconde as fraquezas sob aparências plausíveis, a segunda mostra sólidas virtudes com ar simples e natural.

A falsa virtude constrange o espírito, não esconde idade nem feiura; muitas vezes as pressupõe. A verdadeira, ao contrário, faz empalidecer os defeitos do corpo, enobrece o espírito, só torna a juventude mais sedutora, e a beleza mais perigosa.

Por que acusar os homens, por não serem as mulheres instruídas? Porque leis, porque editos, porque rescritos lhes proibiram abrir os olhos e ler, assimilar o que leram, e prestar contas do que sabem nas suas palavras, ou por suas obras? Não estabeleceram elas, ao contrário, por si mesmas, esse hábito de não saber nada, por fraqueza, ou preguiça de espírito, ou cuidados com a beleza, ou certa leviandade que lhes impede seguir estudo, ou pelo talento e gênio que elas só têm para os trabalhos manuais, ou pelas distrações que lhes dão as ordens aos empregados, ou por um afastamento natural das coisas penosas e sérias, ou por curiosidade completamente diferente daquela que contenta o espírito, ou por gosto muito diferente que o de exercitar a memória? Mas qualquer que seja a causa a que os homens devam essa ignorância das mulheres, eles se sentem felizes pelo fato das mulheres, que os dominam sob tantos aspectos, terem sobre eles essa vantagem de menos.

Olha-se uma mulher instruída como se faz com uma bela arma: artisticamente cinzelada, admiravelmente polida, caprichadamente trabalhada; peça de gabinete que se mostra aos curiosos, que não é para uso corrente, não serve na guerra nem na caça mais que um cavalo de picadeiro, por mais instruída que seja.

Se a ciência e a sabedoria aparecem aliadas na mesma pessoa, não indago do sexo, admiro; e se me disserem que uma mulher ajuizada não pensa em ser instruída, ou que uma mulher instruída não é ajuizada, é que já esqueceram o que acabam de ler; as mulheres só se afastam da ciência por certas imperfeições: conclua, portanto, sozinho, que quanto menos defeitos elas tivessem, mais ajuizadas seriam; e assim uma mulher ajuizada só poderia ser mais apta a se tornar instruída, ou uma mulher instruída, não podendo ser instruída senão vencendo muitas imperfeições, só pode ser mais ajuizada.

A neutralidade entre mulheres que são igualmente amigas, apesar de terem rompido por questões em que não tomamos parte, é um ponto difícil; geralmente é preciso escolher entre elas ou perder a ambas.

Há mulheres que gostam mais do dinheiro que dos amigos, e dos amantes mais que do dinheiro.

É espantoso ver no coração de certas mulheres algo mais vivo e mais forte que o amor pelos homens, quero dizer, a ambição e o jogo: tais mulheres tornam os homens castos; só têm, do seu sexo, o vestido.

As mulheres são extremas: são melhores ou piores do que os homens.

A maior parte das mulheres não têm princípios; guiam-se pelo coração, dependem, para seus costumes, daqueles a quem amam.

As mulheres vão mais longe, em amor, que a maior parte dos homens; mas os homens lhes passam adiante em amizade.

Os homens são a causa das mulheres não se amarem.

Há perigo em falsificar. Lise, já velha, quer ridicularizar uma jovem, e se torna disforme; me faz medo. Usa, para imitá-la, caretas e contorções: ei-la tão feia quanto é preciso para tornar bonita aquela de quem caçoa.

Quer-se, na cidade, que muitos e muitas idiotas tenham espírito. Na corte se quer que gente de muito espírito não o tenha; e entre as pessoas deste último gênero, uma mulher bonita mal escapa perante outras mulheres.

Um homem é mais fiel ao segredo alheio que ao seu segredo; uma mulher, ao contrário, guarda melhor o segredo próprio que o alheio.

Não há no coração duma jovem amor tão violento que o interesse e a ambição não acrescentem.

Há uma época em que as moças mais ricas têm de tomar partido. Elas não deixam passar as primeiras ocasiões sem preparar um grande arrependimento. Parece que a reputação dos bens diminui nelas com a da beleza. Ao contrário, tudo favorece uma jovem junto à opinião dos homens, que gostam de lhe atribuir todas as vantagens que podem torná-la mais desejável.

Quantas moças a quem uma grande beleza nunca serviu senão para fazê-las aguardar uma grande fortuna!

As jovens bonitas são sujeitas a vingar os amantes que maltrataram, por feios, ou velhos, ou indignos maridos.

A maior parte das mulheres julga o mérito e valor de um homem pela impressão que ele lhes causa, e não concedem nem um nem outro àqueles por quem elas nada sentem.

Um homem que esteja em dificuldade para saber se está mudando, se começa a envelhecer, pode consultar os olhos de uma jovem que aborda, e o tom com que ela lhe fala: saberá o que teme saber. Dura escola!

Uma mulher que só tem olhos para uma única pessoa, ou que os afasta sempre dela, faz pensar de si a mesma coisa.

Custa pouco, às mulheres, dizer o que não sentem; custa menos ainda, aos homens, dizer o que sentem.

Acontece às vezes uma mulher esconder a um homem toda a paixão que sente por ele, enquanto, por sua vez, ele simula por ela toda a paixão que não sente.

Suponha-se um homem indiferente, querendo persuadir uma mulher de uma paixão que não sente; pergunta-se se não lhe seria mais fácil convencer aquela que o ama do que aquela que não o ama.

Um homem pode enganar uma mulher por um afeto simulado, contanto que não tenha, noutro lugar, um verdadeiro.

Um homem se enfurece contra uma mulher que não mais o ama, e se consola: uma mulher faz menos barulho quando é abandonada, e fica muito tempo inconsolável.

As mulheres se curam da preguiça pela vaidade ou pelo amor.

A preguiça, ao contrário, nas mulheres ardentes, é presságio de amor.

É certo que uma mulher que escreve com arrebatamento é arrebatada; menos certo é que esteja convencida daquilo que escreve. Parece que uma paixão viva e terna é severa e silenciosa; e que o mais urgente interesse duma mulher que não está mais livre, aquele que mais a agita, é menos persuadir de que ama do que ter a certeza de que é amada.

Glicéria não gosta das mulheres; odeia o seu convívio e suas visitas, se esconde delas, e muitas vezes de seus amigos, cujo número é reduzido, para os quais ela é severa, e faz conhecer o lugar de cada um, sem lhes permitir nada além da amizade: mostra-se-lhes distante, responde por monossílabos, e parece procurar desfazer-se deles. Está solitária e intratável na sua casa; a porta está melhor guardada e o quarto mais inacessível que os de Monthauron e Hémery(24). Apenas uma, Corina, é esperada, recebida a toda hora: beijada diversas vezes; crê gostar dela; fala-lhe junto ao ouvido num gabinete em que estão sozinhas; tem mais de dois ouvidos para ouvi-la; queixa-se de todo mundo, menos dela; conta-lhe tudo e nada lhe pergunta; ela tem a sua confiança. Vê-se Glicéria em sua companhia no baile, no teatro, nos jardins públicos, no caminho de Venouze, onde se comem os primeiros frutos da estação; às vezes sozinha, em liteira, no caminho do grande arrabalde em que tem um pomar delicioso, ou na porta de Conídia, que sabe segredos tão deliciosos, promete às jovens segundas núpcias e diz o tempo e as circunstâncias. Geralmente aparece com um penteado chato e descuidado, em simples roupão, sem colete, e de chinelos: bela nessa vestimenta, só lhe falta frescura. Nota-se nela, entretanto, um rico broche, que esconde cuidadosamente aos olhos do marido; ela o agrada, o acaricia; inventa todo dia novos nomes para ele; não tem outro leito além do desse querido esposo, e não quer pernoitar noutro. De manhã divide-se entre sua toalete e alguns bilhetes que tem de escrever. Um liberto vem falar-lhe em segredo; é Parmenon, favorito, que ela defende contra a antipatia do senhor e a inveja dos criados. Na verdade, quem faz conhecer melhor simples intenções e traz melhor uma resposta do que Parmenon? Quem fala menos daquilo que se deve calar? Quem sabe abrir uma porta secreta com menos ruído? Quem conduz com mais perícia pela escadinha? Quem faz melhor sair por onde se entrou?

Não compreendo como um marido que se entregue ao seu humor e disposição do momento, não esconda nenhum dos seus defeitos, mostre-se, ao contrário, pelo lado pior, avaro, descuidado no traje, brusco nas respostas, incivil, frio e taciturno, possa esperar defender o coração de uma esposa jovem contra as investidas de um admirador que emprega o enfeite e a magnificência, a lisonja, os cuidados, a dedicação, os presentes, os carinhos.

Um marido nunca tem rival que não seja dado pela sua mão, como um presente outrora feito à mulher. Louva diante dela, os belos dentes e a bonita cabeça dele; aceita suas atenções; recebe suas visitas; e depois do que lhe vem de sua fazenda, nada lhe parece mais gostoso do que a caça e as trufas que esse amigo lhe manda. Dá um jantar e diz aos convivas: provem isto, é de Leandro, e só me custa um muito obrigado.

Existirá mulher que esmague ou enterre o marido a ponto de não se fazer, no mundo, nenhuma referência a ele: ainda vive? Não vive mais? Tem-se dúvidas. Só serve na família para mostrar o exemplo de um silêncio tímido e perfeita submissão. Não lhe são devidos nem dotes nem convenções; mas tirando isso, e o fato dele não parir, ele é a mulher e ela o marido. Passam meses inteiros numa mesma casa sem o menor perigo de se encontrarem: é verdade, apenas, que são vizinhos. O Senhor paga o açougueiro e o cozinheiro; e foi sempre nos aposentos da Senhora que se ceou. Muitas vezes não têm nada de comum, nem o leito, nem a mesa, nem mesmo o nome: vivem á romana ou à grega; cada um tem o seu; e só com o tempo, ou depois que se está iniciado na gíria da cidade, é que se chega a saber que o sr. B. é publicamente, há vinte, anos, o marido da sra. L.

Outra mulher, a quem falta a desordem para mortificar o marido, consegue isso com sua nobreza e seu parentesco, com o dote rico que trouxe, e os encantos de sua beleza, e o seu mérito, é com isso que alguns chamam virtude.

Há poucas mulheres bastante perfeitas para impedir que o marido se arrependa, ao menos uma vez por dia, de ter uma esposa, ou de achar feliz quem não a tem.

As dores mudas e estúpidas estão fora de uso; chora-se, declama-se, recita-se, fica-se tão comovida com a morte do marido que não se chega a esquecer o menor detalhe.

Não se poderia descobrir a arte de se fazer amar por sua própria mulher?

Havia em Smirna uma jovem bonita, a quem chamavam Emiria, menos conhecida em toda a cidade por sua beleza que pela severidade de seus, costumes, e principalmente pela indiferença que tinha pelos homens, os quais ela via, segundo afirmava, sem nenhum perigo, e sem outras disposições diferentes das que tinha para com as amigas ou irmãos. Não acreditava nem um pouco em todas essas loucuras que se dizem causadas pelo amor em todos os tempos; e as que ela vira, não podia compreender; só conhecia a amizade. Uma criatura, jovem e encantadora, a quem devia essa experiência, tornara-a tão doce que ela só pensava em fazê-la durar; não imaginava que outro sentimento pudesse jamais esfriar o da estima e confiança, com o qual estava contente. Só falava de Eufrosina — era o nome dessa fiel amiga. Smirna inteira só falava dela e de Eufrosina; essa amizade era proverbial. Emíria tinha dois irmãos que eram moços de esplêndida beleza, e pelos quais todas as mulheres da cidade estavam apaixonadas: e é verdade que ela sempre os amou como uma irmã ama seus irmãos. Houve um sacerdote de Júpiter que tinha entrada na casa de seu pai, ao qual ela agradou, e que ousou declarar-se, só despertando desprezo; um velho, confiando em sua nobreza e grande fortuna, tivera a mesma audácia e teve também a mesma desventura. Ela ia triunfando. Até então era entre seus irmãos, um padre e um velho que ela se dizia insensível. Parecia que o céu quisesse expô-la a provas mais fortes, que no entanto só serviram para torná-la mais invencível, e fortalecer sua reputação de moça que o amor não atingia. De três apaixonados que seus encantos lhe deram sucessivamente, e cuja paixão ela não temeu ver até o fundo, um traspassou o peito aos seus pés; o segundo, desesperado por não ser atendido, foi se fazer matar na guerra de Creta; e o terceiro morreu de langor e de insônia. Aquele que devia vingá-los ainda não aparecera. O velho que fora tão infeliz nos seus amores, curara-se refletindo em sua idade, e no caráter da pessoa a quem queria agradar: desejou continuar a vê-la, e ela o suportou. Levou-lhe um dia o filho, que era jovem, fisionomia agradável, excelente estatura. Ela o viu com interesse; e como ele guardou silêncio na presença do pai, achou que ele não tinha muita inteligência, desejou que tivesse mais. Viram-se a sós, ele falou bastante, e com inteligência; mas como a olhou pouco, e falou ainda menos dela e de sua beleza, ficou surpreendida e como indignada de ver um homem tão bem feito e tão inteligente não ser galanteador.

Falou dele à sua amiga, que quis vê-lo. Ele só olhou para Eufrosina: disse-lhe que ela era linda; e Emiria, tão indiferente, foi se tornando ciumenta; compreendeu que Clesifon estava convencida do que dizia e não só era galanteador, como era meigo. Teve então menos liberdade com a amiga. Desejou vê-los juntos uma segunda vez, para ficar mais esclarecida; e um segundo encontro fé-la ver ainda mais do que temia ver, mudando suas suspeitas em certeza. Afasta-se de Eufrosina, não acha mais nela o mérito que a tinha encantado, perde o gosto de conversar com ela; não gosta mais dela; e essa mudança faz sentir que o amor tomou o lugar da amizade no seu coração. Clesifon e Eufrosina vêm-se todos os dias, se amam, pensam em casar-se, casam-se. A notícia se espalha pela cidade; torna-se público que essas duas criaturas afinal tiveram a alegria tão rara de se casarem porque se amavam. Emiria sabe, e desespera. Revive todo, o seu amor; procura Eufrosina só pelo prazer de rever Clesifon; mas esse marido recente ainda ama sua mulher e acha a amante na jovem esposa; só vê em Emiria a amiga de uma pessoa que ama. Essa moça infortunada perde o sono, não quer mais comer: enfraquece; seu espírito se perturba; toma o irmão por Clesifon e lhe fala como a um amante. Desengana-se, envergonha-se com a perturbação: recai logo em outras maiores, e não se envergonha mais; não as conhece mais. Então teme os homens, tarde demais. Sua loucura é essa. Tem intervalos em que a razão volta e ela suspira por encontrá-la. A mocidade de Smirna, que a viu tão orgulhosa e insensível, acha que os deuses a puniram bastante.


 

DO CORAÇÃO

 

Há na pura amizade um prazer a que não podem atingir os que nasceram medíocres.

A amizade pode subsistir entre pessoas de sexo a diferentes, isenta mesmo de toda materialidade. Uma mulher, entretanto, olha sempre um homem como um homem; e reciprocamente, um homem olha uma mulher como uma mulher; essa ligação não é paixão nem pura amizade: constitui uma classe aparte.

O amor nasce bruscamente, sem outra reflexão, por temperamento, ou por fraqueza: um detalhe de beleza nos fixa, nos determina. A amizade, ao contrário, forma-se pouco a pouco, com o tempo, pela prática, por, um longo convívio. Quanta inteligência, bondade, dedicação, serviços e obséquios, nos amigos, para fazer, em anos, muito menos do que faz às vezes, num minuto, um rosto bonito e uma bela mão!

O tempo, que fortalece as amizades, enfraquece o amor.

Enquanto o amor dura, subsiste por si, e às vezes pelo que parece dever extingui-lo: caprichos, rigores, ausência, ciúme, a amizade, ao contrário, precisa de alento; morre por falta de cuidados, de confiança, de atenção.

É mais comum ver um amor extremo que uma amizade perfeita.

O amor e amizade se excluem um ao outro. Aquele que teve a experiência de um grande amor descuida a amizade; e quem se esgotou na amizade ainda não fez nada para o amor.

O amor começa pelo amor, e só se passaria da mais forte amizade para um amor fraco.

Nada parece mais com uma viva amizade do que essas ligações que o interesse do nosso amor nos faz cultivar.

Só se ama bem uma única vez: a primeira vez. Os amores que se seguem são menos involuntários.

O amor que nasce de repente é o mais difícil de curar.

O amor que cresce pouco a pouco, e por graus, parece-se demais com a amizade para ser uma paixão violenta.

Quem ama bastante para querer amar mais um milhão de vezes do que ama, só se compara, em amor, com aqueles que amam mais do que queriam.

Se digo que na violência de uma grande paixão se pode amar alguém mais do que a si mesmo, a quem darei mais prazer, aos que amam ou aos que são amados?

Os homens muitas vezes querem gostar, e não saberiam conseguir; procuram sua derrota, sem poder encontrá-la; e se assim posso dizer, são constrangidos a ficar livres.

Os que começam se amando com a mais violenta paixão, contribuem logo, cada um com sua parte, para se amarem menos, e depois para não se amarem mais. Quem, entre um homem e uma mulher, participa mais nesse rompimento? Não é fácil decidir. As mulheres acusam os homens de volúveis; os homens dizem-nas levianas.

Por mais exigente que se seja em amor, perdoam-se mais faltas que em amizade.

Para quem muito ama é uma doce vingança transformar, pelo seu procedimento, uma pessoa ingrata em pessoa muito ingrata.

É triste amar sem grande fortuna que nos dê meios de prodigalizar a pessoa que se ama, e torná-la tão feliz que não tenha mais desejos a formular.

Um grande reconhecimento suprime, com ele, muita simpatia e amizade pela pessoa a quem o devemos.

Estar com a pessoa de quem se gosta, basta sonhar, falar-lhe, não lhe falar, pensar nela, pensar nas coisas mais indiferentes, mas perto dela, tudo está bem.

Não há mais distância do ódio à amizade que dele à antipatia.

Parece que é menos raro passar da antipatia ao amor que à amizade.

Confia-se um segredo na amizade; em amor, nos escapa!

Na amizade só se vêm os defeitos que podem prejudicar nossos amigos; em amor só se vêm, na pessoa amada, os defeitos que nos fazem sofrer. Só há um primeiro despeito no amor, como a primeira falta na amizade, que se pôde utilizar.

Parece que se existe uma suspeita injusta, extravagante e sem fundamento, à qual se deu o, nome de ciúme, esse outro ciúme que é um sentimento justo, natural, fundado na razão e na experiência, mereceria outro nome.

O temperamento tem muita participação no ciúme, que nem sempre faz supor grande paixão; no entanto é um paradoxo, um violento amor sem ciúme.

Acontece muitas vezes que sozinho se suporta o zelo: do ciúme se sofre e se faz os outros sofrerem.

Aquelas que não nos perdoam nada, e não poupam ocasiões de mostrar ciúme, não mereciam de nós nenhum ciúme, se nos regulássemos mais pelos seus sentimentos e conduta que pelo seu coração.

A frieza e diminuição na amizade têm suas causas: em amor não há outra razão de não se amar mais, além da de já se ter amado demais.

Não se é senhor de continuar amando como não se foi de não amar.

Os amores morrem de aborrecimento e o esquecimento os enterra.

O começo e o declínio do amor se fazem sentir pelo embaraço em que se fica ao estar sós.

Deixar de amar, prova sensível de que o homem é limitado e que o coração tem seus limites.

Amar é uma fraqueza; às vezes deixar de amar é outra fraqueza.

A gente deixa de amar como quando se consola, não se tem no coração de que chorar a vida inteira e amar a vida inteira.

Devia haver no coração fontes inesgotáveis de dor para certas perdas. Não é por virtude, ou força de espírito que se sai de uma grande aflição: chora-se amargamente, e se fica sensivelmente comovido, mas depois somos tão fracos, ou tão levianos, que nos consolamos.

Se uma mulher feia se faz amar, só o pode ser perdidamente; porque tem que ser por estranha fraqueza do amante ou por encantos mais secretos e invencíveis que os da beleza.

Ainda se fica muito tempo a se ver por hábito e a se dizer de boca que se ama, depois que os atos dizem que já não se ama.

Querer esquecer alguém, é pensar nele. O amor tem isso de comum com os escrúpulos, se aguça pelas reflexões e circunlóquios que se fazem para livrar-se dele. É preciso, se se pode, não pensar na paixão, para enfraquecê-la.

Queremos fazer toda a felicidade, ou, se isso não for possível, toda a infelicidade da pessoa que se ama.

Lamentar o que se amou é um bem, em comparação a viver com quem se odeia.

Por mais desinteressado que se seja em relação às pessoas que se ama, é preciso às vezes se deixar constranger por elas, e ter a generosidade de receber.

Pode ganhar quem tem prazer tão delicado em receber quanto seu amigo em lhe ofertar.

Dar, é agir; não é sofrer pelo bem que faz, nem ceder à impertinência ou necessidade daqueles que nos pedem.

Se se beneficiou a quem se gosta, aconteça o que acontecer, não há mais ocasiões para pensar nos benefícios que se fez.

Já se disse, em latim, que custa menos odiar que amar; ou, se se quiser, que a amizade é mais, difícil que o ódio. E verdade que se é dispensado de beneficiar os inimigos; mas vingar-se, também não custa? Ou, se é agradável e natural fazer mal a quem se odeia, será menos fazer bem a quem se ama? Não seria duro e penoso não fazer nada?

Dá prazer encontrar os olhos daquele a quem se acaba de fazer o bem.

Não sei se um bem que cai sobre um ingrato, e assim, sobre um indigno, não muda de nome, e se ele merecia mais reconhecimento.

A liberalidade consiste menos em dar muito que em dar a propósito.

Se é verdade que a piedade ou a compaixão é um retorno a nós mesmos, que nos põe no lugar dos infelizes, por que tiram eles de nós tão pouco alívio às suas misérias?

Mais vale se expor à ingratidão que faltar aos miseráveis.

A experiência confirma que a brandura ou a indulgência para si e a dureza para os outros são um só e único vício.

Um homem duro no trabalho e no sofrimento, inexorável para si mesmo, só é indulgente para os outros por um excesso de raciocínio.

Por desagradável que seja ter de cuidar de um indigente, mal se prova as novas vantagens que afinal o tiram da nossa sujeição: assim também, a alegria., que se tem com a elevação de um amigo é um pouco compensada pelo pequeno despeito que se tem de vê-lo acima de nós, ou se igualar a nós. Assim, a gente se acomoda mal consigo mesmo; porque se quer dependentes, e que não nos custem nada: também se deseja o bem dos amigos e se isso acontece, nem sempre é por se alegrar que se começa.

Convida-se para comer; insiste-se, oferece-se a casa, a mesa, os bens, e os serviços; nada custa, a não ser cumprir a palavra.

É bastante, para si, um amigo fiel; é mesmo muito tê-lo encontrado: não se pode tê-los demais para servir aos outros.

Quando se fez bastante junto a certas pessoas para tê-las conquistado, se isso não dá certo, ainda há um recurso, que é não fazer mais nada.

Viver com inimigos como se eles devessem um dia ser amigos, e viver com amigos como se pudessem se tornar inimigos. Não está de acordo com a natureza do ódio nem com as regras da amizade: não é uma máxima moral, mas política.

Não se deve transformar em inimigos aqueles, que, melhor conhecidos, poderiam alistar-se entre nossos amigos. Deve-se escolher amigos tão seguros e de tão exata probidade que, vindo a deixar de sê-lo, não queiram abusar da nossa confiança, nem se fazer temer como nossos inimigos.

É agradável ver amigos por gosto e por estima; é penoso cultivá-los por interesse; é suplicar.

É preciso disputar a cotação daqueles a quem se quer bem, mais do que a daqueles de quem se espera o bem.

Não se voa para a fortuna com as mesmas asas com que se voa para coisas frívolas e fantasias. Há um sentimento de liberdade em seguir seus caprichos, e ao contrário, de servidão, em comparecer ao emprego: é natural desejá-lo muito e trabalhar pouco, considerar-se digno de achá-lo sem tê-lo procurado.

Quem sabe esperar o bem que deseja não toma a decisão de se desesperar se ele não chega; aquele que, ao contrário, deseja uma coisa com grande impaciência, põe nisso muito de si mesmo para que o sucesso seja recompensa bastante.

Há pessoas que querem tão ardente e determinadamente certa coisa, que por medo de perdê-la, não esquecem nada do que é preciso fazer para perdê-la.

As coisas mais desejadas não acontecem; ou se acontecem, não é no tempo nem nas circunstâncias em que teriam causado extraordinário prazer.

É preciso rir antes de ser feliz, por medo de morrer sem ter rido.

A vida é curta se só merece esse nome quando é agradável; pois que, se se juntassem as horas que se passam com quem nos agrada, mal se faria, com grande número de anos, uma vida de alguns meses.

Como é difícil estar contente com alguém!

Não se poderia evitar alguma alegria em ver morrer um homem mau; gozar-se-ia então o fruto do seu ódio e se tiraria dele tudo o que se pode esperar, que é o prazer da sua perda. Afinal chega sua morte, mas numa conjuntura em que nossos interesses não permitem nos alegrarmos; ele morre cedo demais ou tarde demais.

É penoso para um homem orgulhoso perdoar a quem o surpreende em falta, e se queixa dele com razão: seu orgulho só se adoça quando retoma sua posição e identifica o outro com seu erro.

Assim como amamos cada vez mais as pessoas a quem fazemos bem, odiamos violentamente aquelas que ofendemos muito.

É igualmente difícil abafar no começo o sentimento das injúrias, e conservá-lo depois de um certo número de anos.

É por fraqueza que se odeia um inimigo e se pensa em vingar-se dele; e é por preguiça que se acha calma e não se tira vingança.

Há tanta preguiça quanto fraqueza em se deixar governar.

É preciso não pensar em, governar um homem de um momento para outro, sem outra preparação, num caso importante, que seria capital para ele e os seus: ele sentiria logo o império e ascendente que se quer tomar sobre seu espírito, e sacudiria o jugo, por vergonha ou capricho. É preciso tentar junto a ele as pequenas coisas, e daí o progresso até às grandes se faz infalivelmente. Quem no começo só podia conseguir fazê-lo partir para o campo ou voltar para a cidade, acaba por ditar-lhe um testamento em que ele reduz seu filho à legítima.

Para governar alguém muito tempo, e de modo absoluto, é preciso ter mão leve e fazê-lo sentir sua dependência o menos que se pode.

Uns se deixam governar até certo pontos e além daí são intratáveis, e não se governam mais; perde-se, de repente, o caminho de seu coração e da sua inteligência; nem altivez, nem sutileza, nem força, nem artifício podem domá-los, com a diferença de que uns são assim por raciocínio e com fundamento, e outros por temperamento e humor.

Há homens que não atendem à razão nem aos bons conselhos e se perdem voluntariamente, pelo medo que têm de ser governados.

Outros consentem em ser governados pelos amigos em coisas quase indiferentes, e se acham no direito de governá-los, por sua vez em coisas graves que têm conseqüências.

Drance quer passar por governar seu senhor, que não acredita nisso, nem o público tampouco: falar sem cessar a um poderoso a quem se serve, em lugares e tempos inconvenientes; falar-lhe ao ouvido em termos misteriosos, rir até estourar na sua presença, cortar-lhe a palavra, pôr-se entre ele e os que lhe falam, desdenhar os que vêm fazer-lhe a corte, ou esperar impacientemente que eles se retirem, pôr-se junto dele em posição desleixada, falar-lhe de costas apoiadas na lareira, bancar o familiar, tomar liberdades, caracterizam melhor um tolo do que um favorito.

Um homem de bom senso não se deixa governar nem procura governar os outros; deseja que só a razão governe, e sempre.

Não odiaria ser entregue, por confiança, a uma pessoa razoável, e ser assim governado em todas as coisas, absolutamente e sempre: teria certeza de proceder bem sem ter o trabalho de deliberar; gozaria a tranqüilidade de quem é governado pela razão.

Todas as paixões são mentirosas disfarçam-se quanto podem aos olhos dos outros; escondem-se .de si mesmas; não há vício que não tenha alguma virtude, e não se sirva dela.

Abre-se um livro de orações, e ele comove; abre-se um outro, galante, e ele causa impressão. Ousaria dizer que só o coração concilia as coisas contrárias e admite as incompatíveis?

Os homens se envergonham menos de seus crimes que das suas fraquezas e vaidades: há quem seja abertamente injusto, violento, pérfido, caluniador, que esconda seu amor ou sua ambição sem outra intenção que a de as esconder.

Não acontece nunca o caso em que se possa dizer: ou era ambicioso; ou não se é, ou se é sempre; mas chega o tempo em que se confessa que se amou.

Os homens começam pelo amor, acabam pela ambição, e só encontram tranqüilidade quando morrem.

Nada custa menos à paixão que se pôr acima da razão: seu grande triunfo é superar o interesse. A gente é mais sociável e melhor de conviver pelo coração que pela inteligência.

Há certos grandes sentimentos, certas ações nobres e elevadas que devemos menos à força de nosso espírito que à bondade da nossa natureza.

Não há no mundo excesso mais bonito que o do reconhecimento.

É preciso ser bem despido de inteligências se o amor, a malignidade, a indigência, não fazem encontrá-la.

Há lugares que a gente admira; há outros que comovem, e nos quais se gostaria de viver.

Parece-me que se depende do lugar para a inteligência, o humor, paixão, simpatia e sentimentos

Aqueles que fazem o bem são os únicos que mereceriam ser invejados, se não houvesse ainda melhor partido a tomar, que é de fazer melhor: doce vingança contra aqueles que nos despertam essa inveja.

Alguns se defendem de amar e fazer versos como de duas fraquezas que não se ousam confessar, uma do coração, outra da inteligência.

Há, às vezes, no curso da vida, prazeres tão queridos e tão ternos compromissos que nos proíbem, que é natural desejar que eles fossem ao menos permitidos: tão grandes encantos só podem ser superados pelo de saber renunciar a eles por virtude.


 

DA SOCIEDADE E DA CONVERSAÇÃO

 

É demonstrar caráter desagradável não ter nenhum.

O papel de um tolo é ser importuno; um homem de bom senso sabe quando é oportuno e quando é demais; sabe desaparecer no momento que precede aquele em que seria demais em algum lugar.

Atropelam-se os impertinentes; essa espécie de insetos chove em toda parte. Uma pessoa espirituosa é coisa rara: para um homem que nasceu assim é muito difícil sustentar-se assim por muito tempo; não é comum quem faz rir fazer-se estimado.

Há muitos espíritos obscenos, ainda mais maldizentes ou satíricos, poucos delicados. Para brincar com graça e ter expressões felizes sobre os assuntos mais insignificantes, é preciso muito jeito, muita polidez e mesmo muita fecundidade, é criar, caçoar; assim, é fazer, de nada, alguma coisa.

Se se prestasse séria atenção a tudo o que se diz de insípido, vão e pueril, nas conversações comuns, ter-se-ia vergonha de falar e de ouvir; e se condenaria talvez a um silêncio perpétuo, pior, no convívio, que os discursos inúteis.

É preciso, portanto, adaptar-se a todas as inteligências, permitir como um mal necessário que nos contem notícias falsas, que nos digam vagas reflexões sobre o governo atual ou o interesse dos príncipes, a enumeração dos bons sentimentos e a repetição constante dessas coisas; é preciso deixar Aronde citar provérbios, e Melindo falar de si, de suas manias, suas dores de cabeça e suas insônias.

Vêm-se pessoas que na conversa ou no pequeno convívio que se tem com elas, desagradam com suas expressões ridículas, com a novidade, ou se me atrevo a dizer, impropriedade dos termos de que se servem, como pela junção de certas palavras que só se encontram juntas na sua boca às quais dão significados que os seus primeiros inventores nunca tiveram a intenção de emprestar-lhes. Não seguem, ao falar, nem a razão do uso; o gênio desagradável, a vontade de caçoar sempre e talvez de brilhar, forma uma gíria que lhes é própria, e se torna, afinal, seu idioma corrente; acompanham essa linguagem extravagante com o gesto afetado e pronúncia contrafeita. Andam todos contentes consigo mesmos e com a finura de sua inteligência, da qual não se pode dizer que sejam totalmente isentos; mas a gente os lamenta por esse pouco que têm; e, o que é pior, a gente os suporta.

Que diz? Como? Não entendo: você quereria repetir? Entendo ainda menos. Até que afinal! Você quer me dizer, Acis, que está fazendo frio; por que não disse: está fazendo frio? Você quer me dizer que está chovendo ou nevando; diga: está chovendo, está nevando. Você me acha bem disposto e deseja me felicitar; diga: eu o acho bem disposto. Mas, perguntam-me, isso é claro e evidente: quem não poderia dizer o mesmo? Que importa, Acis? Será tão grande mal ser ouvido, quando se fala, por todo o mundo? Uma coisa lhe falta, Acis, a você e a seus semelhantes, os dizedores de palavras empoladas; vocês nem desconfiam, e vou surpreendê-los; uma coisa lhes falta: é inteligência. E não é só isso: uma coisa, em vocês, é demais: a impressão de saberem mais do que outros; eis a fonte da sua pomposa algaravia, frases embrulhadas e palavras solenes que nada significam.

Quando você aborda este homem, ou entra nesta sala, eu puxo você pelo casaco e lhe digo ao ouvido: não procure inteligência, não tenha inteligência, seu papel é usar, se puder, de linguagem simples, igual à que têm aqueles em que você não acha inteligência: talvez então se pense que você tenha alguma.

Quem pode prometer evitar na sociedade dos homens encontrar certos espíritos frívolos, levianos, que se fazem íntimos, e são sempre, numa roda, os que falam e têm de ser ouvidos pelos outros? A gente os ouve desde a sala de espera; entra-se impunemente, sem risco de interrompê-los: eles continuam sua história sem a menor atenção pelos que entram ou saem, nem pela posição ou mérito das pessoas que compõem o grupo: fazem calar-se aquele que começa a contar um fato, para dizê-lo à sua moda, que é sempre a melhor; ouviram-no contar de Zamet, de Ruccelai ou .de Conchine(25), que eles não conhecem, aos quais nunca falaram, e tratariam de Excelentíssimo Senhor se lhes falassem; aproximam-se às vezes do ouvido do mais notável dos presentes para brindá-lo com um detalhe que ninguém conhece, e eles não querem que os outros fiquem sabendo; suprimem alguns nomes para disfarçar a história que contam, e evitar as alusões: rogue, suplique, inutilmente; há coisas que eles não dirão; há nomes que eles não poderiam dar: empenharam a palavra; é o maior dos segredos, é um mistério; além do mais você lhes pede o impossível: porque, sobre o que você quer saber, eles ignoram o fato e as personagens.

Arrias leu tudo, viu tudo; quer convencer-nos disso: é um homem universal, e como tal se apresenta; gosta mais de mentir do que de ficar calado ou parecer ignorar alguma coisa. Fala-se na mesa de um nobre sobre uma corte do Norte: orienta-se nessa região longínqua como se fosse originário de lá; discorre sobre os costumes dessa corte, as mulheres do país, as leis e usos; conta pequenas histórias que aconteceram por lá; acha-as engraçadas, e é o primeiro a rir até estourar. Alguém ousa contradizê-lo, e prova claramente que ele disse coisas que não são verdadeiras; Arrias não se perturba, ao contrários enfurece-se contra quem o interrompeu. Não invento nada, diz, não conto nada que não conheça no origina1; soube por Séton, embaixador da França nessa corte que voltou a Paris há poucos dias, meu íntimo, a quem fiz muitas perguntas e ele não me escondeu nenhuma circunstância. Retoma o fio da narração com mais confiança do que ao começá-la, quando um dos convivas lhe diz: É com Séton em pessoa que o sr. está falando; ele acabou de chegar da embaixada.

Há um partido a tomar nas conversas, entre uma certa preguiça que se tem de falar ou, às vezes, um espírito abstrato, que, nos levando para longe do assunto da palestra, nos faz formular perguntas impróprias ou dar respostas estúpidas; e uma atenção importuna que se presta à menor palavra que se diz distraído para retorná-la, comentá-la, achar nela um mistério que, os outros não acham, procurar nisso finura e sutileza, só para ter ocasião de demonstrar a, sua.

Ser enfatuado, e fortemente convencido de que se tem muita inteligência, é um acidente que só acontece a quem não tem, ou tem pouca, e então, ai de quem está exposto a conversar com tal personagem! Quantas frases bonitas terá de suportar! Quantas dessas palavras aventureiras que aparecem subitamente, duram algum tempo, e logo não se ouvem mais! Se conta um fato, é menos para contá-lo a quem o ouve que para ter o mérito de dizê-lo, e dizê-lo bem; torna-se um romance nas suas mãos; faz as pessoas, pensarem à sua moda, põe-lhes na boca seu jeito de falar, e sempre as faz falar muito; cai depois em parêntesis que podem passar por episódios mas fazem esquecer o principal da história, a ele que fala, e a você que o suporta: que seria de você e dele se não viesse felizmente alguém para desmanchar a roda e fazer esquecer a narração?

Ouço Teodecto da sala de espera; aumenta a voz à medida que se aproxima; ei-lo; ri, grita, explode; tapamos os ouvidos; é um trovão: não é menos temível pelas coisas que diz que pelo tom com que as diz; só se acalma e diminui esse estrépito para balbuciar futilidades e tolices; tem tão pouca consideração pelo tempo, as pessoas, as conveniências, que cada um recebe sua parte sem que ele tenha intenção de lhe dar; mal se sentou, já, sem querer, desagradou toda a assembléia. Serviu-se a refeição: senta-se primeiro à mesa, e no lugar principal; as mulheres estão à sua direita e à sua esquerda: ele come, bebe, narra, caçoa, interrompe, tudo ao mesmo tempo; não distingue pessoas, nem o dono da casa, nem os convivas; abusa da louca deferência que se tem por ele. Será ele ou Eutidemo quem oferece o banquete? Chama a si toda a autoridade da mesa; e é menos inconveniente deixá-la inteira do que disputá-la com ele: o vinho e as iguarias não acrescentam nada ao seu caráter. Se se joga, ganha no jogo; zomba de quem perde, e o ofende: os caçoistas são a favor dele; não há fatuidade: que não lhe perdoem. Afinal cedo e desapareço, incapaz de suportar por mais tempo Teodecto e os que o suportam.

Troilo é útil aos que têm bens demais: tira-lhes a dificuldade do supérfluo; poupa-lhes o trabalho de juntar dinheiro, fazer contratos, fechar um cofre, trazer chaves consigo, e temer um roubo doméstico; ajuda-os nos seus prazeres, e se torna em seguida capaz de servi-los nas suas paixões: logo os regula e domina na sua conduta. É o oráculo de uma casa, aquele de quem se esperam — que digo? — de quem se prevêem, de quem se adivinham as decisões diz deste escravo: é preciso puni-lo, e o chicoteiam; e deste outro: é preciso libertá-lo, e o libertam. Vê-se que um parasita não é despedido: o dono da casa dá-se por feliz se Troilo lhe deixa a mulher e os filhos. Se Troilo está na mesa, e diz que um prato é gostoso, o dono da casa e os convivas, que o comiam sem reflexão, acham-no gostoso, e não se fartam de comê-lo; se ao contrário, ele diz que outro prato é insípido, os que começavam a prová-lo, não ousando engolir o pedaço que têm na boca, o jogam no chão: todos têm os olhos nele, observam sua atitude e fisionomia antes de dar opinião sobre o vinho ou as iguarias que foram servidas. Não o procurem noutro lugar que não seja a casa desse ricaço que ele governa; ai ele come, dorme, faz digestão, ralha com o criado, recebe seus operários, despacha os credores: dá regras, domina numa sala; recebe a corte e as homenagens daqueles que, mais finórios que os outros, só querem chegar ao dono da casa através de Troilo. Se entra alguém que por infelicidade não tem fisionomia que lhe agrade, enruga a fronte e desvia os olhos; se o aborda, não se levanta; se se senta perto dele, afasta-se; se lhe fala, não responde; se continua a falar, vai para outra sala; se o segue, sobe a escada: atravessaria todos os andares ou se lançaria por uma janela para não se deixar abordar por alguém cujo rosto ou tom de voz não aprove; um e outro são agradáveis cm Troilo, e ele se serve de ambos com felicidade para se insinuar ou conquistar. Tudo se torna, com o tempo, sujeito a seus cuidados, como ele está acima de querer sustentar-se ou continuar agradando pelo menor dos talentos que começaram a valorizá-lo: Já é muito que ele saia às vezes de suas meditações e deixe o ar taciturno para contradizer e que mesmo para criticar se digne, uma vez por dia, ter espírito; longe de esperar dele que preste atenção aos sentimentos alheios, seja condescendente e os louve, não se tem certeza se continua apreciando a sua aprovação, ou se sofre com a sua condescendência.

É preciso deixar falar esse desconhecido que o acaso colocou perto de si num veículo público, numa festa ou num espetáculo; e logo só custará, para conhecê-lo, tê-lo escutado; saber-se-á seu nome, residência, origem, o estado de seus bens, ocupação, parentesco, as armas da sua casa; compreender-se-á que é nobre, tem um castelo, belos móveis, lacaios, e uma carruagem.

Há pessoas que falam um momento antes de pensar; há outras que prestam fraca atenção no que dizem, e com as quais sofremos, na conversação, todo o trabalho que a sua inteligência tem; estão como amassados de frases e jeitos de expressão, concertados nos gestos e em toda a sua atitude; são puristas(26) e não ousam a menor palavra, ainda quando ela fizesse o mais belo efeito do mundo; nada de feliz lhes escapa; nada flui com facilidade e liberdade: falam de modo correto e cacete.

O espírito da conversação consiste muito menos em mostrar muito espírito que em fazer os outros o acharem: quem sai de uma palestra com você contente consigo mesmo e com seu espírito, sai perfeitamente contente com você. Os homens não gostam de admirar; querem agradar: procuram menos ser instruídos, e mesmo satisfeitos, que serem apreciados e aplaudidos; e o prazer mais delicado que há é o de causar o dos outros.

Não deve haver imaginação demais nas nossas palestras e escritos; geralmente ela só produz idéias vãs e pueris, que não servem para aperfeiçoar o gosto e nos tornar melhores: nossos pensamentos devem ser tomados no bom sentido é razão justa é devem ser efeito do nosso raciocínio.

É grande miséria não ter bastante inteligência para falar bem, nem bastante juízo para se calar. Eis o princípio de toda impertinência.

Dizer de uma coisa, modestamente, que é boa ou que é má, e as razões por que assim é, requer bom senso e expressão; é um problema. É mais cômodo pronunciar, em tom decisivo, que importa em prova do que se afirma, que ela é execrável ou que é miraculosa.

Nada menos de acordo com Deus e o mundo que concordar com tudo o que se diz na conversação até nas coisas mais diferentes, por longos e fastidiosos juramentos. Um homem de bem que diz sim e não, merece ser acreditado: seu caráter jura por ele, dá crédito a suas palavras e lhe atrai toda confiança.

Aquele que diz incessantemente que é honrado e probo, que não prejudica ninguém, que consente que o mal que ele faz aos outros lhe aconteça, e jura para se fazer acreditado, não sabe nem fingir de homem de bem.

Um homem de bem não saberá impedir, com toda a sua modéstia, que se diga dele o que um vilão sabe dizer de si.

Cleon fala com pouca urbanidade ou pouca correção; mas acrescenta que é feito assim e que diz o que pensa.

Há falar bem, falar com facilidade, falar certo, falar a propósito: é pecar contra este último gênero descrever uma refeição magnífica que se acaba de fazer, diante de pessoas que estão reduzidas a poupar o pão; dizer maravilhas de sua saúde diante de doentes; discorrer sobre suas riquezas, rendas e alfaias para um homem que não tem rendas nem domicílio; numa palavra, falar de sua felicidade diante dos miseráveis. Essa conversação é forte demais para eles; e a comparação que fazem do seu estado com o deles é odiosa.

Para você, diz Eutifron, você é rico, ou deve ser: dez mil libras de renda, e terra, é belo, é uma delicia, e com menos do que isso já se é feliz, enquanto ele, que fala assim, tem cinqüenta mil libras de renda e pensa ter apenas a metade do que merece: ele taxa, avalia, fixa a vossa despesa; e se vos julgasse digno de melhor fortuna, mesmo daquela a que aspira, não deixaria de desejar-vo-la. Não é o único a fazer tão más avaliações ou comparações tão desagradáveis; o mundo está cheio de Eutifrons.

Alguém, seguindo o costume que manda elogiar, e pelo hábito que tem de adular, e exagerar, felicita Teodemo por um discurso que não ouviu, e do qual ninguém ainda lhe deu conta; não se cansa de falar no gênio de Teodemo na sua gesticulação, e principalmente na sua memória: a verdade é que Teodemo esteve calado.

Vêm-se pessoas bruscas, inquietas, presunçosas, que, apesar de ociosas, e sem nenhuma atividade que as requisite em outro lugar, nos despacham, por assim dizer, em poucas palavras, e só pensam em se livrar de nós: ainda estamos falando, já partiram, e desapareceram. Esses não são menos impertinentes que aqueles que nos fazem parar só para nos cacetear; são, talvez, menos incômodos.

Falar e ofender, para certas pessoas, é precisamente a mesma coisa: são mordazes e ásperos, seu estilo é misturado com fel e absinto; zombaria, injúria, insulto, escorrem de seus lábios como saliva. Seria útil para elas terem nascido mudas ou estúpidas.

O que têm de vivacidade e inteligência prejudica-as ainda mais do que, a outras, a tolice.. Nem sempre se contentam em responder com azedume, freqüentemente atacam com insolência: dão marradas de frente e de lado, como os carneiros: será que se pede aos carneiros para não terem chifres? Assim também não se espera reformar com esta pintura naturezas tão duras, bravias, indóceis. O que se pode fazer de melhor, assim que de longe os vemos, é fugir com todas as forças, e sem olhar para trás.

Há pessoas de certo estofo ou caráter com as quais nunca nos devemos meter, das quais não nos devemos queixar senão o menos que pudermos, contra as quais não é permitido ter razão.

Entre duas pessoas que tiveram uma violenta querela, na qual uma tem razão e outra não, o que a maior parte das pessoas que assistiram à querela nunca deixam de fazer, para se dispensar de julgar, ou por temperamento que sempre me pareceu deslocado, é condenar todos dois: lição importante, motivo urgente e indispensável para fugir ao oriente quando o tolo está no ocidente, a fim de evitar dividir com ele o mesmo agravo.

Não gosto de um homem que não posso abordar em primeiro lugar, nem cumprimentar antes que ele me cumprimente, sem me diminuir a seus olhos, e sem me tornar cúmplice da boa opinião que tem de si mesmo. MONTAIGNE diria:(27)

“Quero ter, movimentos livres e ser cortês e afável à minha moda, sem remorso nem conseqüência. Não posso lutar contra minha inclinação, e andar ao contrário do meu natural, que me faz aproximar daquele que sinto vir ao meu encontro. Quando é meu igual, e não é meu inimigo, antecipo sua boa acolhida; pergunto-lhe pela disposição e saúde; ofereço-lhe meus serviços sem discutir sobre se é pouco ou muito, nem ficar, como dizem alguns, de sobreaviso. Desagrada-me aquele que, pelo conhecimento que tenho de seus costumes e modos de agir, tira-me essa liberdade e franqueza: como me lembrar a propósito, logo ao ver de longe esse homem, de tomar atitude grave e importante, demonstrando-lhe que julgo valer tanto quanto ele e mais até; pelo fato de, me lembrar das minhas boas qualidade e condições, e das suas más, posso fazer comparação? É trabalho demais para mim, e não sou absolutamente capaz de tão rija e súbita atenção; e mesmo quando ela me tivesse acontecido alguma vez, eu não deixaria de ceder e me desmentir numa segunda tentativa: não posso me forçar e constranger, para nada, a ser arrogante.

Com virtude, capacidade e boa conduta, se pode ser insuportável. As atitudes, que se desprezam como coisas sem importância, são muitas vezes o que faz com que os homens julguem de si bem ou mal: uma ligeira atenção em tê-las doces e polidas previne maus juízos. Não é preciso quase nada para ser julgado orgulhoso, incivil, insolente, desagradável; é preciso ainda menos para ser considerado o contrário.

A polidez nem sempre inspira bondade, eqüidade, condescendência, gratidão; dá, pelo menos, a aparência disso, e faz o homem parecer por fora o que devia ser interiormente.

Pode-se definir o espírito de polidez: não se pode fixar a prática: ele segue o uso e os costumes recebidos, está preso ao tempo, lugares, pessoas, e não é o mesmo nos dois sexos, nem em diferentes condições: a inteligência sozinha não o faz adivinhar; faz com que o sigam por imitação, e que se aperfeiçoe nisso. Há temperamentos que só são suscetíveis de polidez, há outros que só servem aos grandes talento ou a uma virtude, sólida. É verdade que maneiras polidas dão curso ao mérito, e o tornam agradável; e que é preciso ter qualidades bem eminentes para se sustentar sem a polidez.

Parece-me que o espírito de polidez é uma certa atenção em fazer com que, por nossas palavras e maneiras, os outros fiquem contentes conosco e consigo mesmos.

É uma ofensa contra a polidez louvar imoderadamente na presença daquele a quem se pede para cantar ou tocar um instrumento, alguma outra pessoa que tem esses mesmos talentos; como diante daqueles que lêem seus versos, um outro poeta.

Nos banquetes ou festas que se dão, nos presentes que se fazem, e em todos os prazeres que proporcionam aos outros, há fazer bem e fazer segundo o gosto deles: o segundo é preferível.

Seria uma espécie de ferocidade desprezar indiferentemente toda sorte de louvores: deve-se ser sensível aos que nos vêm como pessoas de bem, que louvam em nós, sinceramente, coisas louváveis.

Um homem inteligente, que nasceu altivo, não perde nada da sua altivez e austeridade por estar pobre: se alguma coisa, ao contrário, deve amolecê-lo, torná-lo mais amável e mais sociável, é um pouco de prosperidade.

Não poder suportar os maus caracteres de que o mundo está cheio, não é sinal de muito bom caráter: é preciso, no comércio, haver moedas de ouro e níqueis.

Viver com pessoas que estão brigadas, tendo-se de ouvir, de ambas as partes queixas recíprocas, é, por assim dizer, não sair da audiência e ouvir, da manhã á noite, defender e tratar de processos.

Sabe-se de pessoas que tinham passado seus dias numa estreita união: seus bens eram comuns; tinham a mesma residência; não se perdiam de vista. Perceberam, com mais de noventa anos, que só tinham mais um dia para viver, e não ousaram tentar passá-lo juntos; trataram de romper antes de morrer; só tinham reservas de complacência até esse momento. Viveram demais para bom exemplo; um momento mais cedo, morreriam sociáveis, e deixariam depois de si um raro modelo de perseverança na amizade.

O íntimo das famílias é freqüentemente perturbado pelas desconfianças, ciúmes e antipatias, enquanto um exterior contente, calmo e risonho nos engana e nos faz supor uma paz inexistente: poucas existem que ganham em ser examinadas de perto. Essa visita que você faz acaba de suspender uma querela doméstica que só espera a sua retirada para recomeçar.

Na sociedade é a razão a primeira vencida. Os mais ajuizados são freqüentemente dirigidos pelo mais louco e extravagante: estuda-se seu fraco, seu humor, seus caprichos; acomoda-se a ele; evita-se feri-lo; todo mundo cede a ele: a menor serenidade que aparece na sua fisionomia basta para lhe atrair elogios; acham-no ótimo por não ser sempre insuportável. É temido, considerado, obedecido, e às vezes amado.

Só aqueles que tiveram velhos parentes colaterais, ou que os têm ainda, dos quais se espera herdar, podem dizer o que isso custa.

Cleante é um homem muito correto; escolheu uma mulher que é a pessoa melhor do mundo, e a mais razoável: cada um por seu lado faz todo o prazer e agrado das reuniões a que comparecem; não se pode ver em outro lugar mais probidade, mais polidez; se separam, e a ata de separação é feita no tabelião. Existem, sem dúvida, certos méritos que não são feitos para estar juntos, certas virtudes incompatíveis.

Pode-se contar seguramente com o dote, a pensão e convenções mas fracamente com as doçuras; elas dependem de uma união frágil da sogra e da nora que freqüentemente perece no ano do casamento.

Um sogro não gosta do genro, gosta da nora; uma sogra gosta do genro, não gosta da nora: tudo é recíproco.

O de que uma madrasta menos gosta no mundo são os filhos do marido: quanto mais ama o marido, mais madrasta é.

As madrastas tornam desertas cidades e aldeias e não povoam menos a terra de mendigos, vagabundos, criados e escravos, que a pobreza.

G“ e H“ são vizinhos de campo, e suas terras são contíguas; habitam uma região deserta e solitária; afastados das cidades e de todo convívio, pareceria que a fuga de uma completa solidão ou o amor da convivência devesse uni-los por recíproca afeição; no entanto é difícil exprimir a bagatela que os fez romper, e os torna implacáveis um para o outro, e perpetuará seus ódios nos seus descendentes. Nunca pais, e mesmo irmãos, disputaram por coisa menor.

Supondo que só existam hoje dois homens na terra que a possuam sozinhos, e a dividam entre si, estou convencido de que nascerá logo entre eles algum motivo de rompimento, quando não fosse pelos limites.

Às vezes é mais simples e mais útil se enquadrar aos outros do que fazer os outros se ajustarem a nós.

Aproximo-me de uma cidadezinha; já cheguei numa elevação de onde a vejo. Está situada a meia encosta; um rio banha seus muros e corre depois numa bela campina: tem uma floresta espessa que a cobre de ventos frios e brisas frescas. Vejo-a numa luz tão favorável que conto suas torres e campanários; ela me parece pintada na encosta da colina. Exclamo satisfeito: que prazer viver sob um céu tão lindo, em tão delicioso lugar! Desço para a cidade, onde mal me deitei duas noites e já pareço com aqueles que ali habitam: quero sair de lá.

Há uma coisa que nunca se viu sob o céus e segundo todas as aparências, nunca se verá: é uma cidade pequena que não esteja dividida em partidos; onde as famílias sejam unidas e os primos se vejam com confiança; onde um casamento não gere guerra civil; onde a querela dos partidos não desperte a todo momento, por fraude, incenso e pão bento, procissões e enterros; de onde se baniram os linguarudos, a mentira e a maledicência: onde se vejam falar juntos o juiz e o prefeito, os eleitores e os assessores; onde o deão viva bem com o cônego, onde os cônegos não desdenhem os capelães e estes suportem os padres-mestres.

Os provincianos e os tolos estão sempre prontos a se zangarem e pensarem, que se está zombando deles, ou os desprezando; nunca se deve arriscar uma brincadeira, mesmo a mais leve e mais permissível, se não com pessoas polidas ou inteligentes.

Não se vencem os nobres: eles se defendem com seu poder; nem os plebeus: eles nos repelem pelo quem vem lá?

Tudo o que é mérito se sente, se discerne, se adivinha reciprocamente: quem quiser ser apreciado deve viver com pessoas apreciáveis.

Aquele que está numa eminência acima dos outros que o põe a coberto de resposta nunca deve fazer uma caçoada ferina.

Há pequenos defeitos que de boa vontade se abandonam à censura e dos quais não odiamos ser criticados; defeitos assim é que devemos escolher para criticar nos outros.

Rir das pessoas inteligentes é privilégio dos tolos: eles são, no mundo, o que os bobos são na corte, quero dizer, inconseqüentes.

A zombaria é, muitas vezes, indigência de espirito.

Você pensa que o engana; se ele finge enganado, quem se engana mais, ele ou você?

Se você observar com cuidado quem são as pessoas que não podem louvar, reprovam sempre, não estão contentes com ninguém, reconhecerá que são as mesmas com quem ninguém está contente.

O desdém e a presunção na sociedade atraem precisamente o contrário do que se procura, se o que se quer é ser apreciado.

O prazer da sociedade entre amigos se cultiva com uma semelhança de gostos no que concerne aos costumes, e por alguma diferença de opiniões sobre as ciências; assim, ou se solidariza com seus sentimentos, ou se exercita e se instrui pela disputa.

Não se pode ir longe na amizade, se não se está disposto a perdoar, uns aos outros, os pequenos defeitos.

Quantas belas e inúteis razões a mostrar àquele que está numa grande adversidade, para tentar tranqüilizá-lo! As coisas externas a que se dá o nome de acontecimentos são às vezes mais fortes que a razão e a natureza. Coma, durma, não se deixe morrer de pesar, pense em viver: arengas frias, e que, pretendem o impossível. Dizer: será razoável inquietar-se tanto? não será dizer: está louco em ser infeliz?

O conselho, tão necessário para os negócios, é, às vezes, na sociedade, prejudicial a quem o dá e inútil a quem o recebe: sobre os costumes, faz observar defeitos que não se confessam, ou que se julga serem virtudes; sobre as obras, riscam trechos que parecem ao autor admiráveis, onde ele pensa ter sobrepujado a si mesmo. Você perde assim a confiança dos amigos, sem tê-los tornado melhores nem mais capazes.

Viu-se, não há muito tempo, um grupo de pessoas(28) dos dois sexos, ligadas em conjunto pela conversação, e por um comércio de espírito: deixavam ao vulgo a arte de falar de maneira inteligível; uma coisa dita entre eles com pouca clareza puxava outra ainda mais obscura, sobre a qual sé excediam em verdadeiros enigmas, sempre seguidos de grandes aplausos, por tudo o que eles chamavam delicadeza, sentimentos, forma e finura de expressão; chegaram, finalmente, a não ser mais entendidos, e a não se entenderem. Não era preciso, para dar assunto a essas conversas, nem bom senso, nem raciocínio, nem memória, nem a menor capacidade; era preciso inteligência, não da melhor, mas da que é falsa, e onde a imaginação tem muita parte.

Eu sei, Teobaldo, você envelheceu, mas quereria que eu acreditasse que você decaiu, que não é mais poeta nem belo espírito, que é presentemente tão mau juiz de todo gênero de obra quanto medíocre autor, que não tem mais nada de natural e delicado na conversação? Seu ar livre e presunçoso me tranqüiliza e me convence do contrário. Você é, portanto, hoje, tudo o que sempre foi, e talvez melhor; porque, se na sua idade você está tão vivo e impetuoso, que nome, Teobaldo, se devia lhe dar na sua juventude, quando você era a coqueluche ou a preocupação de certas mulheres que só juravam por você e sua palavra, que diziam: Isso é delicioso, que foi que ele disse?

Fala-se impetuosamente nas conversas, muitas vezes por vaidade ou por disposição, raramente com atenção bastante: preocupado com o desejo de responder ao que não se ouve, seguem-se suas idéias, que se explicam sem a menor consideração pelos argumentos dos outros; está-se bem longe de achar a verdade, ainda não se entrou em acordo sobre aquilo que se procura. Quem pudesse ouvir essas espécies de conversações e escrevê-las, faria ver às vezes boas coisas que não têm nenhuma conexão.

Reinou durante algum tempo uma espécie de conversação insípida e pueril que versava toda sobre questões frívolas que tinham relação com o coração e com aquilo a que se dá o nome de coração, e que se chama paixão ou ternura. A leitura de alguns romances tinha-a introduzido entre as melhores pessoas da cidade e da corte: desfizeram-se dela e a burguesia a recebeu com piadas e ditos equívocos.

Algumas mulheres da cidade têm a delicadeza de não saber ou não ousar dizer o nome de ruas, praças e alguns lugares públicos que elas não julgam.. bastante nobres para ser conhecidos. Elas dizem: O Louvre, A Praça Real: mas preferem usar circunlóquios e frases a pronunciarem certos nomes; e se lhes escapam, é pelo menos com alguma alteração da palavra e depois de alguns trejeitos que as animam: são nisso, menos naturais que as, mulheres da corte, que, precisando no discurso, do Mercado, da Cadeia, ou coisas semelhantes, dizem: O Mercado, A Cadeia.

Se se finge às vezes não lembrar certos nomes que se pensa serem obscuros, e se, afeta corrompê-los ao pronunciá-los, é pela boa opinião que se tem do seu(29).

Dizem-se por bom humor e na liberdade da conversação, essas coisas frívolas que na verdade se dão como tais, e só se acham boas porque não são extremamente más. Essa maneira baixa de caçoar passou do povo, ao qual pertence, para uma grande parte da juventude da corte, que está infectada. É verdade que entra nisso muita tolice e grosseria para que se deva temer que ela se estenda mais longe, e faça maiores progressos num país que é o centro do bom gosto e da polidez; deve-se, entretanto, fazer aqueles que o praticam aborrecerem,. isso: porque se bem que nunca seja seriamente, ele não deixa de ocupar lugar no seu espírito e no convívio de alguma coisa melhor.

Entre dizer coisas más ou dizer boas coisas que todo mundo sabe, dando-as como novas, não tenho o que escolher.

“Luciano disse uma bela frase; contém uma expressão feliz de Claudien; e transcreve um trecho de Sêneca”: e aí uma grande seqüência de latim que se cita freqüentemente diante de pessoas que não entendem e fingem entender. O segredo seria ter um grande senso e bastante inteligência; porque ou se dispensariam os antigos, ou, depois de tê-los lido com cuidado, saber-se-iam escolher os melhores, e citá-los a propósito.

Hermágoras não sabe quem é o rei da Hungria; espanta-se de não ouvir fazer nenhuma referência ao rei da Boêmia: não lhe fale das guerras de Flandres e da Holanda, dispense-o, pelo menos, de responder: ele confunde as épocas, ignora quando elas começaram, quando acabaram: combates, sítios, tudo é novo para ele. Mas está instruído sobre a guerra dos gigantes, conta o desenvolvimento dela e os menores detalhes; nada lhe escapou: explica da mesma forma o horrível caos dos dois impérios, o babilônio e o assírio; conhece a fundo os egípcios e suas dinastias. Nunca viu Versalhes, nem verá; quase viu a torre de Babel; conta os seus andares; sabe quantos arquitetos dirigiram essa obra; sabe o nome dos arquitetos. Dir-se-ia que pensa que Henrique IV(30) é filho de Henrique III? Despreza conhecer algo sobre as casas da França, Áustria, Baviera: que minúcias! diz ele, enquanto recita de memória toda uma lista de reis dos medas ou de Babilônia, e os nomes de Apronal, Herigebal, Noesnemordach, Mardokempad lhe são tão familiares quanto para nós os de VALOIS e BOURBON. Pergunta se o Imperador se casou alguma vez; mas não precisa que ninguém lhe ensine se Ninus teve duas mulheres. Dizem-lhe que o rei goza perfeita saúde; e ele se recorda que Tetmosis, um rei do Egito, era valetudinário e tirava essa compleição do seu antepassado Alifarumtosis. Que é que ele não sabe? Que lhe será escondido dessa venerável antigüidade? Ele dirá que Semiramis ou segundo alguns, Serimaris, falava como seu filho Ninias; que não se distinguia entre os dois ao falarem: se era porque a mãe tinha voz máscula como o filho, ou o filho uma voz afeminada como a mãe, isso ele não ousa decidir. Revelar-nos-á que Nembrot era canhoto, e Sesostris ambidestro; que é um erro imaginar que um Artaxerxes fosse chamado Mão comprida pelo fato de seus braços descerem até os joelhos e não porque tivesse uma das mãos mais comprida que a outra; e acrescenta que há autores graves que afirmam que era a direita; que no entanto ele se julga fundamentado em sustentar que era a esquerda.

Ascânio é estatuário, Hégion fundidor, Esquines mói greda e Cidias é rapaz inteligente: é sua profissão. Tem letreiro, estúdio, obras de encomenda é companheiros a quem não poderia entregar em mais de um mês as estâncias que prometeu, se não faltasse com a palavra a Dositeu, que lhe encomendou uma elegia; um idílio está em andamento: é. para Crântor, que o apressa e lhe deixa esperar rico salário. Prosa, verso, que deseja? Ele aceita bem uma e outro. Peça-lhe cartas de consolação ou sobre ausência, ele as fará; se quiser já feitas, entre na loja dele, onde há para escolher. Tem um amigo que não tem outra função na terra além de prometê-lo muito tempo a certas pessoas e apresentá-lo afinal, nos salões, como homem invulgar e de conversa agradável; e aí, assim que o músico canta e o tocador de alaúde toca seu alaúde diante das pessoas a quem ele foi prometido, Cidias, depois de ter tossido, ajeitado os punhos, estendido as mãos e aberto os dedos, divulga gravemente seus pensamentos quintessenciados e raciocínios sofisticados. Diferente daqueles que, de acordo com os princípios, e conhecendo que a razão ou a verdade é uma só, arrancam a palavra uns aos outros para chegar a acordo sobre seus sentimentos, ele só abre a boca para contradizer: “Parece-me, diz graciosamente, que é exatamente o contrário do que o senhor acaba de dizer”; ou: “não posso compartir da sua opinião”; ou então: “isso antigamente foi uma obsessão minha, como agora é sua; mas... há três coisas, acrescenta ele, a considerar”... E acrescenta uma quarta: falador cacete que mal pôs o pé num salão já procura algumas mulheres junto às quais possa se insinuar, enfeitar-se de inteligência cintilante e de filosofia e pôr em ação suas concepções singulares: porque, falando ou escrevendo, ele não deve ser suspeitado de ter em vista o verdadeiro ou o falso, o razoável ou o ridículo; ele evita unicamente estar de acordo com os outros, e ter a mesma opinião de alguém: também espera, num grupo, que cada um tenha se explicado sobre o assunto que se oferece, ou que às vezes ele mesmo provocou, para. dizer dogmaticamente coisas completamente novas, mas, na sua opinião, decisivas e irreplicáveis. Cidias se iguala a Luciano e Sêneca(31), põe-se acima de Platão, Virgílio e Teóocrito; e seu adulador tem o cuidado de confirmá-lo toda manhã nessa opinião. Unido, por gosto e interesse aos que desprezam Homero, espera calmamente que os homens desabusados prefiram os poetas modernos; põe-se nesse caso à frente destes últimos, e sabe a quem concede o segundo lugar. É, numa palavra, um composto de pedante é precioso, feito para ser admirado pela burguesia e pela província, no qual, entretanto, não se vê nada de grande além da opinião que ele tem de si mesmo.

É a ignorância profunda que inspira o tom dogmático. Aquele que nada sabe pensa ensinar aos outros o que acaba de aprender; aquele que sabe muito mal chega a pensar que o que diz possa ser ignorado, e fala com mais indiferença.

As maiores coisas só precisam ser ditas simplesmente; elas se estragam com a ênfase: é preciso dizer nobremente as pequenas; elas só se sustentam pela expressão, o tom e a maneira.

Parece-me que se dizem as coisas com mais finura do que se pode ter ao escrevê-las.

Só um bom nascimento ou uma boa educação torna os homens capazes de guardar um segredo.

Toda confiança é perigosa, se não é total: há poucas conjunturas em que não se arrisque dizer tudo ou tudo esconder. Já se disse demais sobre seu segredo àquele a quem se julga dever ocultar uma circunstância.

Há pessoas que prometem segredo e elas mesmas o revelam, sem querer; não mexem com os lábios e nós as ouvimos: lê-se em seu rosto e nos olhos, vê-se através de seu peito; são transparentes: outras não dizem precisamente uma coisa que lhes foi confiada; mas falam e agem de maneira que a gente a descubra por si; finalmente, alguns desprezam o seu segredo, qualquer que seja a conseqüência que possa ter; “É um mistério, fulano me comunicou, e me proibiu dizê-lo”, e o dizem.

Toda revelação de um segredo é culpa daquele que o confiou.

Nicandro conversa com Elisa sobre a maneira agradável e doce com que viveu com sua mulher, desde o dia em que o escolheu até à morte dela: já disse que lamenta que ela não lhe tenha deixado filhos, e repete; fala das casas que tem na cidade, é logo de umas terras que tem no campo; calcula a renda que essas terras lhe dão; descreve a planta dos prédios, descreve a situação, exagera a comodidade dos apartamentos, assim como a riqueza e elegância dos móveis. Garante que, gosta da boa vida e do bom passadio; queixa-se de que a mulher não gostava bastante do jogo e da sociedade. Você é tão rico, dizia-lhe um dos amigos, por que não compra esse cargo? Por que não fazer essa aquisição, que aumentaria sua propriedade? Pensam, acrescenta ele, que eu tenho mais do que realmente possuo. Não esquece sua linhagem e parentescos: O sr. superintendente, que é meu primo; a esposa do chanceler, que é minha parenta: eis seu estilo. Conta um fato que prova o descontentamento que deve ter dos seus mais próximos, e justamente daqueles que são seus herdeiros: Estou errado? diz ele a Elisa; tenho motivo para querer-lhes bem? E ele próprio faz de juiz. Insinua depois que tem uma saúde fraca e consumida; e fala da sepultura em que deve ser enterrado. Insinuante, lisongeiro, oficioso, em relação a todas as pessoas que encontra perto da pessoa a quem aspira. Mas Elisa não tem coragem de ser rica casando-se com ele. Anunciam, no momento em que ele está, falando, um cavalheiro, que só com sua presença desmonta a bateria do homem da cidade: ele se levanta desconcertado e aflito e vai dizer noutro lugar que deseja casar de novo.

O homem de juízo às vezes evita o mundo, por medo de ser importunado.


 

DOS BENS DE FORTUNA

 

Um homem rico pode comer entremets, fazer pintar seus lambrequins e suas alcovas, gozar um palácio no campo e outro na cidade, ter grande equipagem, pôr um duque na família e fazer de seu filho grande senhor: isso é justo e da sua alçada. Mas talvez pertença a outros o viver contentes.

Um grande nascimento nobre ou grande fortuna anuncia o mérito e o faz notar mais cedo.

O que justifica o tolo ambicioso da sua ambição é o cuidado que se toma, se ele faz grande fortuna, de achar nele um mérito que nunca teve, e tão grande quanto ele pensa ter.

À medida que o favor e grandes bens se retiram de um homem, deixam ver o ridículo que cobriam e que estava ali sem que ninguém percebesse.

Se não se visse com os próprios olhos, poder-se-ia jamais imaginar a estranha desproporção que o mais ou o menos moedas faz entre os homens?

Esse mais ou esse menos determina à espada, à toga, ou à Igreja: quase não existe outra vocação.

Dois negociantes que eram vizinhos, e faziam o mesmo negócio, tiveram muito diversa fortuna. Tinham, cada um, uma filha única; amamentadas juntas viveram nessa familiaridade que dão a mesma idade e mesma condição: uma das duas, para sair da extrema miséria, procura se empregar; entra a serviço de uma dama de alta nobreza, uma das primeiras da corte: sua companheira.

Se o financista erra o golpe, os cortesãos dizem dele: é um burguês, um tipo insignificante, um desastrado; se. tem sucesso, pedem-lhe a filha.

Alguns aprenderam, na juventude, um certo ofício, para exercer outro muito diferente o resto da vida.

Um homem é feio, baixinho, pouco inteligente. Dizem-me em segredo: tem cinqüenta mil libras de renda; isso é com ele; ele não me fará nem pior nem melhor se eu começar a olhá-lo com outros olhos; e se eu não puder deixar de fazer de outra forma, que tolice!

Projeto bem vão é o de querer levar para o ridículo um homem muito estúpido e muito rico: os gozadores ficam do lado dele.

N., com um porteiro brusco, grosseiro, tirante a suíço, com um vestíbulo e antecâmara, por pouco que aí faça mofar alguém e perder tempo, e apareça enfim com rosto grave e andar medido, ouça um pouco e não conduza até à porta, por subalterno que seja noutro lugar, fará sentir de si alguma coisa que se aproxima da consideração.

Vou, Clitifon, à sua porta; a necessidade que tenho de falar com você me põe para fora da cama e do meu quarto; praza aos céus que eu não fosse seu cliente nem impertinente! Seus escravos me dizem que você é invisível e que só pode me atender daqui a uma hora: volto antes do tempo que me marcaram, e eles me dizem que você saiu.

Que é que você está fazendo, Clitifon, nesse canto escondido de seu apartamento, tão trabalhoso que o impede de me ouvir? Está alinhavando memórias, coligindo um registro, subscrevendo, abrindo parágrafos? Eu só tinha uma coisa que lhe pedir, e você uma palavra a me responder, sim ou não. Quer ser original? Preste serviço aos que dependem de você: será ainda mais com essa conduta do que não se deixando ver. O homem importante e ocupadíssimo, que por sua vez precisa de meus ofícios, venha à solidão de meu gabinete! O filósofo é acessível; não mandarei voltar noutro dia. Você me encontrará sobre os livros de Platão que tratam da espiritualidade da alma e da distinção entre ela e o corpo, ou, pena na mão, calculando as distâncias de Saturno e de Júpiter: admiro Deus em suas obras, e procuro, pelo conhecimento da verdade, regular meu espírito e me tornar melhor. Entre, todas as portas estão abertas para você: minha antecâmara não é feita para ai se cacetearem esperando por mim; venha até onde estou sem se fazer anunciar: você me traz algo mais precioso que a prata e o ouro, se é uma ocasião de lhe prestar serviço: fale, que é que você quer que eu lhe faça? Devo largar meus livros, meus estudos, minha obra, esta linha que está começada? Que interrupção feliz para mim, aquela que é útil a você! O homem que maneja com dinheiro, o homem de negócios, é um urso que não se poderia domesticar: dificilmente podemos vê-lo na sua jaula um momento e logo, depois não se vê mais. O homem de letras, ao contrário, é trivial como um poste na esquina das praças, todos o vêm, a toda hora, em todos os estados, na mesa, na cama, nu, vestido, são ou enfermo; ele não pode ser importante, nem quer sê-lo.

Não invejemos a certa espécie de gente suas grandes riquezas: eles as têm à custa de ônus que não nos, daria bom cômodo. Estragaram seu repouso, sua saúde, sua felicidade e sua consciência, para consegui-las: isso é caro demais, e não há nada a ganhar por esse preço.

Os P. T. S. nos fazem sentir todas as paixões, uma após outra. Começa-se pelo desprezo, por causa da sua obscuridade. Em seguida os invejamos, odiamos, tememos, apreciamos às vezes, e os respeitamos. Vive-se bastante para acabar, em relação a eles, pela compaixão.

Sósio passou, da libré, por uma pequena cobrança, a uma granja; e pelas concussões, violências, abuso que fez de seus poderes, elevou-se afinal a alguma posição, sobre a ruína de diversas famílias: tornou-se nobre por ordenação, e só lhe faltava ser homem de bem; um lugar de mordomo fez esse prodígio.

Arfura ia sozinha a pé a caminho do grande pórtico de Santo, ouvia de longe o sermão de um carmelita ou de um doutor que ela só via obliquamente, e do qual perdia muitas palavras.

Sua virtude era obscura e sua devoção conhecida como sua pessoa. O marido entrou na oitava contribuição: que fortuna monstruosa em menos de seis anos! Ela só chega à igreja de carro; levam-lhe enorme cauda; o orador se interrompe enquanto ela escolhe lugar; ela o vê de frente e não perde nem uma palavra: há briga entre os padres para confessá-la; todos querem absolvê-la: o vigário a conquista.

Levam Creso ao cemitério: de todas as suas imensas riquezas, que o roubo e a concussão lhe tinham dado, e que ele esgotou com luxo e vida larga, não lhe sobrou o necessário para se fazer enterrar; morreu insolvável, sem bens, e assim privado de todos os socorros: não se viu em sua casa nem julepo, nem cordiais, nem médicos, nem o menor doutor(32) que lhe tivesse assegurado a salvação.

Champagne, saindo dum grande jantar que lhe dilatou o estômago, e nos doces vapores de um vinho de Avenay ou de Sillery, assina uma ordem que lhe apresentam, que priva de pão toda uma província e não lhe derem remédio: é desculpável: como é que se pode compreender, na primeira hora da digestão, que se possa em algum lugar morrer de fome?

Silvino, com seus dízimos, adquiriu nascimento nobre e outro nome. É senhor da paróquia em que seus avós pagavam tributo.

Antigamente não teria podido ser pagem de Cleóbulo: é seu genro.

Doro passa de liteira na via Apia, precedido por seus libertos e escravos, que afastam o povo para lhe dar passagem: só lhe faltam litores. Entra em Roma com esse cortejo, em que parece triunfar da humildade e pobreza de seu pai Sanga.

Não se pode utilizar a fortuna melhor do que faz Periandro ela lhe dá posição, crédito, autoridade; já não lhe pedem mais que conceda sua amizade: implora-se sua proteção. Começou por dizer de si mesmo, um homem da minha espécie; passou a dizer: um homem da minha qualidade; ele se apresenta como tal; e não há ninguém, entre aqueles a quem empresta dinheiro ou recebe à mesa, que,. sendo delicado, que irá contradizê-lo. Sua casa é soberba, o estilo dórico reina em todo o exterior; não é uma porta, um pórtico: será uma casa particular? Um templo? O povo chega a se enganar. Doro é o senhor que domina todo o quarteirão; é dele que se tem inveja e se queria ver a queda; é ele cuja mulher, pelo seu colar de pérolas, ganhou inimigas em todas as senhoras da vizinhança. Tudo se sustenta nesse homem; ainda nada se desmente dessa grandeza que ele adquiriu, da qual nada deve, porque já pagou. Por que seu pai, tão velho e tão caduco, não morreu vinte anos mais cedo, antes que se fizesse na sociedade menção de Periandro! Como poderá ele suportar esses odiosos editais(33) que revelam as condições e freqüentemente fazem vergonha à viúva e aos herdeiros? Conseguirá suprimi-los aos olhos de toda uma cidade invejosa, maligna, clarividente, e às escondidas de mil pessoas que desejam absolutamente tomar parte nas exéquias? Como se pode querer que faça de seu pai um homem nobre e talvez um homem honorável, ele que é messire?

Quantos homens parecem com essas árvores já fortes e idosas que se transplantam nos jardins, onde surpreendem os olhos de quem as vê postas em sítios bonitos nos quais não as viram crescer, não conhecem nem o seu começo nem os. seus progressos!

Se certos mortos voltassem ao mundo e vissem seus grandes nomes e as mais tituladas de suas terras, com seus castelos e casas antigas, possuídos por pessoas cujos pais foram talvez seus meeiros, que opinião poderiam ter do nosso século?

Nada faz melhor compreender o pouco que Deus pensa dar ao homem, abandonando-lhe as riquezas, o dinheiro, os grandes estabelecimentos e os outros bens, do que a distribuição que faz e o gênero de homens que são os mais providos dessas coisas.

Se você entrar nas cozinhas, onde se vê reduzido em arte e método o segredo de agradar seu paladar, e fazer com que você coma além do necessário; se você examinar detalhadamente todo o preparo das iguarias que devem compor o festim que lhe preparam; se olhar por que mãos passam, e todas as diferentes formas que tomam antes de se tornar uma iguaria deliciosa, e chegar a esse asseio e elegância que encantam seus olhos, e fazem-no hesitar na escolha e resolver provar de tudo; se você visse a refeição em outro lugar que não uma mesa bem servida, que porcaria! Que nojo! Se você for nos fundos de um teatro, e olhar os pesos, rodas, cordames que fazem os vôos e truques; se imaginar quantas pessoas entram na execução desses movimentos, que força de braços, que extensão de nervos eles empregam aí, dirá: São esses os princípios e elementos desse espetáculo tão bonito, tão natural, que parece animado e agindo sozinho? Exclamará: Quanto esforço! Quanta violência! Da mesma forma não procure aprofundar muito sobre a fortuna dos arrecadadores de impostos.

Esse rapaz tão robusto, tão florido, de tão boa saúde, é senhor de uma abadia e de outros benefícios: todos juntos lhe dão vinte mil libras de renda, que lhe é paga só em moedas de ouro. Há por aí cento e vinte famílias indigentes que não se esquentam durante o inverno, que não têm roupas para se cobrir, e muitas vezes não têm pão; sua pobreza é extrema e vergonhosa: que divisão! E isso não prova claramente um futuro?

Crisipo, homem jovem, e o primeiro nobre de sua raça, aspirava, há trinta anos, ver-se um dia com duas mil libras de renda por toda fortuna: isso era o cúmulo de seus desejos e sua alta ambição; assim disse ele, e todos se lembram disso. Chega, não sei por que caminhos, até dar de renda a uma de suas filhas, para dote, o que desejava ter como toda fortuna durante a vida: uma soma igual está contada nos seus cofres para cada um dos filhos que tem de prover; e tem uma porção de filhos: e isso apenas como adiantamento de herança; há outros bens a receber depois de sua morte: ele ainda vive, se bem que já muito velho, e passa o resto de seus dias trabalhando para enriquecer.

Deixe Ergasto agir, e ele exigirá um tributo de todos os que bebem água no rio, ou andam na terra firme. Sabe converter em ouro até os caniços, os juncos e as urtigas; ouve todas as propostas e propõe tudo o que ouviu. O que o príncipe dá aos outros; é à custa de Ergasto, e só lhes concede as graças que eram devidas a ele: é uma fome insaciável de ter e de possuir; traficaria com as artes e as ciências e meteria nisso até a harmonia. Seria necessário, se lhe dessem ouvidos, que o povo, para ter o prazer de vê-lo rico, com matilha e cavalariça, perdesse a lembrança da música de Orfeu e se contentasse com a sua.

Não discuta com Criton, ele só se convence dos próprios argumentos.

A armadilha está feita para aqueles a quem seu cargo e sua terra, ou o que possui, fizer inveja: ele imporá condições extravagantes. Não há nenhuma consideração e nenhuma compostura a esperar de um homem tão cheio de seus interesses e tão inimigo dos interesses dos outros: ele precisa de uma vitima.

Bontino, diz o povo, faz retiros e se fecha durante oito dias com seus santos:, eles têm suas meditações e ele tem as dele.

Muitas vezes o povo tem prazer com a tragédia; vê morrerem no teatro do mundo as personagens mais odiosas, que mais fizeram mal, em diversas cenas, e que ele mais odiou.

Se se repartir a vida dos P. T. S. (arrecadadores de impostos) em duas porções iguais, a primeira, viva e ativa, está toda ocupada em afligir o povo; a segunda, vizinha da morte, em se denunciarem e arruinarem uns aos outros.

Esse homem que fez a fortuna de diversos, que fez a sua, não pode sustentar a dele, nem garantir, antes da morte, a mulher e os filhos; vivem escondidos e infelizes: ainda que você esteja a par da miséria em que se acham, não poderá pensar em abrandá-la; na verdade você não pode, porque sustenta mesa, e constrói; mas conserva, por gratidão, um retrato do seu benfeitor, que passou, — diga-se de passagem —, do gabinete para a antecâmara: quantos cuidados! Ele bem podia ir parar no guarda-móveis.

Há uma dureza natural; há outra de condição, de estado. Tira-se desta, como da primeira, .o bastante para não se comover com a miséria dos outros, diria mesmo, o bastante para não lamentar as desgraças da sua família! Um. bom financista não chora os amigos, nem a mulher nem os filhos.

Fuja, retire-se; você não está bastante longe. Estou, diz você, no, outro trópico. Passe para o pólo, e no outro hemisfério; suba às estrelas, se puder. Eis-me. Muito bem: agora está em segurança. Descubro na terra um homem ávido; insaciável, que quer, à custa de tudo o que encontrar no seu caminho e ao seu alcance, e por mais que isso possa custar aos outros, prover apenas a si, aumentar sua fortuna, e se abarrotar de bens.

Fazer fortuna é uma frase tão bela, e que diz tão boa coisa, que é de uso universal. Reconhecemo-la em todas as línguas; ela agrada aos estrangeiros e aos bárbaros, reina na corte e na cidade; furou os claustros e pulou o muro das abadias de um e de outro sexo: não há lugares sagrados em que não tenha penetrado, deserto ou solidão em que seja desconhecida.

À força de fazer novos contratos, ou sentir o dinheiro aumentando nos cofres, acaba-se por se pensar ter cabeça, e quase a se julgar capaz de governar.

É preciso uma espécie de inteligência, nem a grande, nem a sublime, nem a forte, nem a delicada; eu não sei precisamente qual é, e espero que alguém queira me indicar qual seja.

É preciso menos inteligência que hábito ou experiência para fazer fortuna: só se pensa nisso tarde demais; e quando afinal se percebe, começa-se por erros que nem sempre se tem tempo de reparar: daí vem, talvez, o fato das fortunas serem tão raras.

Um homem de pouco gênio pode querer sobressair: descuida tudo; só pensa, da manhã à noite numa coisa: sobressair. Começou cedo, e desde sua adolescência, a se meter nos bons caminhos da fortuna: se encontra uma barreira que lhe fecha a passagem, desvia-se naturalmente, e vai à direita ou à esquerda, segundo vê num ou noutro lugar uma aparência; e se novos obstáculos o trapalham, volta ao atalho que deixara. É governado pela natureza das dificuldades, às vezes a vencê-las, às vezes a evitá-las ou a tomar outras medidas, seus interesses, usos, conjunturas, dirigem-no. Será preciso tão grandes talentos e tão boa cabeça a um viajante para seguir primeiro a caminho largo, e se o caminho está cheio e acidentado, tomar a terra, e ir através dos campos, depois voltar à primeira estrada, continuar nela, chegar ao termo? Será preciso tanta inteligência para ir aos seus fins? Será então um prodígio ver um tolo rico e conceituado?

Há até estúpidos, e ouso dizer: imbecis, que se colocam em belos lugares e sabem morrer na opulência sem que se deva suspeitar de terem contribuído, de nenhuma forma, com seu trabalho ou com o menor esforço, para isso; alguém os conduziu às nascentes de um rio, ou talvez só o acaso os fez encontrá-las; disseram-lhe: Quer água? apanhe. E ele apanhou a água.

Quando se é moço, muitas vezes se é pobre: ou ainda não se fez aquisições, ou as heranças ainda não vieram. A gente se torna rico e velho ao mesmo tempo; tão raro é poderem os homens reunir todas as vantagens! E se isso acontece a alguns, não há de que invejá-los: eles têm a perder com a morte o bastante para serem lamentados.

É preciso trinta anos para pensar na fortuna; aos cinqüenta está feita; constroi-se na velhice e se morre quando ainda se está às voltas com pintores e vidraceiros.

Qual o fruto de uma grande fortuna, se não gozar a vaidade, indústria, trabalho e esforço dos que vieram antes de nós, e trabalhar nós mesmos, plantando, construindo, adquirindo, para a posteridade?

Abrem-se as portas e se ostenta todas, as manhãs para enganar o mundo: fecham-se, à noite, depois de ter enganado o dia inteiro.

O negociante faz relógios para dar de sua mercadoria o que há de pior ele tem o lustro e as luzes indiretas para esconder os seus defeitos, e fazer com que pareça boa; tem a alta dos preços para vendê-la mais caro do que ela vale; as marcas falsas e misteriosas para que se pense dar o justo valor; um mau medidor para dar o menos possível; uma balança viciada a fim de que aquele que comprou pague o seu peso em ouro.

Em todas as condições, o pobre está bem próximo do homem de bem, e o opulento não está longe da ladroeira. A capacidade e a habilidade não levam a grandes riquezas.

Pode-se enriquecer em qualquer arte ou comércio pela ostentação de uma certa probidade.

De todos os meios. de receber benefícios, o mais curto e melhor é fazer as pessoas verem claramente o interesse que têm em fazer bem a você.

Os homens obrigados pelas necessidades da vida, e às vezes pelo desejo de lucro, ou de glória, cultivam talentos profanos, ou se dedicam a profissões equívocas, das quais escondem a si mesmos, por muito tempo, o perigo e as conseqüências. Deixam-nas depois por uma devoção discreta que nunca lhes vem senão depois que fizeram sua colheita, e já gozam fortuna bem estabelecida.

Há misérias sobre a terra que cortam o coração: falta a muitos até o alimento; temem o inverno; têm medo de viver. Em outros lugares comem-se frutos precoces, forçam-se a terra e as estações para satisfazer a gula; simples burgueses, só porque eram ricos, tiveram a audácia de engolir num só bocado a comida de cem famílias. Agüente-se quem puder contra tão grandes excessos; eu não quero ser, se puder, nem infeliz nem feliz: me abandono e me refugio na mediocridade.

Sabe-se que os pobres sofrem com tudo o que lhes falta, e que ninguém os alivia; mas se é verdade que os ricos se tornam coléricos, é pela menor coisa que lhes possa faltar, ou quando alguém quer resistir-lhes.

É rico aquele que recebe mais do que consome; é pobre aquele cuja despesa excede a receita.

Fulano, com dois milhões de renda, pode ter um déficit, no fim de cada ano, de quinhentas mil libras.

Não há nada que sustente mais tempo do que uma fortuna medíocre: não há nada, cujo fim se veja melhor do que uma grande fortuna.

A ocasião próxima da pobreza é a das grandes riquezas.

Se é verdade que se seja rico de tudo aquilo de que não se precisa, um homem muito rico é um homem muito atilado.

Se é verdade que se seja pobre de todas as coisas que se desejam, o ambicioso e o avaro vegetam em extrema pobreza.

As paixões tiranizam o homem; e a ambição suspende nele as outras paixões e lhe dá por algum tempo as aparências de todas as virtudes. Esse Trifão que tem todos os vícios, pensei fosse sóbrio, casto liberal, humilde e até devoto: e ainda o pensaria, se não tivesse, afinal, feito fortuna.

Ninguém desiste do desejo de possuir e se engrandecer: a bilis avança e a morte se aproxima; com o rosto murcho e as pernas já fracas, ainda se diz: Minha fortuna, meu estabelecimento.

Só há no mundo duas maneiras de se elevar: por seu próprio esforço ou pela imbecilidade dos outros.

Os traços descobrem a compleição e os costumes; mas a fisionomia designa os bens de fortuna: o mais ou o menos de mil libras de renda se acha escrito no rosto.

Crisanto, homem opulento e impertinente, não quer ser visto com Eugênio, que é homem de mérito, mas pobre: pensa ele que ficaria desonrado. Eugênio tem para com Crisanto as mesmas disposições: não correm risco de se abalroarem.

Quando vejo certas pessoas que me agradavam antigamente pela sua civilidade, esperar, agora, que eu as saúde, e estar de pé atrás comigo digo de mim para mim: Muito bem, encantado; melhor: para eles: você verá que esse homem está melhor instalado, melhor mobiliado e melhor alimentado que de costume; entrou há meses em algum negócio no qual já teve lucro razoável.

Deus queira que não chegue, em pouco tempo, a me desprezar!

Se os pensamentos, os livros e os autores dependessem dos ricos e daqueles que fizeram grande fortuna, que proscrição! Não haveria mais apelação: que tom, que ascendente tomariam sobre os sábios! Que majestade não observam eles em relação a esses homens desprezíveis cujo mérito não os colocou nem enriqueceu, e que ainda estão pensando em escrever judiciosamente!

É preciso confessar, o presente é dos ricos, e o futuro é dos virtuosos e dos capazes. HOMERO ainda vive, e viverá sempre; os recebedores de direitos, os publicanos, não existem mais: existiram algum dia? Sua pátria, seus nomes são conhecidos?. Houve arrecadadores de impostos na Grécia? Que fim levaram essas personagens que desprezavam Homero, que só pensavam, na rua, em evitá-lo, não correspondiam à sua saudação, ou o saudavam pelo nome, não desdenhavam associá-lo à sua mesa, olhavam-no como um homem que não era rico e fazia um livro?

Que fim terão os Fauconnets?(34). Irão tão longe na posteridade quanto DESCARTES, que nasceu na França e morreu na Suécia?(35).

O mesmo orgulho que faz elevar-se altivamente acima dos seus inferiores, faz rastejar vilmente diante dos que estão acima de si. É próprio desse vício, que não se funda sobre o mérito pessoal nem sobre a virtude, e sim sobre as riquezas, cargos, crédito, e sobre ciências vãs, levar-nos igualmente a desprezar os que têm menos essa espécie de bens do que nós e a apreciar demais aqueles que têm uma medida que excede à nossa.

Há almas sujas, amassadas com lama e sujeira, tomadas pelo desejo de ganho e interesse, como as belas almas o são pelo da glória e da virtude: capazes de uma única volúpia, que é a de adquirir ou de não perder; ansiosas e ávidas pela décima prestação, a baixa dos preços, a queda do curso das moedas, mergulhadas e como que submersas nos contratos, títulos, pergaminhos. Gente dessa marca não é parente, nem amigo, nem concidadão, nem cristão, nem pode ser homem: é feita de dinheiro.

Comecemos por excetuar essas almas nobres e corajosas, se ainda as existem sobre a terra, caridosas, esmeradas em fazer o bem, que nenhuma necessidade, nenhuma desproporção, nenhum artifício pode separar daqueles que uma vez escolheram para amigos; e depois dessa precaução, digamos audaciosamente uma coisa triste e dolorosa de se imaginar: não há ninguém no mundo bastante ligado a nós por conveniência e benevolência, que nos ame, nos aprecie, nos faça mil ofertas de serviço, e às vezes nos preste favores, que não tenha em si, por apego ao seu interesse, disposições muito próximas a romper conosco e se tornar nosso inimigo.

Enquanto Oronte avança em anos, fortuna e renda, uma menina nasce numa família qualquer, se educa, cresce, torna-se bela, entra no décimo sexto ano; aos cinqüenta anos ele se apresenta para casar-se com ela, jovem, bela inteligente: esse homem, sem nascimento, sem inteligência e sem o menor mérito, é preferido a todos os rivais.

O casamento, que deveria ser, para um homem, fonte de todos os bens, é para ele, muitas vezes, pela disposição de fortuna, um fardo pesado sob o qual sucumbe: é aí que uma mulher e filhos são a violenta tentação à fraude, à mentira, e aos ganhos ilícitos. Ele se acha entre o roubo e a indigência: estranha situação!

Casar com uma viúva, em bom francês, significa fazer fortuna: mas nem sempre faz aquilo que significa.

Aquele que da divisão entre irmãos ficou com o bastante para viver folgadamente como bom prático, quer ser oficial; o simples oficial se faz magistrado e o magistrado quer presidir; e assim acontece em todas as condições em que os homens vegetam, apertados e indigentes, depois de ter tentado acima de sua fortuna e, por assim dizer, forçado seu destino, ao mesmo tempo incapazes de não querer ser ricos e de enriquecerem.

Jante bem, Clearco, ceie, ponha lenha no fogo, compre um capote, mande forrar o quarto de tapetes: você não gosta do seu herdeiro, não o conhece, não o tem.

Jovem, a gente se conserva para a velhice: velho, a gente se poupa para a morte; o herdeiro pródigo paga funerais soberbos e devora o resto.

O avaro despende mais, morto, num só dia, do que fazia, vivo, em dez anos; e seu herdeiro mais em dez meses do que soube fazer ele próprio em toda a vida.

O que se prodigaliza, tira-se do herdeiro: o que se poupa sordidamente, tira-se de si mesmo. O meio termo é justiça para si e para os outros.

Triste condição do homem, e que faz aborrecer a vida! É preciso suar, velar, curvar-se, depender, para ter alguma fortuna, ou devê-la à agonia de nosso próximo: aquele que se impede de desejar que seu pai se vá depressa, é um homem de bem.

O caráter de quem herda de alguém incide com o do adulador: nós não somos mais adulados, melhor obedecidos, mais seguidos, mais cercados, mais cultivados, mais acariciados por ninguém em nossa vida do que por aquele que pensa ganhar com nossa morte e deseja que ela chegue.

Todos os homens, pelos cargos diferentes, pelos títulos e heranças se consideram herdeiros uns dos outros, e cultivam, por esse interesse, durante todo o curso da vida, um desejo secreto e disfarçado da morte de outrem: o mais feliz, em cada condição, é aquele que mais fará perder com, sua morte, e deixará o que perde ao seu sucessor.

Diz-se do jogo que ele iguala as condições; mas às vezes elas se acham tão estranhamente desproporcionadas e há entre tal e tal condição um abismo. de permeio, tão imenso e profundo, que os olhos sofrem de ver tais extremidades se aproximarem: é como uma música que desafina, cores que não combinam, palavrões que ofendem o ouvido, como esses ruídos ou sons que fazem fremir; é, numa palavra, uma transmutação de todas as conveniências. Se me afirmam que isso é uso em todo o Ocidente, respondo que talvez seja essa uma das coisas que nos tornam bárbaros diante da outra parte do mundo, e que os orientais que vêm até nós registram nos seus cadernos de viagem: não duvido até que esse excesso de familiaridade lhes desagrade mais do que a nós suas zumbaias(36) e outras prosternações.

Uma assembléia de estados, ou as câmaras reunidas para um assunto de suma importância, não oferece aos olhos nada de tão grave e sério como uma mesa de pessoas que jogam jogo forte: triste severidade reina no seu rosto; implacáveis uns para com os outros, e irreconciliáveis inimigos enquanto dura a sessão, não reconhecem mais ligações, nem parentesco, nem nascimento, nem distinções. Só a sorte, cega e feroz divindade, preside o círculo e aí decide soberanamente: honram-na todos por um silêncio profundo, e por uma atenção da qual em qualquer outro lugar são incapazes; todas as paixões, como que suspensas, cedem a uma só: o cortesão então não é amável nem lisonjeiro, nem condescendente, nem mesmo devoto.

Não se reconhece mais, naqueles que o jogo e o lucro tornaram ilustres, o menor vestígio de sua primeira condição. Perdem de vista seus semelhantes, alcançam os mais ilustres senhores! É verdade que a sorte dos dados ou do lansquenete os devolve muitas vezes ao lugar em que foi buscá-los.

Não me admiro que haja casas de jogo públicas como outras tantas armadilhas à avareza dos homens, como abismos em que o dinheiro dos particulares vem se despedaçar e se perder; que partam desses lugares emissários para saber, à hora marcada, quem desceu a terra com dinheiro fresco de nova emissão, quem ganhou um processo que lhe rendeu grande soma, quem recebeu um presente, quem ganhou conderavelmente no jogo, que filho-famílias acaba de receber herança rica, ou que caixeiro imprudente quer arriscar numa cartada os depósitos de sua caixa.

É mister sujo e indigno, é verdade, o de enganar; mas antigo, conhecido, praticado em todos os tempos por esse gênero de homens que eu chamo jogadores profissionais. A tabuleta está na porta; quase se lê ali: Aqui se engana de boa fé; por que quereriam eles dar-se por irreprocháveis? Quem não sabe que entrar e perder nessas casas é a mesma coisa? Que encontrem, no entanto, as vítimas necessárias à sua subsistência, eis o que me surpreende.

Mil pessoas se arruinam no jogo, e dizem friamente que não poderiam passar sem jogar: que desculpa! Haverá paixão, por mais violenta ou vergonhosa que seja, que não possa usar essa mesma linguagem? Seria admirável que se dissesse não ser possível passar sem roubar, assassinar, suicidar-se? Um jogo pavoroso, continuado, sem medida, sem limites, no qual só se tem em vista a ruína total do adversário, no qual se é transportado pelo desejo do ganho, desesperado quando se perde, consumido pela avareza, no qual se expõe sobre uma carta, ou na sorte do dado, a sua própria fortuna, a de sua mulher e de seus filhos, será coisa permitida, ou tolerável? Não será preciso, às vezes, fazer a si mesmo uma violência maior, quando, levado pelo jogo até a ruína total, será preciso até que se passe sem roupas e alimentação e sem poder fornecê-las à família?

Não permito a ninguém ser velhaco; mas permito a um velhaco jogar no jogo forte: proíbo isso a um homem honesto. É uma puerilidade grande demais expor-se a tão grande perda.

Só há uma aflição durável: é a que vem da perda de, bens; o tempo, que adoça todos as outras, azeda esta. Sentimos a todo momento, no curso da nossa vida, quanto o que perdemos nos faz falta.

É agradável conviver com aquele que não se serve de seus bens para casar as filhas, pagar as dívidas ou fazer contratos, contanto que não se seja seu filho, nem sua mulher.

Nem as perturbações, Zenóbia, que agitam seu império, nem a guerra que você sustenta virilmente contra uma nação poderosa desde a morte do rei seu esposo, nada diminuem da sua magnificência: você teria preferido, a qualquer outro lugar, as margens do Eufrates para aí levantar um soberbo edifício; o clima ali é são e temperado, a natureza é risonha; um bosque sagrado sombreia do lado do poente; os deuses da Síria, que às vezes habitam na terra, não poderiam escolher morada mais linda do que ali; o campo em torno é coberto de homens que talham e cortam, vão e vêm, rodam ou carreiam a madeira do Líbano, o bronze, o pórfiro; as polés e as máquinas gemem no ar e fazem esperar, àqueles que viajam para a Arábia, rever, ao voltar para seus lares, esse palácio terminado, nesse esplendor de que você quer dotá-lo antes de o habitar, você e os príncipes seus filhos. Não poupe nada, grande rainha; empregue o ouro e toda a arte dos melhores operários; que os Fidias e os Teuxis do seu século desenvolvam toda a ciência deles nos tetos e retábulos; trace vastos e deliciosos jardins, cujo encanto seja tal que não pareçam feitos pela mão dos homens; esgote seus tesouros e sua indústria nessa obra incomparável; e depois que você tiver dado, Zenóbia, a última demão, algum desses pastores que habitam as areias vizinhas de Palmira, tornado rico pelas peagens de seus rios, comprará um dia, em dinheiro de contado, essa casa real, para embelezá-la e torná-la mais digna dele e de sua fortuna.

Esse palácio, esses móveis, esses jardins, essas belas águas, o encantam e fazem você exclamar à primeira vista diante de casa tão deliciosa, sobre a extrema felicidade do senhor que a possui. Ele não existe mais: não gozou dela tão agradavelmente nem tão tranqüilamente quanto você; nunca teve um dia sereno, nem uma noite tranqüila; afogou-se em dívidas para dar-lhe essa extraordinária beleza que agora maravilha você: os credores o expulsaram dali; ele voltou a cabeça, olhou-a uma última vez; e morreu de sentimento.

Não se poderia deixar de ver em certas famílias o que se chamam capricho do acaso ou os golpes da sorte: há cem anos atrás não se falava dessas famílias: elas não existiam. O céu, de repente, abriu-se em favores para elas: bens, honras, dignidades, choveram sobre elas em diversas prestações; nadam na prosperidade. Eumoltpe, um desses homens que não têm avós, teve ao menos um pai que se elevara tão alto, que tudo o que o filho pode desejar de melhor no decurso de uma longa vida foi chegar até ele; e chegou. Seria, nessas duas personagens, culminância de inteligência capacidade profunda? Seriam as circunstâncias? A fortuna, afinal, não lhes sorri mais: diverte-se em outros lugares, e trata a sua posteridade como tratou os seus antepassados.

A causa imediata da ruína e do desvio das pessoas das duas condições, a toga e a espada, é que só o passadio e não a fortuna, regula a despesa.

Se você nada esqueceu para sua fortuna, que trabalho! Se desprezou a menor coisa, que arrependimento!

Giton tem a tez fresca, o rosto cheio e as bochechas flácidas, olhar fixo e obstinado, ombros largos, cheios de chumaço, passo firme e decidido: fala com confiança; faz quem lhe fala repetir e só aprecia mediocremente o que lhe dizem; desdobra um enorme lenço e se assoa com estrépito; cospe muito longe e espirra muito alto; dorme de noite, e profundamente; ronca quando dorme com outros. Ocupa, na mesa e nos passeios, mais lugar que outro qualquer; fica no meio, passeando com os da sua igualha; para, todos param; continua a andar, todos andam; todos se regulam por ele: ele interrompe, emenda os que estão com a palavra; não o interrompem ouvem-no todo tempo que queira falar; têm a sua opinião, acreditam nas notícias que ele transmite. Se se senta, veja como afunda na poltrona, cruzando as pernas, fecha o sobrolho, abaixa o chapéu sobre os olhos para não ver ninguém, ou levanta-o depois e descobre a fronte por orgulho e audácia. É jovial, caçoista, impaciente, presunçoso, colérico, libertino, político, misterioso sobre os casos do tempo; presume ter talentos e inteligência. É rico.

Fédon tem os olhos fundos, pele afogueada, corpo seco, rosto magro: dorme pouco e sono leve; abstrato, sonhador, tem, com inteligência, o ar de um estúpido; esquece de dizer o que sabe, ou de falar em fatos que são do seu conhecimento: e se às vezes fala, sai-se mal; pensa importunar àqueles a quem fala; conta laconicamente, mas sem relevo; não se faz ouvir e não faz rir: aplaude, sorri ao que os outros lhe dizem, comparte da opinião dos outros; corre, voa para fazer-lhes pequenos favores; é condescendente, lisonjeiro, solícito; misterioso acerca de seus negócios, às vezes mentiroso; supersticioso, escrupuloso e tímido; anda de leve e timidamente; parece ter medo de esmagar a terra; anda com os olhos no chão; não ousa levantá-los para fixar os que passam: nunca faz parte do número daqueles que formam círculo para discutir; põe-se atrás de quem fala, recolhe furtivamente o que se diz, se retira se olham para ele. Não toma espaço e não ocupa lugar: vai de ombros fechados, chapéu baixado sobre os olhos para não ser visto; se comprime, e se encerra no seu capote: não há ruas nem galerias, por mais cheias de gente, em que ele não encontre um meio de passar sem esforço, e deslizar sem que o percebam; se o convidam a sentar-se, mal o ousa na beira de uma cadeira; fala baixo, livre, entretanto, sobre os negócios públicos, desgostoso com o século, mediocremente informado sobre os ministros e o ministério, só abre a boca para responder: tosse e se assoa sob o chapéu; cospe quase em cima de si mesmo, e espera que esteja sozinho para espirrar, ou, se isso lhe acontece, é sem que os circunstantes percebam; não regateia a ninguém saudação nem cumprimento. É pobre.


 

DA CIDADE

 

Em Paris todos se encontram, na certa, todas as noites, sem se falarem, como numa reunião pública, nas Alamedas e nas Tulherias, para se encararem e se desaprovarem uns aos outros.

Não se pode passar sem esse mundo de que não se gosta e do qual se zomba.

As pessoas esperam a passagem umas das outras, num passeio público; aí se passa revista um ao outro: carruagem, cavalos, librés, brasões, nada escapa aos olhos, tudo é curiosa ou malignamente observado; e segundo o melhor ou pior da equipagem, respeitam-se ou desdenham-se as pessoas.

Todo mundo conhece esse longo dique(37) que limita e une o leito do Sena, do lado em que entra em Paris, com o Marne, que acaba de receber: Os homens tomam banho aí durante os calores da canícula: chega-se a vê-los bem de perto atirarem-se n’água, e vê-los sair: é um divertimento. Quando essa estação ainda não chegou, as mulheres da cidade ainda não passeiam por ali, e quando passou, elas não passeiam mais(38).

Nesses lugares de concorrência geral em que as mulheres se reúnem para mostrar um belo tecido, e recolher o fruto de sua toalete, ninguém passeia com uma companheira por necessidade de conversação; a gente se junta para ter informações sobre o teatro, acostumar-se com o público, e se firmar contra a crítica: é precisamente aí que a gente se fala sem dizer nada, ou antes, que fala para os passantes, para aqueles mesmos por cujo favor a gente levanta a voz; gesticula-se, folga-se, curva-se negligentemente a cabeça, passa-se e repassa-se.

A cidade está dividida em diversas sociedades, que são como outras tantas repúblicas, que têm suas leis, seus usos, sua gíria, e suas piadas: enquanto esse grupo está bem unido e a mania subsiste, não se acha nada bem dito ou bem feito além daquilo que parte dos seus, e se é incapaz de apreciar o que vem de outras partes; chega-se até a desprezar as pessoas que não estão iniciadas nos seus mistérios. O homem mais inteligente, que o acaso tenha levado para o meio deles, lhes é estranho. Acha-se ali como num país longínquo, de que não conhece as estradas, nem a língua, nem os costumes, nem as leis: vê um povo que conversa, sussurra, fala ao ouvido, desanda a rir, e cai depois em silêncio fechado; perde o jeito, não acha como dizer uma só palavra, e não tem mesmo o que ouvir. Nunca falta aí um piadeiro que domina e, é como o herói do grupo: esse se encarregou da alegria dos outros, e faz sempre rir antes mesmo de ter falado. Se às vezes surge uma mulher que não toma parte nos seus passatempos, o grupo alegre não pode compreender como ela possa não saber rir das coisas que não entende, e pareça insensível a tolices que eles próprios só entendem porque foram eles que as fizeram: não lhe perdoam o tom de voz, nem o silêncio, nem o decote, nem o rosto,, nem o vestuário, nem seu ingresso, nem a maneira por que saiu. Entretanto não passam dois anos sobre uma mesma turma. Há sempre, desde o primeiro ano, sementes de divisão para brotar na que deve suceder. O interesse da beleza, os incidentes do jogo, e extravagância das refeições, que modestas no começo, logo degeneram em pirâmides de comida e banquetes suntuosos, perturbam a república, e acabam por lhe dar um golpe mortal: não se fala mais nessa nação que nas moscas do ano passado.

Há na cidade a grande e a pequena toga; e a primeira se vinga sobre a outra dos desdens da corte, e das pequenas humilhações que ali suporta: saber quais são seus limites, onde acaba a grande e onde começa a pequena, não é coisa fácil. Existe mesmo um corpo considerável que recusa ser da segunda ordem e ao qual se contesta a primeira: no entanto ele não se rende; procura, ao contrário, pela gravidade e pela prodigalidade, igualar-se à magistratura, ou só a custo cede a esta; ouve-se ela dizer que a nobreza de suas funções, a independência da profissão, o talento da palavra, e o mérito pessoal, pelo menos eqüivalem aos sacos de mil francos que o filho do arrecadador de impostos ou de banqueiro pagou pelo cargo..

Você quer sonhar de carruagem e repousar dentro dela? Depressa, torne seu livro ou seus papéis: vá lendo, dificilmente cumprimente as pessoas que passam nos veículos; elas irão julgá-lo muito ocupado; dirão: esse homem é laborioso, infatigável; leia, trabalhe, até nas ruas ou nas estradas: aprenda com o mais obscuro advogado que é preciso parecer sobrecarregado de negócios, juntar as sobrancelhas e pensar profundamente em nada; saber perder bebida e comida de propósito, mal aparecer em casa, eclipsar-se e diluir-se na sombra do escritório como um fantasma; esconder-se do público, evitar o teatro, deixá-lo para aqueles que não correm nenhum risco em se mostrar ali, aqueles que mal têm tempo de freqüentá-lo, os GOMONS, os DUHAMELS.

Certo número de jovens magistrados, pelos grandes bens e prazeres, associaram-se a alguns daqueles a que na corte se dá o nome de petimetres: eles os imitam; mantêm-se muito acima da gravidade da toga e se julgam dispensados, pela idade e pela fortuna, de ser prudentes e moderados. Tomam da corte o que ela tem de pior: apropriam-se da vaidade, do desleixo, intemperança, libertinagem, como se todos esses vícios lhes fossem devidos; e afetando assim um caráter afastado daquele que têm de sustentar, tornam-se afinal, segundo seus desejos, cópias fiéis de originais detestáveis.

Um homem de toga na cidade, e o mesmo homem na corte, são dois homens. Voltando para casa, retoma seus hábitos, sua estatura, e sua cara, que ali deixara: então já não é mais nem tão embaraçado nem tão honesto.

Os Crispins se cotizam e juntam na sua família até seis cavalos para aumentar uma equipagem que, com um enxame de pessoas de libré em que cada um forneceu sua parte, os faz triunfar na Alameda ou em Vincennes, e ir par a par com as recém casadas, com Jasão, que se arruina, e Trasão que quer se casar e já fez consignação.

Ouço falar dos Sannions, mesmo nome, mesmas armas; o ramo mais velho, o ramo caçula, os caçulas do segundo ramo: aqueles levam armas cheias, estes acrescentam um lambel(39), e os outros uma cercadura denticulada. Têm com os Bourbons, além da mesma cor, o mesmo metal; levam, como eles, duas e uma: não são flores de lis, mas se consolam disso; talvez de coração achem suas marcas tão honrosas quanto essa, e têm-nas comuns com grandes senhores que estão contentes com isso. A gente as vê sobre as insígnias e nos vitrais, sobre a porta do seu castelo, na pilastra do cadafalso, onde acabam de fazer enforcar um homem que merecia banimento: elas se oferecem aos olhos em toda parte; estão sobre os móveis e sobre as fechaduras; semeadas pelas carruagens: suas librés não desonram os brasões. De boa vontade diria aos Sannions: a, loucura de vocês é prematura, esperem ao menos que o século acabe sobre sua raça; aqueles que viram o avô de vocês, que lhe falaram, estão velhos, e não poderiam viver muito tempo; quem poderá dizer como eles: Aí ele mercava, e vendia muito caro?

Os Sannions e os Crispins querem ainda que se diga além do mais, que eles fazem grande despesa, e que não gostam de fazê-la: contam a história enorme e cacete de uma festa ou jantar que deram; falam no dinheiro que perderam no jogo, e lamentam em altas vozes aquele que não pensaram em perder. Falam baixinho e misteriosamente sobre certas mulheres; têm reciprocamente cem coisas engraçadas a se contarem; acabaram de fazer descobertas; comunicam uns aos outros que são pessoas de belas aventuras. Um deles, que se deitou tarde no campo, e queria dormir, levanta-se cedo, calça polainas, veste uma roupa de linho, passa um cordão de onde pende o polvarinho, ajeita os cabelos, pega uma espingarda; ei-lo caçador, se soubesse atirar bem: volta de noite suado e cansadíssimo, sem ter matado nada; volta à caça no dia seguinte e passa o dia inteiro deixando escapar tordos ou perdizes.

Outro, com alguns cachorros vagabundos, tinha vontade de dizer: minha matilha: conhece uma cabana de caça, mete-se lá, está açulando, entra no abrigo, mistura-se com os picadores; tem, um calo. Não diz como Menalipo: Tenho prazer? Pensa tê-lo; esquece leis e autos: é um Hipólito. Menandro, que o viu ontem num processo que está em suas mãos, não reconheceria hoje seu relator. Amanhã a gente o vê na sua câmara, onde se vai julgar uma causa grave e capital; faz-se cercar pelos confrades, conta-lhes como não perdeu o veado da matilha, como ficou sufocado de tanto gritar pelos cachorros que não ajudavam, ou pelos caçadores que erravam, que ele viu dar os seis cachorros: está em cima da hora: ele acaba de falar nos latidos e na ceva que se dá aos cães de caça e corre a sentar-se com os outros para julgar.

Como é grande o desvario de certos particulares que, ricos com o negócio de seus pais, cuja herança acabam de receber, moldam-se pelo príncipe para o guarda-roupa e a equipagem, excitam, por uma despesa excessiva e ostentação ridícula, os ditos e zombarias de toda uma cidade que pensam maravilhar, e assim se arruinam para fazer com que caçoem deles!

Alguns não têm nem mesmo a triste compensação. de espalhar suas loucuras além do quarteirão em que moram: é o único teatro da sua vaidade. Não se sabe na ilha que André brilha no Marais, e aí dissipa seu patrimônio: ao menos se ele fosse conhecido em toda a cidade e nos arredores, seria difícil que entre tão grande número de cidadãos dos quais nem todos sabem julgar sensatamente todas as coisas, não se encontrasse algum que dissesse dele: É magnífico, e levasse em conta o presentes que ele faz a Xanto e a Ariston, e as festas que dá em honra de Elamira: mas ele se arruina obscuramente. É apenas em favor de duas ou três pessoas que não o estimam, que ele caminha para a indigência, e, hoje em carruagem, dentro de seis meses não terá meios de ir a pé.

Narciso se levanta de manhã. para se deitar à noite; tem suas horas de toalete como uma mulher; vai todos os dias regularmente à missa elegante nos Bernardos ou nos Mínimos: é homem de boa sociedade, e contam com ele no quarteirão para fazer o terceiro ou o quinto na arrenegada ou no perdeganha; ai tem uma poltrona quatro horas seguidas em casa de Aricia, onde arrisca toda noite cinco pistolas de ouro. Lê atentamente a Gazeta da Holanda e o Mercúrio Galante: leu Bergerac(40), Desmarets(41), Lesclache, as historietas de Barbin, e uma compilação de, poesias. Passeia com as mulheres no Plaine ou na Alameda, e é duma pontualidade religiosa nas visitas. Fará amanhã o que faz hoje e o que fez ontem; e assim morre depois de ter vivido.

Eis um homem, diz você, que já vi em algum lugar: saber onde, é difícil; mas seu rosto me é familiar. Também é familiar a muitos outros; e vou, se for possível ajudar sua memória: terá sido no Bulevar, num strapotin(42), ou na grande alameda das Tulherias, ou no balcão da Comédia? Terá sido no sermão, no baile, em Rambouillet? Onde poderia você não o ter visto? Onde é que ele não está? Se há em praça pública uma execução famosa ou um fogo de artifício, ele aparece numa janela da prefeitura; se se espera uma magnífica recepção solene ele tem seu lugar num palanque; se se faz um carrossel, ei-lo no recinto e posto no anfiteatro; se o rei recebe embaixadores, vê-lhes a passagem, assiste à audiência. Sua presença é tão essencial aos juramentos das ligas suíças como a do chanceler e a das próprias ligas. É seu rosto que se vê nos almanaques representando o povo ou a assistência. Há uma caça pública, uma Santo-Humberto, ei-lo a cavalo: fala-se de um acampamento e duma revista, ele está em Houilles, está em Achères; ama as tropas, a milícia, a guerra; ele a vê de perto, e até o forte de Bernardi. CHANLEY conhece as marchas, JACQUIER os víveres, DU METZ a artilharia: este vê, envelheceu sob os arnezes só de ver; é espectador profissional, não faz nada daquilo que um homem deve fazer, não sabe nada do que deve saber; mas viu, diz ele, tudo o que se pode ver, e não terá pena de morrer: que perda, para toda a cidade! Quem dirá, depois dele, “A Alameda está fechada, ninguém passeia lá; o atoleiro de Vincennes está esgotado e reparado a carruagem não virará mais ali?” Quem anunciará uma bela prece, uma bruxaria de feira? Quem avisará que Beaumavielle morreu ontem, que Rochois está resfriado, e levará oito dias sem cantar? Quem, como ele, conhecerá um burguês pelas suas armas e pela libré? Quem dirá que Scapin leva flores de lis? E quem ficará mais espantado com isso? Quem pronunciará com mais vaidade e ênfase o nome de uma simples burguesa? Quem tem melhor sortimento de modinhas? Quem emprestará às mulheres os Anais Galantes e o Jornal Amoroso? Quem, como ele, saberá declamar à mesa todo um diálogo da Ópera e os furores de Rolando num beco? Enfim, havendo na cidade, como noutros lugares, gente muito estúpida, pessoas tolas, ociosas, desocupadas, quem poderá com tamanha perfeição lhes convir?

Terameno era rico e tinha mérito; recebeu uma herança, é portanto muito rico e tem imenso mérito: eis todas as mulheres em campo para tê-lo como amante e todas as donzelas para desposá-lo. Vai de casa em casa fazer as mães esperarem que ele casará: se está sentado, elas se retiram para deixar as filhas toda liberdade de serem amáveis, e a Terameno de fazer suas declarações. Aqui ele enfrenta o barrete de presidente; ali, vence o cavalheiro ou o gentilhomem: um jovem culto, vivo, agradável, inteligente, não é desejado com mais ardor nem melhor recebido; arrancam-no das mãos, mal se tem ocasião de sorrir a quem se encontra com ele na mesma visita: quantos galãs vai derrotar! Que bons partidos não fará fracassarem! Poderá satisfazer a tantas herdeiras que o procuram? Não é apenas o terror dos maridos, é o espantalho de todos os que desejam ser maridos, e esperam que um casamento venha encher o vazio de seus depósitos. Devia-se prescrever personagens como essa, tão felizes, tão cheias de pecúnia, de uma cidade bem policiada; ou condenar o sexo, sob pena de loucura ou indignidade, a não as tratar melhor do que se elas só tivessem mérito.

Paris, geralmente macaco da corte, nem sempre sabe imitá-la; não a imita, de nenhuma forma, nas exterioridades agradáveis e carinhosas que alguns cortesãos, e principalmente as mulheres, concedem ali naturalmente a um homem de mérito, e que só tem mesmo, de seu, o mérito: não se informam sobre seus contratos, nem indagam dos seus ancestrais; elas o acham na corte, isso lhes basta; suportam-no; não perguntam se veio de cadeirinha ou a pé, se tem um cargo, uma propriedade; ou uma equipagem: já que elas se pavoneiam com séquitos, esplendor e dignidades, desafogam de boa vontade com a filosofia ou a virtude. Uma mulher da cidade ouve o ruído de uma carruagem que para na sua porta, estala de, gozo e condescendência para quem vem dentro, sem o conhecer: mas se viu da janela uma bela parelha, muitas librés, e diversas fileiras de cravos perfeitamente dourados a fascinaram, que impaciência não tem para ver desde já, na sala, o cavalheiro ou o magistrado! Que recepção encantadora não lhe fará! Tirará os olhos de cima dele? Ele não perde nada perto dela; fala-se dos correões duplos e molas que o fazem rodar mais suavemente; ela o ama ainda mais por isso, ela por, isso o ama ainda melhor.

Essa fatuidade de algumas mulheres da cidade, conseqüente de má imitação das da corte, é algo pior que a impolidez das mulheres do povo, e a rusticidade das aldeãs: tem, sobre todas, a afetação a mais.

Sutil invenção a de dar magníficos presentes, de núpcias que não custam nada, e que devem ser pagos em espécie!

Útil e louvável prática a de gastar em despesas de casamento o terço do dote que uma mulher traz! Começar por se empobrecer de propósito, acumulando e empilhando coisas supérfluas, e desfalcando desde logo, nos bens, o necessário para pagar Gaultier, os móveis e a toalete!

Belo e judicioso uso, aquele que preferindo uma espécie de descaramento às conveniências e ao pudor, expõe uma mulher duma só noite num leito como num teatro, para fazer aí, durante alguns dias, uma ridícula personagem, e a entrega nesse estado à curiosidade das pessoas de um e de outro sexo que, conhecidas ou desconhecidas, acorrem de toda uma cidade para esse espetáculo, enquanto ele dura! Que falta a esse costume para ser inteiramente bizarro e incompreensível, senão ser lido em alguma narrativa de viagem à Mingrélia?

Penoso costume, sujeição incômoda! procurarem-se continuamente os outros com impaciência e não se encontrarem senão para se dizer ninharias, ensinarem-se mutuamente coisas de que se é igualmente sabedor, e que pouco importa saber; só entrar numa sala precisamente para sair depois; só sair de casa depois do jantar, para voltar de noite, muito satisfeito de ter visto em cinco curtas horas três suíços, uma mulher que mal se conhece e outra que não se estima! Quem considerasse bem o valor do tempo, e quanto sua perda é irreparável, choraria amargamente sobre tão grandes misérias.

As pessoas se criam, na cidade, numa indiferença grosseira pelas coisas rurais e campestres; mal se distingue a planta que produz o cânhamo da que produz o linho, e o trigo candial do centeio, e um ou outro da mistura de ambos: contentam-se em se alimentar e vestir. Não fale, a grande número de burgueses, de alqueires, nem de carvalhos-novos, nem de vides, nem de feno temporão, se quiser ser entendido; esses termos, para eles, não são franceses: fale a uns de medição por varas, soldo por libra, e aos outros de grau de apelação, petição civil, mandados, advocação. Conhecem as pessoas justamente pelo que têm de menos belo e menos sedutor; ignoram a natureza, seus fundamentos, seus progressos, seus dons e larguezas: a ignorância deles é muitas vezes voluntária, e fundada sobre a estima que têm pela sua profissão e seus talentos. Não há vil praticante que no fundo de seu escritório sombrio e enfumaçado, espírito ocupado pela mais negra chicana, não se prefira ao agricultor que goza o céu, cultiva a terra, semeia a tempo e faz colheitas ricas; e se às vezes ouve falar dos primeiros homens ou dos patriarcas, sua vida campestre, sua economia, espanta-se de que se pudesse viver em tempos assim, em que ainda não havia ministério público, nem comissões, nem presidentes, nem procuradores; não compreende que se tenha jamais podido passar sem o cartório, a sala de audiências, e o “café” dos tribunais.

Os imperadores nunca triunfaram em Roma tão molemente, tão comodamente, nem mesmo tão seguramente, contra o vento, a chuva, a poeira, e o sol quanto o burguês sabe em Paris andar pela cidade: que distância desse uso às chinelas dos nossos antepassados! Eles ainda não sabiam se privar do necessário para ter o supérfluo, nem preferir o fausto às coisas úteis: não se via fazerem luz com velas e se esquentarem em fogo fraco; a cera era para o altar e para o Louvre. Não saiam dum mau jantar para tomar a carruagem; persuadiam-se de que os homens tinham pernas para andar, e andavam. Conservavam-se limpos quando estava seco, e quando havia umidade estragavam o calçado; tão pouco embaraçados em atravessar ruas e becos quanto o caçador em atravessar uma campina, ou o soldado em se molhar numa trincheira: ainda não se imaginara atrelar dois homens a uma liteira: havia até diversos magistrados que iam a pé às câmaras, ou aos inquéritos, com tão boa vontade quanto Augusto, antigamente, ia a pé ao Capitólio. O estanho, nesse tempo, brilhava nas mesas e aparadores como o ferro e o cobre nas lareiras; a prata e o ouro estavam nos cofres. As mulheres se faziam servir por mulheres: empregavam estas até na cozinha. Os bonitos nomes de preceptores e governantes não eram desconhecidos de nossos pais; eles sabiam a quem se confiavam Os filhos dos reis e dos mais ilustres príncipes; mas dividiam o serviço de seus empregados com os filhos, contentes de velarem eles mesmos de maneira imediata pela sua educação. Contavam, em todas as coisas, com eles mesmos: sua despesa era proporcional à receita; suas librés, equipagens, móveis, sua mesa, suas casas na cidade e no campo, tudo era medido de acordo com as rendas e a sua condição. Havia entre eles distinções exteriores que impediam de se tomar a mulher de um praticante pela de um magistrado e o plebeu ou o simples lacaio pelo gentilhomem. Menos aplicados em dissipar ou aumentar seu patrimônio que em sustentá-lo, deixavam-no inteiro aos herdeiros, e passavam assim de uma vida moderada a uma morte tranqüila. Não diziam: O século é duro, a miséria é grande, o dinheiro é raro; tinham menos do que nós e tinham bastante, mais ricos pela sua economia e por sua modéstia do que pelas rendas e domínios. Em suma, naquele tempo se estava compenetrado desta máxima: o que nos nobres é esplendor, suntuosidade, magnificência, é dissipação, loucura, inépcia, no particular.


 

DA CORTE

 

A censura mais honrosa que se pode fazer a um homem é dizer-lhe que não conhece a corte: não há virtudes que não se juntem nele com essa única palavra.

Um homem que sabe fazer a corte é mestre de seu gesto, de seus olhos, e do rosto; profundo, impenetrável; dissimula os maus pensamentos, sorri aos inimigos, constrange seu humor, disfarça suas paixões, desmente o coração, fala, age contra seus sentimentos. Todo esse grande refinamento não passa de um vício que se chama falsidade; às vezes tão inútil ao cortesão, para sua fortuna, quanto a franqueza, a sinceridade e a virtude.

Quem pode dar nome a certos tons furta-cores, que são diversos, segundo os diversos dias em que os vemos? Assim também, quem pode definir a corte?

Furtar-se à corte um só momento é renunciar a ela: o cortesão que a viu de manhã vai vê-la, de noite, para reconhecê-la no dia seguinte, ou a fim de que ele próprio seja conhecido ali.

Somos pequenos na corte; e por vaidoso que se seja, nos consideramos assim; mas o mal é comum, e os próprios grandes lá são pequenos.

A província é o local de onde a corte, sob o seu ponto de vista, parece uma coisa admirável: se se aproxima, seus encantos diminuem como os de uma perspectiva que se vê de perto demais.

Dificilmente nos acostumamos a uma vida que se passe numa antecâmara, em paços ou escadarias.

A corte não contenta; impede que a gente se contente noutro lugar.

É preciso que um homem de bem tenha provado a corte: descobre, ao entrar ali, como um novo mundo que lhe era desconhecido, onde vê reinar igualmente o vício e a polidez, e onde tudo lhe é inútil, o bom e o mau.

A corte é como um edifício construído de mármore; quero dizer que ela se compõe de homens muito duros mas muito polidos.

As vezes se vai à corte para de volta fazer-se respeitar pelo nobre de sua província ou pelo seu diocesano.

O bordador e o confeiteiro seriam supérfluos e fariam apenas amostra inútil se se fosse modesto e sóbrio; as cortes ficariam desertas e os reis quase sozinhos, se se curasse da vaidade e da cobiça. Os homens querem ser escravos em algum lugar, e tirar aí de que dominar alhures. Parece que se vende, por atacado, aos nobres da corte, o ar de altaneria, orgulho e comando, a fim de que eles distribuam a retalho nas províncias: fazem precisamente como lhes fazem; verdadeiros cacos da realeza.

Não há nada que enfeie mais certas cortesãs do que a presença do príncipe: mal consigo reconhecer seus rostos; os traços se alteram e sua compostura se avilta. As pessoas orgulhosas e soberbas são as mais desfeitas porque são as que mais perdem do que é seu; quem é decente e modesto sustenta-se melhor ali: não tem nada a reformar.

O ar da corte .é contagioso: ele se toma em V(43) como o sotaque normando em Rouen ou Falaise, deixa-se entrever em furriéis, mordomos e fornecedores de frutas; pode-se, com uma inteligência de alcance bem medíocre, fazer ali grandes progressos. Um homem de gênio elevado e mérito sólido não faz bastante caso dessa espécie de talento para fazer questão de estudá-lo e assimilá-lo; adquire-o sem reflexão, e não pensa em desfazer-se dele.

N. chega com estardalhaço; afasta toda gente, fura um lugar; maltrata, quase fere; dá seu nome: então se respira e ele só entra com a multidão.

Há nas cortes como que aparições de indivíduos aventureiros e audaciosos, de caráter livre e ordinário, que se produzem por si mesmos, afirmam ter na sua arte toda a habilidade que falta aos outros, e acham quem acredite na sua palavra. Aproveitam, entretanto, do engano público, ou do amor que os homens tem pela novidade: furam a multidão e chegam aos ouvidos do príncipe, com quem os cortesãos os vêm falar, enquanto que ele se sente feliz por ser visto assim.

Têm isso de cômodo para os nobres, que é o fato de serem suportados sem conseqüência, e despedidos da mesma forma: então desaparecem, ao mesmo tempo ricos e desacreditados; e o mundo que eles acabam de enganar já está perto de ser enganado por outros.

Vêm-se pessoas que entram, saúdam apenas ligeiramente, que andam gingando, e se pavoneiam como uma mulher: interrogam-nos sem nos olhar; falam em tom elevado, que acentuam quanto se sentem acima dos presentes. Param e todos as cercam: têm a palavra, presidem o grupo, e persistem nessa arrogância ridícula. e contrafeita, até que venha um nobre que, fazendo com que elas desapareçam de repente só com sua presença, redú-las ao natural, que é menos mau.

As cortes não poderiam passar sem certa espécie de cortesãos, homens aduladores, Serviçais, insinuantes, dedicados às mulheres, cujos prazeres satisfazem, estudam os fracos é lisonjeiam todas as paixões; sopram-lhes palavras ao ouvido, falam-lhes dos maridos e amantes em termos comedidos, adivinham seus desgostos, e doenças, e fixam a data de seus partos; fazem a moda, refinam o luxo e a despesa, e ensinam a esse sexo meios rápidos de consumir grandes quantias em roupas, móveis e equipagens; têm, eles próprios, roupas em que brilham a invenção e a riqueza, e só habitam palácios antigos depois de renová-los e embelezá-los. Comem delicadamente e refletidamente; e não há variedade de volúpia que eles não experimentem, e de que não possam dar informações. Devem a si mesmos sua fortuna, e a mantêm com a mesma perícia com que a fizeram; desdenhosos, não abordam seus iguais, não os cumprimentam mais; falam onde todos os outros se calam; entram, penetram em lugares e a horas em que os nobres não ousam se mostrar: estes, com grandes serviços prestados, muitas cicatrizes no corpo, belos cargos, ou grandes dignidades, não mostram tanta segurança, nem tão livre compostura. Essa gente é recebida pelos mais ilustres príncipes, participa dos seus prazeres e de todas as suas festas, não sai do Louvre ou do castelo, onde andam e agem como em casa e na intimidade; parece se multiplicarem em mil lugares; é sempre a primeira cara que surpreende os recém chegados numa corte: beija e é beijada; ri, dá gargalhadas, é divertida, conta histórias: gente cômoda, agradável, rica, que presta serviço e que não tem nenhuma importância.

Não se pensaria de Cimon e de Clutandro que são os únicos encarregados de todos os negócios do Estado, e que também só eles devem responder por isso? Um tem a seu cargo, pelo menos, os negócios de terra, e o outro, os marítimos. Quem pudesse representá-los exprimiria a precipitação, a inquietação, a curiosidade, a atividade; saberia pintar o movimento. Nunca foram vistos, nunca fixos e parados: quem é que os viu mesmo andar? Só os vemos correr, falar correndo, e interrogar sem esperar resposta. Não vêm de lugar nenhum, não vão para nenhum lugar; passam e repassam. Não os atrase na sua corrida precipitada, você desmontaria a máquina deles: não lhes faça perguntas, ou pelo menos dê-lhes tempo para respirarem, e de se recordarem de que não têm nada a tratar; podem ficar consigo e. muito tempo, segui-lo mesmo onde você quiser levá-los. Eles não são os satélites de Júpiter, quero me referir àqueles que perseguem e cercam o príncipe; mas o anunciam e o precedem; lançam-se impetuosamente na multidão dos cortesãos; tudo o que se encontra à sua passagem está em perigo: a profissão deles é ser visto e revisto; e nunca se deitam sem ter cumprido essa função tão séria e tão útil à república. De resto são instruídos, e a fundo, sobre todas as notícias indiferentes, e sabem na corte tudo o que se pode ignorar: não lhes falta nenhum dos talentos necessários para vencer mediocremente. Pessoas, entretanto, avisadas e alertas sobre tudo o que julgam lhes convir, um pouco afoitas, levianas e precipitadas: chegarei a dizer elas vão atreladas ao carro da fortuna e muito longe de se verem sentadas nele.

Um homem da corte que não tem nome bastante bonito, deve sepultá-lo sob um melhor; mas se tem um nome tal que ousa levá-lo, deve então insinuar que é de todos os nomes o mais ilustre, como sua casa é de todas as casas a mais antiga: deve se aparentar aos PRÍNCIPES LORENOS, aos ROHANS, aos CHARILLONS, MONTMORENCIS, e, se for possível, aos PRÍNCIPES DE SANGUE; só falar em duques, cardeais, ministros; fazer entrarem em todas as palestras seus antepassados paternos e maternos, e achar um jeito de meter nisso a auriflama(44) e as cruzadas; ter salas enfeitadas de árvores genealógicas, escudos de armas cobertos de dezesseis costados, e quadros de seus ancestrais e dos aliados de seus ancestrais; prezar-se de possuir um castelo antigo, com torreões, ameias e seteiras; dizer a cada passo minha raça, meu reino, meu nome e minhas armas: falar daquele que não é homem qualificado, daquela que não, é donzela nobre; ou, se lhe dizem que Jacinto ganhou a sorte grande, perguntar se ele é gentilhomem. Alguns rirão desses incidentes; mas deixá-los rir: outros arranjarão histórias e ele os deixará contá-las; dirá sempre que segue logo depois da casa reinante; e à força de dizer, será acreditado.

E uma grande ingenuidade ir plebeu para a corte e lá não se tornar gentilhomem.

Quem se deita na corte levanta-se sobre a cobiça: é o que se digere de manhã e de tarde, dia e noite: é o que faz com que se pense, se fale, se emudeça e se aja; é nesse espírito que se abordam uns e se desprezam outros, se sobe e se desce; é nessa regra que se medem cuidados, atenções, estima, indiferença, desprezo. Alguns passos que alguém faça, por virtude, para a moderação e sabedoria, um primeiro fito de ambição o leva com os mais avaros, os mais violentos nos seus desejos e os mais ambiciosos: como ficar imóvel onde tudo anda, tudo se agita, e não correr onde os outros correm? Julga-se até ser responsável pela própria elevação e fortuna; aquele que não a fez na corte é julgado como não devendo fazê-la; não são considerados. Afastar-se antes de ter colhido nenhum fruto, ou insistir em continuar ali sem graças e recompensas? Problema tão espinhoso, tão embaraçoso, e de tão difícil decisão, que um número infinito de cortesãos envelhecem sobre o sim ou não e morrem na dúvida.

Não há nada tão desprezível, na corte, e tão indigno, como um homem que não pode contribuir para nada na nossa fortuna: admira-me que ouse mostrar-se ali.

Aquele que despreza um homem de seu tempo e da mesma condição, com o qual veio pela primeira vez à corte, se julga ter razão sólida para apreciar o próprio mérito e se julgar melhor que o que ficou no caminho, não se lembra mais do que, antes de ser beneficiado, pensava de si mesmo e dos que tinham passado na sua frente.

É ter recebido muito de um amigo, se tendo ele subido em grande conceito, ainda se digne conhecer-nos.

Se aquele que está como favorito ousa prevalecer-se disso antes de passar da moda, se se serve do bom vento que sopra para o seu lado para abrir caminho, se tem os olhos abertos sobre tudo o que vaga, posto, abadia, para pedi-los e obtê-los, e se mune de pensões, patentes, alvarás de montepio, você lhe reprova sua avidez e ambição; você diz que tudo o tenta, que tudo lhe serve, aos seus, a suas criaturas, e que, pelo número e diversidade das graças com que o cumulam, só ele fez diversas fortunas. No entanto que devia ele fazer? Se eu julgar menos pelas palavras que você diz que pelo que você faria em situação idêntica, ele fez precisamente o que devia fazer.

Censuram-se as pessoas que fazem grande fortuna enquanto têm ocasião, porque se desespera, pela mediocridade da sua própria, jamais chegar ao estado de fazer como elas, e merecer essa censura. Se estivesse em seu poder sucedê-las se começaria a sentir que elas têm menos culpa e se havia de ser mais comedido, por medo de pronunciar adiantadamente uma auto-condenação.

Não se deve exagerar nada, nem dizer das cortes o mal que lá não existe; lá não se atenta nada de pior contra o verdadeiro mérito, além de deixá-lo, às vezes, sem recompensa: nem sempre o desprezam, quando chegam a discerni-lo; esquecem-no; e é ali que se sabe perfeitamente não fazer nada, ou fazer muito pouca coisa por aqueles a quem muito se estima.

É difícil que na corte, de todas as peças que se empregam no edifício de sua fortuna, não haja algumas que não dêem resultado; um de meus amigos que prometeu falar não fala; outro fala friamente: acontece a um terceiro falar contra meus interesses e contra as suas intenções: àquele falta boa vontade; a este, habilidade e prudência; nenhuma tem bastante prazer em me ver feliz a ponto de contribuir com todo o seu prestígio para me tornar assim. Cada um se lembra muito bem de tudo o que lhe custou a sua prosperidade, assim como os auxílios que lhe franquearam caminho: chegar-se-ia a justificar os serviços, que se receberam de uns com os serviços que em situações idênticas se prestariam a outros, se o primeiro e único cuidado que se tivesse depois da fortuna feita, não fosse pensar apenas em si.

Os cortesãos não utilizam o que têm de inteligência, destreza, finura, para encontrar os expedientes que podem prestar auxílio a seus amigos, mas apenas para encontrar razões aparentes, pretextos especiosos, ou o que eles chamam impossibilidade de poder prestá-lo; e se convencem de que estão quites, com isso, de todos os deveres de amizade ou reconhecimento.

Ninguém na corte quer incomodar; oferece-se auxílio porque, julgando os outros por si, espera-se que ninguém incomodará e que assim se ficará dispensado de auxiliar: é uma maneira doce e polida de recusar seu crédito, seus ofícios, sua mediação a quem precisa.

Quanta gente o enche de elogios na intimidade, ama-o, estima-o, e se sente confuso de estar com você em público, no despertar do rei ou na missa evitam seus olhos e seu encontro! Só um pequeno número de cortesãos, por grandeza natural ou pela confiança que têm em si mesmos, ousam honrar diante do mundo o mérito solitário, despido de grandes atributos.

Vejo um homem cercado e seguido; mas está no seu lugar; vejo outro que todos abordam; mas está em boas graças: este é abraçado e adulado, mesmo pelos nobres; mas é rico: aquele é olhado por todos com curiosidade, mostram-no com o dedo; mas é sábio e eloqüente: descubro um que ninguém esquece de saudar; mas é malvado: procuro um homem que seja bom, e não seja nada mais do que isso, e seja procurado pelos outros.

Alguém acaba de assumir novo cargo, é uma inundação de louvores em seu favor que sobe dos paços e capelas, ganha a escadaria, as salas, a galeria, todo o prédio: têm-se os ouvidos cheios; não se agüenta mais. Não há duas vozes diferentes sobre essa personagem; a inveja, a rivalidade, falam como a adulação: todos se deixam levar pela torrente que arrasta, que os força a dizer de um homem o que eles pensam ou o que não pensam, como louvar muitas vezes um sujeito que nem conhecem. O homem de inteligência, de mérito, ou de valor, se torna, num instante, um gênio de primeira ordem, um herói, um semideus. É tão prodigiosamente favorecido, em todas as pinturas que fazem dele, que parece disforme perto de seus retratos: é impossível para ele chegar jamais até onde a baixeza e a lisonja acabam de levá-lo; ele se envergonha da própria reputação. Mal começa a vacilar no cargo em que o tinham posto, todo mundo muda facilmente de opinião: se é completamente destituído, as geringonças que o tinham guindado tão alto, pelo aplauso e os elogios, ainda estão armadas para fazê-lo cair no último desprezo; quero dizer que não há quem o desdenhe mais, quem o censure mais amargamente, e quem diga mais mal dele, do que aqueles que estavam como que tomados pelo furor de dizer bem dele.

Penso poder dizer de um cargo eminente e honroso que mais facilmente se sobe a ele do que se consegue conservar-se ali.

Vêm-se homens caírem de alta fortuna pelos mesmos erros que os haviam feito subir até lá.

Há nas cortes duas maneiras disso que se chama despedir o pessoal ou desfazer-se das pessoas: zangar-se com elas, ou proceder de maneira que elas se zanguem conosco e se aborreçam de nós.

Fala-se na corte bem de alguém por duas razões: a primeira, para que ele saiba que nós falamos bem dele; a segunda, para que ele fale bem de nós.

É tão perigoso, na corte, adiantar dinheiro, quanto é embaraçoso não adiantar.

Ha pessoas para as quais não conhecer o nome e a cara de um homem é motivo para rir e desprezá-lo. Perguntam quem é esse homem: não é nem Rousseau nem Fabry,(45), nem La Couture(46); eles não poderiam desconhecê-lo.

Falam-me tanto mal desse homem, e vejo tão pouco mal nele, que começo a suspeitar haver nele algum mérito que ofusque o dos outros.

Você é um homem de bem, não pensa em desagradar aos favoritos, unicamente dedicado a seu senhor e ao seu dever: está perdido.

Não se é descarado por gosto, e sim por natureza: é um vício do ser, mas natural. Quem não nasceu assim é modesto, e não passa facilmente desta extremidade à outra: é uma lição bastante útil dizer-lhe: seja descarado e vencerá; imitação má não lhe aproveitaria, e o faria fracassar. Não é preciso, nas cortes, nada menos que uma verdadeira e ingênua impudência para vencer.

Procura-se, empenha-se, disputa-se, atormenta-se, pede-se, recusam-no, pede-se e- se obtém; mas diz-se ter obtido sem pedir, mim tempo em que não se pensava nisso, e ate se pensava noutra coisa: moda antiga, mentira inocente, e que não engana ninguém.

Maneja-se para chegar a um alto cargo, prepara-se todos os enredos, todas as mentiras estão bem tramadas, e deve-se ser servido segundo se deseja: uns devem tomar a iniciativa, os outros apoiá-la: a isca já foi lançada e a mina está pronta a render; então se afasta da corte. Quem ousaria suspeitar que Artemon pensara em se meter em tão bom lugar, quando o vão buscar na sua terra ou no seu distrito para levá-lo até lá?

Artifício grosseiro, sutilezas gastas, e das quais o cortesão se serviu tantas vezes que se eu quisesse enganar todo o público, e esconder-lhe minha ambição, ficaria à vista e sob a mão do príncipe, para receber dele a graça que tivesse pleiteado com mais afinco.

Os homens não querem que se descubram as ambições que têm sobre sua fortuna, nem que se perceba. que eles pensam em tal dignidade, porque, se não a obtêm, há vergonha, pensam eles, em ser recusados; e se conseguem, há mais glória para eles em serem julgados dignos por quem as concedeu que de se julgarem dignos eles próprios por suas intrigas e cabalas: enfeitam-se, ao mesmo tempo, com sua dignidade e com sua modéstia.

Qual é maior vergonha, ser recusado para um cargo que se merece, ou ocupá-lo sem merecer?

Por grandes que sejam as dificuldades em se colocar na corte, é ainda mais duro e difícil tornar-se digno de ser colocado ali.

Custa menos fazer dizer de si: por que sem que ele obteve esse cargo? do que fazer perguntar: por que não obteve?

A gente ainda se apresenta para os cargos da cidade, ainda se candidata a uma vaga na Academia Francesa; pleiteava-se o consulado: que haveria de mal então em trabalhar, nos primeiros anos da vida em se tornar capaz de um grande cargo, e depois pedi-lo sem mistério nenhum e sem nenhuma intriga, abertamente e com confiança de nele servir a pátria, o príncipe, a república?

Não vejo nenhum cortesão a quem o príncipe acabe de conceder um bom lugar na administração, um posto eminente, ou grande pensão, que não garanta por vaidade, ou para acentuar o seu desinteresse, que está menos contente com o benefício que com a maneira pela qual foi feito: o que há nisso de certo e indubitável é que ele diz assim.

É grosseria dar de mau humor: o pior e o mais penoso é dar; que custa acrescentar um sorriso?

É preciso confessar que já se viram homens que recusavam mais polidamente do que os outros sabiam dar; já se disse de alguns que se faziam muito tempo rogar, e davam tão secamente, e enchiam uma graça que se arrancava deles de condições tão desagradáveis, que a maior graça era obter deles ser dispensado de aceitar coisa alguma.

Notam-se, na corte homens ávidos que se revestem de todas as condições para ter as vantagens: governanças, cargos, benefícios, tudo lhes convém: são tão bem ajustados, que, por seu estado, se tornam capazes de todas as graças; são anfíbios; vivem da Igreja e da espada, e, encontrarão o segredo de acrescentar a toga. Se você pergunta: que faz essa gente na corte? Eles recebem, e invejam sempre aqueles a quem se concede.

Mil pessoas na corte arrastam sua vida abraçando, cumprimentando, congratulando os que recebem, até que morrem sem nada possuir.

Menófilo toma seus costumes de uma profissão e de outra seu traje: vive o ano inteiro mascarado, apesar de ter o rosto descoberto; aparece na corte, na cidade, em toda parte, sempre sob um certo nome e o mesmo disfarce. Reconhecem-no, e se sabe o que ele é pelo seu rosto.

Há, para chegar às honrarias, o que se chama a estrada real, ou caminho largo; há o caminho oblíquo ou atalho, que é o mais curto.

Todos procuram os infelizes para examiná-los; dispõem-se em fila ou se põem às janelas para observar os traços e a atitude de um homem que foi condenado e sabe que vai morrer: vã, maligna, desumana curiosidade! Se os homens fossem sábios, a praça pública seria abandonada, e ficaria estabelecido que só em ver tais espetáculos haveria ignomínia. Se você se enche de curiosidade, exerça-a pelo menos em um assunto digno: veja um homem feliz, contemple-o no dia exato em que ele foi nomeado para um novo cargo, e está recebendo cumprimentos; leia nos seus olhos, através duma calma estudada e duma fingida modéstia, como ele está contente e cheio de si: veja que serenidade essa satisfação de seus desejos espalha no seu coração e no seu rosto; como ele não pensa mais que em viver e ter saúde; como depois sua alegria transborda e ele não pode mais dissimulá-la; como se dobra ao peso da felicidade; que ar frio e sério conserva para aqueles que não são mais seus iguais; não lhes respondes não os vê: os abraços e cumprimentos dos nobres, que ele já não vê de tão longe, acabam por fazer-lhe mal: desconcerta-se, se atordoa; é uma curta alucinação. Você quer ser feliz, deseja mercês: quanta coisa tem que evitar!

Um homem que acaba de ser colocado não se serve mais da razão e da inteligência para regular sua conduta e suas aparências em relação aos outros: toma a regra do cargo e do seu estado: daí o esquecimento, o orgulho, a arrogância, a dureza, a ingratidão. “

Teonas, padre há trinta anos, cansava-se de o ser. Tem-se menos ardor e impaciência em se ver vestido de púrpura que ele em levar uma cruz de ouro no peito: e porque as grandes festas se passavam sempre sem nada mudar na sua sorte ele murmurava contra o tempo presente, achava o Estado mal governado, e nada predizia que não fosse sinistro; convindo de coração que o mérito é perigoso, na corte, para quem quer subir, tomara então uma resolução e renunciara à, prelazia, quando veio alguém dizer-lhe que ele fora nomeado para um bispado. Cheio de alegria e confiança por uma notícia tão pouco esperada, diz: Você verá que não ficarei muito tempo por lá, logo me farão arcebispo.

Tem de haver velhacos na corte, perto dos nobres e dos ministros, mesmo os melhor intencionados; mas lidar com eles é delicado; é preciso saber fazê-los agir: há tempos e ocasiões em que eles são insubstituíveis. Honra, virtude, consciência, qualidades sempre respeitáveis, freqüentemente inúteis: que é que você quer que se faça com um homem de bem?

Um velho autor(47), do qual ouso aqui transcrever as próprias palavras, pelo receio de enfraquecer o sentido com a minha tradução, disse que “afastar-se dos pequeninos, isto é dos seus semelhantes, aviltá-los e desprezá-los, freqüentar nobres e poderosos no gozo de bens e riquezas, e na sua frequentação e privança ser de todas as folganças, brincos, bufonerias, e necedades viloas; ser descarado, sem pudor é sem nenhuma vergonha; aturar chufas e mangações de toda gente, sem por isso deixar de fazer caminho, e por sua desenvoltura, formar dita e fortuna”.

Juventude do príncipe, fonte de belas fortunas.

Timanto, sempre o mesmo, sem nada perder desse mérito que lhe atraiu de começo reputação e recompensas, não deixava de degenerar no espírito dos cortesãos: estavam cansados de apreciá-lo, saudavam-no friamente, não lhe sorriam mais; começavam a não se aproximar mais dele, não o abraçavam mais, não o chamavam aparte para falar misteriosamente de uma coisa banal, não tinham mais nada a dizer-lhe. Precisava dessa pensão ou deste novo cargo com que acaba de ser honrado para fazer reviver suas virtudes meio, apagadas da memória deles, e refrescar-lhes as idéias; fazem-lhe agora como no começo, e melhor ainda.

Quantos amigos, quantos parentes nascem numa noite para o novo ministro! Uns fazem valer suas antigas ligações, sociedade de estudos, direitos de vizinhança; os outros folheiam a genealogia deles, sobem até um trisavô, apelam para o lado paterno e o materno; quer-se agarrar esse homem por algum lugar, e diz-se diversas vezes por dia que se é seu parente; de boa vontade se chegaria a imprimir: É meu amigo, e estou muito contente com sua subida; devo tomar parte na alegria, ele é meu íntimo. Homens vãos e dedicados à fortuna, insípidos cortesãos, falaríeis assim há oito dias? Daí para cá ele teria se tornado melhor, mais digno da escolha que o príncipe acaba de fazer? Esperáveis essa circunstância para conhecê-lo melhor?

O que me ampara e me garante contra os pequenos desdens que às vezes sofro dos nobres e dos meus iguais é dizer-me a mim mesmo: essa gente só tem raiva, talvez, da minha sorte, e tem razão, ela é bem pequena. Adorar-me-iam, sem dúvida, se eu fosse ministro.

Será que irei, breve, ocupar algum cargo? Será que ele sabe? Será um pressentimento que ele teve? Ele pressente, ele me saúda.

Aquele diz: Ontem jantei em casa de Tibur, ou esta noite vou cear, e repete,: e faz entrar dez vezes o nome de Planco nas mais simples conversas, e diz: Planco me perguntava... Eu dizia a Planco... Esse mesmo vem a saber neste momento que seu herói acaba de ser arrebatado por uma morte extraordinária. Correndo, junta povo nas praças ou sob os pórticos, acusa o morto, difama sua conduta, desacredita seu consulado, nega-lhe a ciência dos cálculos que a voz pública lhe concede, não concorda que tivesse memória feliz, não lhe dá a honra de incluí-lo entre os inimigos do império, como um inimigo.

Um homem de mérito assiste, julgo eu, a um belo espetáculo quando o mesmo lugar que numa assembléia ou num espetáculo lhe é recusado ele vê concedida a um homem que não tem olhos para ver, nem ouvidos para escutar, nem inteligência para conhecer e julgar; que só tem de recomendável certas librés que mesmo ele não leva mais.

Teodoto(48), com um hábito austero, tem um rosto cômico de homem que pisa no palco: sua voz seu andar, seu gesto, sua atitude, acompanham-lhe o rosto; é finório, cauteloso, adocicado, misterioso; aproxima-se de você e lhe diz um segredo: Eis um dia bonito ou Eis um grande degelo. Se não tem as grandes atitudes, tem pelo menos as pequenas, justamente aquelas que só convêm a uma jovem preciosa. Imagine a aplicação de uma criança em levantar um castelo de cartas ou pegar uma borboleta; é a de Teodoto por uma coisa a toa que não merece que a gente se mexa; trata-a seriamente, e como alguma coisa fundamental; age, empenha-se e consegue bom êxito: ei-lo que respira e descansa, e tem razão: custou-lhe muito trabalho.

Vêm-se pessoas embriagadas, enfeitiçadas com o favor de que gozam: pensam nisso de dia, sonham com isso de noite; sobem a escada de um ministro e descem; saem da sua antecâmara e tornam a entrar; não têm nada a dizer-lhe, e lhe falam; falam segunda vez: ei-las contentes por lhe terem falado. Espremam, torçam-nas, elas gotejam orgulho, arrogância, presunção; dirija-lhes a palavra, elas não respondem, não o conhecem, têm os olhos desvairados e o espírito alienado: os pais devem tomar cuidado com elas e interná-las, por medo de que sua loucura se torne furor e o mundo sofra com isso. Teodoto tem uma mania mais calma: ama perdidamente o favoritismo; mas sua paixão tem menos fulgor: faz votos a ela em segredo, cultiva-a, serve-a misteriosamente; está de atalaia e pronto a saltar sobre tudo o que aparece de novo com as librés do favoritismo. Tem uma pretensão, oferece-se a eles, intriga com eles, sacrifica-lhes secretamente mérito, parentescos, amizade, compromissos, reconhecimento. Se o lugar de um Cassini se tornasse vago, e o suíço ou o postilhão de um favorito o resolvesse pedir para si, ele apoiaria tal pedido, e o julgaria digno do lugar, consideraria o indivíduo capaz de observar e calcular, falar de parélios e de paralaxes. Se você perguntasse a Teodoto se ele é autor ou plagiário, original ou copista, eu lhe daria as obras dele, e diria: Leia, e julgue; mas, se ele é ou cortesão ou beato, poderia decidir à vista do retrato que acabo de fazer? Eu me pronunciaria com mais audácia sobre sua estréia: sim, Teodoto, observei o período do seu nascimento; você será colocado, e muito breve: não fique mais de vigia, não imprima mais, o público lhe pede quartel.

Não espere mais candura, franqueza, eqüidade, bons ofícios, serviços, benevolência, generosidade, firmeza, num homem que há pouco tempo se dedicou à corte e deseja secretamente fazer fortuna. Reconhece-lhe o rosto, as conversas? Já não chama cada coisa pelo nome; não existem mais para ele velhacos, ladrões, tolos e impertinentes. Aquele sobre o qual ele se arriscasse a dizer o que pensa é precisamente este que, vindo a saber, o impediria de fazer caminho. Pensando mal de todo mundo, não diz mal de ninguém; não querendo bem senão a si próprio, pretende convencer de que quer bem a todos, a fim de que todos lhe façam bem ou pelo menos ninguém lhe seja contrário. Não contente de não ser sincero, não suporta que ninguém o seja; a verdade lhe fere o ouvido; ele é frio e indiferente acerca das observações que se fazem sobre a corte e o cortesão; e por ter ouvido, julga-se cúmplice e responsável. Tirano da sociedade e mártir de sua ambição, tem uma triste circunspecção nas atitudes e nas palavras, gracejos inocentes, mas frios e constrangidos riso forçado, afabilidade contrafeita, conversação interrompida, distrações freqüentes; tem em profusão, — ousaria dizer? — torrentes de louvores pelo que fez ou disse um homem altamente colocado e que está cotado, e para qualquer outra pessoa uma secura de tísico; tem fórmulas de cumprimentos diferentes para a entrada e a saída em relação àqueles que visita ou que o visitam; e não há ninguém; dentre esses que se ralam por trejeitos é falas macias, que não saia de junto dele muito satisfeito. Visa igualmente fazer-se patrão e servo: é mediador, confidente, alcoviteiro; quer governar; tem um fervor de noviço para todas as práticas da corte; sabe onde é preciso se colocar para ser visto; sabe abraçá-lo, tomar parte na sua alegria, fazer-lhe, uma em cima da outra, perguntas interessadas sobre sua saúde, seus negócios e enquanto você responde, ele perde o fio da curiosidade, interrompe-o aborda outro assunto; ou, se chega alguém a quem deva uma fala diferente, sabe, acabando de felicitar você, fazer ao outro um cumprimento de condolência; chora com um olho, ri com o outro. Informado às vezes sobre os ministros ou sobre o favorito, fala em público de coisas frívolas, do vento, da geada: e ao contrário, se cala, banca o misterioso sobre o que sabe de mais importante, e mais espontaneamente ainda sobre o que não sabe.

Há um país(49) em que as alegrias são visíveis mas falsas, e as amarguras escondidas, mas reais.

Quem poderia pensar. que o ardor pelos espetáculos, e a pompa e os aplausos, os carrosséis, cobrissem tantas inquietações, cuidados e diversos interesses, tantos temores e esperanças, paixões tão vivas e negócios tão sérios?

A vida da corte é um jogo sério, melancólico, que se arma: é preciso arrumar suas peças e baterias, ter um objetivo, segui-lo, prevenir o do adversário, e todas as medidas tomadas, se está em cheque, às vezes mate. Às vezes com peões que se reservam chega-se a dama e se ganha a partida: vence o mais hábil, ou o mais feliz.

As rodas, molas, movimentos, estão escondidos: só aparece num relógio a agulha que insensivelmente avança e completa sua volta: imagem do cortesão, tanto mais perfeita quanto se sabe que depois de ter feito bastante caminho, volta muitas vezes ao mesmo ponto de onde partira.

Dois terços da minha vida se escoaram; por que inquietar-me tanto sobre o que me resta? A mais brilhante fortuna não merece o tormento a que me entrego, nem as mesquinharias em que me surpreendo, nem as humilhações, as vergonhas que suporto trinta anos destruirão esses colossos de poder que só se viam bem à força de levantar a cabeça: desapareceremos, eu que sou tão pouca coisa, e aqueles que eu contemplava tão avidamente, e dos quais esperava toda a minha grandeza: o melhor de todos os bens, se é que existem bens, é o descanso, o retiro, num lugar que seja nosso domínio. N“ pensou isso na desgraça, e na prosperidade esqueceu o que pensara.

Um pobre se vive em casa na província, vive livre mas sem apoio; se vive na corte é protegido, mas é escravo; essas coisas se compensam.

Xantipo, no fundo de sua província, sob um velho teto e num mau leito, sonhou durante a noite que via o príncipe, que lhe falava, e que com isso sentia grande alegria: ficou triste ao despertar; contou seu sonho, e disse: que quimeras enfunam o espírito dos homens enquanto eles dormem!

Xantipo continuou a viver: veio à corte, viu o príncipe falou-lhe, e foi além do seu sonho: é favorito.

Quem é mais escravo do que um cortesão assíduo, senão um cortesão mais assíduo?

O escravo só tem um senhor; o ambicioso tem tantos quantas sejam as pessoas úteis à sua fortuna.

Mil pessoas quase desconhecidas fazem multidão no despertar real para ser vistas pelo príncipe, que não poderia ver mil ao mesmo tempo; e se não vê hoje senão as que viu ontem e verá amanhã, quanta gente infeliz!

De todos os que rodeiam os nobres e lhes fazem a corte, pequeno número os honra de coração, grande número os procura com intuitos ambiciosos, número ainda maior por ridícula vaidade, ou por tola impaciência de se mostrarem.

Certas famílias, pelas leis do mundo, ou por aquilo a que se dá o nome de decoro, devem ser irreconciliáveis: ei-las unidas; e onde a religião fracassou, quando tentou reconciliá-las, vence o interesse, e facilmente.

Fala-se de um país(50) em que os velhos são galantes, polidos, e afáveis; os jovens, ao contrário, são duros, ferozes, sem costumes nem polidez: julgam-se libertados da paixão pelas mulheres numa idade em que noutros lugares se começa a senti-la; preferem, a elas, os banquetes, as comidas, e os amores ridículos. Entre eles é sóbrio e moderado aquele que só se embebeda de vinho; o uso excessivo que dele fizeram tornou o vinho insípido. Procuram despertar o gosto já extinto por aguardentes e os licores mais violentos: só falta à sua depravação beber água-forte. As mulheres desse lugar precipitam o declínio de sua beleza com artifícios que julgam servir para torná-las belas: seu costume é pintar os lábios, as faces, as sobrancelhas, e os ombros, que elas ostentam com o colo, os braços e as orelhas, como se temessem esconder o lugar por onde devem agradar, ou não mostrá-lo suficientemente. Os que vivem nesse lugar têm uma fisionomia que não é clara, mas confusa, mergulhada numa espessura de cabelos estranhos que preferem aos naturais, e dos quais fazem um extenso tecido para cobrir a cabeça; desce até a metade do corpo, altera os traços, e impede que se conheçam os homens pelo rosto. Além disso essa gente tem seu deus e seu rei: os grandes da nação se reúnem todos os dias, numa certa hora, num templo que chamam igreja. Há no fundo desse templo um altar consagrado ao seu deus, onde um padre celebra mistérios que eles chamam santos, sagrados e temíveis. Os grandes formam um vasto círculo em torno desse altar, e ai se põem de pé, costas diretamente viradas para os padres e os santos mistérios, e rosto levantado para o seu rei, que se vê de joelhos numa tribuna, ao qual eles parecem dedicar todo o espírito e o coração. Não se deixa de ver nesse uso uma espécie de subordinação: porque esse povo parece adorar o príncipe, e o príncipe adorar a Deus., As pessoas do país dão-lhe o nome de V., e ele está situado a quarenta e oito graus de elevação do polo e mais de mil e cem léguas marítimas dos iroqueses e dos hurões.

Quem considerar que o rosto do príncipe faz toda a felicidade do cortesão, que este se ocupa e contenta toda sua vida em vê-lo e ser visto por ele, começará a compreender como ver Deus pode fazer toda a glória e toda a felicidade dos santos.

Os grandes senhores são cheios de atenções com os príncipes, essa é sua ocupação; têm inferiores: os pequenos cortesãos relaxam seus deveres, fazem-se de íntimos, e vivem como pessoas que não têm exemplos a dar a ninguém.

Que falta, em nossos dias, à juventude? Ela pode, ela sabe; ou, pelo menos, quando soubesse tanto quanto pode, não seria mais resoluta.

Homens fracos! Um nobre diz de Tomagenes, seu amigo, que ele é um tolo, e se engana; não peço que você responda que ele é um homem de espírito; Ouse somente pensar que ele não seja tolo.

Da mesma forma ele diz que Ificrates não tem coração: você o viu praticar uma boa ação; fique tranqüilo: dispenso-o de contá-la, contanto que depois do que acabou de ouvir, ainda se lembre de que o viu praticá-la.

Em quem sabe falar aos reis, é talvez onde termine toda a prudência e sutileza do cortesão. Uma palavra lhe escapa, e cai, do ouvido do príncipe, bem fundo na sua memória, e às vezes até no seu coração: é impossível reavê-la; todos os cuidados que se tomam e toda a habilidade que se usa para explicá-la ou atenuá-la servem para gravá-la mais fundamente e aprofundá-la ainda mais: se foi apenas contra nós que falamos, além dessa desgraça não ser comum, há remédio pronto, que é nos instruirmos com nosso erro, e suportar o castigo da leviandade; mas se é contra outrem, que desalento! que arrependimento! Haverá regra mais útil contra tão perigoso inconveniente quanto falar dos outros ao soberano, de suas pessoas, de suas obras, de suas ações, costumes, conduta, pelo menos com a mesma atenção, precaução e prudência com que se fala de si?

Homem que gosta de piadas, mau caráter: isso diria eu, se já não tivessem dito. Os que prejudicam a reputação ou a sorte dos outros, contanto que não perca uma piada, merecem pena infamante: isso não foi dito, e eu ouso dizer.

Há certo número de frases feitas que se toma como num armazém, e das quais nos servimos para nos felicitarmos uns aos outros pelos nossos êxitos. Apesar de serem ditas geralmente: sem afeição, e recebidas sem reconhecimento, nem por isso é permitido omiti-las, porque pelo menos são a imagem daquilo que há de melhor no mundo, que é a amizade; e os homens não podendo contar uns com os outros na realidade, parecem ter combinado entre si contentarem-se com as aparências.

Com cinco ou seis termos de arte, e nada mais, dá-se ares de conhecedor de música, quadros, construções e manjares: pensa-se ter mais prazer do que os outros em ouvir, ver, comer; impõe-se aos seus semelhantes, e se engana a si mesmo.

A corte nunca está desprovida de certo número de pessoas nas quais o trato do mundo, a polidez ou a fortuna fazem as vezes de inteligência e substituem o mérito. Sabem entrar e sair; livram-se da conversa, não tomando parte nela; agradam à força de se calarem, e se tornam importantes por um silêncio muito tempo mantido, ou no máximo, alguns monossílabos: mostram-se por poses, uma inflexão de voz, um gesto, um sorriso: não têm, se ouso dizer, duas polegadas de profundidade; quem aprofundar encontrará o tufo.

Há pessoas às quais a mercê do príncipe acontece como um acidente; são as primeiras a ficar surpreendidas e consternadas: afinal se reconhecem e se acham dignas de sua sorte: e como se a estupidez e a fortuna fossem duas coisas incompatíveis, ou fosse impossível ser feliz e tolo ao mesmo tempo, julgam-se inteligentes, ousam — que digo? — têm a confiança de falar em qualquer ocasião, e sobre qualquer assunto que se possa oferecer, sem nenhum discernimento das pessoas que as ouvem: acrescentaria que espantam ou causam profundo dissabor pela sua fatuidade e sensaboria. É verdade, ao menos, que desonram sem apelação aqueles que têm alguma parte no acaso da sua elevação.

Que nome daria a essa espécie de pessoas que só são astutas para os tolos? Sei, pelo menos, que as pessoas solertes as confundem com aquelas que sabem enganar.

É ter, dado um grande passo na astúcia, fazer pensar de si que só se é mediocremente astuto.

A argúcia não é nem muito boa nem muito má qualidade; ela flutua entre vício e virtude: não há ocasião em que não possa e talvez deva ser substituída pela prudência.

A astúcia é o momento próximo da velhacaria; de uma a outra o passo escorrega: só a mentira faz a diferença; se a acrescentarmos à astúcia, eis a velhacaria.

Com as pessoas que por astúcia ouvem tudo e falam pouco, fale menos ainda; ou, se você falar muito, diga pouca coisa.

Você depende num negócio que é justo e importante, do consentimento de duas pessoas. Uma diz: de pleno acordo, contanto que fulano concorde; fulano concorda, e só deseja certificar-se das intenções do outro. Enquanto isso nada vai adiante: os meses, os anos se passam inutilmente. Diz você: não entendo nada, trata-se apenas de fazer com que eles se reunam e se falem. Eu lhe digo, da minha parte, que vejo claro e compreendo tudo: eles já se falaram.

Parece que quem pede para os outros tem a confiança de um homem que pede justiça, e falando ou agindo por si mesmo se tem o embaraço e pudor de quem pede perdão.

Se não se tomam precauções, na corte, contra as armadilhas que ali se armam incessantemente para fazer cair no ridículo, fica-se espantado, com toda sua inteligência, de se surpreender alvo do riso dos mais tolos.

Há ocasiões na vida em que a verdade e a simplicidade são o melhor ardil do mundo.

Se você é favorito, todo recurso é bom; você não erra, todos os caminhos o levam a termo: do contrário tudo é erro, nada é útil, não há vereda em que não se extravie.

Um homem que viveu na intriga certo tempo não pode mais dispensá-la; qualquer outra vida para ele é insípida.

E preciso ter inteligência para ser homem de facção: pode-se, entretanto, tê-la a um certo ponto em que se está acima da intriga e da facção, e não se deixaria sujeitar-se a ela; vai-se então a grande fortuna ou alta reputação por outros caminhos.

Com inteligência sublime, uma doutrina universal, probidade a toda prova e mérito incontestável, não tema, ó Aristides, cair no conceito da corte ou perder a predileção dos poderosos enquanto eles precisarem de você.

Que se observe um favorito bem de perto; porque, se ele me faz esperar menos na sua antecâmara do que o comum, se tem o rosto risonho, se enruga menos a fronte, se me ouve com mais atenção, e se me reconduz um pouco mais longe, pensarei que começa a cair e pensarei certo.

O homem tem muito poucos recursos em si mesmo, pois que precisa de uma desgraça ou mortificação para tornar-se mais humano, mais tratável, menos feroz, mais probo.

Contemplam-se nas cortes certas pessoas, e vê-se bem, pelo que elas dizem e por sua maneira de se conduzirem, que não pensam nos avós, nem nos netos: o presente é delas? Elas não gozam dele, elas abusam.

Straton(51), nasceu sob duas estrelas: infeliz, feliz, no mesmo grau. Sua vida é um romance: não, falta-lhe o verossímil. Não teve aventuras; teve sonhos bons e sonhos maus; que digo? ninguém sonha como ele viveu. Ninguém tirou de um destino mais do que ele fez; o grandioso e o medíocre são seus conhecidos: brilhou, sofreu, levou uma vida comum; nada lhe escapou. Fez-se valer por virtudes que lhe garantiam seriamente que estavam nele; disse de si: Tenho inteligência, tenho coragem; e todos disseram depois dele: Ele tem inteligência, ele tem coragem. Exerceu numa e noutra fortuna o gênio do cortesão, que disse dele mais coisas boas talvez e mais coisas más do que realmente tinha. O belo, o amável, o raro, o maravilhoso, o heróico, foram empregados para elogiá-lo; e todo o contrário serviu depois para o rebaixar; caráter equívoco, complicado, disfarçado; um enigma, uma interrogação quase indecisa.

O favoritismo põe o homem acima de seus iguais; e sua queda, abaixo.

Aquele que um belo dia sabe renunciar decididamente ao seu nome nobre, ou a uma grande autoridade, ou a uma grande fortuna, liberta-se, nesse momento, de muitas penas, muitas vigílias, e às vezes de muitos crimes.

Dentro de cem anos o mundo subsistirá ainda em sua totalidade: o mesmo teatro e os mesmos cenários; não serão mais os mesmos atores. Todos os que se alegram com uma graça recebida, ou que se entristecem e desesperam com uma recusa, todos terão desaparecido da cena. Já entram no teatro outros homens que vão representar os mesmos papéis na mesma peça: hão de se apagar por sua vez; e aqueles que ainda não existem, um dia não existirão mais; novos atores tomarão o lugar deles: que fundo para fazer destacar uma personagem de comédia!

Quem viu a corte viu do mundo o que há de mais bonito, mais sedutor e mais enfeitado: quem despreza a corte de tê-la visto, despreza o mundo.

A cidade enfastia da província: a corte desengana da cidade, e cura da própria corte.

Um espírito são acha na corte o prazer da solidão e do retiro.


 

DOS NOBRES

 

A prevenção do povo em relação aos nobres é tão cega e a predileção pelo seu gesto, rosto, tom de voz e atitudes está tão generalizada que se eles resolvessem ser bons, isso havia de chegar à idolatria.

Se você nasceu vicioso, ó Teógenes, eu o lamento; se você se tornou assim por fraqueza pelos que têm interesse em vê-lo assim, e juram entre si corrompê-lo, e já se gabam de poder consegui-lo, permita-me que eu o despreze; mas se você é morigerado, temperante, reconhecido, trabalhador, além do mais tem posição e nascimento capaz de dar, exemplos em vez de recebê-los, e concorda com essa gente em seguir, por condescendência, seus desregramentos, vícios e loucuras, quando eles tiverem exercido, pela deferência que lhe devem, todas as virtudes que você aprecia: ironia forte mas útil, muito própria para pôr seus costumes em segurança, destruir todos os projetos deles e obrigá-los a continuar a ser o que são, deixando você tal como é.

A vantagem dos nobres sobre os outros homens é imensa, por um lado.

Deixo para eles o bom passadio, ricas mobílias, cães, cavalos, macacos, anões, truões e aduladores; mas invejo neles a felicidade de ter a seu serviço gente que os iguale pelo coração e inteligência, e que às vezes até são melhores do que eles.

Os nobres se distraem abrindo alamedas na floresta, amparando terras com extensas muralhas, dourando tetos, fazendo vir dez polegadas d’água, guarnecendo uma estufa; mas tornar um coração contente, encher uma alma de alegria, prover à extrema penúria ou remediá-la, eis até onde não chega a curiosidade deles.

Pergunta-se se comparando em conjunto diferentes condições dos homens, suas penas e proveitos, não se notaria uma certa mistura ou espécie de compensação do bem e do mal que estabeleceria igualdade entre essas condições ou, pelo menos, faria com que uma não fosse mais desejável do que a outra. Pode formular tal pergunta alguém poderoso, rico, e ao qual nada falte; mas é preciso que seja um homem pobre quem a responda.

Não deixa de haver como que um encanto, em cada uma dessas diferentes condições, permanecendo ai até que a miséria o tenha esgotado. Assim os grandes gostam do excesso e os pequenos amam a moderação; aqueles gostam de dominar e comandar e estes sentem prazer e mesmo vaidade em servir e obedecer: os nobres são cercados, saudados, respeitados; os plebeus cercam, saúdam, se prosternam; e todos estão contentes.

Custa tão pouco aos nobres dar apenas palavras, e sua condição os dispensa tanto de cumprir as belas promessas que fizeram, que se não prometem com largueza ainda maior, é por modéstia.

Está velho e gasto. diz um nobre; arrebentou a meu serviço: que fazer dele? Outro, mais moço, arrebata suas esperanças e obtém o posto que só se recusa a esse infeliz porque o merece demais.

Não sei — diz você com ar frio e desdenhoso — Filanto tem mérito, inteligência, atrativos, rigor no cumprimento do dever, fidelidade e dedicação ao patrão, no entanto é mediocremente apreciado; não agrada, não gostam dele; explique-se: quem é que você está condenando: Filanto ou o nobre a quem ele serve?

Geralmente é mais útil afastar-se dos nobres do que queixar-se deles.

Quem pode explicar por que alguns ganham a sorte grande e outros a proteção dos poderosos?

Os nobres são tão felizes que nem sequer sofrem, em toda sua vida, o inconveniente de lamentar a perda dos seus melhores servidores ou das pessoas ilustres no seu gênero, das quais tiraram mais prazer e utilidade.

A primeira coisa que a adulação sabe fazer depois da morte desses homens únicos, cuja falta não se preenche, é atribuir-lhes pontos fracos que ela pretende não existirem nos seus sucessores: garante que um, com toda a capacidade e todas as luzes daquele cujo lugar vem ocupar, não tem os defeitos do outro; e esse estilo serve para os príncipes se consolarem do grande e do excelente, com o medíocre.

Os nobres desprezam as pessoas inteligentes que não têm mais que inteligência; as pessoas inteligentes desprezam os nobres que só têm nobreza; a gente de bem, lamenta uns e outros quando têm nobreza ou inteligência sem nenhuma virtude.

Quando vejo, de um lado, perto dos nobres, à sua mesa, ou às vezes na sua intimidade, esses homens solertes, intrigantes, aventureiros, espíritos, perigosos e prejudiciais, e considero por outro lado que dificuldade têm as pessoas de mérito para se aproximarem, nem sempre me disponho a acreditar que as pessoas desagradáveis sejam suportadas por interesse e as de bem consideradas inúteis;, acho-me mais disposto a confirmar este pensamento: grandeza e discernimento são duas coisas diferentes e o amor pela virtude e pelos, virtuosos, uma terceira coisa.

Lucila gosta mais de gastar sua vida se fazendo suportar por alguns nobres do que ser reduzida a viver familiarmente com seus iguais.

A regra de ver gente superior a si deve ter suas restrições: é preciso às vezes estranhos talentos para reduzi-la em prática.

Qual é a doença incurável de Teófilo(52)? Dura há mais de trinta anos: ele não se cura: quis, quer e quererá governar os nobres; só a morte lhe há de tirar, com a vida, esta sede de império e ascendência sobre os espíritos: será zelo pelo próximo? Será hábito? Será uma opinião excessiva sobre si mesmo? Não há palácio em que não se insinue; não é no meio de um quarto que ele para; passa no vão da porta ou do gabinete: espera-se que tenha falado, e muito, e com ação, para ter audiência, para ser visto Entra no segredo das famílias: contribui com alguma coisa em tudo que lhes acontece de triste ou proveitoso: antecede todo mundo, se oferece, mete-se na festa; é preciso admiti-lo. Não basta, para encher seu tempo ou sua ambição, o cuidado de dez mil almas pelas quais responde perante Deus como pela própria; há gente de mais alta categoria e maior distinção, pela qual não tem que prestar contas, e da qual se encarrega de bom grado. Ouve, vela por tudo o que pode servir de pasto a seu espírito de intriga, mediação ou manejo: mal um nobre desembarcou, assenhoreia-se dele; antes que se tenha podido suspeitar que Teófilo queria governá-lo já se ouve Teófilo dizer que o governa.

Uma frieza ou incivilidade que vem daqueles que estão acima de nós nos faz odiá-los; mas um sorriso ou um cumprimento logo nos reconcilia com eles.

Há homens soberbos que a elevação de seus rivais humilha e amansa; chegam, com essa desgraça, até ao ponto de corresponderem ao nosso cumprimento; mas o tempo, que adoça tudo, afinal os repõe no seu natural.

O desprezo que os nobres têm pelo povo torna-os indiferentes em relação às lisonjas ou louvores que recebem, e tempera sua vaidade; assim também os príncipes louvadas infinitamente e sem descanso pelos nobres ou cortesãos, seriam ainda mais presunçosos se por sua vez apreciassem aqueles que os louvam.

Os nobres julgam-se os únicos perfeitos, dificilmente admitem nos outros homens retidão de espírito, engenho, escrúpulo, e se apossam desses ricos talentos como coisas devidas ao seu nascimento. No entanto é erro grosseiro alimentar-se com essas falsas prevenções: tudo o que já houve de melhor pensado, de melhor dito, de melhor escrito, talvez de conduta mais delicada, nem sempre nos veio de sua essência. Têm grandes domínios e extensa fila de antepassados: isso não lhes pode ser contestado.

Você tem inteligência, grandeza, sagacidade, gosto, discernimento? Devo acreditar na prevenção e adulação que divulgam audaciosamente o seu mérito? Elas me são suspeitas: recuso-as. Deixar-me-ia ofuscar por um ar de capacidade ou de altaneria que o coloca acima de tudo o que se faz, se diz, e se escreve; que o torna seco para louvores e impede que se possa arrancar de você a menor aprovação? Concluo daí, mais naturalmente, que você tem proteção, crédito e grandes riquezas. Qual é o meio para defini-lo, Telefon? A gente só se aproxima de você como do fogo, e numa certa distância; seria preciso desvendá-lo, conhecê-lo de perto, confrontá-lo com seus semelhantes, para fazer de você um juízo são e razoável. Seu homem de confiança, que goza da sua intimidade, com o qual você se aconselha, pelo qual você deixa Sócrates e Aristides, com o qual você ri, e que ri mais alto do que você, enfim esse, Dave, conheço-o muito bem: seria isso bastante para conhecer você?

Há gente que se pudesse conhecer seus subalternos e conhecer-se a si mesma teria vergonha de sobressair.

Se há poucos oradores excelentes, haverá muita gente que possa ouvi-los? Se não há bastantes escritores bons, onde estão os que sabem ler? Da mesma forma houve queixas contra o pequeno número de pessoas capazes de aconselhar o rei e ajudá-lo na administração de seus negócios Mas se afinal nascem esses homens hábeis é inteligentes, se agem segundo seu modo de ver e suas luzes, serão amados, serão apreciados tanto quanto merecem? Serão louvados pelo que pensam e fazem pela pátria? Eles vivem, é quanto basta: censuram-nos se fracassam, invejam-nos se têm êxito.

Censuremos o povo onde seria ridículo querer desculpar: seu pesar e sua inveja, olhados pelos nobres e poderosos como inevitáveis, conduziram estes últimos, insensivelmente, a não contar com ele, desprezar seus sufrágios em todas as suas iniciativas e fazer deste desprezo uma regra de política.

Os pequeninos se odeiam uns aos outros quando se prejudicam reciprocamente. Os nobres são odiosos para os plebeus pelo mal que lhes fazem e por todo o bem que não lhes fazem: são responsáveis pela obscuridade deles, pela sua pobreza e infortúnio; ou pelo menos parecem sê-lo.

Já é demais ter de comum com o povo uma mesma religião e um mesmo Deus: como pode ainda chamar-se Pedro, João ou Jaques, como o negociante ou o lavrador. Evitemos ter qualquer coisa de comum com a multidão; afetemos, ao contrário, todas as distinções que nos separam dela: ela que se aproprie dos doze apóstolos, seus discípulos, os primeiros mártires (tal gente, tais patronos); ela que veja com prazer voltar todos os anos esse dia especial que cada um celebra como o dia de seu padroeiro. Quanto a nós, nobres, recorramos aos nomes profanos: façamo-nos batizar com os nomes de Anibal, César e Pompeu, que eram grandes homens; com o de Lucrécia, que era uma ilustre romana; com os de Renaud, Rogério, Oliveiros e Tancredo, que eram paladinos, e o romance não tem heróis mais maravilhosos; com os de Heitor, Aquiles, Hércules, todos semideuses; até mesmo com os de Febo e Diana; e quem nos impediria de nos chamarmos Júpiter, Mercúrio, Venus, Adonis?

Os nobres descuidam conhecer qualquer coisa, já não digo apenas os interesses dos príncipes e negócios públicos, mas os seus próprios interesses e negócios; já que ignoram a economia de um pai de família e, louvam a si mesmos pela sua ignorância, deixam-se empobrecer e dominar por seus intendentes; contentam-se em ser gastrônomos ou coteaux(53), ir à casa de Tais ou de Frinéia falar da matilha e velha matilha, dizer quantas postas de muda há de Paris a Besançon e a Filisburgo; enquanto isso há cidadãos que se instruem sobre a arte de governar, tornam-se finos e políticos. Os nobres que os desdenhavam, fazem-lhes reverências: são felizes quando se tornam seus genros!

Se comparo as duas condições mais opostas dos homens, quero dizer, os nobres e o povo, este último me parece contente com o necessário e os outros inquietos e pobres com o supérfluo. Um homem do povo não saberia fazer nenhum mal; um nobre não quer nenhum bem e é capaz de grandes malefícios; um, só se forma e se exerce nas coisas úteis; o outro, acrescenta as perniciosas: ali, se mostram ingenuamente a grosseria e a franqueza; aqui, se esconde uma seiva maligna e corrompida sob a casca da polidez: o povo não tem espírito e os nobres não têm alma; aquele tem bom fundo e não tem boa aparência; estes só têm aparências e uma simples superfície. Será preciso optar? Não hesito: quero ser povo.

Por profundos que sejam os grandes da corte, e por grande que seja a arte que empregam em parecer o que não são e não parecer o que são, não conseguem esconder sua malignidade, sua extrema tendência para rir à custa dos outros e freqüentemente atirar ridículo onde não pode haver; esses belos talentos se descobrem neles à primeira vista: admiráveis, sem dúvida, para embrulhar um simplório e tornar mais estúpido aquele que já é estúpido; mas ainda mais próprios para tirar-lhes todo o prazer que poderiam ter diante de um homem inteligente que soubesse desdobrar-se em mil atitudes agradáveis e divertidas! se o perigoso caráter do cortesão não o forçasse a uma grande circunspecção. Opõe-lhe um caráter sério, no qual se entrincheira, e faz isso com tanta perícia que aos caçoistas, com intenções tão más, faltam ocasiões de zombar dele.

Os gozos da vida, a abundância, a calma de uma grande prosperidade, fazem com que os príncipes tenham alegria de sobra para rir de um anão, dum macaco, dum imbecil e duma anedota sem graça: as pessoas menos felizes só riem quando há motivo.

Um nobre gosta de Champagne, detesta Brie; embebeda-se com melhor vinho que o homem do povo: única diferença que a crápula deixa entre as condições mais desproporcionadas, entre o senhor e o estafeiro(54).

Parece à primeira vista entrar nos prazeres dos príncipes um pouco daquilo que consiste em incomodar os outros; mas não; os príncipes parecem com os homens; pensam em si, seguem seu próprio gosto, suas paixões, suas comodidades: isso é natural.

Parece que a primeira regra das companhias e das pessoas que ocupam altas posições é dar àqueles que dependem deles para o cuidado de seus negócios, todos os obstáculos que eles podem temer.

Se um nobre tem algum grau de felicidade acima dos outros homens, não percebo qual, a não ser que seja, talvez, o de se achar freqüentemente com poder e ocasião de dar prazer aos outros, e se essa circunstância nasce, parece que ele deve servir-se dela: se é em favor de um homem de bem deve temer que ela lhe escape. Quando é numa coisa justa deve prevenir a solicitação, e só ser visto para receber os agradecimentos; e se ela é fácil, não deve nem sequer fazê-la valer: se a deixa passar, lamento os dois.

Há homens inacessíveis de nascença, e são precisamente aqueles de quem os outros têm necessidade, dos quais dependem: estão sempre de pé atrás; móveis como mercúrio, piruetam, gesticulam, gritam e se agitam, semelhantes a essas figuras de papelão que servem de enfeite numa festa pública, lançam fogo e chama, trovejam e relampeiam: ninguém se aproxima, até que vindo a extinguir-se, caem, e com sua queda se tornam tratáveis, mas inúteis.

O suíço, o criado de quarto, o homem de libré, se não têm mais inteligência do que a de sua condição, não julgam mais de si mesmos pela sua humildade, e sim pela elevação e fortuna das pessoas a quem servem, e põem todos os que entram pela sua porta e mostram a escada indiferentemente abaixo deles e de seus senhores: tanto é verdade que se é destinado a aturar dos nobres e daqueles que lhes pertencem!

Um alto dignitário deve amar seu príncipe, sua mulher, seus filhos, e depois deles os homens inteligentes: deve adotá-los; deve abastecer-se deles e não os deixar faltar. Nunca seria demais pagar, não digo com pensões e benefícios demais, mas com demasiadas atenções e familiaridades, os auxílios e serviços que eles lhe dão, mesmo sem que ele saiba: quantos rumores dissipam! Sabem justificar até os maus sucessos pelas boas intenções, provar a bondade de um intuito e a justeza de suas medidas com a felicidade dos acontecimentos; levantar-se contra a maledicência e a inveja para atribuir, a boas iniciativas, motivos ainda melhores; dar explicações favoráveis a aparências más; desviar os pequenos defeitos, só mostrar virtudes, e trazê-las à luz; semear, em mil ocasiões, fatos e detalhes vantajosos e provocar o riso e a zombaria contra aqueles que ousam duvidar o sustentar fatos contrários. Sei que os nobres têm por máxima deixar falar e continuar agindo; mas sei também que lhes acontece, diversas vezes, que o deixarem que se fale os impede de fazer.

Sentir o mérito, e uma vez que é conhecido, tratá-lo bem: duas grandes providências a tomar, imediatamente, e das quais a maior parte dos nobres é completamente incapaz.

Tu és grande, és poderoso; não basta: faz com que eu te estime, a fim de que eu fique triste por decair de tuas boas graças ou por não ter podido adquiri-las.

Você diz de um nobre ou de um alto dignatário que ele é cortês e prestativo; que gosta de dar prazer: e confirma isso por um longo relato, a respeito do que ele fez num negócio em que soube que você tinha interesse. Eu entendo: você quer dizer que por sua causa se toma imenso interesse pela sua solicitação; Você está bem com as potências: desejava que eu soubesse outra coisa?

Alguém lhe diz: “Queixo-me de fulano; está vaidoso com sua grandeza; desdenha-me, não me conhece mais. — Não tenho, por minha parte, diz você, nenhum motivo para me queixar dele: ao contrário, só tenho de que elogiá-lo; e me parece que ele é bastante cortês”. Julgo compreendê-lo uma vez mais: você quer que se saiba que um alto dignatário é atencioso com você, o reconhece na antecâmara entre mil pessoas de bem das quais desvia os olhos, por medo de cair no inconveniente de lhes retribuir cumprimento ou lhes sorrir.

Gabar alguém, gabar um nobre, frase delicada na origem, e que significa, sem dúvida, louvar-se a si mesmo dizendo de um nobre todo o bem que nos fez ou que nem pensou em nos fazer.

Quem elogia os nobres, é para acentuar que os vê de perto; raramente por estima ou gratidão: muitas vezes nem conhece aqueles que louva. A vaidade ou leviandade vence às vezes o ressentimento: está descontente com eles, mas lhes faz elogios.

Se é perigoso meter-se num negócio suspeito, mais ainda é ser nisso cúmplice de um nobre ele se desembaraça e o deixa pagar duplamente, por ele e por você.

Não basta toda a fortuna do príncipe para pagar uma baixa complacência, se se julga por tudo o que aquele que ele quer recompensar pôs de si no caso; e nem todo o seu poder é bastante para puni-lo, se se medir a vingança pelo dano que recebeu.

A nobreza expõe sua vida pela salvação do Estado e pela glória do soberano; o magistrado alivia o príncipe de uma parte do encargo de julgar os povos; eis, de uma e de outra parte, funções bem sublimes e de maravilhosa utilidade. Os homens não são capazes de maiores coisas; não sei onde a toga e a espada foram buscar motivo para se desprezarem mutuamente.

Se é verdade que um nobre se entrega mais ao destino quando aventura uma vida destinada a correr no risco, prazer e abundância, do que um indivíduo qualquer que só arrisca dias miseráveis, é preciso confessar também que ele tem muito mais compensação, que é a glória e a alta reputação. O soldado não aspira a ser célebre; morre obscuro na multidão: vivia da mesma forma, é verdade, mas vivia; eis uma das fontes da falta de coragem nas camadas baixas e servis. Aqueles que, ao contrário, o nascimento separou do meio do povo, e expõe aos olhos dos homens, à sua censura e ao seu elogio, são até capazes de sair daí por esforço de temperamento, se não fossem levados à virtude; e essa disposição de coração e inteligência, que se transmite dos antepassados dos pais e seus descendentes, é essa bravura tão familiar às pessoas nobres e talvez à própria nobreza.

Joguem-me nas tropas como simples soldado, sou TERSITES; ponham-me à frente de um exército pelo qual eu tenha de responder perante a Europa inteira, sou AQUILES.

Os príncipes, sem outra ciência nem outra regra, têm o gosto por comparação: nasceram e se educaram no meio e como que no centro das coisas melhores, com as quais relacionam o que lêem, o que vêm e o que ouvem. Tudo o que se afasta muito de LULLI, de RACINE e de LE BRUN é condenado.

Só falar aos príncipes jovens do zelo pela sua categoria é um excesso de precaução quando toda uma corte dedica seu dever e uma parte de sua polidez a respeitá-los e eles estão muito menos sujeitos a ignorar qualquer das atenções devidas ao seu nascimento do que a confundir as pessoas e tratá-las indiferentemente, sem distinção pelas suas condições e títulos. Têm um orgulho natural que recobram nas ocasiões; só precisam de lições para regulá-lo, inspirar-lhes bondade, probidade, e espírito de discernimento.

É pura hipocrisia um homem de certa elevação não tomar logo o lugar que lhe é devido, e que todo mundo lhe cede. Não lhe custa nada ser modesto, misturar-se com a multidão que vai se abrir para ele, tomar numa assembléia um último lugar, a fim de que todos o vejam ali e se apressem em tirá-lo. A modéstia é mais difícil aos homens de condição ordinária: se se atiram na multidão, esmagam-nos; se escolhem um lugar incômodo, ali se fixam.

Aristarco comparece em praça pública com um arauto e um corneteiro: este começa, toda a multidão acorre e se reúne. Ouve, povo, diz o arauto; presta atenção; silêncio, silêncio! Aristarco, que aqui vês, vai fazer amanhã uma boa ação. Eu diria mais simplesmente e sem imagem: Alguém que faz o bem quererá fazer melhor? Que eu não saiba do que ele faz, ou que pelo menos não suspeite dele me ter comunicado o que fez.

As melhores ações se alteram e enfraquecem pela maneira por que são praticadas, e deixam até duvidar das intenções. Aquele que protege ou louva a virtude pela virtude, que corrige ou reprova o vício por causa do vício a simplesmente, naturalmente, sem nenhum rodeio, sem nenhuma singularidade, sem ostentação, sem afetação: não usa respostas graves e sentenciosas, ainda menos os detalhes picantes e satíricos; não é nunca uma cena que ele representa para o público, é um bom exemplo que dá e um dever que cumpre; não fornece nada às visitas das mulheres, nem ao pavilhão(55), nem aos jornalistas; não dá a um homem espirituoso matéria para boa anedota. O bem que acaba de fazer é um pouco menos sabido, na verdade; mas fez esse bem; que é que ele queria mais?

Os nobres não devem gostar dos tempos primitivos; não lhes são favoráveis: é triste para eles ver que saímos todos de irmão e irmã, Os homens compõem em conjunto uma única família; só há o mais e o menos nos graus de parentesco.

Teognis é requintado nos seus arranjos e sai enfeitado como uma mulher: ao sair de casa já compôs os olhos e o rosto, a fim de ficar tranqüilo em público, e aí aparecer preparadíssimo, e os transeuntes o acharem gracioso, lhe sorrirem, e nenhum lhe escapar. Se anda nas salas, vira-se à direita, onde há muita gente, e à esquerda, onde não há ninguém; saúda os que estão e os que não estão ali. Abraça um homem que se acha ao seu alcance; aperta-lhe a cabeça junto ao peito; depois pergunta quem é aquele que ele abraçou. Alguém precisa dele num negócio fácil, procura-o, faz-lhe o pedido: Teognis ouve favoravelmente; está encantado por servi-lo em alguma coisa, concita-o a fazer nascer essas ocasiões de lhe prestar serviço; e como este insiste no seu negócio, diz-lhe que não fará nada; roga-lhe que se ponha no seu lugar, faz dele o juiz de sua causa: o cliente sai acompanhado até à porta, lisonjeado, confuso, quase contente por ter sido rejeitado.

Panfilo não conversa com as pessoas que encontra nas salas ou no paço: a julgar pela sua gravidade e elevação de sua voz, ele as recebe, dá-lhes audiência, despede-as. Há termos ao mesmo tempo polidos e altivos, polidez imperiosa, que ele emprega sem discernimento: tem uma falsa grandeza que o rebaixa, e embaraça muito os que são seus amigos e não querem desprezá-lo.

Um Panfilo está cheio de si, não se perde de vista, não vai além da idéia de sua grandeza, de seu parentesco, de seu cargo, de sua dignidade: ajunta, por assim dizer, todas as suas peças, se cobre com elas para se fazer valer; diz: Minha ordem, minhas insígnias honoríficas: ostenta-as ou as esconde por ostentação: um Panfilo, numa palavra quer ser nobre; julga que o é, e não é; é segundo um nobre; se às vezes sorri para um homem de última ordem, um homem inteligente, escolhe ocasião tão oportuna que nunca é surpreendido nesse momento: o rubor cobriria sua face se desgraçadamente o surpreendessem na menor familiaridade com alguém que não é opulento, nem poderoso, nem amigo de ministro, nem seu parente, nem seu empregado. É severo e inexorável para quem ainda não fez fortuna; encontra-se com você, uma vez, numa galeria, e o evita; no dia seguinte, se o encontra num lugar menos público, ou se é público, na companhia de um nobre, toma coragem, chega junto de você e lhe diz: Você ontem fingiu que não me estava vendo. Logo o deixa bruscamente para juntar-se a um senhor ou um primeiro escriturário; e logo, se os encontra em conversa com você, corta a conversa e os arranca de junto de si. Outra ocasião você o aborda e ele não para; faz-se acompanhar; fala tão alto que é uma cena para quem passa. Também os Panfilos estão sempre como no teatro; gente alimentada de falsidades, que odeia a naturalidade mais do que tudo na vida; verdadeiras personagens de comédia, dos Floridors, dos Mondoris.

Não se esgota o assunto sobre os Panfilos: são rastejantes e tímidos diante dos príncipes e ministros, cheios de altaneria e confiança com aqueles que só têm virtude, mudos e atrapalhados diante dos sábios; vivos, audaciosos e arrogantes com aqueles que nada sabem. Falam de guerra a um homem de toga, e de política a um financista; sabem história com as mulheres, são poetas com um doutor, e geômetras com um poeta. De máximas, não se encarregam; de, princípios, ainda menos; vivem ao acaso, empurrados e arrastados pelo vento das proteções e pela atração das riquezas. Não têm opinião que seja deles, que lhes seja própria; tomam emprestadas, à medida que necessitam delas; e aquele a quem recorrem não é um homem instruído, ou competente; é um homem que está na moda.

Temos pelos nobres e para as pessoas de destaque um ciúme estéril, ou um ódio impotente que não nos vinga de seu esplendor e elevação, e só faz acrescentar à nossa própria miséria o peso insuportável da felicidade alheia: que fazer contra uma doença da alma tão inveterada e contagiosa? Contentemo-nos com pouco e com menos ainda, se possível; saibam perder na ocasião; a receita é infalível, e concordo em experimentá-la: evito com isso ser empurrado na porta pela multidão de clientes ou cortesãos que a casa de um ministro despeja diversas vezes por dia; penar na sala de audiência, pedir tremendo ou balbuciando uma coisa justa; suportar a gravidade do ministro, seu riso amargo, e seu laconismo. Então não o odeio mais, e não o invejo mais; ele não me faz nenhuma súplica, eu não lhe faço nenhuma; somos iguais, a não ser no fato dele não estar tranqüilo, e eu estar.

Se os nobres têm ocasiões de nos fazer o bem, raramente têm vontade de fazê-lo; e se desejam fazer-nos mal, nem sempre encontra ocasião. Assim se pode ser iludido na espécie de culto que se rende a eles, se esse culto só se funda na esperança ou no temor; e uma longa vida às vezes termina sem que aconteça depender deles para o menor interesse, ou sem que se deva a eles boa ou má fortuna. Nós devemos respeitá-los porque são nobres e nós somos plebeus; e porque há outros mais plebeus do que nós que nos respeitam.

Na corte, na cidade, as mesmas paixões, mesmas fraquezas, mesmas baixezas, mesmos caprichos, mesmas desavenças nas famílias e entre os parentes, mesmas invejas, mesmas antipatias: por toda parte noras e sogras, maridos e mulheres, divórcios, rupturas e reconciliações imperfeitas; por toda parte descontentamentos, cóleras, parcialidades, queixas e aquilo a que se dá o nome de má palavra: com bons olhos vê-se sem dificuldade a cidadezinha, a rua São Diniz, como transportadas a V. ou a F.(56) Aqui e pensa odiar com mais orgulho e sobranceria, e talvez com mais dignidade: as pessoas se prejudicam umas às outras com mais habilidade e finura; as cóleras são mais eloqüentes, e se dizem injúrias mais polidamente e em melhores termos; aqui não se fere a pureza da língua; aqui só se ofendem os homens ou sua reputação: todas as aparências do vicio são especiosas; mas o fundo, ainda uma vez, é o mesmo que nas condições mais humildes: tudo o que é baixo, fraco e indigno se encontra aqui. Esses homens, tão nobres por nascimento, ou por graças concedidas, ou altas dignidades, essas cabeças tão fortes e tão hábeis, essas mulheres tão polidas e espirituosas todos desprezam o povo; e são povo.

Quem diz povo diz mais de uma coisa: é uma vasta expressão; e a gente se espantaria de ver o que ela subentende e até onde se estende. Há o povo que é oposto aos nobres: é o populacho e a multidão; há o povo oposto aos instruídos, aos competentes e aos virtuosos: são tanto os nobres como os plebeus.

Os nobres se governam por sentimento: almas ociosas sobre as quais tudo faz, à primeira vista, viva impressão. Uma coisa acontece, eles falam demais naquilo, logo falam pouco, depois não falam mais, e nunca mais falarão: ação, conduta, obra, acontecimento, tudo é esquecido; não lhe peçam correção nem previdência, nem reflexão, nem reconhecimento, nem recompensa.

A gente se coloca em extremidades opostas em relação a certas personagens. A sátira, depois de sua morte, corre entre o povo, enquanto nas abóbadas dos templos ressoam seus elogios. As vezes não merecem nem libelos nem discursos fúnebres às vezes também são dignos de ambos.

Deve-se silenciar sobre os poderosos: há quase sempre adulação em dizer bem deles; há perigo em dizer mal enquanto vivem, e covardia quando já morreram.


 

DO SOBERANO OU DA REPÚBLICA

 

Quando se passam em vista, sem quaisquer prejuízos sobre o próprio país, todas as formas de governo, não se sabe qual a preferível; há em todas o menos bom e o menos mau.

O mais razoável e certo é julgar aquela em que se nasceu a melhor de todas e se submeter a ela.

Não é preciso arte nem ciência para exercer a tirania; e a política que só consiste em fazer derramar sangue é muito restrita e não requer nenhuma sutileza; ela inspira a matar aqueles cuja vida é obstáculo à nossa ambição: um homem nascido cruel pratica crueldades sem esforço; é a maneira mais horrível e mais grosseira de se sustentar no poder ou aumentá-lo.

É uma política segura e antiga nas repúblicas, embriagar o povo com festas, espetáculos, luxo, fausto, prazeres, vaidade e moleza; deixá-lo encher-se de vazio .e ocupar-se com frivolidades: que grandes concessões não se fazem ao déspota por essa indulgência!

Não há pátria para o despotismo; outras coisas suprem sua falta: a cobiça, a glória, o serviço do príncipe.

Quando se quer mudar e inovar numa república, consideram-se menos as coisas do que o tempo. Há conjunturas em que se sente muito bem que nunca seria demais atentar contra o povo; há outras em que é claro que nunca é demais respeitá-lo. Você hoje pode tirar a uma cidade suas franquias, direitos, privilégios, mas amanhã não pense nem mesmo em reformar suas insígnias.

Quando o povo está agitado não se compreende por onde a calma pode entrar; e quando está calmo, não se percebe por onde a calma pode sair.

Há certos males na república que são suportados, porque prevêem ou impedem males maiores; há outros que o são apenas em seus fundamentos e que, sendo na origem um abuso ou uso nocivo, são menos perniciosos em suas conseqüências, na prática, do que uma lei mais justa ou um costume mais razoável.

Vê-se uma espécie de males corrigíveis pela mudança ou novidade, que é um mal; e mal muito perigoso; há em outros escondidos e enterrados como imundícies numa cloaca, quero dizer, sepultados sob a vergonha, sob o segredo e na obscuridade: não se pode escavá-los, e remexê-los sem que exalem veneno e infâmia; os mais prudentes às vezes duvidam se é melhor conhecer esses males ou ignorá-los. Às vezes se tolera num Estado um, grande mal que evita um milhão de pequenos males ou inconvenientes, os quais seriam todos inevitáveis e irremediáveis.

Há males que fazem sofrer a cada cidadão, e se tornam, entretanto, num bem público, muito embora o público não seja outra coisa que a reunião de todos os cidadãos.

Há males pessoais que concorrem para o bem e proveito de cada família.

Há males que afligem, arruinam ou desonram as famílias, mas que tendem para o bem e conservação da máquina do Estado e do governo. Outros males derrubam Estados, e sobre as ruínas elevam novos. Viram-se enfim outros que destruíram os fundamentos de grandes impérios e os fizeram desaparecer da face da terra, para variar e renovar a face do universo.

Que importa ao Estado que Ergasto seja rico, tenha cachorros que saibam acuar bem, seja criador de modas nas carruagens e nas roupas, tenha o supérfluo em abundância?

Onde se trata do interesse e das comodidades de todo o público, leva-se em conta o particular?

O consolo dos povos nas coisas que lhes pesam um pouco é saber que aliviam o príncipe ou só enriquecem a ele: não se julgam devedores de Ergasto pelos requintes de sua fortuna.

A guerra tem por si a antigüidade; existiu em todos os séculos: sempre foi vista enchendo o mundo de viúvas e órfãos, privando as famílias de herdeiros, e fazendo perecerem irmãos na mesma batalha.

Jovem SOYECOUR(57), lamento tua virtude, teu valor, teu espirito maduro, penetrante, educado, sociável; lamento essa morte prematura, que te une ao teu intrépido irmão e te arrebata a uma corte onde mal te mostraras: desgraça deplorável mas ordinária.

Em todos os tempos os homens, por algum pedaço de terra de mais ou de menos, combinaram entre si despojarem-se, queimarem-se, trucidarem-se, esganarem-se uns aos outros; e para fazê-lo mais engenhosamente e com maior segurança, inventaram belas regras às quais se deu o nome de arte militar; ligaram à prática dessas regras a glória, ou a mais sólida reputação; e depois ultrapassaram uns aos outros na maneira de se destruírem mutuamente.

Da injustiça dos primeiros homens, como da sua origem comum, veio a guerra, assim como a necessidade em que se acharam de adotar senhores que fixassem seus direitos e pretensões. Se, contente com o que se tinha, se tivesse podido abster-se dos bens dos vizinhos, ter-se-ia para sempre paz e liberdade.

O povo tranqüilo nos lares, nas famílias e no seio de uma grande cidade onde nada tem a temer para seus bens nem para a vida, anseia por fogo e sangue, ocupa-se de guerras, ruínas, braseiros e matanças, suporta impacientemente que os exércitos que mantêm a campanha não tenham recontros, ou se já se encontraram, não sustentem combate, ou se se enfrentam, não seja sangrento o combate, e haja menos de dez mil homens no local. Muitas vezes chega a esquecer seus mais caros interesses, o repouso e a segurança, pelo amor que tem à mudança e pela mania da novidade ou das coisas extraordinárias. Alguns consentiriam em ver outra vez os inimigos às portas de Dijon ou de Corbie, ver estender correntes e fazer barricadas, só pelo prazer de saber ou de comunicar a notícia. Demófilo, à minha direita, se lamenta e exclama: tudo está perdido, era uma vez o Estado; pelo menos está próximo da ruína. Como resistir a uma conjuração tão forte e generalizada? Que meio haverá, já não digo de ser superior, mas de agüentar sozinho contra inimigos tão poderosos? Isso é sem exemplo na monarquia. Um herói, um AQUILES, ai sucumbiria. Praticaram-se, diz ele, erros imensos: sei bem o que digo, conheço o ofício, vi a guerra e a história muito me ensinou. Nesse momento, fala com admiração em Oliver Le Daim e Jaques Coeur(58): esses eram homens, diz ele, esses é que eram ministros.

Espalha, as notícias mais tristes e desvantajosas que se poderiam forjar: uma hora o partido dos nossos foi atraído numa emboscada e esfacelado; outra hora algumas tropas sitiadas num castelo se entregaram aos inimigos à discrição, e foram passadas na espada. E se você diz que esse boato é falso, e não teve confirmação, ele não ouve: logo acrescenta que o general tal foi morto; e apesar da verdade ser que ele só recebeu ferimento ligeiro, e assim você garanta, ele deplora a morte do general, lamenta a viúva, os filhos, o Estado; lamenta-se a si mesmo; perdeu um grande amigo e uma grande proteção. Diz que a cavalaria alemã é invencível: empalidece só de ouvir o nome dos couraceiros do imperador. Se atacarem esta praça, continua ele, levantar-se-á o sítio ou se ficará na defensiva sem dar combate; ou se o combate se efetuar, vai-se perdê-lo; e se o perdemos, eis o inimigo na fronteira. E como Demófilo dá asas aos inimigos, ei-los no coração, do reino: já vai tocar o sino de rebate das cidades e gritar alarme; pensa em seus bens e suas terras: para onde conduzirá sua família? Onde se refugiará? Na Suíça ou em. Veneza?

Mas à minha esquerda, Basilídio levanta de repente um exército de trezentos mil homens; não abateria nesse número nem uma brigada: tem a lista dos esquadrões e dos batalhões, dos generais e dos oficiais; não esquece nem a artilharia, nem a bagagem. Dispõe absolutamente de todas essas tropas: envia tantas para a Alemanha e tantas para Flandres; reserva certo número para os Alpes, um pouco menos para os Pireneus, e faz o restante atravessar o mar. Conhece as marchas desses exércitos, sabe o que farão e o que não farão; dir-se-ia que é o dono do ouvido do príncipe ou dos segredos do ministro. Se os inimigos acabam de perder uma batalha na qual tenham ficado em campo uns nove ou dez mil homens dos seus, ele conta trinta mil, nem mais nem menos; porque esses números são sempre fixos e certos, como os de alguém bem informado. Se de manhã sabe que os nossos perderam um arraial, não só manda desavisar os amigos que na véspera convidara para jantar, como chega ele próprio a não jantar, e se come, é sem apetite. Se os nossos sitiam uma praça muito forte, muito regular, provida de víveres e munições, com boa guarnição, comandada por homem de grande coragem, diz ele que a cidade tem pontos fracos e mal fortificados, que lhe falta pólvora, que seu governador é inexperiente e capitulará depois de oito dias de trincheira aberta. Outra vez acorre esbaforido, e depois de respirar um pouco exclama: eis uma grande notícia: foram desbaratados de forma esmagadora; o general, os chefes, pelo menos boa parte deles, tudo foi morto, tudo pereceu. Eis, continua, um grande massacre, é preciso concordar que estamos com muita felicidade. Senta-se, respira depois de ter dado essa notícia à qual só falta uma circunstância: é que é certo não ter havido batalha. Além do mais, garante que o príncipe fulano renuncia à liga e abandona seus confederados; que um outro se dispõe a tomar o mesmo partido; acredita firmemente, com o populacho, que morreu um terceiro, aponta o lugar em que está enterrado; e quando no mercado e nos subúrbios todos já estão desenganados, ele ainda aposta a favor da afirmativa. Sabe, por via insuspeita, que T. K. L(59) faz grandes progressos contra o imperador; que o grão-senhor se arma poderosamente e não quer saber de paz e seu vizir vai se mostrar de novo diante das portas de Viena: bate com as mãos, estremece só de falar nesse acontecimento, sobre o qual já não tem dúvida. A tríplice aliança para ele é um Cérbero e os inimigos outros tantos monstros a esmagar. Só pensa e fala em louros, palmas, triunfos, troféus. Diz, nas conversas domésticas: Nosso augusto herói, nosso grande potentado, nosso invencível monarca. Reduza-o, se puder, a dizer simplesmente: O rei tem muitos inimigos; são poderosos, se uniram, se exasperaram: ele os venceu; espero que sempre há de poder vencê-los. Esse estilo, por demais firme e decisivo para Demófilo, não é bastante pomposo nem bastante exagerado para Basilídio: tem expressões muito diferentes na cabeça; trabalha para as inscrições nos arcos e pirâmides que devem ornamentar a cidade principal num dia de comemoração guerreira; e desde que ouve dizer que os exércitos se enfrentam, ou que se investe contra uma praça, manda desdobrar a roupa de gala e pô-la ao sol a fim de aprontá-la para a cerimônia da catedral.

É preciso que o essencial de um caso que reúne numa cidade plenipotenciários ou agentes das coroas e repúblicas seja de longa e extraordinária discussão, para lhes custar mais tempo, já não digo que os simples preliminares, mas que o simples regulamento do protocolo, discriminação dos lugares segundo os postos, e outras cerimônias.

O ministro ou plenipotenciário é um camaleão, um proteu: parecido às vezes com um jogador hábil, não mostra sua disposição de espírito, nem seu temperamento, seja para não dar lugar a conjecturas ou se deixar penetrar, seja para não deixar escapar nada do seu segredo por paixão ou fraqueza. Às vezes também sabe dissimular o caráter de acordo com seus objetivos e as necessidades em que se encontra, parecendo ser aquilo que deseja que os outros pensem que de fato é. Assim num grande poderio, ou num grande desprestígio que queria dissimular, mostra-se firme e inflexível, para aniquilar os desejos de obter muito de sua parte; ou então se mostra condescendente para dar aos outros ocasião de lhe pedir, e então se atribuir o mesmo direito.

Outras vezes é profundo e dissimulado para esconder uma verdade ao anunciá-la, porque lhe interessa que ela seja dita e não seja acreditada; ou se mostra franco e expansivo a fim de que, quando dissimula o que não deve ser conhecido, todos julguem não ignorar nada do que querem saber, e se convençam de que ele disse tudo

Da mesma forma, ou é vivo e palrador, para fazer os outros falarem, impedir que lhe falem daquilo que não quer que se fale ou daquilo que ele não deve saber, para dizer diversas coisas indiferentes que se modificam ou se destroem umas às outras, confundem os espíritos no temor e na confiança, para se defender de um desabafo que lhe escapou por outro que simulou. Ou então é frio e taciturno, para forçar os outros a falarem, ouvir muito tempo, ser ouvido quando fala, falar com ascendência e peso, fazer promessas ou ameaças que ferem certo no alvo e produzem abalo. Manifesta-se e fala em primeiro lugar, descobrindo as oposições, contradições, tramas e cabalas dos ministros estrangeiros, sobre as proposições que ele avançou, tomar medidas e dar-lhes a réplica: e noutra ocasião fala por último, para não falar em vão, para ser conciso, conhecer exatamente as realidades com as quais é permitido contar para si e seus aliados, saber o que deve pedir e o que pode obter. Sabe falar em termos claros e formais; sabe ainda melhor falar ambiguamente, de modo obscuro, usar circunlóquios e palavras equívocas cujo valor pode fazer valer ou diminuir segundo as ocasiões e interesses. Pede pouco quando não quer dar muito. Pede muito para ter pouco, e obter com certeza. Exige a princípio pequenas coisas, que em seguida pretende lhe sejam contadas como nada, e não impedem de pedir outra maior; evita começar por obter um ponto importante, se isso lhe impede de ganhar diversos outros de menor conseqüência, mas que em conjunto são melhores que o primeiro. Pede demais para ser recusado, mas com o objetivo de se arrogar o direito ou conveniência de recusar aquilo que sabe perfeitamente lhe será pedido, e que não quer conceder: tão cuidadoso então em exagerar a enormidade da pretensão e fazer convir, se possível, suas razões para não atender, quanto em enfraquecer aquelas que se pretende ter de não lhe conceder o que ele solicita insistentemente; igualmente aplicado a fazer soar e aumentar na idéia dos outros o pouco que oferece, e a desprezar abertamente o pouco que consente em lhes dar.

Faz falsas ofertas, mas extraordinárias, que obrigam a recusar o que se aceitaria inutilmente; e no entanto constituem uma ocasião para ele fazer pedidos exorbitantes e tornar odiosos os que recusam satisfazê-lo. Concede mais do que lhe pedem, para ter ainda mais do que deve dar.

Faz-se de rogado muito tempo, espera que insistam e o importunem por uma coisa medíocre, para atalhar a intenção de exigir dele alguma coisa maior; ou, se se deixa convencer até conceder o que lhe pedem, é sempre com condições que lhe permitem dividir o lucro e as vantagens com os que recebem. Torna direta ou indiretamente o interesse de um aliado, se nisso acha utilidade e adiantamento para suas pretensões.

Vive falando em paz, alianças, tranqüilidade pública,, interesse público; e na verdade só pensa nos seus, quer dizer, no de seu senhor ou de sua república. Às vezes reúne os que eram contrários uns aos outros, outras vezes divide os que estavam unidos; intimida os fortes e poderosos, encoraja os fracos; a princípio une pelo interesse diversos fracos contra um mais poderoso para equilibrar a balança; em seguida junta-se aos primeiros para fazê-la oscilar e lhes vende caro sua proteção e aliança.

Sabe interessar aqueles com quem negocia; e por um hábil manejo, por finas e sutis manobras, faz com que eles sintam suas vantagens particulares, os bens e honrarias que podem esperar por determinada facilidade que não vai de encontro às suas funções nem às intenções de seus senhores: também não quer que o julguem inexpugnável por esse lado; denota alguma sensibilidade pela fortuna: atrai assim propostas que lhe descobrem os mais secretos objetivos, os intuitos mais remotos e o supremo recurso dos outros; e se aproveita disso.

Se às vezes é lesado em alguns pontos que afinal tenham sido regulados, grita; se é o contrário, grita ainda mais alto, e obriga os que perdem à justificação e à defensiva.

Sua tarefa foi dirigida pela corte, todos os seus passos lhe são prescritos; no entanto ele age nos momentos difíceis e nos tópicos contestados como se desabafasse no momento, como se se tratasse de um espírito de conciliação: ousa até prometer à assembléia que irá transmitir a proposta e não será desautorado. Faz correr boato falso a respeito das coisas de que só ele é encarregado, e só as desvenda no último instante e nos momentos em que seria pernicioso para ele deixar de utilizá-las. Visa principalmente, com suas intrigas, o sólido e o essencial, sempre pronto a sacrificar, por eles, as minúcias e pontos de honra imaginários. Possui fleuma, arma-se de coragem e paciência, mão se cansa, fatiga os outros e os leva até o desânimo: toma precauções e se previne contra as demoras e adiamentos, contra censuras suspeitas, desconfianças, contra dificuldades e obstáculos, persuadido de que só o tempo e as circunstâncias dirigem as coisas e conduzem os espíritos ao ponto que ele deseja. Chega a simular secreto interesse pela ruptura da negociação, quando mais ardentemente deseja que ela prossiga; quando, ao contrário, tem ordens terminantes para empregar todos os esforços em rompê-la, julga dever, para conseguir esse objetivo, mostrar-se interessado na sua continuação e fim.

Se sobrevém um grande acontecimento, mostra-se obstinado ou condescendente conforme uma dessas atitudes lhe seja útil ou prejudicial, e se por grande prudência sabe prevê-lo, apressa ou contemporiza segundo o Estado para o qual trabalha deva temer ou confiar; regula, por suas necessidades, suas condições. Pede conselhos ao tempo, ao local, às ocasiões, à sua força ou à fraqueza, ao gênio das nações com que trata, ao temperamento e caráter das pessoas com quem negocia; toda a sua atenção, todas as suas máximas, todas as sutilezas de sua política tendem para um único fim, que é: não ser enganado e enganar os outros.

O caráter dos franceses exige seriedade no soberano.

Uma das infelicidades do príncipe é ficar muitas vezes repleto de segredo pelo perigo que há em divulgá-lo: sua felicidade é encontrar uma pessoa de confiança que o alivie.

Só faltam a um rei as doçuras da vida privada: ele só pode ser consolado de tão grande falta pelo encanto da amizade e pela fidelidade dos amigos.

O prazer de um rei que merece ser rei é ser às vezes menos rei, sair do teatro, abandonar os toneletes(60) e os coturnos e representar com pessoa de confiança um papel mais natural.

O favorito não tem séquito; não tem compromissos nem ligações. Pode estar cercado de parentes e de criaturas, mas não se prende a eles; está desligado de tudo, como que isolado.

Não, duvido que um favorito, quando tenha alguma força e alguma dignidade, se sinta às vezes confundido e desconcertado com as baixezas e mesquinharias da adulação, cuidados supérfluos e atenções frívolas dos que o perseguem, o acompanham e se agarram a ele com suas vis criaturas; e que na intimidade ele compense tamanha servidão pelo riso e zombaria.

Homens altamente colocados, ministros, favoritos, me permitireis falar? Não confieis aos vossos descendentes o cuidado de vossa memória e a duração de vossa nomeada: os títulos passam, a proteção se extingue, as honrarias se perdem, as riquezas se dissipam e o mérito degenera. Na verdade vós tendes filhos dignos de vós; acrescento que são até capazes de manter toda a vossa fortuna: mas quem pode prometer-vos outro tanto de vossos netos? Duvidai do que eu digo: olhai, uma única vez, certos homens que nunca vistes, que desdenhais; eles têm antepassados aos quais, por grandes que sejais, não fazeis mais que suceder. Tende virtude e humanidade; e se me disserdes: que teremos além disso? eu vos responderei: humanidade e virtude; senhores, então, do futuro, e independentes da posteridade, podeis estar certos de durar tanto quanto a monarquia; e no tempo em que se mostrarem as ruínas de vossos castelos, e talvez apenas o lugar em que eles existiram, a lembrança de vossas ações louváveis ainda estará viva no espírito dos povos; eles hão de olhar avidamente vossos retratos e medalhas; dirão: este homem, cujo retrato estão vendo, falou ao seu superior com energia e liberdade, e teve mais medo de prejudicá-lo que de o desagradar; ele tornou possível ao seu senhor o ser bom e benfazejo, e dizer de suas cidades: Minha leal cidade, e de seu povo: Meu bom povo. Esse outro sujo retrato vêm, no qual se nota fisionomia forte e aspecto grave, austero e majestoso, aumenta de ano para ano sua reputação; os maiores políticos saem perdendo quando lhe são comparados. Seu grande objetivo foi fortalecer a autoridade do príncipe e a segurança dos povos pela diminuição do poder dos nobres: nem partidos, nem conjurações, nem traições, nem o perigo da morte, nem seus achaques puderam desviá-lo do seu caminho; teve tempo de sobra para encetar uma obra, continuada depois e terminada por um dos nossos mais nobres e melhores príncipes: a extinção da heresia.

A rede mais sutil e mais enganadora que em todos os tempos foi estendida aos nobres pelos seus homens de negócios, e aos reis pelos ministros, é o conselho que lhes dão de se desonerarem e enriquecerem: excelente conselho, máxima útil frutuosa, mina de ouro, Peru, pelo menos para aqueles que têm sabido até agora inspirá-lo a seus amos!

É uma grande felicidade para os povos quando o príncipe admite na sua confiança e escolhe para o ministério aqueles mesmos que eles quereriam escolher se fossem o soberano.

A ciência das minúcias, ou uma diligente atenção pelas menores necessidades da república, é parte essencial ao bom governo, na verdade excessivamente desprezada nos últimos tempos pelos reis ou pelos ministros, mas que nunca é demais desejar ao soberano que a ignora, nem se pode considerar excessiva naquele que a possui.

No fim de contas, de que serve para o bem do povo e felicidade de seus dias o príncipe levar os limites de seu império além das terras dos inimigos, fazer de suas soberanias províncias do reino, e igualmente ser superior a eles em sítios e batalhas a ponto de não se sentirem em segurança diante dele, nem nas planícies nem nos mais fortes bastiões, e as nações se unirem umas às outras, aliando-se em conjunto para se defenderem e enfrentá-lo, e se unam em vão, e ele continuar marchando, sempre triunfante, e as últimas esperanças dos inimigos desabarem pelo enrijamento de uma saúde que dará ao monarca o prazer de ver os príncipes seus netos sustentarem ou acrescentarem seus destinos, desfecharem campanhas, apossarem-se de temíveis fortalezas e conquistarem novos Estados, comandarem velhos e experientes capitães, menos pela sua posição e nascimento que pelo seu gênio e sabedoria, seguir as pegadas, augustas de seu vitorioso pai, imitar sua bondade, docilidade, eqüidade, vigilância, intrepidez?

Numa palavra: de que me serviria, como a todo o povo, o príncipe ser feliz e cumulado de glórias devidas a si mesmo e aos seus, e minha pátria ser poderosa e formidável, se, triste e inquieto, eu vivesse dentro dela na opressão e na indigência; se, a coberto das incursões do inimigo, me achasse exposto, nas praças e ruas da cidade, ao punhal de um assassino, e temesse menos nas trevas da noite ser pilhado ou massacrado em florestas espessas do que nas suas avenidas; se a segurança, a ordem, e o asseio não tornassem a estada nas cidades tão deliciosa e não tivessem introduzido, com a abundância, a paz na sociedade; se, fraco e sozinho, sem proteção, tivesse de sofrer na minha granja, com a vizinhança de um nobre, e se tivesse menos garantia de ter, por mim a justiça contra a sua usurpação; se não tivesse ao meu alcance bastantes professores, e professores excelentes, para educar meus filhos nas ciências e artes que hão de ser um dia o seu ganha-pão; se, pelas concessões feitas ao comércio, me fosse menos fácil vestir-me com bons tecidos, alimentar-me de carne sã e comprar por, pouco dinheiro; se, enfim, pelos cuidados do príncipe, eu não estivesse tão contente com minha sorte quanto ele por suas virtudes deve estar com a sua?

Oito ou dez mil homens são para o soberano como uma moeda com a qual ele compra uma praça ou uma vitória: se faz com que lhe custe menos, se poupa os homens, parece com os que regateiam por conhecerem, melhor do que qualquer outro, o preço do dinheiro.

Tudo prospera num reino em que se confundem os interesses do Estado com os do príncipe.

Chamar um rei de PAI DO POVO é menos fazer-lhe um elogio que chamá-lo pelo nome ou defini-lo.

Há um intercâmbio ou troca de deveres, do soberano para seus vassalos e destes para o soberano: quais os mais pesados e penosos? Não decidirei: trata-se de julgar, de um lado, entre as rigorosas promessas de respeito, socorro, serviço, obediência, dependência; e de outro as obrigações indispensáveis de bondade, justiça, cuidados, defesa, proteção. Dizer que um príncipe é árbitro da vida dos homens é apenas dizer que os homens, por seus crimes, se tornam naturalmente sujeitos às leis e à justiça, das quais o príncipe é depositário; acrescentar que ele é senhor absoluto de todos os bens de seus vassalos, sem consideração, sem contas nem discussão, é a linguagem da adulação, é a opinião de um favorito que se desdirá na hora da agonia.

Quando às vezes você vê um rebanho numeroso, espalhado numa colina à hora em que declina um lindo dia, pastando tranqüilamente o tomilho e o serpão, ou roendo num prado a herva miúda e tenra que escapou à foice do segador, o pastor cuidadoso e atento está em pé junto das ovelhas; não as perde de vista, segue-as, dirige-as, faz com que elas mudem de pastagem: se se dispersam, ele as reúne; se um lobo faminto aparece, solta o cachorro que o põe em fuga; alimenta-as, defende-as; a aurora já o encontra em pleno campo, de onde só sai com o sol: quantos cuidados! quanta vigilância! quanta sujeição! Que condição parece mais deliciosa e mais livre: a do pastor ou a das ovelhas? O rebanho é feito para o pastor ou o pastor para o rebanho? Imagem ingênua dos povos e do príncipe que os governa, quando se trata de bom príncipe.

O fausto e o luxo num soberano, é o pastor vestido de ouro e pedrarias, cajado de ouro nas mãos; coleira de ouro no cachorro, que está seguro por uma corda de ouro e seda: de que serve tanto ouro para o rebanho ou contra os lobos?

Como é boa a posição que dá, a todo instante, ocasiões a um homem para fazer o bem a tantos milhares de homens! Como é perigoso o posto que expõe a todo momento um homem a fazer mal a um milhão de homens!

Se os homens não são capazes sobre a terra de alegria mais natural, lisonjeira e sensível do, que a de saber que são amados; e se os reis são homens, poderá haver preço para comprar o coração de seus súditos?

Há poucas regras gerais e medidas certas para bem governar: segue-se o tempo e as circunstâncias, e isso gira em torno da prudência e visão dos que governam: por isso mesmo a obra prima do espírito é o governo perfeito; e talvez isso não fosse possível se os povos, pelo hábito que têm de dependência e submissão, não fizessem metade da tarefa.

Sob um grande rei aqueles que ocupam os lugares de maior responsabilidade só. têm deveres fáceis que se executam sem nenhum esforço: tudo corre como um curso d’água; a autoridade e gênio do príncipe desembaraça os caminhos, poupa-lhes dificuldades, e tudo faz prosperar além de suas expectativas. Eles têm mérito de subalternos.

Se é demais estar encarregado de uma única família, se já é bastante ter de responder por si, que peso, que responsabilidade responder por todo um reino! Um soberano é pago de seus trabalhos pelo prazer que parece dar um poder absoluto, por todas as prosternações dos cortesãos? Penso nos penosos, duvidosos e perigosos caminhos que às vezes tem de seguir para conseguir a tranqüilidade pública; recordo os meios extremos, mas necessários, aos quais freqüentemente recorre para um fim benévolo: sei que tem de responder perante o próprio Deus pela felicidade de seus povos, que o bem e o mal está nas suas mãos, e que nenhuma ignorância lhe serve de desculpa; e pergunto a mim mesmo: quereria eu reinar? Um homem um tanto ou quanto feliz na sua vida privada deveria renunciar a ela pela monarquia? Não será muito, para aquele que é levado a isso por direito hereditário, suportar ter nascido rei?

Que dons do céu se precisa para reinar! Nascimento augusto(61), ar de império e autoridade, rosto que satisfaça a curiosidade dos povos ansiosos por ver o príncipe e conserve o respeito dos cortesãos; perfeita igualdade de gênio, grande distância da zombaria picante, ou bastante juízo para não a permitir: nunca fazer ameaças nem censuras, não ceder à cólera, e ser sempre obedecido; inteligência fácil, insinuante; coração aberto, sincero, do qual se julgue ver o fundo, e assim conquista amigos, criaturas e aliados: ser, entretanto, discretos profundo e impenetrável em seus intuitos e projetos: seriedade e circunspecção em público; concisão, junto a muita firmeza e dignidade, seja nas respostas aos embaixadores dos príncipes, seja nos conselhos; uma maneira de conceder graças que é como um segundo benefício. Senso na escolha das pessoas agraciadas; discernimento dos espíritos talentos e moderação na distribuição dos cargos e empregos, escolha dos generais e dos ministros, juízo firme, sólido, decisivo nos negócios fazendo perceber o melhor e mais justo partido a tomar; espírito de retidão e eqüidade que faz chegar ao ponto de se pronunciar às vezes contra si mesmo e a favor do povo, dos aliados, dos inimigos; memória feliz e sempre presente para recordar as necessidades dos súditos, suas fisionomias, seus nomes, seus requerimentos: uma vasta capacidade que se estende não só aos negócios externos, comércio, sentenças de Estado, objetivos da política, expansão das fronteiras pela conquista de novas províncias, e sua segurança por um. número de fortalezas inexpugnáveis; mas que também sabe concentrar-se, no interior, nas minúcias do reino inteiro; banindo dai um culto falso, suspeito e inimigo da monarquia, se ele ai se encontra, abolindo os usos cruéis e ímpios, se aí reinam; reformando leis e costumes se constituem abusos; dando às cidades mais segurança e comodidade pela renovação de uma policia exata, mais brilho e majestade por meio de edifícios suntuosos: punindo severamente os vícios escandalosos; dando, pela sua autoridade e exemplo, crédito à devoção e virtude; protegendo a Igreja, seus ministros, seus direitos, suas liberdades; poupando os povos como seus filhos; preocupando-se sempre com a idéia de poupá-los, tornando os impostos reduzidos, e tais que pesem sobre as províncias sem empobrecê-las; grandes talentos para a guerra; ser vigilante, aplicado, laborioso; tendo exércitos numerosos, comandá-los em pessoa; frio no perigo, só poupando a vida pelo bem do Estado, amando o bem de seu Estado e sua glória mais do que a própria vida: potência absoluta que não deixa margem a brigas, intrigas e cabalas, suprimindo nessa distância infinita que às vezes separa os nobres do povo, aproximando-os, e sob a qual todos se submetem igualmente possuindo uma extensão de conhecimentos que faz o príncipe ver tudo por seus próprios olhos, agindo imediatamente e por si mesmo; seus generais não sejam, por mais distantes que estejam, mais do que seus tenentes, e os ministros não sejam mais do que ministros; uma profunda sabedoria que sabendo declarar a guerra, sabe vencer e usar a vitória, sabe fazer a paz, sabe rompê-la, e sabe às vezes, segundo os diversos interesses, constranger os inimigos a aceitá-la; dando regras a uma vasta ambição e sabendo até onde se deve conquistar; no meio de inimigos encobertos ou declarados conseguir tempo livre para freqüentar diversões, festas, espetáculos; cultivando as artes e ciências, formar e executar projetos de edifícios surpreendentes; um gênio, em suma, superior e poderoso que se faz amar e reverenciar pelos seus, e temer pelos estrangeiros; faz de uma corte, e mesmo de todo um reino, como uma só família perfeitamente unida sob um mesmo chefe, cuja união e boa inteligência é temível para o resto do mundo. Essas admiráveis virtudes me parecem concentradas na idéia do soberano.

E verdade ser raro vê-las reunidas num mesmo indivíduo; é preciso que concorra ao mesmo tempo um excesso de circunstâncias, inteligência, coração, aparência, temperamento; parece-me que um monarca que as reunisse todas seria digno de ser chamado o Grande.


 

NOTAS

 

(1) – Essas marcas, atualmente inúteis, foram suprimidas.

(2) – Apesar de o considerarem apenas um homem que se limitou a escrever.

(3) – É provável que La Bruyère se referisse a Charles Perrault, da Academia Francesa, que acabava de publicar o seu “Paralelo dos antigos e modernos”.

(4) – Boileau e Racine.

(5) – Apesar da coleção de cartas de Mme. de Sévigné só ter sido publicada muito depois da morte de La Bruyère, o manuscrito circulava de mão em mão. Daí concluir-se que La Bruyère se refira a Mme. de Sévigné.

(6) – Nicole e Malebranche.

(7) – O Hermes Galante, por De Visé. No prefácio do discurso de recepção na Academia Francesa, La Bruyère disse que sempre evitara as alusões diretas a ponto de empregar, às vezes, letras de significado vago e incerto. Eis um exemplo. O H. G. é para despistar leitores curiosos.

(8) – Lulli, sua escola, sua família.

(9)-(10) – “Berenice”, de Corneille e outra de Racine, “Penélope” do padre Genest.

(11) – Lugar de caçada no bosque de Chantilly.

(12) – Refeição muito engenhosa servida no labirinto de Chantilly.

(13) – Sedição, desfecho vulgar das tragédias.

(14) – Parece que La Bruyère se refere a uma comédia de Baron: “L’homme a bonnes fortunes”.

(15) – Presume-se que La Bruyère se referisse às obras de jesuítas e jansenistas.

(16) – Afirma-se que La Bruyère se referia a Varilas, historiador ameno mas inexato, e Handburgh (padre), de quem Mme. de Sévigné dizia: “Il a ramassé le délicat des mauvaises ruelles”.

(17) – Vignon, Colasse e Pradon.

(18) – Em algumas edições vem escrito Bégnine. Trata-se de Bossuet.

(19) – Ágata.

(20) – Parece tratar-se do príncipe de Condé. La Bruyère, educador do neto desse príncipe, devia dedicar altos elogios ao avô do seu discípulo.

(21) – Filhos, netos, nascidos de reis.

(22) – La Bruyère criticava, com esses nomes supostos, as mulheres da alta sociedade que já no seu tempo “disputavam escandalosamente” o amor de comediantes, dançarinos e músicos, como Baron, Pécourt e outros.
Essa circunstância, hoje perfeitamente natural, era escandalosa naquele tempo em que essa gente era considerada gente a parte.

(23) – Monthoron, ou Montauron, tesoureiro do rei, o mesmo a quem Corneille dedicou a Cinna, comparando-o a Augusto...
D’Hémery, ou Émery, filho de um camponês, protegido de Mazarino, foi superintendente das Finanças.

(24) – Monthauron, funcionário do Tesouro. D’Hémery, antigo superintendente das Finanças.

(25) – Sem dizer: Senhor.

(26) – Pessoas que afetam grande pureza de linguagem.

(27) – Imitado de Montaigne.

(28) – As preciosas e seus alcoviteiros.

(29) – Era o que fazia, segundo se diz, o marechal de Richelieu, que estropiava o nome de toda a gente, inclusive de seus colegas da Academia Francesa.

(30) – Henrique o Grande.

(31) – Filósofo e poeta trágico.

(32) – Da igreja.

(33) – Convite para enterro.

(34) – Havia um sistema de arrendamento de terras com esse nome.

(35) – Descartes, vitima das perseguições dos poderosos do seu tempo, aos quais a sua ciência desagradava, teve de emigrar para a Suécia, onde morreu, La Bruyère, grifando as palavras “morreu na Suécia” quis, evidentemente, acentuar essa circunstância.

(36) – Ver as relações do reino de Siam.

(37) – O Cais de S. Bernardo.

(38) – Nesse tempo os homens iam tomar banho no Sena em certa época do ano e as mulheres iam passear por lá.

(39) – Distintivo dos filhos segundos nos escudos.

(40) – Cyrano.

(41) – Saint-Storlin.

(42) – Assento suplementar que se armava na carruagem quando a lotação estava completa.

(43) – Versalhes. Na primeira edição de seu livro La Bruyère não indicou nem a inicial.

(44) – Estandarte dos antigos reis franceses.

(45) – Queimado há vinte anos.

(46) – Alfaiate da Delfina: enlouqueceu, e louco, continuava na Corte, onde assistia à toalete da Delfina.

(47) – La Bruyère imita aqui o estilo de Montaigne.

(48) – Parece que se trata do padre Choisy.

(49) – A corte.

(50) – A corte.

(51) – Trata-se do duque de Lauzan.

(52) – Parece que se trata do padre Roquette, bispo de Autun, que tinha a mania de mandar nos nobres.

(53) – Quem vulgarizou essa palavra foi Boileau, referindo-se a três nobres que usavam e abusavam dos vinhos produzidos nas encostas (coteaux) perto de Reims.

(54) – Lacaio de grande força que os antigos nobres usavam para mandar espancar seus desafetos. Espécie de “capanga”.

(55) – Lugar onde se encontram em Paris algumas pessoas decentes para conversar.

(56) – V. Versalhes. F. Fontainebleau.

(57) – O cavaleiro de Soyecour, cujo irmão morrera na batalha de Fleurus, em Julho de 1690, morreu três dias depois do irmão em virtude de ferimentos recebidos nessa mesma batalha.

(58) – Olivier Le Daim, filho de um camponês da Flandres, a princípio barbeiro de Luiz XI, depois seu principal ministro, foi enforcado em 1848, no começo do reinado de Carlos VIII — Jaques Coeur, rico e famoso negociante, tornou-se tesoureiro de Carlos VIII, que acabou por sacrificá-lo a uma intriga da corte.

(59) – Tekeli, nobre húngaro, levantou o estandarte da revolta contra o imperador, e fez tremer seu senhor em Viena. Morreu quase esquecido em 1705, perto de Constantinopla.

(60) – Toneletes — essa parte da vestimenta antiga constituía um complemento do vestuário dos atores trágicos em cena.

(61) – Parece que se trata do retrato de Luiz XIV.


 

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