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Sônia Régis

O Brontossauro Azul
ou
Aritmética Progressiva

 

O Brontossauro Azul
ou
Aritmética Progressiva
Sônia Régis
2º edição
1ª edição: Carthago & Forte, 1994

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© 2000 Sônia Régis
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SÔNIA RÉGIS

O BRONTOSSAURO AZUL
OU
ARITMÉTICA PROGRESSIVA

romance

 

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“Só podemos dar o que já é do outro.
Neste livro estão as coisas que sempre foram suas.”
J. L. Borges

 

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No jardim interno, os galhos tramados de dois pinheiros começam a vergar sob o peso da neve. Pela calha pinga uma gota insistente, de longe vem o choro de um bebê e as badaladas de um sino de igreja. Os turquinhos do zelador saem no escuro para a escola, atravessam o pátio tagarelando. Um bloco de gelo escorrega do telhado, arrebentando-se com um baque seco no cimento. Ao deixar São Paulo chovia, depois de um calor intenso. Em cima da escrivaninha, o cartão de boas-vindas com a figura de Buda, Musaeum für Indische Kunst. A voz do pai alteou-se, tudo é maia, filha, ilusão. E seus olhos úmidos verteram sobre ela um sentimento melancólico. Vivia trancado no escritório que cheirava a incenso, pincelando ideogramas negros nas folhas brancas que depois reunia em cadernos com capa de cartolina azul. Pôs um tijolo em cima do outro, na ponta dos pés agarrou-se ao peitoril, espiando. Pela cortina rendada, divisou seu vulto inclinado sobre a mesa escura. Despencou dos tijolos, ralando os joelhos, e sentou-se no degrauzinho de madeira em frente à porta para soprar o ferimento. O pai estava sem o aparelho, não ouvia. Seguiu com o olhar uma formiga que subia pela parede, desviando-se da tinta seca que se desprendia em lascas da tábua velha. De longe, de novo, vem o choro de um bebê. Um dia, à mesa, o pai lhe contara que fora difícil ela nascer. A mãe se irritara, ora, dizer essas coisas para a menina. Três dias e três noites ele a embalara, andando de um lado para outro pela casa. Casa de madeira, avarandada, no interior de Santa Catarina, como vira nas fotos. O médico viera às pressas, atrasado, a mãe sofria. Morta, dissera. Pesaroso, pegara-a no colo. A cabeça tingida de sangue, um corte profundo na testa. E ela pusera-se a chorar. Também revelara que havia esperado por um menino, exclamando uma palavra estranha, que sempre vira de relance na lombada de um livro vermelho, na última prateleira, onde ficava o elefante de jade, karma. Desta vez a mãe o interrompeu e levantou-se da mesa com brusquidão. O pai apertou a gravata e vestiu o paletó, ia para o serviço. Foi atrás. Ajudava a abrir o portão e esperava que saísse. Ao dobrar a esquina ele buzinava, despedindo-se. Empurrava o portão de sarrafos verdes, fechando-o com a tranca, encostava a imensa porta da garagem, ia ver o que a mãe estava fazendo. Hora de entrares, tem vento. Depois do jantar, muitas vezes o pai ia mexer no carro. Mandara cavar um fosso retangular no chão, para onde descia pelos três degraus de terra batida. A garagem cheirava a umidade, o vento zunia pelas frestas. De vez em quando um gato mostrava a cara hesitante no vão entre o assoalho e a terra. Ficava do lado de fora. Trazia-lhe a chave de fenda, a torquês, a lata de óleo, depois, a garrafa com gasolina e a bucha para limpar as mãos. Às vezes segurava uma lâmpada presa a um longo fio, para que enxergasse melhor. Nas raras noites em que a deixava acompanhar ao escritório fixava o olhar nos pincéis, no vidro de tinta preta, nas carreiras ordenadas de traços negros desenhados nas folhas sem linha. Estás vendo, assim se escreve sol em kanji, dizia. Parecia que perninhas de formigas manchadas de tinta tinham passeado pelo papel. Mostrava como escreviam os indianos. Sânscrito, ela repetia baixinho, para não esquecer. E então dizia coisas estranhas, neste mundo tudo é maia, filha, ilusão. Tudo aparência, criação da nossa mente. Representação. Arregalava os olhos e fazia que entendia. Depois, ficava a pensar no que o pai dizia. Encostada no tanque de cimento alto, repetiu para a mãe, tudo é maia, ilusão. A mãe, aboletada em cima de dois tijolos, moveu o olhar em sua direção. Seus olhos escureciam quando ficava triste. Coisas do teu pai, disse, voltando a se ocupar com a roupa. Ficou olhando para as borbulhas da água que jorrava da mangueira vermelha e pensou nos átomos. O pai dissera que tudo era feito de partículas bem pequenas de matéria. Até mesmo o pensamento. Maravilhada, sentiu o estômago comprimir-se. Pede para a tua avó o chá de hortelã. A mãe às vezes parecia ver a matéria do seu pensamento.

 

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A neve acumulada no telhado escorregou em blocos durante a noite, arranhando com estardalhaço o parapeito. O ruído seco dos tenros flocos contra os pinheiros manteve-a acordada muito tempo. Um pássaro negro pousa num galho e logo alça vôo. Na janela do prédio em frente, uma mulher escreve, iluminada por uma luz débil. Já que não sei voar, mandei os passarinhos irem por mim para te ver. No cartãozinho de bordas rendilhadas, o passarinho azul parece prestes a se lançar para fora do papel. A letra miúda da mãe já não a alcança mais. As imagens de ontem bóiam ainda nos olhos, arte indiana, no Staatliche Museen. Em tecidos e papéis esgarçados, uma grafia resistente, sobrevivendo há milhares de anos. Podia passar horas contemplando aqueles traços. Os cadernos com capa de cartolina azul do pai, as folhas brancas cobertas com os delicados desenhos negros. O cheiro de rosas. Às vezes, surrupiava uma daquelas folhas e corria para o quarto a riscar o papel, imitando o gesto do pai. Quando foi para a escola, o pai a levava todo dia no Chevrolet ferrugem e ia buscá-la no fim da tarde. Guarda-pó branco engomado, a ansiedade apertando o estômago. Sabia ler e escrever, a mãe ensinara, repetiu várias vezes para a professora, que ordenou que se sentasse naquela carteira vazia lá atrás e preenchesse uma página inteira com as bem redondos, como estes que traçara na primeira linha. Eram as mais redondos e maiores do que os da mãe. Calcou o lápis preto, a por a preencheu as linhas, página após página do caderno fininho encapado de papel verde ralo. A menina loura a seu lado, nariz ranhento, deu-lhe uma cotovelada. Assustada, levantou-se, recolheu o penal de pinho, a maleta de couro que a mãe comprara, foi até a mesa da professora, mostrou o caderno repleto e repetiu que sabia ler e escrever, como a mãe mandara. A professora pôs de lado a longa régua de madeira, olhou-a desatinada e disse alto para uma zeladora que passava no corredor, pode levar esta para a outra sala. Largada numa sala comprida entre outras crianças, segurou-se para não chorar. O pai, grave, guiava. Ao chegar ao portão do Grupo Escolar D. Pedro II, no Batel, advertira, hoje é primeirudiabriu e as crianças vão querer te enganar, não vás atrás delas. Fechou a porta do carro com cuidado, uma menina aproximou-se e disse esganiçada, olha lá que borboleta bonita. Olhou para onde apontava e ficou um bom tempo parada, pensativa. Não viu a borboleta. A menina já ia longe quando se voltou para cruzar o largo portão de ferro. Mas por que queriam enganá-la. Primeirudiabriu. No pátio sentou-se numa mureta baixa, esperando o sino bater. O pai sempre a trazia cedo. Segurou com firmeza a maleta pesada no colo, para não ser enganada. Mal se mexia. Girava o olhar, acompanhando o movimento das crianças no pátio. Duas meninas sentaram-se ao seu lado, conversando entre si, animadamente. De vez em quando riam. Sentiu-se mais leve com aquela espontaneidade próxima. De repente, uma delas gritou. André, olha uma borboleta preta no seu ombro. De novo a borboleta. Primeirudeabriu, riram em coro. Então, era assim, não era só a ela que queriam enganar. Em casa, contente com a descoberta, disse mãe, olha aqui que borboleta linda. A mãe nem tirou o olhar da roupa, entretida com a barra branca de sabão e a mangueira vermelha que espirrava água com força dentro do tanque. Entra, senão vais pegar resfriado. O que é primeirudeabriu, perguntou da porta, metade do corpo protegido da garoa fina que começava a cair. É uma brincadeira que as pessoas fazem nesse dia. Vem correndo ver uma rã aqui dentro do tanque. Foi olhar depressa. A mãe sorriu e disse primeiro de abril. Primeiro de abril, então. Sorriu também, aliviada. Quando deixava o tanque, a mãe passava creme nas mãos, aquele cheiro doce de amêndoas. O tubo amarelo-claro com tarjas marrons e o desenho de duas mãos com os dedos delgados, onde estava escrito Velman, ficava em cima da cômoda, perto do bauzinho de couro de cabra onde guardava o broche. De vez em quando ia lá passar a mão no pêlo grosso, branco e castanho. Dentro, cetim bege e o sol com raios de metal dourado em torno da pedra clara. A mãe mesma dera o dinheiro e a professora comprara para o dia das mães. Entregou junto com o cartão de cartolina branca que a professora dera, onde pintou um coração vermelho e escreveu enviesado, para a mamãe, com amor.

 

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Nove horas, escuro ainda. Nas ruas, as pessoas parecem marchar em direção a um objetivo. Gosta de caminhar entre elas, os passos tomando lentamente a direção do olhar. Vai gravando na retina os pequenos acontecimentos cotidianos que permanecem depois como delicadas iluminuras no canto dos olhos. Distante da língua materna, as imagens ganham um contorno mais nítido. Anda a Kufürstendamm, senta-se à uma mesinha no Kranzler Kafee, folheia alguns livros na Librarie Française, vai até a Literaturhaus, onde os espelhos parecem reproduzir murmúrios. Fasanestrasse. Gosta de pronunciar este nome, tem o som doce da fala dos alemães que ouvia em Blumenau. Fasenenstrasse, a compaixão das esculturas de Käthe Kollwitz, onde fica seu museu. A mulher, avolumada pelos vários casacos, com os três carrinhos carregados de enormes sacos plásticos azuis, já está escondida por trás dos óculos escuros, sentada na entrada da loja de departamentos onde passa a noite. Uma outsider, disse Du, ofegante. A temperatura baixara de repente. Depois, o metrô lotado, o olhar batendo nas mesmas propagandas. Gute Zeiten, schlechte Zeiten Lucky Strike sonst nichts. Wem die Leichten zu leicht und die Starken zu stark sind, Camel, taste the adventure. Na escadaria ajeita a echarpe e respira o vento frio, a torre da igreja está envolta num halo cinza. No pátio sombrio os galhos tramados dos pinheiros vergam ao peso da neve. Os estreitos degraus de madeira rangem, custa a encontrar o interruptor. Ao abrir a porta vem o bafo morno e seco do interior do apartamento. Pendura o pesado mantô no cabide do corredor. Sobre a mesa, algumas folhas. O romance. Prometera-se escrever o romance nesses meses que passaria em Berlim. A mãe, o pai, a avó, a irmã. A menina. Na foto ampliada e colorizada dos dois anos, a menina, cabeça inclinada para a direita, olhar melancólico na testa larga, parece formular uma pergunta que é ao mesmo tempo uma resposta. É como se repetisse baixinho então, é assim. Como se cada vivência inaugurasse uma aprendizagem e a vida fosse a relembrança de algo conhecido e há muito esquecido. A pergunta paira suspensa entre os lábios, a resposta se aglutina nos olhos. Pega-se, às vezes, olhando do mesmo jeito. O olhar da menina é o seu olhar interior, nele se reconhece. A voz do pai se alteia, tudo é maia, filha, ilusão. Ajeita o maço de folhas. No papel branco deixa escorrer a tinta preta. A pena parece conduzi-la, a escrita se faz sozinha. A caligrafia do pai era caprichada, ia preenchendo as folhas brancas com os ideogramas negros enfileirados verticalmente. De vez em quando ela batia à porta do escritório e esperava. Silêncio, o pai estava sem o aparelho, não ouvia. Então, girava três vezes seguidas a maçaneta. Depois de algum tempo ouvia a chave girar no tambor e a voz abafada do pai, entra. O cheiro de incenso. Esticava os olhos, Rosa Musgosa da Índia, estava delineado na caixinha de fundo vermelho e tampa dourada. Sabia de cor o que estava escrito, mas obedecia à compulsão da leitura pela satisfação de ouvi-lo dizer leva um para ti e acende no quarto. Então, aninhava o cone carmim no côncavo da mão. Ele ajeitava lentamente o aparelho no ouvido, ligava-o e perguntava o que queres, agora. Mostrava a ponta do lápis rombuda, podia apontar, abrir o penal emperrado. Ele lhe estendia um maço de folhas, gozava de antemão o prazer daquela brancura. Um dia, ao voltar do Grupo, mostrou-lhe uma composição. A professora mandara que escrevessem sobre a viagem de férias. Tinha ficado em casa, teu pai está pobre, dissera a avó num suspiro puxado. Irritara-se com ela, a professora, letra desalinhada, dissera alto na sala, e escrevera no quadro-negro, imitando-a, t o d a s, assim, as letras separadas, e nem se lembra de pôr acento. Ainda separa as letras, mas todas já não leva mais acento. A única coisa diferente que fizera nas férias fora sair com a mãe e a irmã em algumas tardes e ir às Lojas Americanas, na Rua XV, comer cachorro quente. Também fora ao aniversário do vizinho. Haviam servido café com leite em xícaras pesadas, em vez de gasosa. Gostava de gasosa de gengibre. Na sala de aula ouviu as colegas comentando as viagens. Lembrou-se da gravura no escritório do pai e resolveu escrever sobre sua viagem ao Japão. Descreveu a chegada a Tóquio, as ruas apinhadas, os olhos puxados, encimados por cabelos negros escorridos, o perfume das cerejeiras, as lanternas coruscantes, os jardins de areia e pedra, os ideogramas nas tabuletas, os móveis baixos, os quimonos coloridos. Descreveu, inclusive, como tivera dificuldade em andar encarapitada em cima dos tamancos de madeira com dois saltos retangulares. Depois, passou a semana aflita, na expectativa da reação da professora. Surpreendeu-se com o elogio e foi convincente ao responder às perguntas. Atordoada, escreveu no quadro negro dois ou três ideogramas que o pai ensinara. Escrever, descobriu, era como viajar. Podia ir aonde quisesse na brancura ilimitada do papel. Mostrou para o pai, meio acanhada. Quanta imaginação, disse. E notou aqui e ali alguns erros que a professora não vira. Ouviu que cochichava algo para a mãe, na cozinha, enquanto a avó exclamava baixinho graças aos céus, este homem está mudando um pouco. No ano anterior, havia ganho um prêmio do jornal O Estado do Paraná. Estava na sala de aula, a zeladora entrou, vendendo fichas para o lanche. A diretora apareceu em seguida, pedindo para escreverem um poema em homenagem ao dia das mães, para um concurso estadual. O pai dissera que dia das mães, dia dos pais foram criados por interesse comercial, era como a moda, ele, por exemplo, era obrigado a usar aquele pedaço de trapo colorido em volta do pescoço, invenção dos homens. Em casa, depois do almoço, enquanto a mãe lavava a louça, pôs-se a escrever na mesa da sala de jantar. Saíram de uma vez dez versos. Teve um pouco de trabalho com as rimas. Correu para a mãe, leu. Ela fechou a torneira e propôs uma mudança. Apagou o último verso e escreveu o que ditara. Depois, passou a limpo numa folha arrancada do caderno. No dia seguinte entregou o poema para a professora. Escreva seu nome, sua idade, a turma e o nome do grupo, disse ela. Semanas mais tarde a diretora foi à sala dizer que uma das alunas havia lhe dado uma grande satisfação, ficando em quinto lugar entre todos os estudantes do Estado. Estava de parabéns. Distraída, ouviu seu nome. No dia seguinte, um repórter veio entrevistá-la. Tinha uma enorme mancha vermelha no rosto, de onde saíam três longos pêlos negros, e os olhos rasgados se comprimiam por trás das lentes grossas. Ah, gostava de estudar, o que queria ser quando crescesse? No domingo, saiu no jornal seu poema, o nome com o sobrenome errado e a foto dela e da mãe. A mãe sentada e ela, por trás, enlaçada ao seu pescoço. No pulso esquerdo, uma mancha escura, da ferida urtiquenta que ainda não secara. A mãe, morena de tanto apanhar sol lavando roupa no tanque descoberto, os olhos pequenos estreitados num meio-sorriso. O pai mandou vários jornais para Santa Catarina. Era inverno, o vento gelado entrava pelas frestas da casa. Foi com a mãe comprar um casaco novo para ir à noite receber o prêmio. O pai foi levá-las no Chevrolet ferrugem, mas avisou que não ia entrar, ficaria esperando no carro, não demorassem. No banco de trás, ia observando as luzes coloridas contra a noite. O enorme anúncio de néon da Caixa Econômica, na Praça Carlos Gomes, continuava a fazer cair a moeda dourada no cofrinho verde. No salão, a mãe sentou-se na poltrona perto de uma janela alta, tinha falta de ar. Ficou ao lado, de pé, enquanto ouvia, intimidada, aqueles homens de terno escuro falarem. Atrapalhou-se ao agradecer o prêmio, limpou o beijo de batom que lhe deram, abriu o pacote pesado. Era um livro muito grosso de receitas de bolo para festas infantis. Na capa, um palhaço de olhos de ameixa. Agarrou o braço da mãe, queria voltar para casa.

 

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A janela do quarto em que agora está dá para o estacionamento de um supermercado. Pessoas indo e vindo com carrinhos apinhados, enchendo os porta-malas dos pequenos Trabants. Com a queda do Muro, Berlim está diferente da última vez em que a vira, há dois anos. Junto com o entusiasmo pela unificação e a euforia pelo consumo, apareceu o ressentimento. Desempregados bêbados pelas ruas, pedintes em cada esquina. Vira no metrô adesivos com o desenho de uma solitária cabeça branca entre várias pardas, é isto o que você quer para a Alemanha, perguntava. Medo dos imigrantes. Deixa-se pensar pelo que acontece à volta. Quando levanta o olhar, se surpreende, vai longe, seguindo os passos da menina. Então, é assim. Olha a pequena figura de jade que o pai lhe estende, as mãos morenas, o rosto grave, em elefante verde. Quando ria, ficava feio o pai, os dentes curtos e cerrados, os imensos olhos umedecidos. Toma a estatueta no cone da mão. Tudo é maia, ilusão. Anos atrás, ao sair de casa bem cedo, uma rajada de vento frio espetou seus olhos. Ao abri-los, divisou o lombo de um elefante ondulando acima do muro, na altura do olhar. Desceu correndo os degraus e abriu o portão. A rua estava enevoada pelo alvorecer. O elefante, as patas cobertas pelas inúmeras pregas da pele velha, pisava macio o asfalto, envolto numa nuvem de pó. Descalço e de peito nu, o treinador parecia sonhar aninhado naquele manto de carne. O pai dissera que gostaria de morrer como os elefantes, que se afastam da manada quando sentem chegar a hora. Obedece à sua voz irritada, fecha a porta e senta-se no degrau da escadinha de madeira. Ouve a música. Com o aparelho grudado na caixa de som, o pai passava horas ouvindo canções japonesas, que acompanhava com uma espécie de grunhido monocórdio. Ficava sentada, esperando a mãe chamar. Depois do almoço escapulia para o rancho. Na parede de trás o pai havia pregado inúmeras prateleiras onde dispusera a sua antiga coleção da Reader’s Digest. Lia as biografias, as aventuras de viagem e as partes humorísticas. Via-se no lugar de muitas daquelas pessoas, encantada com a coincidência de alguns sentimentos. Depois, ia até o outro cômodo, onde ficava a pesada mesa de passar roupa. Dependurava-se no canto da mesa, unia as pernas e fazia movimentos que iam tomando ritmo. Não sabia explicar a necessidade daquela agitação, porque não conseguia parar até o momento em que tudo de repente cessava e se aglutinava numa única contração forte e desconhecida. Uma sensação que a tomava toda. Sentia-se então relaxada e cansada ao mesmo tempo. Ficava angustiada quando a chamavam ou aparecia alguém bem naquele momento. Masturba-se assim quase todos os dias. Começara a estranhar seu corpo. A vizinha olhou-a de alto a baixo e disse, é, os peitinhos já estão apontando. Olhou para o vestido apertado e correu para a cabana que fizera, entrelaçando os pés de milho secos num cone, como a dos índios nos filmes de mocinho e bandido. Escondeu-se lá dentro e ficou ouvindo o barulho dos grilos, o estalo das folhinhas ao calor do sol forte. Ficava observando longamente os enormes sapos escuros que apareciam no jardim da casa, cheios de boubas, as longas línguas finas em direção aos insetos que voejavam em torno das lâmpadas. Pisava a calçada com cuidado para não esbarrar em nenhum, a avó dissera que lançavam um jato de leite venenoso nos olhos. Apareciam enormes besouros, de carapaças escuras e brilhantes, alguns com chifres. Examinava-os de perto, pareciam escaravelhos egípcios. Enquanto a mãe regava com a longa mangueira de borracha vermelha o jardim, à noite, ficava perto da lâmpada que pendia do canto do telhado, ouvindo os besouros chocarem a carapaça dura contra a parede. Estalavam e caíam na calçada de cimento estreita, às vezes de barriga para cima. Virava-os, eles voavam, de novo chocando-se contra a parede. Quando aparecia um sapo maior, se afastava. A língua comprida e fina num arremesso único e certeiro agarrava a vítima que ia desaparecendo na bocarra. A natureza é assim, filha, disse o pai, tudo é perfeito. Ficou a pensar. Abre a janela e um vento frio entra, varando o corpo. Sente-se bem no frio europeu. Às vezes, tem a impressão de estar em Curitiba. A avó, acostumada com o calor da Ilha, o reumatismo deformando o corpo, suspirava junto ao fogão de lenha com saudade de Florianópolis. Resolve pôr a mesa em frente à janela. O jacinto azul recende, a folha em branco ilumina o quarto. O romance. A infância dói e comicha como uma cicatriz recente. Destampa a caneta, a pena escorrega sobre as fibras, deixando um rastro brilhante. Então, é assim, parece ouvir a menina. E aguça o ouvido à escuta das vozes preclaras. Ao passar pelo banquinho de assento de palha, ouve a avó repetir, estuda, minha filha, estuda para seres alguém. Na árvore desfolhada e enegrecida do pátio um pássaro solitário pousa num galho frágil, a balançar-se. Olha o envelope pardo em cima da mesa, Technische Universität Berlin. Quando abriu o envelope pardo que a irmã lhe mandara, deu com a foto esverdeada, a última que o pai batera. A mãe, na varanda, entre folhagens, magra no vestido colorido, olhar distante, sorriso débil. A alegria murchara de seu rosto, estampava um máscara apertada, a apreensão estreitando ainda mais os olhos. Diminutas amêndoas que agora raramente ganhavam a tonalidade esverdeada. As sobrancelhas negras, em forma de acento circunflexo, uniam-se numa prega funda. A luta interna vinha à superfície, o espírito tarjava-se de sombras. Ao aproximar o olhar da foto, pareceu ouvir sua voz, ainda perguntava estás feliz? Ia pela Rua XV, em Curitiba, terminada a aula na faculdade, o vento frio atravessando a roupa. O estômago comprimido pela ansiedade, no desejo de um futuro que tardava a se cumprir. É bom saíres daqui, dissera a mãe, aqui não tem nada para ti. Tossira aquela tosse seca e nervosa e insistira, vai, aqui não tens nada a ganhar, vai. Quando o caminhão da mudança estacionou em frente ao portão lateral, a mãe desapareceu. Encontrou-a pendurando roupas no varal do quintal e viu que chorava.

 

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Domingo. O pátio em frente está silencioso. Um corvo repousa na árvore desfolhada e grasna. Sinal de morte, diria a avó, ave agourenta, credo. Algumas luzes já estão acesas no prédio em frente. Ontem, na feira natalina e frente à Gedächtniskirche, as pessoas andavam em fileiras apertadas, tomando glühwein e comendo sanduíches de würstchen. Alguns pedintes silenciosos, imóveis, sentados no chão com o chapéu entre as pernas ou sendo lentamente empurrados por entre a multidão, em cadeiras de roda. Com o braço apertado no braço de Du, a neve fina caindo como garoa, aproximava-se curiosa de cada barraca. Depois, entraram na igreja, Bach-Chor na der Kaiser-Wilhelm-Gedächtnis-Kirche. Entoavam Wir glauben all an einen Gott. As torres de vidro azul que complementam as partes bombardeadas não lhe tiram o aspecto sombrio, parece ainda chamuscada pelo fogo da guerra. Quando olha para cima ouve o rumor dos aviões, das sirenas, e o céu preteja como nos filmes que vira em pequena. Na capela, acima do altar, dependuraram um pesado Cristo dourado, isento de expressão. Parece suspenso no ar por algum guindaste invisível. Inquieta-se. Um bêbado urina no tapume que esconde a parte da reforma interna, provocando indignação. O ar é rarefeito, como de enterro, as velas derretidas cheiram a desamparados desejos. Sente uma compaixão condoída, lembra-se das figuras de Käthe Kollwitz, aqueles olhares patéticos. Cristo tinha irmãos, está na Bíblia do meu pai, disse para a freira, que suspendeu a aula de religião para ter uma conversa particular com ela no gabinete da diretora. Mas eu li, disse em voz dura, para se proteger da Irmã Aldagisa, que de segundo em segundo arrumava os óculos de aro dourado no nariz fino e passava o dedo indicador por dentro da testeira engomada que escondia seus cabelos. Para o ginásio, a mãe a matriculara às pressas num colégio de freiras. O pai fora obrigado a ceder. Homem incompreensível este teu pai, resmungava a avó. Soavam estranhos os nomes das freiras do colégio da mãe. Eram alemãs, dizia, enquanto ia recitando Schwester Gudrun, Schwester Edwiges, Schwester Bernwarda, a mais simpática. Passou a chamar a irmã de Schwester. Imagine, disse a mãe, fui batizada na capela do colégio, com treze anos, sozinha, contra a vontade do papai. Nossa Senhora foi a madrinha. Na foto, coberta pelo véu branco, com uma vela e um rosário na mão, a mãe tem o olhar decidido, mas triste. Sempre que terminava as tarefas em sala de aula a mãe era obrigada a cruzar as mãos e deixá-las postas na beira da carteira. Conservou esse hábito vida afora. Almoçava e entrelaçava os dedos, repousando as mãos na beira da mesa, olhar longínquo. Passeava por entre as freiras que lhe passavam a mão na cabeça com ar de piedade, cochilando entre si. Um dia ouviu dizerem, o pai é ateu, coitadinha, nem batizada é. Não são casados, viu a ficha? Quando abraçavam-na sentia um cheiro de mofo, a natureza confinada por trás dos hábitos negros, a branca testeira alta e dura comprimindo a fronte. O mundo interior dilatava-se à sua volta, num conflito constante. A adolescência fora turbulenta. No colégio, vagava pelos longos corredores escuros e degraus que rangiam. No fim de cada corredor havia um triângulo. Dentro, um grande olho azul de pestanas escuras e os dizeres Deus me vê. Cristo não era louro de olhos azuis, resmungou o pai, na hora do almoço, era judeu. O do livro da Irmã Adalgisa é, teimou. Ele se impacientava, a mãe dizia come, menina. Era proibido aproximar-se do internato, Irmã Sílvia aparecia de sineta na mão, olhar de víbora. E quem não é batizado, ouviu sua voz no silêncio que se fez na sala. Quem não é batizado vai para o limbo, respondeu a professora, olhando para ela com ar desconfiado. O que é limbo, pai, perguntou, acordando sua ira. Tu vais estragar essas gurias, escreva o que eu te digo, e saía amuado, batendo a porta. Sentiu que se levantavam. O coral acabara de cantar. Fora, as pessoas indo e vindo pela praça, na feira de natal, bebendo e comendo, protegidas por seus casacos grossos, botas, chapéus e luvas. Olhou a plaqueta de papelão pardo no colo do homem louro de olhos azuis, um gorro de pele enterrado na cabeça, Ich habe hunger.

 

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Acordou cedo, como de costume. Frio escuro. Abriu a janela, as narinas arderam, bateu a imensa coberta de penas e foi à cozinha fazer café. Du já se confinara no escritório, a escrever. O que é, agora, não vês que estou lendo, dizia o pai ao abrir a porta. Não se tem sossego nesta casa, ouvia ao fechar a porta, é um inferno. Pensou na entrevista com o professor, Technische Universität Berlin, StraBe des 17 Juni. O jacinto solitário desponta em azul, perfumando o quarto. As janelas do edifício em frente estão apagadas, já foram todos ao trabalho. Dois pássaros trocam sinais, indo de galho em galho na árvore desfolhada. Os turquinhos do zelador atravessam o pátio tagarelando, do apartamento de cima vem o barulho das crianças. Batem uma bola dura no chão e arrastam um triciclo de um lado para outro. Em pequena, em Blumenau, numa casa grande, tinha um salão só para ela e a irmã brincarem. Embaixo, ficava a garagem, unida ao salão por uma escada. O pai entrava por ali. Um dia, ouviu que discutia com a mãe depois do jantar. Elas não tem para onde ir, e vão pagar aluguel, disse. Na manhã seguinte, ficou sabendo que dali em diante teria de brincar no quarto onde ela e a irmã dormiam na mobília azul. Uma amiga do pai, agente no seu escritório de seguros, viria ocupar o salão e a sala da frente. Joga tênis muito bem, disse o pai, lançando-lhe um olhar por cima do prato, e tem um Cadilac rabo-de-peixe azul e branco. Quando a caminhonete da mudança chegou, ficou esperando pela janela da sala. Duas moças saltaram do Cadilac e davam ordens aos homens. A casa ficava na encosta de um morro no Bairro da Velha e era difícil subir a escadaria. Com elas veio um cachorro preto que se chamava Pink. Rodopiava entre as moças, que passavam equilibrando pacotes, os homens bufando sob o peso dos móveis, enquanto evitava o cão nervoso. O salão de repente estava cheio e escuro. Encostou-se num canto e ficou a olhar a arrumação. A mãe chamou-a, agora tens de respeitar o espaço delas, esta parte já não é mais tua. Temia o cachorro, que rosnava e gostava de avançar nos pés, por baixo da mesa, mas ficara fascinada por Estela. Fumava um cigarro após o outro e usava calças compridas brancas. Olhos grandes e irrequietos, cabelos escorridos e aparados rente às orelhas. A voz rouca saía por entre os dentes cerrados, cheirando a café. Era claro tudo o que dizia. Nos dias seguintes, a mãe teve trabalho para afastá-la de lá. De manhã cedo, sentava-se encostada à porta fechada e esperava. Ouvia contente os pequenos ruídos, passos em chinelos, janelas se abrindo, uma ou outra fala abafada, e pulava quando a porta se abria. Antes de viajar, Estela pediu que cuidasse da amiga na sua ausência. Aos domingos, Ondina levava ela e a irmã a uma confeitaria, onde sentavam-se por algumas horas, olhando as águas do rio Itajaí-Açu, muito verde e encorpado, a correr mansamente. Tomavam sorvetes em taças altas. Às vezes, percebia que ela olhava intensamente para algum homem. Gostava de flertar, como dizia a mãe. Então, inquietava-se, pedia para ir embora. Era tempo de Copa do Mundo. Não entendia o que as atrapalhadas vozes dos speakers diziam com tanta pressa, mas gostava de ficar sentada ao seu lado diante do enorme rádio de madeira escura. Sentia seu perfume doce, provava as balas, engrossava a torcida. Às vezes ela lhe pedia para escolher um disco e tentava ensiná-la a dançar. Enroscava-se à sua cintura macia, sentindo o mesmo calor úmido da mãe, enquanto sem jeito tentava acompanhar seus passos. Um dia, na hora do jantar, ouviu Estela dizer que comprara um sítio depois do morro atrás da casa. Para lá foram no fim de semana seguinte, andando, em excursão. A mãe, Estela e a amiga, ela e a irmã, um primo e a mãe do primo subiram o morro pelo caminho estreito e escarpado, carregando várias sacolas. Jogaram bola e almoçaram com o caseiro. Mas quando à noite o pai chegou de viagem anunciou que de novo deveriam voltar para Curitiba. Ouviu da cozinha a avó repetir, pedra que muito rola não cria limo. Dias depois, a casa foi ficando vazia. No corredor longo, as caixas de papelão aguardavam o embarque. O enorme caminhão de mudança encostou com dificuldade na ruazinha que dava para o morro. Pegou na gaveta aberta, dobrou num triângulo e fez uma máscara de bandido, como vira na matinê com Ondina. Pulava de caixote em caixote, fugindo dos inimigos. Depois, resolveu se esconder numa das caixas grandes e gritou assustada quando se viu levantar do chão. O homem de bigode ruivo tirou-a lá de dentro e disse para a avó, é bom cuidar da menina, dona. Guardara a imagem autoritária, mas paciente, de quando Estela fazia dela sua secretária. Sentia-se importante recitando os nomes alemães ou ditando o número das apólices com que ela preenchia fichas e mais fichas. Percebia que olhava sorrateiramente por cima de seu ombro, antes de datilografar João Breiter, Werner Schmidt, Pedro Klauss, Michael Boesel. Nunca mais as vira. Um dia, o pai disse que numa viagem Estela se sentira mal na estrada, sofrera um enfarte fulminante no banheiro. Guardava ainda a raquete que ela lhe dera. Anos mais tarde, vira de relance a amiga, bêbada, em Camboriú, ladeada por dois homens. A mãe do primo disse vive assim, agora, jogou fora tudo o que tinha. Por cima da imensa taça de frapé branco, as águas verdes do Itajaí-Açu às vezes se turvavam como os olhos da mãe.

 

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Fez café, comeu knackbrot com queijo e mel. As páginas escritas começam a se avolumar sobre a mesa. Todos os dias deixa escorrer a tinta preta no papel branco, imprimindo as lembranças mais insistentes e duradouras. Acordara pesarosa, sonhara e lhe ficara um sentimento de perda. Do pátio vinha o alarido das crianças. As pessoas dançavam, fantasiadas com máscaras. Sentiu medo. Era carnaval no clube da praia, um galpão de madeira tosca com algumas falhas no madeirame do chão. Parecia a farmácia antiga onde a mãe a levara um dia para tomar injeção, dizendo não me vás fazer feio. O farmacêutico mostrara de onde vinha o ruído da água, apontando para as tábuas do chão. Viu o riacho escuro correndo lépido a seus pés e teve tontura. A música alta a deixava zonza. Andou atordoada atrás daqueles enormes narizes e bocas carmins, ao som das marchinhas, em busca da mãe. De repente, avistou-a. Sorridente, dançava com um homem claro, enquanto ia se afastando. Chamou-a. Não ouviu. Chamou-a de novo. Não ouvia. Quando ela se aproximou da porta, saiu correndo e gritando atrás. Fora, sob um céu cinzento, um imenso touro negro pôs-se em sua perseguição. Correu, perdendo a mãe de vista. Mãe, estou com sede, choramingou, ainda resfolegante, o coração descompassado. A mãe, sonolenta, acendeu a luz e foi buscar um copo de água. Bebericava a água lentamente, sem tirar os olhos dela, o rosto apoiado numa da mãos, a outra na beira do berço. Ainda dentro do sonho ouviu-a dizer dorme, minha filha. A mãe agora estava sempre cansada, a camisola clara mostrando o ventre volumoso. O que esta menina quer, agora, precisas dormir, ouviu o pai. O primeiro sonho, devia ter quase três anos, a irmã nascera pouco depois. Começara a ter medo dos bois na praia, em Camboriú. Os carros de boi passavam rangendo as rodas, girando lentamente. Ia espiar no portão baixo, por trás das ripas de madeira crua. As ancas imensas gingavam, os ossos esticando a pele luzidia e suada. As vozes dos homens acompanhavam o gemido da madeira. Uma noite, estavam reunidos em torno da mesa de jantar quando bateram à porta. Uma algazarra lá fora, cantoria, batuque. A mãe do primo disse é o grupo de bumba-meu-boi, deixa entrar. Entraram dançando e cantando sala adentro e ela correu, chorando, para baixo da mesa. Assustara-se com o imenso boi negro de pano, a respiração forte dos homens. A mãe foi consolá-la, é brincadeira, uma dança, como carnaval. Desandou a gritar e foram obrigados a mandar o grupo embora. Ficou um longo tempo embaixo da mesa, acuada. Era para lá que ia mais tarde, quando a mãe saía e demorava a voltar. A empregada dissera um dia, quer que sua mãe volte logo, vá chamá-la debaixo da mesa. Foi para lá um pouco antes da mãe voltar do hospital com um embrulho nos braços, o pai ao lado, carregando a mala azul. Ignorava o que existia dentro do embrulho. Lembrava-se de ter ido uma tarde visitar a mãe no hospital. O pai a levara, acanhada. No quarto grande, a mãe parecia diferente. Ficara calada, sentada ao lado da cama alta. Tudo era muito branco e o cheiro, áspero. Não queres uma bolacha? E a mãe apontara para uma lata na mesinha ao lado. Escolhera uma redondinha e ficara a alisar o papel vermelho sanfonado. Alguma coisa mudara, não sabia o que. Olhava para tudo com olhos enormes. Sonhei várias noites com teus olhos, antes de nasceres, dissera a mãe um dia. Num tailheur cinza, a mãe subira lentamente os degraus da escada com aquele embrulho nos braços, o pai ao lado, ainda de chapéu. Ouviu a mãe se desesperar, mas como foram deixar essa menina sozinha com uma tesoura? Cortara várias mechas de cabelo debaixo da mesa. O embrulho foi parar no seu berço, e chorou. Puseram uma cama para ela no quarto da avó, mas não conseguiram demovê-la. A mães acabou trazendo um acolchoado e improvisando uma cama embaixo da mesa da sala de jantar.

 

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Uma fina camada de neve encobre o pátio. Luzes em algumas janelas. O céu é de um azul cristalino, que o cinzeiro sobre a mesa imita. O prédio ainda está silencioso. A mesma tranqüilidade que desfrutou na adolescência, de escrever ouvindo o raspar da pena no papel. Quando for grande vou ser escritora, e o pai a olhara de soslaio. No aconchego do silêncio, o papel em branco, iluminado. Em Curitiba, adolescente, resolvera isolar-se durante as férias de julho para escrever um romance. Escolhera a área que a avó mandara envidraçar, transformada agora numa saleta com uma mesinha pesadona, um conjunto estofado e vasos de folhagens. A cortina de ráfia provocava-lhe coceiras. Lembra-se de uma foto tirada ali, pequena, afundada numa poltrona de lona e madeira, entre os vasos, com as pernas cobertas de curativos de esparadrapo branco em forma de cruz. Alergia. A pele ficava cheia de bolhas que soltavam pruridos. A mãe a fazia entrar numa bacia de alumínio grande, tinha de lavar suas pernas com água morna para poder tirar as meias. Ia umedecendo o náilon branco e desgrudando-o das feridas redondas e vermelho-amareladas. A irmã também sofria do mesmo mal. Sangue ruim, a avó lançara as palavras em direção ao pai. Um dia sentiu uma coceira insuportável nos dedos do pé. As bolhas eram internas, longe do alcance das unhas. A mãe implorou para que não coçasse. Desesperada, foi ao armário do rancho onde ficava a sala de passar roupa, pegou a escova de aço com que a avó limpava os sapatos de camurça preta e aliviou-se. A mãe encontrou-a com o pé em carne viva. Levou para a saleta a velha máquina de escrever portátil que o pai lhe dera, uma Remington alemã, e um pacote de folhas de papel ofício. Escrevia todos os dias, quase o dia todo, trancada, entusiasmada com o percurso que ia tomando a narrativa. Esta menina acaba ficando doente, dissera o pai, esta tua filha só inventa moda. De vez em quando lia para a mãe os poemas que escrevera em lembrança de Blumenau, ao rio Itajaí-Açu, de que sentia falta. Lembrava-se atravessando a ponte, o sol quente, o forte cheiro de mato entrando pelas narinas. Ia de shorts e sandália buscar leite numa padaria depois da ponte. Parava em frente a um portãozinho de madeira, ficava na ponta dos pés, pescoço esticado e gritava peru, glu, glu, glu, glu. Do jardim, o peru respondia. Atravessava a ponte pisando a madeira quente, o olhar apoiado nas montanhas distantes. Passava em frente ao Grupo Escolar Luís Delfino, onde agora estudava. Em outubro, o pai precisou voltar para Blumenau novamente. A avó e a mãe gostavam do calor, lembrava-lhes Florianópolis. A mãe, então, a matriculou no grupo que ficava depois da ponte, perto do Bairro da Velha, onde foram morar, por estranha coincidência, na rua Curitiba. Ao voltar, passava no armazém da esquina e comprava uma folha de papel almaço sem linha. Sentia um prazer imenso em preencher aquela brancura, a escrita parecia uma extensão da mão. Um dia a mãe viajou e deixou aberta uma conta no armazém, para que comprasse o que realmente precisasse Comprou um caderno novo todos os dias. Vinte cadernos, assustou-se mãe, ao voltar. Quando de novo chegou outubro, o pai teve de retornar a Curitiba. Comprou uma casa, preparou a mudança. Deixara a companhia, andava emburrado. A mãe teve dificuldade para matriculá-la no grupo em que iniciara seus estudos, não gostavam dos barrigas-verdes. No sala da diretora, a mãe exigiu que lhe fosse aplicado um teste. Estou sentindo falta de objetividade na avaliação, disse. Desconfortável, a diretora tomou de cima da mesa um livro, estendeu-o aberto numa página ao léu e mandou que o lesse. Leu sem tropeços. Ah, ela está bem preparada para esta escola, pode ficar. Minha filha não merece este estabelecimento preconceituoso, disse, tomando-a pela mão. No dia seguinte, já de avental branco estava numa escola nova, entre novos colegas e professora nova. Olhava com surpresa para a professora de óculos de lentes grossas, que caminhava por entre as fileiras de alunos com uma régua na mão. Um dia não quis mais que o pai fosse buscá-la no grupo. No dia anterior, vira o carro parado na frente do portão e entrara, ficando à espera da irmã. O pai sempre chegava cedo. As crianças saíam correndo, o ponto do ônibus ficava de uma hora para outra coalhado de guarda-pós brancos. De repente, a professora de música, dona Laura, que passava ao lado do carro, disse em voz alta para o pai, todos ouvindo, sem vergonha, não respeita nem a filha? Olhou para o pai, que disse vá buscar sua irmã, está atrasada. Não atinava com o que havia acontecido. Na aula de música, ficava sempre envergonhada, esperando que a professora viesse lhe dizer alguma coisa. O pai. Homem mais incompreensível, resmungava a avó. Um dia abriu de sopetão a porta da saleta onde ela estava para avisar que o almoço estava posto. Esfregava uma mão na outra. O frio entrava pelas frestas, os pés estavam gelados. Na revista Manchete, acrescentou, tem uma jovem francesa que escreveu um romance e está fazendo muito sucesso. Olhou pela janela e viu que caíam as folhas douradas do plátano no descampado em frente da casa. Arrependera-se de ter levado alguns poemas para o colégio. A professora avisou que queria falar com ela no intervalo. Enquanto ouvia os comentários sobre os poemas, que eram bonitos, mas tristes, muito tristes, por que tamanha tristeza em plena juventude, nervosa, ia desmanchando a ponta da gravata do uniforme, sem saber o que dizer. Em casa, leu os poemas para a mãe. Triste, disse ela, e viu que seus olhos marejavam. Quando julho terminou, tinha um maço de quase cem folhas datilografadas que guardou no baú com os poemas. Da experiência ficou-lhe uma extrema liberdade confundida com uma solidão profunda. Sentia-se bem nessa solidão, como num lar silencioso e bem iluminado. Escrever era, sim, como viajar, podia ir aonde quisesse na brancura ilimitada do papel. As palavras eram seu lar neste mundo.

 

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Acordou mais cedo, ainda impressionada com a Unter den Linden. Fora ontem passear no antigo lado oriental, passara por debaixo da Brandenburger Tor, observando o comércio ambulante. Russos vendendo canivetes e babushkas, poloneses, tchecos, muitos uniformes militares, coturnos, capacetes, medalhas. Prendas bélicas. Vira as fachadas dos edifícios antigos e acabara no café do hotel onde dois anos antes ouvira o mesmo conjunto de três velhos músicos tocando valsas. Dentro, muito brilho, em contraste com o acinzentado de fora. Chá e torta. Tivera sempre um sentimento ambígüo pela Alemanha. Vira cartas do avô em alemão, filmes de guerra, nasceste quando a guerra acabou, dissera a mãe. Um ano apenas e já as vitrines do lado oriental exibiam Pierre Cardin, Cartier, Lacoste. Ocidentais e orientais indo às compras. Lojas sofisticadas convivendo com os melancólicos conjuntos de apartamento. Escuro ainda, chuva. No prédio em frente, todas as luzes apagadas. Perdera o sono. O ritmo da chuva no protetor de zinco da janela, como barulho de calha d’água, fez com que se lembrasse de seu escritório. Num rancho à parte da casa, um anexo de madeira próximo ao que antes fora um misto de lavanderia e quarto de passar roupa, depósito de achas de lenha e quarto de empregada, o pai acabara erguendo um quartinho de madeira para ela. Seu escritório. Benza Deus, este homem abriu os olhos para as filhas, arre, disse a avó. Um dia viu-a curvada escrevendo em cima da cama, no quarto estreito que dividia com a irmã, e ouviu-o dizer para a mãe, esta menina precisa de uma mesa. Já não reclamava do colégio, até mesmo ensinara-a a dirigir o Chevrolet ferrugem. Mudou, teu pai, repetia a avó, para melhor, graças aos céus. Uma janela grande para a entrada de luz, um basculante para arejar, uma mesa levemente inclinada, cadeira na altura certa de suas pernas, algumas prateleiras e um baú de madeira onde guardou seus textos. Tudo pintado de azul, como o quarto, em Blumenau. A mãe comprara os móveis de segunda mão, de uma família amiga. Os meninos haviam ido estudar na Alemanha. Nas paredes toscas, seus desenhos. Uma cabeça de faraó, que esculpira em madeira, o pai levara para o escritório. Quando o visitava com a mãe, na volta das compras, ele fazia questão de repetir para a secretária que era obra dela. Lera a história de Nefertiti, o pai tinha uma réplica pequena de sua cabeça, e Akenaton, e se apaixonara pelo Egito. Quando viu a escultura original pela primeira vez, no Ägyptisches Museum Berlin, foi subindo os degraus, emocionada, e ficou duas horas admirando a textura da pele e o ardor daquele olhar machucado. Desenhara muitos perfis egípcios nesse aposento, onde permanecia todo o tempo livre. À noite, sempre se demorava. Atravessava temerosa o jardim que o a separava da casa, com medo de ladrões. Antes de deitar, a mãe a chama da porta da cozinha. Sinal bom, estava só, escrevendo os poemas que depois passava a limpo num caderno de capa grossa. Ouvia o silêncio entremeado com o ruído dos insetos com um prazer quase dolorido, delongando-se no mundo dos sentimentos plenos de palavras que brotavam com a tinta. No dia seguinte, sempre se surpreendia com o que escrevera. A avó vivia repetindo, estuda, minha filha, para seres alguém. Viviam um período difícil, o pai comprara uma casa pequena num bairro popular, em Curitiba. Bairro Carmela Dutra, um conjunto residencial construído pela Cohab. Ao longe, ao fim de uma rua que parecia subir até o horizonte, avistava as luzes do Bairro dos Bancários. Depois do jantar, ia para o jardim e ficava a espiar por trás dos três pinheiros altos, o vento acentuando o cheiro das bolotas marrons que forravam o chão. O futuro tinha o calor daquelas luzes distantes e silenciosas. Aspirava intensamente aquela liberdade muda, enquanto ouvia lá dentro a mãe gritar qualquer coisa para o pai, a avó interpelar alto, o pai vociferar. As pessoas deviam ser felizes naquelas casas ao longe, como nos anúncios das revistas que a mãe comprava. Pessoas lendo, aconchegadas em mantas de lã colorida, em frente ao calor da lareira, o silêncio criando uma aura em torno das luminárias. Um dia, viu numa revista o anúncio de um curso introdutório de filosofia e entusiasmou-se. Mostrou para a mãe, impossível, estava sem dinheiro. A mãe recebia uma pensão do avô, que dividia com a avó. O pai, nem pensar, acabara de comprar material para a escola. Decidiu pedir para a avó. Sentada ao lado do fogão de lenha, ela fumava. Sofria com o frio de Curitiba, atacava seu reumatismo. Quando se tratava de estudo, a avó mostrava-se interessada. Vivia lembrando a biblioteca do avô . Podia ser tua, agora, dizia, e dava um longo suspiro. É, as voltas que a vida dá, e suspirava novamente, Estava ficando corcunda com a artrite. Com o tempo, foi ficando cada vez mais inclinada, olhando diretamente para o chão. Já não saía. Costumava remexer numas latas de biscoito alemão onde guardava fotos, moedas antigas, cartões de visita do filho morto e alguns papéis. De vez em quando pedia para ela ir comprar uma caixa de giletes no armazém do seu Antoninho. Sentava-se na escadinha sob o telheiro do tanque e aparava os pêlos grossos e brancos que lhe nasciam no queixo. Às vezes ficava ao seu lado, sentada na cama, enquanto ela remexia nas latas. Este é o teu avô quando jovem. Este, ah, este é de uma prima afastada de teu avô, bonita, sim, ele gostava muito dela. Muito. E sentia tristeza na voz da avó. Explicou para a avó como seria bom ter essa coleção de história da filosofia. A avó reclamou que era muito cara, toda a sua pensão. Mas tinha uma economia. E, na ponta dos pés, braços estirados, retirou do fundo da última prateleira uma lata azul-marinho retangular que tinha na tampa o desenho em dourado de uma biga de corrida. Moedas antigas com a efígie do Imperador, papéis amarelados amarrados com um fio de costura preto. O dinheiro estava num envelope branco dobrado ao meio. Ficou olhando as mãos deformadas da avó. Quis beijá-la mas resolveu não interrompê-la. Sempre que chegava o fim do mês, ouvia a mãe dizer está faltando um esse aqui, mamãe, a senhora esqueceu de novo. A avó estendia o papel diante dos olhos, fechava e abria as pálpebras, contemplando-o e dizia que já não estava mais enxergando tão bem, precisava mudar as lentes. Então, a mãe punha de lado o pano de prato, ia até a mesa, escrevia o nome da avó com o lápis preto, soletrando-o, que ela copiava mais uma vez. E mais outra, preparando-se para assinar seu nome na folha do banco onde ia receber a pensão. Enquanto a mãe se distraía a soprar o fogo, bochechas luzindo avermelhadas surripiou da mesa um daqueles papéis. Ficou contemplando os garranchos trêmulos afundados no papel branco. Estuda, minha filha, estuda para seres alguém. A mãe pegou o dinheiro e foi ao correio levar o pedido. Alguns dias depois, quando chegou o volume, fechou-se no seu escritório, foi abrindo lentamente o pacote, um pouco desapontada. Eram fascículos mimeografados, capa azul de papel mole. Assim mesmo, mergulhou fascinada na leitura. Daí para a frente, pegou o hábito de comprar livros por correspondência. Conversação em inglês, e ficava repetindo as frases, enquanto ajudava a mãe a fazer a cama. Francês fácil, a mãe gostava de ouvir canções francesas. Como desenhar, e desenhou o rosto de um velho, como ensinava o livro. Muito bom, dissera o pai, minha filha tem talento. Um dia mandou buscar como perder a timidez em uma semana e sentiu-se mais confiante e ousada.

 

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As janelas do edifício em frente estão enfeitadas com pequenas lâmpadas coloridas. À noite, Berlim fica alegre, é Natal. As lojas já esgotaram antecipadamente seus produtos. Depois da queda do Muro, a produção é insuficiente. A dona da papelaria repete constantemente, você vai rir, mas acabou. Tudo acaba rapidamente. Chocolate, sekt, biscoitos, café, papel. Passara numa confeitaria e comprara stollen e lebkuchen, antes que terminasse. Em frente à confeitaria, um pedinte, imóvel, silencioso, segurando um cartão grosso onde se lia Ich habe hunger. Viu a poucos quarteirões uma lanchonete turca. Comeu um doner, alface verde, radici roxa, fatias de carne de carneiro e tahine. Por que dão carne para essa menina, não sabem que é um veneno, bradava o pai. A carne é fraca, retrucava Irmã Gabriela, os olhinhos escuros e maliciosos por trás das lentes grossas. As ruas viviam cheias, esgotados os ingressos para a ópera e para o concerto de Natal. A custo Du conseguira um lugar para a Philamornie. Viajar, impossível. Só os que haviam previdente e prudentemente comprado a passagem no meio do ano podiam sair. Entrou no Kranzler, um café e uma fatia de bolo amanteigado. Excitada, ficava grudada à mãe, enquanto ela batia com um garfo as gemas. O barulho ritmado do metal no prato de louça, a concentração da mãe. A medida certa de açúcar, colheradas de água. Metia o dedo na mistura, enquanto a mãe se distraía, e não conseguia reter um gemido de prazer. A mãe se alterava, depois a massa desanda. Pão-de-ló, repetia o nome adocicado. Pronta a mistura, a mãe chamava o pai para acender o forno improvisado que montara. O fogão de tijolos não tinha forno. Duas latas de óleo de milho que soldara, a de baixo com uma pequena abertura redonda fechada com uma rosca e um diminuto furo no centro, de onde saía um pavio, ele a enchia de querosene. A de cima tinha as duas laterais abertas e puxadas para cima, como duas abas formando as beiradas de sustentação da fôrma. A mãe implicara com o aparato, mas acabara aceitando, gostava de comer uma fatia de bolo no café da tarde. Na cozinha, ao redor da chama azul, ficavam todos fascinados, enquanto o bolo se fazia, a fôrma encarapitada sobre as latas. Era proibido falar alto, para não apagar a chama, nada de movimentos bruscos, olha o fogo, menina. Desde que o pai comprara aquela casa pequena, no bairro popular, lá longe, na Avenida Nossa Senhora da Luz, entre pessoas estranhas e ruas de barro, a mãe ficara diferente. Não podia mais brincar no jardim, estava sempre frio. Não podia pegar resfriado, o tio morrera jovem, de tuberculose. Galopante, enfatizava a mãe. Veste o agasalho para não te resfriares. Dentro de casa também era frio e escuro. As paredes azuis eram manchadas pela umidade. A avó vivia sentada num banquinho de madeira e assento de palha ao lado do fogão de lenha. De manhã cedinho trazia do rancho as achas para fazer o fogo, arrumava-as, por cima gravetos secos, alguns pedaços de jornal retorcidos como tochas e ficava soprando. O vermelho acendia seu rosto. A mãe desmanchava seus casacos velhos e tricotava novos, maiores. De má vontade, ficava de pé à sua frente, enquanto passava a lã em volta de seus braços estendidos, formando depois grandes bolas coloridas. Ela e a irmã cresciam, dentro em breve teriam de ir para a escola. Já ouvira a mãe e a avó cochicharem várias vezes, preocupadas. Presa dentro de casa, ficava olhando pela janela a chuva desaparecer na terra nua. Aspirava o frescor. Fecha a janela, menina, não apanha frio. A mãe e a avó haviam revolvido a terra nos fundos da casa e plantado algumas folhas verdes para a salada, muito amargas, que o pai chamava de radici e ela não conseguia comer, alguns pés de tomate, que todo dia a avó prendia numas estacas compridas e finas que o pai preparara. Quando chovia forte, a mãe e a avó corriam para fora a cobrir com um plástico transparente as verduras mais tenras. Na hora do almoço, pediam que fosse ao quintal buscar cebolinha francesa para a maionese. Uma gema cozida, que a mãe amassava ternamente e ia misturando com uma gema crua, um fio de azeite e sumo de limão. Hortelã para o chá, que a avó preparava numa caneca alta. Ela tomava o líquido morno e depois mastigava as folhinhas de gosto agradável, rascante, encostada na quentura dos tijolos do fogão vermelho. À noite, tinha dor de barriga, ia para a cama da avó, que estava sempre acordada. Ela lhe fazia uma massagem suave sobre o estômago, em movimento rotativos. Dormia. Uma noite, acordou assustada com a fala da mãe, que correra para o quarto da avó. Ouvira-a dizer alto eu não quero. E a avó, olha a menina. Que é isto, mulher, é teu marido. Logo o pai, de ceroulas grossas, apareceu no quarto, pôs o braço em torno dos ombros da mãe, dizendo vem dormir, deixa de bobagem, vem. A casa silenciou de novo. Voltou para a sua cama, embrulhou-se nos cobertores, a ponta do nariz gelada, e ficou olhando uma mancha na parede, que ia tomando a forma de seu medo. Lembrou-se que no dia seguinte a avó ia fazer a omelete de que gostava, com bastante cebolinha. O pai cercara um pedaço do quintal para fazer um galinheiro. Construíra duas chocadeiras de madeira, uma em cima da outra, com duas lâmpadas grandes cada uma. Ela o ajudara a fazer uma calçada de tijolos da porta da cozinha até o quintal, para não pisarem na lama. De manhã, ia saltando de tijolo em tijolo para espiar as chocas. Abria o portão de ripas, fechava, tomava cuidado para não pisar na titica, parava com medo do galo, olhos nos olhos, e ia em direção aos portõezinhos. As galinhas se mexiam à sua aproximação. Uma manhã viu a ninhada de pintinhos ao lado da galinha, muitos de pescoço pelado. Ficou encantada, sentindo o cheiro das penas úmidas. Criaturinhas que mal ficavam de pé, parecendo terem saído de um longo sono. Correu a contar para a avó. Um dia, ao entrar na cozinha, viu a avó segurando alguma coisa sobre um pano branco dobrado em cima da chapa do fogão morno. A mãe, concentrada, fazia um curativo no peito do pintinho amarelo. Depois, ele ficou uns dias num ninho de pano improvisado e cresceu. Virou um frango tonto entre as pernas da mesa e das cadeiras. De vez em quando a avó dizia sai pra lá, empurrando-o com o pé. E resmungava como essa ave me atrapalha. A mãe e a avó botavam iodo nas boubas que apareciam nas galinhas. Dava trabalho pegá-las. A avó cercava e a mãe agarrava ora uma perna ora uma asa que se debatiam. A avó segurava a ave e a mãe aplicava o remédio com um palito envolto em algodão. Volta e meia o pai tinha de inventar comedouros, um cercado para prender o galo quando ficava brigão, uma escadinha para os pintinhos descerem e subirem da chocadeira. Entrou na cozinha, a mãe amassava com garfo duas gemas cozidas bem amarelas, misturando-as com um pouco de farinha de milho. Pegou a colher, mas a mãe disse é para a quirera dos pintinhos, eles precisam crescer fortes para botar ovos para nós. A mãe foi firme e disse que precisavam economizar os ovos para o almoço amanhã. A avó ia fazer aquele omelete de que gostava. Sentiu um gosto estranho na boca, o mesmo que sentia ao olhar as manchas na parede. Elas cresciam, inchando seu medo. Aos sábados, a avó escolhia e matava uma galinha. Proibia que assistisse. Mas um dia espiou a avó estocando o pescoço da galinha e dependurando-a pelos pés entre duas ripas do cercado. A galinha debateu-se um pouco, mas logo ficou tranqüila, o sangue escorrendo lentamente. A avó arrancou-lhe as penas, encheu com álcool uma bacia de metal, pôs fogo e, segurando a ave depenada pela cabeça e pelas pernas, virava-a naquela labareda vermelha e azul. Vai para dentro, menina, entra. Aproximou-se e viu a avó abrir o corpo branco, puxar-lhe o interior vermelho. Começou a perguntar. Este é o coração. A passarinha é preciso tirar por inteiro, se não o fel amarga toda a carne. Moelas, tripas, pulmão, até que, exasperada, gritou não me atazana, menina, hoje não estou bem. No almoço, provou a galinha que a avó assara. Não parecia a mesma, assim recheada com farofa farta de ovos cozidos e temperos verdes.

 

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O aquecimento interno resseca tudo, deixa os cabelos elétricos e espetados, a pele rachada. É obrigada a se besuntar com creme. Em cima da trilha rendada, os potinhos de vidro da mãe, lado a lado. A penteadeira fora posta num canto do quarto, deixando um vão onde gostava de se esconder. Aspirava o perfume, passava o dedo sobre o ressaltado das letras gravadas em dourado nas tampas. HR, as iniciais da mãe. HR, estava escrito no batom, no pancake e nos cremes. Anos mais tarde, desencantada, ao ler uma biografia de Helena Rubinstein numa das Seleções do Reader’s Digest do pai, percebeu sua ignorância. HR, Helena Rubinstein. É domingo e começa a amanhecer lentamente, embora sejam quase nove horas. Não gostava dos domingos, tinha de ficar em casa. Nos outros dias, bem cedinho o pai a levava para o colégio. Quando chegava ao portão, já estava a postos a Irmã Gabriela, sineta na mão, cenho franzido, alguns fios de cabelo branco escapando de dentro da apertada testeira alta, o corpo redondo protegido pela saia preta de pregas. Diziam ser viúva, vivia a repetir cuidado com os homens, homem, ó, sacode a calça e vai embora. Não entendia por que os homens faziam isso. Cuidava do portão de entrada, vigiando as alunas. Na chegada, na saída e no recreio, lá estava ela, advertindo as meninas sobre os perigos da vida cada vez que via uma aluna com o namorado, cuidado, homem, ó, abotoa a calça e vai embora. Vendia santinhos e lencinhos numa caixa de papelão que carregava de um lado para o outro do pátio. Quando a cercava e mostrava a caixinha, no recreio, era obrigada a pedir que guardasse este lenço de renda branca e bolinhas vermelhas e este aqui, bege, para amanhã, hoje já tinha gastado o dinheiro com o lanche. Em casa, cuidadosa, dizia para a mãe que já estava na hora de comprar mais alguma coisa da Irmã Gabriela. O pai jamais saía do carro para cumprimentá-la. Às vezes, dizia entredentes, olha só a cara dela, olha só, está muito enganada se pensa que vou lá beijar sua mão. A freira olhava de viés, parecendo adivinhar que falavam dela, e dava as costas. Uma vez viu sua veste negra movimentar-se de repente, ela voltou-se e o encarou. O pai não desviou o olhar, os olhos grandes e úmidos, o sorriso irônico no rosto moreno. Tomara que apareça alguém para desviar sua atenção, desejou. Ficou encabulada. Viu os olhos miúdos da freira, ainda mais apertados por trás dos óculos grossos, fuzilarem o pai. Saltou do carro e passou rápida pela brecha entre o portão e seu enorme corpo, sem sequer dizer bom-dia. Entrava no pátio quase vazio, sentava-se num banco de madeira largo e esperava que abrissem a portinhola para receber o carimbo de presença na caderneta. Saia azul-marinho de pregas, camisa branca, meias três-quartos de náilon, o pai repisava que não era bom usar tecidos sintético, o fino cardigã azul-marinho, às vezes tinha de usar por baixo uma camiseta que a mãe esquentava no forno de manhã bem cedo, a mala marrom sanfonada, com três divisórias recheadas de livros e cadernos, o penal de madeira equilibrado entre as alças, ficava à espera do sino. O pai sempre a trazia muito cedo. As meninas iam chegando, Clarice, os cabelos louros presos por uma tiara de veludo, Marisa, os olhos puxados como de japonesa, miudinha, de fala mansa. E Lilli Yellow, desenvolta e respondona. Para entrar no Colégio e fazer o ginásio, antes a mãe tivera de matriculá-la no quarto ano do Colégio Santa Terezinha, que pertencia à mesma congregação, à tarde, enquanto continuava fazendo o quarto ano de manhã, no Grupo Escolar Dr. Lysímaco da Costa. Fora para lá que a mãe a levara na tarde daquele dia em que o pai lhe trouxera o livro Aritmética Progressiva. Só assim podia prestar o exame de admissão para o ginásio. Depressa, a mãe mandara fazer uma jardineira azul e duas blusas, pois não tinha uniforme. A avó dera o dinheiro. Quando entrou na sala pela primeira vez as meninas olharam-na de alto a baixo. Fez de conta que não percebeu a reprovação. Na jardineira de lã azul com aplicações de flores vermelhas, blusa branca, cabelos cortados retos e presos do lado esquerdo por um grampo, sapatos pretos de boneca, meias soquete, sentiu-se deslocada na ampla sala clara. Ficou intimidada com a freira sentada à mesa, lá no canto, de preto, os cabelos escondidos por trás da testeira branca engomada, por onde de vez em quando passava o dedo para livrar as sobrancelhas negras. Sentou-se no banco indicado, quieta. Abriu o caderno novo, retirou a caneta do penal de madeira. Ia respondendo a tudo com sim ou não, intimidada. A irmã mandou-a ao quadro resolver uma operação. Recebeu um elogio e ouviu no fundo é uma jacu. Ficava sozinha no recreio, olhando as meninas conversarem animadas, contando das festinhas, dos filmes, em rodinhas fechadas, Lilly Yellow gesticulando muito, longas unhas rosadas, enquanto as outras riam. No final da tarde, pegava um ônibus, voltava cansada para fazer os deveres do grupo. A mãe dizia, logo terás feito o exame de admissão e estarás em férias. Quando chegou o fim do ano ia ter festa no colégio. A mãe já advertira, não tenho dinheiro para fazer roupa nova. Irmã Terezinha, na sala, começou a anotar os grupos que trabalhariam sábado e domingo nas barraquinhas, e perguntou com quem ela ia ficar. Não respondeu, assaltada pela lembrança do que a mãe dissera. Perguntou então se não queria ficar no grupo da Lili que, magra e espigada, olhos manchados de rímel preto, com uma anágua rodada que fazia a saia subir e parecer ainda mais curta, os joelhos à mostra, disse alto lá do fundo, no nosso grupo não, não queremos bucho na nossa barraquinha. A freira olhou, de início surpresa, depois, esboçou um riso. Bateu o sino para o recreio e as meninas começaram a se dispersar. Sabia o que queria dizer bucho, ouvira conversas, mas sentia-se aliviada, não ia dar incômodo para a mãe, já tão cheia de preocupações, ouvindo o pai a toda hora reclamar, colégio, que bobagem, podia aprender em casa, são filhas de rei por acaso? Passou nos exames, garantindo o direito de cursar o ginásio no colégio, um prédio cinza-escuro, cercado por muros altos, de frente para a Rua Iguaçu. Lá esperava-a todos as manhãs a Irma Gabriela. Passava a mão na cabeça de uma menina, apertava as bochechas de outra, fazia revista. Se o uniforme não estivesse completo, passava um pito ou mandava embora, dependia do humor. Era impecável o seu uniforme. Por baixo das meias brancas sempre tinha algum curativo de esparadrapo escondendo as feridas da alergia. Vagava pelo pátio na hora do recreio. Às vezes conversava com uma vizinha que já estava terminando o científico. Um dia, duas alunas mais velhas, que estavam sentadas na soleira da porta da sua sala de aula, que dava para o pátio, chamaram-na. Foi até elas. Começaram a lhe fazer perguntas, ah, vinha de Santa Catarina, e de vez em quando diziam que menina inteligente. Ficou encantada que lhe desejassem conversar com ela. Enquanto falava, mecanicamente, pôs-se a mexer na bicicleta encostada à parede, bem ao lado delas. Uma rede vermelha e amarela cobria a roda de trás, como na bicicleta de frau Breiter, em Blumenau. Era a bicicleta bordô da Margarida. Gostava de bicicletas, mas o pai dizia que eram perigosas, não ia dar bicicleta nenhuma para ela, e, ademais, caras. Distraída, fazia girar a roda traseira, elevada do chão, livre, e passava o dedo nos aros, próximo ao pneu, enquanto ia respondendo às perguntas das moças. Súbito, o pino de ar saltou longe, zunindo, e ela se assustou. As moças levantaram-se imediatamente, dizendo vamos sair daqui antes que dê confusão. Ficou sozinha diante do pneu que ia murchando aos poucos. Viu Margarida aproximar-se com um grupo de amigas, olhar para ela de modo estranho e dizer e, agora, como é que eu vou para casa? Ficou em silêncio, perplexa. Olhou em volta, as moças haviam mesmo desaparecido. Bateu o sino, o recreio terminara. Cada sala formava uma fila dupla. Tomavam distância uma da outra com o braço direito esticado, tocando no ombro da colega da frente, e ficavam nessa posição. Era proibido falar ou sair da fila. A diretora, Irmã Hélia, miúda, emitia chispas nervosas por trás dos óculos de aro dourado que lhe tomavam todo o rosto. Subiu no estrado alto, sineta estridente na mão. Na parede, acima de sua cabeça, o pesado crucifixo de metal. Só aparecia em ocasiões especiais. Estava irritada e imediatamente exigiu silêncio, fazendo vibrar a sineta. Começou um discurso sobre a imoralidade de algumas alunas, alguém havia feito uma maldade na hora do recreio, esvaziado o pneu da bicicleta de uma colega. E chamou-a lá na frente. Ouviu seu nome completo. Enquanto se aproximava dos degraus de cimento do estrado, as pernas iam ficando pesadas. Talvez fosse expulsa e tudo estaria terminado. Ficou calada, não sabia o que dizer, nem a freira fazia perguntas. Talvez as moças que estavam com ela pudessem dizer algo em sua defesa. Ousou virar o rosto em direção às filas, mas tudo parecia indefinido na massa azul e branca. Mas, quem sabe, elas viram que não fizera por querer. Murmurou baixinho não foi por querer. A freira passou-lhe uma descompostura em frente de todas as turmas reunidas. Estava tudo terminado, não ia mais poder estudar. Veio-lhe à mente o livro de capa azul dura, lombada preta, de pano, Aritmética Progressiva. Sentiu o estômago se comprimir. E quando o pai viesse buscá-la... A mãe ficaria muito triste. Não foi por querer, repetiu baixinho, mais para si mesma, como se isto bastasse. Não tinha mais o que dizer. Terminado o sermão, a freira mandou-a de volta para o lugar, e todas para as suas salas. E que isso nunca mais aconteça. Inveja, ouviu alguém murmurar. Avistou numa das fileiras em movimento o rosto de uma das moças, que imediatamente desviou o olhar. Passou o resto da manhã em aflição, imaginando que bom seria se de repente se abrisse uma enorme cratera no chão da sala e a engolisse. Imaginou as largas tábuas se partindo, abrindo um fosso profundo bem em baixo de sua carteira. Como o assoalho da farmácia. Só conseguiu repetir à meia voz, para a colega do lado, não foi por querer, que fez de conta que nem a ouviu. Ficou imóvel na carteira o resto da manhã, olhar fixo na lembrança do recreio. Margarida, cabelos louros encaracolados, olhou para trás, lá de sua carteira, na primeira fileira, com ódio nos olhos. Mal o sino tocou, saiu correndo da sala, esbarrou na porta, evitou em vão olhar para a bicicleta parada no corredor, o pneu murcho. O pai já estava à espera. Entrou no carro, o coração descompassado. Depressa, depressa. Imaginou-o dizendo para a mãe, eu não disse?, é um problema esta tua filha, estás criando mal estas meninas, deveriam ficar em casa te ajudando, ainda vais te arrepender. Sentia as pálpebras pesadas, a pele formigando. Depois de passada a primeira quadra, olhou para trás. Viu Margarida empurrando a bicicleta, ladeada por duas colegas. Insistiu mentalmente, não foi por querer.

 

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Numa das barracas da feira de Natal, em frente à Gedächtniskirsche, um homem soprava pequenos animais de vidro que brilhavam à luz do foco à mostra. Um outro artesão criava animais de estanho com uma broca elétrica. Sob a lâmpada fraca, no frio úmido da noite, e com o auxílio de uma lupa, ia esculpindo cachorros e gatos diminutos, uma cadeira de balanço, um palhaço. Podia fazer um pequeno livro? Não, não fazia nada por encomenda. Viu um brontossauro entre as miniaturas, sobre o feltro vermelho, entre as figuras domesticadas. Não era polido, mais escuro. Tirou as luvas para melhor senti-lo. Uma carantonha pesada, olhos saltados, e uma bocarra sorridente. Um brontossauro de bom humor, o topete de três tufos lhe dava um ar de punk bonachão, as costas em arco eram percorridas por algumas sobressalências duplas, as pernas grossas pareciam curva-se ao seu peso. O corpo terminava em um rabo de peixe. Um ser entre a água e a terra, deslocado, parecendo gozar sua própria perplexidade. Então, é assim, parecia articular. Tinha escamas e bolotas ressaltadas por todo o corpo, talvez fosse alérgico. Tudo encaixado numa figura de dois centímetros de altura por três de comprimento. Percorreu com o olhar as outras barracas. Frohe Weihnachtehn und ein gutes Neues Jarhr 1991. Agora, sob a luz intensa da lâmpada, em cima da caderneta de anotações, o brontossauro sorri. Olhem lá, passando, um brontossauro azul! Ao longe, ouve os sinos badalarem. No andar de cima, as crianças brincam, fazendo barulho. O céu está ficando turvo. O brontossauro em miniatura lhe sorri com cumplicidade, olhos curiosos. Ficara sentada ao lado do rádio de madeira castanha que o pai havia montado. Entre uma música e outra, diziam as horas. Ao meio-dia, os homenzinhos que trabalham lá dentro vão sair, dissera-lhe Carlos, ao passar pela sala. Imaginou contente que sairiam com seus instrumentos musicais guardados em maletas pretas e pequeninas, homens e mulheres em miniatura. Onze horas, esperaria o meio-dia. Passou a mão no pano macio protegido pela entreliça de madeira que cobria o alto-falante, pelo vidro iluminado, com faixas verdes e amarelas que mostrava números que ela não sabia bem para que serviam. Não ousava girar nenhum dos grandes botões de plástico marrom. Onze e meia. Até o meio-dia esperaria sem mexer em nada. Sentiu desejo de tocar o botão, mas deixou mirrar o gesto. Sentou-se na cadeirinha vermelha que ganhara no aniversário de dois anos, em Blumenau. Trouxera só uma cadeirinha, o resto o pai dissera que não caberia na casa nova, era muito pequena. A casa nova era velha, na verdade, a casa do bairro de Santa Quitéria. De repente, ouviu o locutor dizer que eram treze horas. Treze horas, que horas eram? Mãe, que horas são treze horas, gritou em direção à cozinha. Não queria sair e perder de vista o rádio. Uma hora! Perdera a saída dos homenzinhos. Olhou em volta, as frestas entre as tábuas do assoalho escuro, os cantos, acompanhou o rodapé. Pôs-se de pé, parada, com medo de pisar num deles. Como pudera perdê-los, para onde teriam ido? Resolveu olhar atrás do rádio. Afastou a mesa com esforço. O aparelho era grande e fechado por uma tampa de madeira com orifícios redondos e retangulares. Espiou as válvulas lá dentro, enormes bulbos de onde irradiava uma luz quente. Muito pó. Tentou tirar a tampa, mas estava parafusada. Ouviu a mãe chamá-la de novo. Encostou os olhos nos orifícios, resolvida a descobrir o mistério. As válvulas eram como lâmpadas incandescentes. Quando terminasse essa música, talvez o homenzinho que a tocava agora pudesse aparecer. Concentrou o olhar naquele emaranhado de formas e cores. Mas onde ficavam eles lá dentro? Era quente e cheio de fios que ligavam retângulos e quadrados de metal. O bafo morno vinha de mistura com o cheiro de madeira e plástico. A mãe apareceu na sala. Mas por que não vens almoçar, já chamei três vezes. Explicou para a mãe que estivera esperando que os homenzinhos saíssem, será que eles voltam? Que homenzinhos? Explicou de novo, impaciente, os homenzinhos que trabalham lá dentro do rádio, que tocam as músicas. São bem pequeninos. Ao meio-dia eles saem, o Carlos disse. Não tem homenzinho nenhum lá dentro, foi uma brincadeira do Carlos. A mãe disse que os programas eram da estação de rádio por pessoas iguais à gente. Ficou perplexa. Ouviu a mãe na cozinha, Carlos o que foi que tu dissestes para a menina, que história é essa de homenzinhos dentro do rádio, agora ela não quer sair de lá. Carlos veio com uma chave de fenda, retirou a tampa, mostrou-lhe o rádio por dentro e disse que fora só uma brincadeira, que um dia ele a levaria a um programa de verdade, no teatro. Agora, vem almoçar que a comida já está esfriando. Pegou o copo de leite e bebeu bem devagarinho, gole por gole. Dentro de sua barriga existia uma fazenda com pessoas bem pequeninas trabalhando. Ela os alimentava. A moça que recolhia nos baldinhos o leite que ela bebia sorriu. Era como a moça que vira em Pomerode, tranças louras, olhos azuis, touca e avental brancos. Quase como a moça do Leite Moça. Depois, apareceu um homem com um bigode estranho, camisa branca sem colarinho, calças curtas e colete verde de riscas, para ajudá-la. Como os que vira ao longe, no campo, ao passar de carro pela estrada empoeirada. De repente, distraiu-se e bebeu um gole maior. Pronto, molhara os dois. O leite formara uma imensa poça, embranquecendo tudo. Pediu desculpas, sem graça. Come, menina, que já está tarde, disse a avó, passando pela cozinha. Resolveu partir o pão como fazia seu Calabrês, o jardineiro. Lavava as mãos magras, tirava o boné, batia-o contra a coxa e pendurava-o no espaldar da cadeira. Sentava-se em silêncio, separava com as mãos de longos dedos finos um naco de pão, passava manteiga, alisando bem com a faca a gordura amarela e punha na boca. Mastigava em silêncio. Os olhos eram azuis como o lápis de cor de que mais gostava, a barba branca e comprida. A mãe vivia dizendo, deixa seu Calabrês tomar o café em paz. Ficava admirando o modo como ele pegava cada pedaço de pão e como segurava a asa da xícara com aqueles dedos finos, sorvendo o café com leite e limpando, em seguida, com o guardanapo xadrez, os longos fios brancos em torno da boca. Às vezes olhava para ela, sério. Então, se afastava. Na manhã seguinte, Carlos lhe deu um homenzinho de madeira que entalhara à noite, tocando um enorme trombone. Disse que ia fazer outros, até formar uma orquestra, mas acabara indo embora de tarde, antes que o pai chegasse de viagem.

 

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Voltam à mente as imagens do concerto na Philarmonie Berlin. Tomoko Takhashi tocando Liszt, o Konzert für Klavier und Orchester Nr.1 E-Dur, Weber e Beethoven com a Sinfonie Orchester Berlin, regida pelo maestro Borislav Iwanov, de Sófia. Depois, o ônibus barulhento, com muito entra-e-sai, o insuportável ruído de um chiclete sendo mastigado de boca aberta no banco de trás. Último dia de Natal. Amanhã, enfim, poderá de novo andar pela movimentada Ku’damm, as lojas estarão abertas. Aprecia estas caminhadas quase letárgicas, acompanhando a direção do olhar. Às vezes, sente um leve odor de amêndoas se desprendendo de uma mulher; outras, o olhar bate num sobretudo escuro, toca mentalmente o ombro, mas sente imediatamente o tremor impaciente do pai, que se vira, estendendo-lhe a mão com formalidade. Liga o rádio, música natalina. Compreende o sentimento, mas o sentido das palavras lhe escapa. Mãe, e agora? Francês, ela está cantando em francês, é a Edit Piaff. Ficava admirada, a mãe reconhecia todas as línguas. E agora? Não percebes, é português, a Amália Rodrigues. Espanhol. Italiano, e a mãe cantarolava um trecho da música que a rádio tocava, inglês. Angustiava-se por não perceber as diferenças, não distinguir os sons. E esta, mãe, só mais esta. Espanhol, Libertad Lamarque. Agora chega, tenho de trabalhar. Ficava ao lado do rádio de madeira castanha, as enormes válvulas acesas como lâmpadas difundindo calor. Quando enjoava, ia desenhar. Inventara a história de um homem que passava muitos dias perdido no mato sem fazer a barba nem cortar o cabelo. Desenhava o rosto e ia traçando com o lápis, bem de leve, os fios de cabelo e barba que iam crescendo até ficarem bem longos na página. Ele, então, ia ao barbeiro. Levava a folha com o desenho para o outro lado da mesa de jantar e ia apagando os traços com a borracha macia. O homem ficava diferente, remoçado. Voltavam a crescer seus pêlos, ele de novo ia ao barbeiro. Passava horas debruçada sobre o desenho, movimentando-se em torno mesa, premida na sala pequena. Não podia sair, chovia sempre. A primeira casa de Curitiba era grande, perdia-se da mãe, tinha de procurá-la atravessando salas, subindo escadas. Descia, ia até a cozinha, onde estavam a avó e a empregada. Sua mãe saiu, foi ao centro com o Carlos, dizia Otília, que preferia a irmã, reclamando sempre que ela fazia muita sujeita com papel. Subiu a estreita escadinha que dava no sótão, mas a porta estava fechada. Lá não podia entrar sozinha. Desceu e ficou sentada no primeiro degrau. Ouviu barulho na porta de vidro da frente, correu. Vamos brincar no sótão/? Depois do almoço, enquanto a irmã dormia, ia com o Carlos brincar no sótão. Ele lhe fizera, na garagem do pai, em segredo, dois caminhões e um vagão de trem de lata e madeira. Brincava com ela um pouco, depois guardava os brinquedos num baú. Dizia sempre, cuidado com os fios de luz, nunca andes daquele lado. Brincar no sótão era um segredo deles, só a mãe sabia. Abria e fechava as portinholas, retirava a lona e esvaziava a carroceria do caminhão e voltava a carregá-lo. De repente, ouviram o choro da irmã, lá embaixo. Como adivinhara? E vozes. Abriram a porta. A irmã, no primeiro degrau da escada, apontava para o sótão e choramingava para o pai, que voltara de viagem. O pai fez uma careta, ficou muito bravo ao ver os dois lá em cima. Empurrou a irmã para o lado, que pôs-se a chorar ainda mais alto, subiu a estreita escadinha, olhou surpreso para os brinquedos, mais surpreso ainda para Carlos, e gritou andaste usando as minhas ferramentas, entraste na minha oficina? Ao sair, amassou com os pés o caminhão carregado de pequenas toras de madeira cobertas com um pedacinho de lona verde que pedira para o namorado de Otília, caminhoneiro. Ficou com medo, abraçou-se às pernas de Carlos. O pai voltou-se da porta, sério, olhou para os dois e desceu a escadinha chamando pela mãe. No dia seguinte, não se sentia bem e não sabia dizer onde doía. Repetia para a mãe que tinha uma dor forte, forte. A mãe lhe trouxe leite com mel. Não quis sair da cama. Quando ficara doente, a mãe e o Carlos trouxeram jogos para ela e brincaram os três no quarto. Mas a mãe disse que ele tiver de ir de volta para Santa Catarina, bem cedinho. Ficou com febre uma semana, e sempre fingia que dormia ao ver o pai entrar no quarto.

 

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No peitoril da janela, um jacinto rosa abriu-se perfumado. Lá fora está ainda escuro, tudo silencioso. Puxara a coberta de penas para si, gemütlich. Mas não se sentia cômoda nem aconchegada. Não gosta de ficar na cama depois de acordar. A mãe, quando elas estavam já crescidas, às vezes fazia isso, ficava debaixo das cobertas, no frio de Curitiba, tomando fôlego para a vida. Então, o pai levava-lhe café e revistas. Um dia a mãe lhe dissera, que bom seria ficar assim para sempre, sem preocupações. E sorrira como uma menina. Acordara mais tarde, com dor de cabeça. Na noite anterior lera trechos do romance de Du, que pôs-se a fazer comparações entre uma infância brasileira e uma alemã durante a guerra. Depois, foram buscar um galeto grelhado numa lanchonete turca. Apontou para os bolinhos, falafel, zer Gut, disse. A mulher, sorrindo, deu-lhe mais um, sem cobrar. Está cinza lá fora. Em Curitiba, muitas vezes o dia tinha esta nuança. Folheia o texto, relê algumas páginas. Escrever é como viajar. Enrola um cigarro, acende, o tabaco recende no quarto. Um dia, pegou uma folha de papel de seda do bloco de cartas da mãe e pediu um pouco de chá mate torrado para a avó. Para que tu queres isto? Ficou à sua volta, implorando que alcançasse a lata de mate do pai. Anda, pega um pouquinho e vai brincar. Enrolou o chá no papel e fez um enorme cigarro. Pegou no fogão, sorrateiramente, a caixa de fósforos. Distraída com o almoço, a avó nem reparou. Quando o pai viu, ela tossia, soltando baforadas, as brasas caindo pelo vestido. Arrancou de sua boca o rolo de papel em chamas e gritou com a avó. Ouviu-o resmungar pelo corredor, mulher ignorante, analfabeta. Foi vestindo o paletó e, no quintal, em direção à garagem, ouviu-o novamente, escandindo as sílabas, uma a-nal-fa-be-ta. Tapou os ouvidos com as mãos, enquanto acompanhava com o olhar o pai se afastar. Não foi abrir o portão para ele. Bateu na porta do quarto da mãe. Entra, ouviu. Estava na cama desde o dia anterior, com forte dor de cabeça. À noite, acordara com os gemidos. Na sala, a avó trazia um chá quente e dizia toma isto que logo vai passar. Tinha rodelas de batata amarradas na fronte com um pano branco e andava de um lado para outro sem parar, dando voltas em torno da mesa de jantar, em ais abafados. Ficara espiando pela porta entreaberta, repetindo baixinho o que a avó dissera, logo vai passar, vai passar. O pai voltara de manhãzinha de viagem. Agora, a mãe estava deitada, vendo revistas, exausta. Sentou-se na beira da cama e ficou olhando para ela. O odor de amêndoas recendia das mãos. Querer ver uma? Fez que sim com a cabeça. Pegou a revista que lhe estendia, folhou-a um pouco, eram jardins, amava as flores, e voltou a olhar para a mãe. Ela apontou para um colete bordado, vou tricotar um assim para ti e tua irmã. Lembra de uma foto em preto-e-branco que o pai tirara no Passeio Público de Curitiba, ao lado do Chevrolet ferrugem. A mãe de saia clara e suéter escuro, elas de jardineira, blusa branca e os coletes tricotados. Não se lembra das cores. Antes de morrer, tricotara vários quadrados colorido, dizendo, é para fazeres uma coberta para ti. Vai passar, vai passar, dissera baixinho no hospital, ao tocar sua cabeça, enternecida. Pedia que a abanasse, tinha falta de ar. Sempre tivera falta de ar nos momentos tensos. Improvisara um leque com a capa de uma revista. A irmã telefonara, abalada, um aneurisma rompido. No avião, lembrou-se de tê-la ouvido dizer, na última vez que viera vê-la, que estava tendo pequenas hemorragias nasais. Não era nada, alguma coisa que tenho na cabeça, afirmara. As raízes brancas dos cabelos à mostra, a mãe olhava-a de muito longe.

 

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As lojas continuam cheias, as ruas congestionadas. Berlim está sobrecarregada de exilados. Os alemães orientais vão aos supermercados, enchem seus Trabants com caixas e mais caixas de compras. Coisas que não comiam há muito. No noticiário de televisão avisaram, vai faltar chocolate neste Natal. Não há apartamentos para alugar, os hotéis estão repletos. E mostraram mais judeus-russos chegando. Nas lojas de departamento, até para comprar um maço de envelopes é preciso enfrentar uma fila. Quis entrar na Ka.De.We., Kaufhauss des Westens, mal chegou aos elevadores. Foi tomar um café no alto do Europa Center. De vez em quando se sobressalta, Berlim está bastante mudada. Enfeitara com tiras de papel colorido a luminária do quarto. Como será 91? O jacinto do peitoril da janela está inclinado, o chacho pesado de flores. Um perfume delicado invade o quarto. Sentou-se no pequeno hall, olhando as coroas de flores encostadas à parede, do lado de fora. Um vento súbito fez o odor adocicado e morno das flores já um pouco fanadas invadir suas narinas. A porta de vidro fechou-se com um estrondo e ouviu o barulho seco de algumas coroas rodopiando na calçada. Abriu-a e pôs de novo as coroas em pé. Na faixa roxa de uma delas, escrito em dourado, a mensagem melancólica do pai. O rosto cinza da mãe. Parecia uma das figuras calcinadas pela dor, de Käthe Kollwitz. O sofrimento da mulher estampado nos seus auto-retratos. Principalmente no de 1923. A mão direita sustenta uma fronte cerrada, a face envelhecida pelo enfrentamento do seu tempo, o olhar longínquo atravessando a história. A composição é pesada, mas o traço é leve, quase espiritual. A mãe nascera em 23. Lembra-se de uma foto sua em criança. Sapatos pretos de verniz, meia soquete branca, o vestido de malha pregueado até os joelhos, o estômago volumoso, um enorme laço nos cabelos. Os olhos perdidos ao longe, atravessando a história. Manteve esse olhar a vida toda. Ao lado, uma cadeira de vime, espaldar alto, vazia, em que se apóia na pose para o fotógrafo. Para quem reservara aquela cadeira? Uma noite, depois do jantar, o pai pusera-se a conversar. Contara que em 1930 estivera em Florianópolis, a trabalho. Estava com 27 anos. Conversava com conhecidos num café quando viu um senhor muito elegante e aprumado, cravo vermelho na lapela e bengala de castão de prata, de mãos dadas com uma menina de uns sete anos, passar pela rua Felipe Schmidt. Quem é este par pernóstico, perguntou? Quinze anos depois, voltei a encontrá-la em Tubarão, disse ele pensativo. O destino é assim, imagina tu que eu precisava de um funcionário para me ajudar na Coletoria. Então, pedi a Florianópolis que me mandasse um funcionário inteligente e dedicado, estava farto de lidar com paspalhos. Quando chegou o telegrama e vi que me mandavam uma mulher fiquei muito aborrecido. Pensei, não vou buscá-la na estação, deve vir cheia de malas, onde vou pôr essa mulher aqui, nesta cidade acanhada? Mandei que procurassem uma pensão boa para ela se hospedar. Depois pensei melhor comigo, estou cometendo uma injustiça, nem conheço a moça. Fui à estação, já um pouco atrasado. Dito e feito, quando lá cheguei meu secretário ajudava-a com as malas. Tive de trazer um enorme baú no Fordinho. Parecia frágil, tossindo muito, uma tosse nervosa. Pedi ao casal da pensão que tivesse cuidado especial com ela. Deixa-te de histórias, vamos, vamos que já é tarde, disse a mãe, pondo-se a tirar a mesa. Ela estava com 22 e eu com 42, o resto da história tu já conheces. Arruma a areia no vaso, socando-a em volta do caule do jacinto. Levara tantos anos para compreender a história da mãe. Sentou-se à mesa de fórmica branca com flores azuis, serviu-se do café da térmica. Tudo estava mudado, não era a mesma cozinha em que a mãe descascava uma laranja antes de se deitar, altas horas. Sua solidão parecia estar toda concentrada ali. Descera do avião, tomara um táxi. Santa Quitéria, dissera, como se a casa fosse apenas uma lembrança, estranhando o nome. Abriu o portão, receosa. Coroas de flores do lado de fora. Uma vizinha aproximou-se, estendeu-lhe a mão, deu um suspiro e disse deus sabe o que faz. A irmã telefonara, mamãe faleceu. Não conseguiu dizer nada. Estava com visitas em casa, foi para a lavanderia e, perto do tanque, chorou. Pediu que a levassem ao Aeroporto de Congonhas. Avançou pelo corredor lentamente, até a sala nua. Das cadeiras encostadas às paredes, pares de olhos fixavam-se nela. Num relance, viu o caixão, o corpo coberto de flores. O rosto cinza. Desviou o olhar bruscamente, uma sensação de vazio tomou conta de tudo. Jamais esqueceu aquela visão rápida, quase insuportável, o rosto cinza da mãe. Tentou em vão resgatar seus olhos verdes, o sorriso generoso. A irmã acompanhou-a até a cozinha, em silêncio. Sentou-se à mesa onde a mãe costumava descascar e comer, antes de se deitar, uma laranja. Lima da Pérsia, recordou sua voz. E lá ficou, sem conseguir voltar à sala. Quando amanheceu, estava ainda na mesma posição. O pai fez café. Viu encostar no portão o carro da funerária e dois ônibus pequenos. Afastou-se em silêncio, foi contornando a casa pela calçada larga de lajota vermelha. Ao passar pela janela da sala, ouviu o baque da tampa do caixão. Fechavam-na. As roscas rangiam ao entrar na madeira. Foi indo em direção ao portão. Fez sinal para um táxi, pediu aeroporto. Voltou-se para a casa, viu os carros enfileirados, as coroas empilhadas sobre o caixão, o cunhado ajudando um ônibus a fazer manobra. Gosto desta tua blusa azul, dissera a mãe. Às vezes sorria como uma menina, deitada, parecendo apreciar o descanso. Agora posso ficar na cama quanto tempo quiser, dissera-lhe no Hospital Cajuru. No avião, teve o pressentimento infantil de que a mãe ia de mãos dadas com o avô pelas nuvens brancas. Ele de cravo na lapela e bengala de castão de prata.

 

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Dormira mal. Havia tomado um sekt na noite anterior, fora tarde para a cama, ouvindo o espoucar dos fogos de artifício. O fim do ano aqui parece festa junina, escrevera para a irmã. Sempre que se aproximava o dia 24 de junho, dia de São João, a mãe ia dizendo, nada de fogos hoje, neste dia morreu teu avô, e passava o dia recolhida. Nesse dia não raspava traques nas paredes da casa, embora não entendesse porque tinha de ficar em silêncio. A mãe escolhera o mesmo dia para morrer, na mesma idade. Nova, 57 anos. O baque da tampa do caixão, as roscas rangendo ao entrar na madeira. Gosto desta tua blusa azul, dissera a mãe na última vez que a vira depois da doença, mas ainda lúcida. Estava na cozinha, ouviu que a chamava. Foi ao quarto. Ela fizera-se vestir de branco, uma colcha branca como coberta. Acordada ainda, é quase meia-noite, disse. A mãe fez sinal para que silenciasse, não queria que ouvissem. Escrevera para uma sociedade teosófica. Pega ali, na última gaveta da cômoda, tem uma carta. Viu algumas folhas rasuradas, a letra tremida, já não controlava mais a mão. Treinara a assinatura. Pegou o envelope, leu a carta. Iam operá-la espiritualmente naquela noite, às onze e meia. Precisava de um lenço branco para pôr na cabeça, no lugar da operação, e de uma prece. Sabia que ela poderia escrever uma bem bonita, para que lessem juntas. No silêncio da cozinha, acolheu o fervor da mãe e deixou brotar as palavras no papel de carta azul quase transparente. Voltou para o quarto. A mãe gostou. Surpreendia-se com seus momentos de extrema lucidez. Estava quase na hora. Leu com ela a prece, deu-lhe um beijo na testa e retirou-se, como ela pediu. Quem teria levado a carta ao correio? Voltou para a cozinha, olhou o papel, leu mais uma vez a prece, rasgou-a em pedacinhos, sabendo que pertencia apenas àquele momento. Sentou-se à mesa, recolhida. Sentiu um calafrio por todo o corpo, foi ver, a mãe dormia tranqüilamente, já sem o lenço branco na testa. Toda de branco, parecia uma noiva. Um dia, fora buscar no armário da mãe alguma coisa, abriu a metade que pertencia ao pai. Olhou, olhou e deu com um saco de feltro bordô fechado por um cordãozinho acetinado. Não resistiu. Eram cartas. No papel de seda azul, a caligrafia arredondada da mãe. Correu para o escritório e trancou-se. Linguagem delicada e aflita. Confiava sua história a ele, homem mais velho e compreensivo, pôs-se a ler vorazmente. Era noiva, mas não quisera ficar em Florianópolis depois da morte do pai, sentia-se sem futuro ali. Perdera também o irmão. Era funcionária recente, mas letra O. Quando soubera na sua seção que precisavam de um funcionário em Tubarão, aceitara o aviso como uma oportunidade do destino. Ele não devia sentir-se responsável. Ela estava com 22 e eu com 42, o resto da história tu já conheces, dissera o pai. Devolveu as cartas sem fazer ruído. Elas desapareceram no dia seguinte. Uma tarde, a mãe confessou que fora a uma sortista. Ela divisara um futuro difícil, mas brilhante, para as duas filhas que teria. Tu vais encontrar alguém longe daqui, no estrangeiro. E contou que dias antes de tomar a decisão de ir para Tubarão estava sentada na sala, retocando sua fantasia de carnaval, de polonesa, para ir ao baile do clube com o noivo. Uma cigana apontou na janela baixa que dava para a rua Uruguai e perguntou se queria ler a sorte. A prima, que lhe fazia companhia, insistiu para que aceitasse. A cigana disse, tens um homem louro que te quer bem, mas não penses que é com este que te casarás. Está à tua espera um moreno, longe daqui. Vais te mudar e viajar muito. Terás duas filhas. O que é o destino, murmurou a mãe, e ficou pensativa. Relembra uma gravura de Käthe Kollwitz, a mãe abraçada a uma criança. O pai costumava tirar fotos delas. Um bebê rechonchudo, a mãe frágil e sonhadora. Nas fotos, a mãe parece uma mulher feliz.

 

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Fora rever as gravuras de Käthe Kollwitz, na Fasanenstrasse, e devolver alguns livros que emprestara na Staatsbibliothek. Na fila, um grupo de estudantes africanos discutia, barganhando perdão pelo atraso na entrega de livros. Assinou o cartão. Foi assinando as várias folhas que o pai depunha à sua frente. A irmã ligara, o pai precisava que viesse. Marcou encontrá-lo no apartamento da irmã, não conseguiria voltar à casa. O rosto cinza da mãe. Foram a um restaurante japonês, o Tempô, na Marechal Deodoro. Sentaram-se a uma mesa de canto. O pai foi estendendo sobre a mesa os papéis. Disse, tua mãe ainda pôde assinar alguns. Lembrou-se da letra tremida que vira na gaveta da cômoda. Da assinatura da avó, que surrupiara da mesa, está faltando um esse aqui, mamãe, a senhora esqueceu de novo. Falaram pouco. O pai comia, bocados mastigados lentamente, o aparelho desligado, mal levantava os olhos do prato. Perdera a altivez. Na foto em que escrevera embaixo seu nome em sânscrito parece um indiano, tez morena, olhos escuros, grandes e amendoados, cabelos negros presos num rabo-de-cavalo. Com a voz baixa, embargada, revelou, quase para si mesmo, é, ela fez de mim o homem que sou. Levantou a cabeça e completou melhorei muito, minha filha. Os olhos úmidos, uma expressão de cumplicidade, proferiu, mas tu sabes, eu não fui o primeiro homem da vida dela, e serviu-se de mais yakissoba. Nunca entendeu por que tivera de dizer aquilo. Em passos lentos, a dona do restaurante, uma japonesa idosa, aproximou-se da mesa. Conversaram os dois em japonês e o pai disse, esta é a minha filha mais velha. Ela fez uma curvatura em sua direção, e ele respondeu-lhe alguma coisa que perguntava. Olhou-o em silêncio, virou-se e disse, fica aqui, não sai, volto. Meia hora depois, a velha japonesa voltou carregando um enorme ramo de flores. O pai teve um acesso de choro, controlou-se com dificuldade. Tocou sua mão sobre a toalha xadrez vermelha. Com os olhos túrgidos, pediu que ela o acompanhasse ao cemitério. Pegaram um táxi. Depositou as flores na jarra, as coroas ainda estavam lá, queimadas pelo sol. Fazia dez dias. Olhou a lápide. Estavam as duas ali, agora, lado a lado, a mãe e a avó, longe da Ilha de origem. Foi indo em direção ao portão, sem olhar para trás. Pareceu ouvir a delicada voz da mãe, e lá estava eu metida no longínquo oeste catarinense com um coletor de impostos separado, pai de seis filhos, vinte anos mais velho do que eu. Cidade pequena, acanhada. Passaram a morar numa casinha de madeira, ela abandonou o emprego. Ele nem mais queria que eu saísse às ruas, para... E não completou a frase. Pressentiu que fosse pela gravidez à mostra. Era preocupado e receoso, emendou. Quando tu tinhas dois meses saímos de lá, fomos indo cada vez para mais longe. O pai só a registrara dois anos depois, mas nunca perguntara por quê. As fotos a mostram no colo da mãe, jovem, olhar sonhador. Mais tarde, no colo da avó, séria, fixando o obturador. A avó parecia ter sempre um olhar de reprovação para o pai. A ruga funda entre as sobrancelhas, os cabelos negros e crespos acentuando os pequenos olhos escuros em chispas de ódio. Viera para cuidar da filha e acabara ficando.

 

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Os fogos de artifício espocaram a noite toda. Levantou um brinde ao novo ano. Estás feliz, perguntaria a mãe. Este desejo fora seu testamento. Conquistado o direito da mais velha está garantido o da mais nova, ouviu-a dizer para a avó. Depois que a avó morrera, a mãe sentira-se insegura quanto ao futuro das filhas. Fez o pai vender o Chevrolet ferrugem, exigindo o dinheiro. Era da mamãe, ouviu-a discutir no quarto. Contou os maços de notas que o comprador trouxera num saco de papel pardo, na saleta que a avó mandara fechar com vidros e, no dia seguinte, foi em busca de um empreiteiro que lhe deu muita dor de cabeça e crises de falta de ar. Derrubou a antiga garagem e no seu lugar fez construir uma casa de madeira, para alugar e ter uma renda extra. É preciso começar a cuidar do futuro, bem que a tua avó dizia, suspirava. Cuidara da avó dedicadamente por quase um ano, dormindo ao seu lado numa poltrona. A avó vivia uma agonia intensa, mesclando momentos de delírio e lucidez. Quando voltava do escritório, o pai ajudava a tirá-la da cama para trocar sua roupa. Em seguida, lavava as mãos com álcool. Uma tarde, uma vizinha solícita foi fazer uma visita. Conversavam baixo no quarto da avó, trocando-a. Ela e a irmã podiam ouvir os sussurros. De repente, um estalo seco, como de um fruto maduro abrindo-se, e um insuportável cheiro de podridão vindo do quarto, a mãe e a vizinha num corre-corre inquietante. Coitadinha, coitadinha, repetia a mãe. Lançaram-se as duas para fora, assustadas. Viu a mãe e a vizinha saírem às pressas do quarto com os lençóis. O interior da avó, tomado pelo tumor, havia se rompido. Ela e a irmã trancaram-se no quarto de passar roupa, esperando que tudo fosse apenas um pesadelo. A mãe fez uma fogueira no quintal, para queimar os panos. Quando mais tarde entraram, a casa recendia a ervas. Não pôde dormir naquela noite, ouvia constantemente o estalo atravessando a fina parede de madeira que a separava do quarto da avó. Foi espiar a avó que respirava sofregamente, a veia do pescoço saltada, bombeando sangue. Ela abriu os olhos e murmurou, quem é aquela menina loura, vem cá, vem! Ficou paralisada. A mãe dissera que ela estava perdendo completamente a lucidez. Uma semana depois, a avó morreu. A mãe arrumou o quarto para a irmã. Da lata de biscoito azul-marinho com a biga dourada dividiu com a irmã as fotos. O avô, louro, bigode espesso, gola alta, os olhos da mãe. A mãe veio espiar por sobre seus ombros. Não sei por que tua avó guardava esta foto aí, parece que era uma prima afastada do papai, que morreu cedo. Bonita, mas triste. Era muito galante teu avô, dissera, anos mais tarde, uma prima da mãe, tão diferente de tua avó. E completara, deves saber que tua mãe não era filha dela, a mãe legítima morreu durante o parto, uma jovem linda de quem teu avô gostava muito. Muito. E a avó deu um longo suspiro, guardando a fotografia antiga. Uma mulher jovem, nariz afilado, levemente voltado para a direita, como o da mãe, os olhos pequenos e claros, sobrancelhas como um sinal circunflexo. Quem é esta, vó? Ah, uma prima afastada do teu avô. E a avó fechara a lata de repente, com um suspiro profundo, dizendo agora chega, tenho de preparar o jantar, teu pai já vai chegar. Ao cruzar a porta acrescentara, morreu muito cedo, coitada, e suspirara mais uma vez. A foto olhava-a de muito longe, com o olhar da mãe. Ao fundo, a voz da prima da mãe, maliciosa, boca carmim e peruca ruiva, era uma jovem linda de quem teu avô gostou muito, muito mesmo. Ao passar pelo banquinho de assento de palha a voz da avó a perseguiu, estuda minha filha, estuda para seres alguém. A mãe pedira para uma vizinha telefonar para a escola de inglês onde estava trabalhando. Viera imediatamente e ajudara a cobrir de flores o corpo da avó. O rosto cinza da mãe na mesma sala. Não, não, enfatizou a irmã alguns anos mais tarde. Lembra da moça da foto? Pois é, andei pesquisando. Que eu saiba, ela pertencia a uma trupe de teatro que apareceu em Florianópolis. Polonesa, parece. Muito bonita, o vovô se apaixonou e acabou indo com ela para o Rio de Janeiro. A vovó ficou sozinha com o filho, despreparada. Pediu então para uma vizinha escrever uma carta, para que ele tomasse alguma providência, não tinha como sobreviver. Está faltando um esse aqui, mamãe, a senhora esqueceu de novo. A moça da foto, uma atriz, então. Como você sabe de tudo isso? Conversei com algumas pessoas, com vizinhos e parentes. Mulher de fibra, a tua avó, me disse uma velhinha que fora sua vizinha. Tem mais coisa, quer saber? A vovó na verdade fora empregada do vovô, engravidara e perdera uma criança, uma menina loura de olhos bem azuis como os dela, com aquela tarja escura em volta, ela mesma me contou. Quem é aquela menina loura, vem cá, vem! Ele se casou com tua avó para ela cuidar da menina, dissera a prima da mãe, olhando-a com os olhos borrados de rímel preto, reticentes. Muita ousadia, voltar do Rio de navio com a menina de dias no colo. Tua avó criou-a como filha, mas tinha uma inclinação pelo filho, quem não percebia! Mudou muito depois da morte dele. Dizem que era uma polca judia que morreu durante o parto, acrescentou mordaz. Andou lá por Florianópolis se apresentando com uma trupe. A avó, então, custodiara a menina. O destino, disse a irmã, pensativa, estão as duas enterradas juntas aqui, em Curitiba, tão longe da llha delas, e o papai em Laguna, junto com a primeira mulher.

 

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Com o aquecimento interno, o cabelo fica espetado e duro. Foi cortá-lo. Quando saiu do salão chovia, pôs-se a andar. Pensou em comer uma bratwurst grelhada, é uma instituição em Berlim. Nas esquinas, quiosques com lingüiças e pommes frites com muito catchup. Uma mulher aproximou-se do operário, ele limpou a mão no bolso, tirou duas moedas e ofereceu-as na palma aberta. Acabou entrando num café da Turmstrasse. Pendurou o mantô e sentou-se a uma mesinha de canto. A moça serviu-lhe um sonho, um pfannkuchen, que em Berlim deve ser comido no Ano Novo, e chá. A uma mesa afastada, duas senhoras conversavam sem parar, um pouco mais distante, um homem gordo bebericava um café, dois jovens falavam em tom baixo no canto extremo. Sobre a mesa, junto a um vasinho de porcelana com duas flores amarelas, um pequeno limpador de chaminés, sorte para o ano novo. Nas badejas expostas no balcão de vidro. Porquinhos de marzipã, símbolo de prosperidade. Fora com Du visitar uma recitadora idosa. No trajeto para o asilo apreciou as águas do Rio Spree. As gaivotas pousadas nas muradas mediam os passantes com um olhar desconfiado, a água embalava os pequenos barcos atracados, uma traineira carregada de cascalho ia deixando atrás de si um rastro de espuma. Parou e inclinou-se sobre a mureta, absorta no movimento da superfície cinza. Medo das águas, e fascínio. O primeiro poema escrevera para o rio Itajaí-Açu, em Blumenau. Aprendera a apreciar o rio com Ondina, na confeitaria, enquanto saboreava o frappé de coco. Perdia-se observando a água verde dançando debaixo da ponte. Voltou a Blumenau já adulta, num final de ano, só para rever o rio. O cheiro de mato invadiu-lhe as narinas na mornidão abafada da cidade, enquanto o táxi rodava, refazendo o trajeto da infância que a memória permitia. Não conseguiu encontrar a confeitaria sobre o rio, as casas. Reconheceu a Loja Husardel, onde a mãe às vezes fazia compras, passeou pelas margens das águas em calmaria. Às vezes, o rio se enchia, encobrindo os pequenos chalés de madeira próximos. Uma água barrenta e revolta crescia do leito, levando de enxurrada galhos de árvores, móveis e panelas. Ficava admirada como imediatamente arrumavam tudo e pintavam as paredes assim que o rio voltava ao leito. Parecia que nada havia acontecido. O amor ao lar, uma disciplina alemã. Uma vez fora junto com o pai à casa de uma cliente, nos arredores de Blumenau, que mantinha uma escola à beira do rio. Era uma casa de madeira avarandada, com um anexo onde ficavam duas salas cheias de carteiras, enormes quadros verdes e armários de porta de vidro recheados com livros e cadernos. A moça lhe servira cuca com gasosa, como gostava. De gengibre. Em casa não havia refrigerante, faz mal à saúde, dizia o pai. Ficou admirando seus cabelos arrumados numa longa trança dourada. Ela sugeriu ao pai que a levasse a passear pelas margens do rio. Era possível ver os peixes. Andaram pela vegetação rasteira até um pequeno patamar onde estava amarrada uma canoa. O pai sentou-a no banquinho e remou até um ponto mais largo, parou, apontou com o olhar um caniço e perguntou se não queria pescar. Passou-lhe a vara, mostrou como jogar a linha com o anzol na água, contou como em pequeno costumava pescar para a mãe fazer o almoço, às vezes pegando camarão com tarrafa. De repente, sentiu o fisgão na linha e instintivamente puxou a vara. O pai, na outra ponta, levantou-se, sentiu a canoa balançar e voltou a se sentar. Disse para ela segurar firme e não puxar ainda. Atemorizada com aquela estranha força do outro lado da linha, ficou imóvel. Agora, vai girando o molinete, disse, devagarinho. O fio de náilon estava tenso, esticado. Tinha de fazer força para girar a manivela. Do outro lado, o peixe puxava forte. Era como se o visse. Lembrou-se da figura de um peixe de olhos esbugalhados num livro, com um anzol fisgado na boca. É grande, disse o pai, ressabiado, olhando para dentro da água. Ficou agoniada com aquela resistência na outra ponte da linha, a se debater. Imaginou que o peixe a olhava com os olhos da figura do livro, soltou a vara e ouviu o pai suspirar fundo, agora ele vai ficar preso ao anzol. O caniço desandou a dançar na superfície verde. Na volta, ficara o tempo todo pensando no peixe, a mão doída, uma sensação de peso no coração. No dia em que a avó preparou uma tainha, insistindo, come, menina, bobagem, o peixe já está longe, ficou mal do estômago. Os olhos esbugalhados voltavam-lhe à memória de quando em quando. Até que uma tarde, distraída, comeu um peixe sem lembrar do outro, na casa da enfermeira alemã e seu amigo. Moravam na casa ao lado, já velhos e sozinhos. Chamaram-na no muro. Era um daquele verões muito quentes de Blumenau, estavam de shorts, sem camisa os dois, os seios pendentes descobertos. Convidaram-na para almoçar. Foi até a mãe e disse que os alemães queriam que ela fosse almoçar na casa deles. A mãe corrigiu, os alemães, não, Frau Beca e Herr Schmidt. Voltou ao muro e estendeu os braços para ser içada. O velho alemão respirava com dificuldade, sentado numa poltrona de palha. Diziam ser marinheiro. Sentou-se ao seu lado e comeu com satisfação o peixe com dill e a salada de kartoffel. Depois, brincou com uma coleção de conchas. No meio da tarde, entregaram-na de volta por cima do muro para o pai, que voltara mais cedo, anunciando que amanhã iriam visitar Pomerode, ela ia gostar, tinha lá um jardim zoológico com muitos animais. Iriam no Cadilac rabo-de-peixe de Estela. Sempre que se pega enfiando a cabeça entre os ombros, lembra-se desse passeio. Gritou quando o enorme urso aproximou-se da mão de Ondina, por sobre a grade, e correu de medo da ema. Depois, o pai lhe mostrara um grupo de animais estranhos que comiam capim sem parar. Eram como vacas, um pouco menores, com um focinho parecido com o de porco, pêlo liso e duro. Estavam soltos e cheiravam mal. O pai passou a mão num deles, que resfolegou, afastando-se. Amedrontou-se. Não fazem nada. O pai empurrou-a, são mansinhos, não seja teimosa. Ali, quase encostada a um deles, ouvindo seu resfolego no capim, o pai pediu que ficasse quieta, ia bater uma foto. Encolheu a cabeça entre os ombros, arregalou os olhos. Na foto, a anta pasta calmamente, enquanto ela olha assustada para a máquina, como o pai mandara. A velha recitadora, depois do chá e da leitura de uma fábula, quis passear um pouco às margens do Spree. O enfermeiro animou-a, gosta do Brasil, do Carnaval, até já sabe algumas palavras em português. Estivera em Blumenau e Pomerode. Ela ia apoiada na bengala grossa e de vez em quando parava para olhar à volta, as águas cinzas ao entardecer, um sol rubro ao longe. Depois, fez questão de ficar na esquina, acenando, enquanto Du e ela atravessavam a rua. Seria a última vez que a veriam. Ela sabia disso.

 

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Ventava em Wansee. As gaivotas permaneciam enfileiradas nas muretas do pequeno ancoradouro, atentas. Atravessaram as águas com o ferry. Chegaram a Kladow, gaivotas e patos cobriam as águas perto do píer de atracamento. Tomaram café num bistrô e andaram um pouco, a paisagem estava cinza, mal podiam enxergar o horizonte. As águas tinham um reflexo verde-escuro. Os olhos verdes da mãe ficavam escuros quando se entristecia. Na volta, a lua imensa de um lado e o pôr-do-sol do outro, o céu de um azul muito intenso, as aves tranqüilas em torno da embarcação. Dali pegaram um ônibus para Glinick. Dois anos atrás a passagem ainda estava interditada. Parara surpresa na fronteira. Do lado de cá, uma monumental árvore de natal toda iluminada, montada no meio da passagem. Do lado de lá, uma árvore menor. De ambos os lados, policiais fortemente armados acompanhados de cães. As pessoas vinham, desciam dos ônibus e carros e meditavam em silêncio sobre a separação. Muitos morreram na tentativa de ultrapassar essa fronteira artificial. A passagem agora já é livre, e nenhuma árvore este ano. Um menino e uma menina brincam despreocupados, correndo de um lado para o outro na entrada do castelo em frente. Há entre eles uma cumplicidade visível. A mãe proibira que brincasse com o vizinho. Ela e Frau Bayer acharam melhor separar os dois, depois de algumas travessuras. Na casa dele, desfizera os novelos de lã que encontrara numa cesta, fazendo imensos ninhos coloridos, e depois amarrara alguns móveis numa tecitura vistosa, erigindo uma espécie de cabana. A mãe ralhou zangada, que falta de educação mexer assim nas coisas dos outros, então não a ensinara como se comportar? Dois dias depois ele viera brincar com ela. Subiram ao quarto da mãe, descobriram um embrulho em cima da cama, eram grossas argolas de madeira, retiradas do cortinado branco mandado para a lavanderia. Da sacada puseram-se a atirá-las, uma a uma, para a rua em frente, apostando quem as lançava mais longe. Alguém que passava avisou a mãe que acabara de chegar e abria o portãozinho. Lá de baixo, olhou séria para os dois, mandou seu amiguinho embora e desta vez foi conversar com Frau Bayer. Voltou dizendo que estavam proibidos de brincar juntos. No dia seguinte, no quintal, ouviu-o assobiar do outro lado. Foi até a cozinha e pegou uma colher de sopa. Tinha um pequeno buraco por baixo do muro, onde pôs-se a cavar. Cavou, cavou, de vez em quando retirando a terra acumulada. Dois dias depois, conseguiram se dar as mãos. Cavou um pouco mais, agora auxiliada por ela do outro lado, e conseguiram abrir uma passagem estreita para trocar brinquedos. Na manhã seguinte, ele conseguiu esgueirar-se para o seu lado. Um dia a avó descobriu e disse esses dois são impossíveis. A mãe deixou que brincassem juntos de novo, se não fizessem nenhuma travessura. Uma passeata de estudantes e professores da Universidade Humboldt, da antiga Berlim Oriental, torna lento o tráfego. Têm a disposição de marchar até Leipzig, protestando contra o fechamento da algumas faculdades. Policiais ladeiam-nos pacientemente, abrindo caminho. Ninguém buzina nem procura se desviar. Ao descerem do ônibus, seguem atrás, engrossando o protesto. No restaurante do castelo antigo tomaram chá e comeram schwartzkuchen. Na mesa ao lado, três senhoras mediam as pessoas de alto a baixo, pondo e tirando os óculos, cochichando entre si. Ouviu que diziam, primitivos, ignorantes. Berlinenses típicas, enfezou-se Du. No caminho de casa vira muitas vitrines quebradas nas estações de metrô e nas ruas. Ontem à noite ao voltar para o apartamento, um bando de bêbados acendia no cigarro pequenas bombas, atirando-as contra os edifícios, enquanto gritava turcos baixos, ignorantes. Mulher baixa, ignorante, dissera o pai, analfabeta. Pelos dentes cerrados as sílabas saíam escandidas, a-nal-fa-be-ta. A avó começara a gritar coisas que não compreendia bem, a veia do pescoço saltada, não estava ali porque queria, mas porque ele vendera a sua casa e agora era obrigada a morar de favor. Depois, fora chorando para o quarto. Nunca vira a avó assim. De mãos dadas com a irmã, ficou grudada à parede do corredor, em silêncio, perto da porta de saída. A mãe saiu do quarto de forma brusca, falando alto, defendendo a avó. O pai estava furioso, índo de um lado para outro, é um inferno esta casa. De repente, voltou do quarto com um pequeno revólver dourado, ameaçando eu te mato, mulher, eu te mato. Correram as duas para a casa ao lado, bateram à porta e ela disse, a voz entrecortada, o pai quer matar a mãe. A moça passou a mão na sua cabeça e pegou a irmã pela mão, estão só discutindo, não é nada. Ficaram ali, na varanda, abraçadas à vizinha. Era uma casinha pequena, pintada de branco e azul. O marido chegou, guardou a bicicleta num pequeno galpão, murmuraram alguma coisa em alemão, ele abriu a porta, apontando a mesa com as cadeiras altas, corações entrecortados na madeira escura do espaldar. Comeram uma fatia grossa de broa com mel, tomaram leite e só voltaram para casa quando a empregada fora buscá-las. Durante o jantar, ficaram em silêncio. De vez em quando esticava o canto dos olhos para do pai, entretido com a comida. Na manhã seguinte, ele viajou. A mãe reclamou, que vergonha, incomodar a vizinha ontem. Tinham medo do pai, agora. Quando viajava, um dia, o pai e a mãe no assento da frente, as duas no banco de trás com a avó mais a enorme mala azul, o pai começou a discutir, porque já era tarde, estava muito quente, a avó se atrasara, que idéia, querer trazer o baú. Ela e a irmã se assustaram com os brados roucos do pai, que iam ficando cada vez mais alto, e encolheram-se, enquanto a avó pedia calma. O pai ameaçava eu jogo este carro no despenhadeiro e acabo com tudo de uma vez. A mãe permaneceu em silêncio, a avó passou a mão na sua cabeça e disse baixinho não é nada, não precisa ficar com medo, seu pai é assim, de rompante. Um louco, rangeu entredentes ao se virar para o vidro. Olhou para o vazio enorme que ficava do lado da estrada, o despenhadeiro. Ao voltarem, resolveu brincar dentro do enorme baú de madeira que a mãe forrara de papel cor-de-rosa com florezinhas vermelhas. A mala azul ficou com a irmã, para que parasse de chorar. Pôs lá dentro os brinquedos preferidos e um travesseiro de penas. Quando a mãe chamava, fazia de conta que não ouvia, até que a tirasse do baú. Tinha um perfume bom, a mãe, a voz macia.

 

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Passeara pelo SchloB Charlottenburg. Ficara sentada admirando a massa de água tranqüila por entre o verde. Depois, atravessara avenida e fora tomar café. Não resistiu ao kuchen amanteigado. O que a mãe fazia era melhor, ficava ao seu lado enquanto formava pelotinhas de manteiga, farinha e açúcar com canela para espargir por cima da massa. Quando ela se distanciava, roubava um punhado. A Librarie Française ainda não recebera o livro encomendado. Andou pela Ku’damm, pegou um ônibus para A Staatsibliothek buscar os livros que reservara. Agora o movimento é maior, mais estudantes, depois da abertura, impossível encontrar um lugar no café, as filas são longas. Depois, entrou na Nationalgalerie, em frente. Um grupo de americanos percorria a sala principal. Voltou para casa disposta a ler. Do quarto, à noite, ficou a observar uma janela acesa que dava para o pátio. Parecia luz solar. Du disse que era contra a longa e depressiva escuridão do inverno. Uma lâmpada que imita o sol. A janela refulgia para a noite, aquecendo o olhar. Sentia frio. O pátio estava em absoluto silêncio, projetando sombras contra as paredes do prédio. O envelope da Technische Universität Berlin descansava sobre a mesa. Der Präsident. Referat für Studienangelegenheiten. Abriu o envelope pardo. O envelope cheio de fotografias entre os pertences do pai, no armário. Fora lá para admirar os aparelhos para a surdez dentro de um grande vidro transparente, o fundo forrado com uma c amada de pedrinhas levemente coloridas que o pai dissera serem contra a umidade. Quase não tocava em nada. Cápsulas dentro dos vidros, vitamina americana, dissera o pai, lenços, gravatas, a colônia. Não resistia, abria o vidro e cheirava. Sentou-se no chão, esquecida da casa, e retirou de dentro do envelope as fotos. Cinco moças e um rapaz. O rapaz se parecia com o Carlos, que nunca mais voltara a ver. A testa e o olhar do pai. Pegou outra foto, as cinco moças. Tinham os mesmos olhos. Parecidos com os do pai. Com os seus. Uma delas tinha seus olhos, grandes e amendoados, a testa larga e alta do pai. Outra foto da moça parecida com ela, sorrindo, de braços dados com o pai. Virou a foto, para o papai, com amor, Laguna, 1952. Para o papai, o coração disparou. No envelope estava escrito o nome do pai. Nas costas de uma das fotos estavam os nomes das moças, Clara, Clarice, Célia, Celina e Cristina. E o nome do Carlos. Então, era mesmo ele. Lembrou-se da velha Bíblia que o pai lhe dera. Na primeira página estava escrito o nome do pai, na segunda, o nome do Carlos com o mesmo sobrenome do pai. Então, o Carlos era seu irmão. Pegou a foto com a moça parecida com ela e ficou olhando. Laguna. O pai sempre viajava para Santa Catarina. Laguna, ouvia sempre. Então, era isso. Irmãos. O primo havia dito que tinha outros irmãos. Tinha outro irmãos, ela também, descobriu chocada. Sentia alguma coisa partir-se dentro, chegou mesmo a ouvir um ruído. Ficou imóvel, recolhendo as impressões. Precisava contar a descoberta para a irmã. Agora entendia por que o pai ia sempre a Santa Catarina. Lembrou-se da freira, no pátio, quando entrara no colégio, não são casados, viu a ficha? O sobrenome da mãe não era o mesmo do pai, notara quando a mãe assinara uma vez a caderneta de notas. Mas o rei tinha um filho bastardo que era seu preferido, lembrou-se da voz rouca da Irmã Ludovica, que dava aula de História Universal na primeira série. O que é filho bastardo, perguntara. A freira olhara-a longamente antes de responder. Haviam ido, o pai, a mãe e ela a um casamento, em Brusque. Achara divertido aqueles homens dançando, alegres, rindo. O pai nunca ria. Um deles tinha um chapéu de feltro verde estranho, que terminava num cone, enfeitado com várias penas coloridas. Usava calça curta, o que ela achou muito engraçado, e as costeletas pareciam enormes pompons perto das orelhas. Perguntou se queria provar uma perna de pato, levou-a para perto de um enorme barril de madeira cheio de banha branca e tirou a perna cozida lá de dentro, indo esquentá-la na grelha. Depois, acompanhou-o até o poço. Puxou uma corda, na ponta estava um saco de aninhagem cheio de garrafas de cerveja e capilé. O capilé vermelho estava fresquinho. No fim da festa ele a fez tirar uma foto abraçada à noiva, a renda do vestido branco fazendo cócegas nas suas pernas. Quando voltaram pediu para ver a foto do casamento da mãe, vestida de noiva. Outro dia, está difícil agora, respondera. Ela fizera-se vestir de branco, uma colcha branca como coberta. Precisava de um lenço branco para pôr na cabeça, no lugar da operação, e de uma prece. Toda de branco, parecia uma noiva. Contou para a irmã, que foi imediatamente para o quarto ver as fotos e, em seguida, perguntar quem eram aquelas moças. A mãe disse que eram filhas do pai, que moravam em Laguna. Este é o Carlos, não te lembras mais dele? Teu pai ficou com ciúmes dele e o mandou embora. São filhos do primeiro casamento do teu pai, disse, olhando-a. Meio escondida atrás da irmã, quis saber se o pai estava lá agora. Não, teu pai está viajando a trabalho. No dia seguinte, o armário estava fechado a chave. Quando o pai chegou, não conseguia tirar os olhos dele. Em tom de brincadeira, na hora do jantar, ele disse o que será que estão querendo esses olhinhos negros? Ficou séria. Por isso o pai não gostava dela. Era como o pai do primo, que tinha outros filhos e nem morava mais com ele e a mãe.

 

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Du trouxera pêras italianas. Das que vira ontem num quiosque, arrumadas em pirâmide. Iguais às da pereira da infância, uma árvore alta que dava florescências brancas na primavera. Pera-d’água, a avó chamava. Escrevera a manhã toda, depois fora com Du a Rathaus Steglitz, um bairro comercial movimentado, uma loja atrás da outra, última estação do metrô, linha 9. Quando cansaram, entraram no Café Paris. Enquanto tirava o mantô percebeu numa mesa próxima cinco velhinhas que a mediam dos pés à cabeça. Berlinenses típicas, Du não se conteve. Tomou um capuccino. Na mesa da frente, um menino muito louro olhou-a, um pacote de balas na mão. Passava pelo armazém do seu Oliveira e pedia bala, para pôr na conta. Escolhia as balas envoltas em papel de celofane dos vidros redondos, que ele arrumava num cone de papel cinza enrolado na hora, depois pegava a caderneta verde e anotava a lápis o dia, a mercadoria e o preço. Não se esqueça de pedir para a sua mãe anotar na dela. Eram três quadras do armazém até a casa. As casas eram ligadas à rua por pequenas pontes de tábuas grossas. Uma rua empoeirada, com valeta de esgoto a céu aberto, o líquido esverdeado sulcando a terra e formando uma canaletas negras e viscosas. Teu pai ficou pobre, disse a avó, perdeu tudo. Onde fomos chegar. Uma noite, estava no escritório quando ouviu abrirem o portão. Imediatamente, apagou as luzes, trancou a porta e ficou espiando pela janelinha, o coração acelerado. Riam. Reconheceu as colegas. Uma delas tropeçou num buraco na calçada de tijolos. Um sapo, cuidado, que escuro, não é possível que ela more aqui nesta casinhola. Não é possível, repetiu a outra. Riam nervosas. Bateram à porta da cozinha. Sem demora, a mãe disse que ela não estava, como haviam combinado. Saíram rindo, com dificuldade para encontrar de novo o portãozinho de ripas verdes. Tomou o capuccino. Sorriu para o menino, mas ele continuou sério e desviou o olhar por trás dos óculos, dando-lhe as costas. Em Blumenau, apreciava um coleguinha assim louro, de olhos azuis irrequietos, que se sentava duas carteiras à sua frente, e entrava na sala carregando nas costas uma mochila de couro marrom duro. Todas as crianças de sua infância eram louras. Queria ser loura, mas a mãe disse teu cabelo é muito mais bonito, é acaju, como teus olhos. Acaju, repetiu a palavra várias vezes, até ela perder o sentido. Pediu para a mãe uma mochila. A mãe procurou nas lojas, mas não encontrou, disseram que só mandando buscar na Alemanha. Admirava o menino louro a distância. Volta e meia, para ajeitar a ponte dos óculos no nariz, fungava, fazia um muxoxo unindo os lábios num bico e como que beijava o ar. Passou a fungar, mexer o nariz e os lábios como ele. A mãe ficou preocupada. Uma tarde, passou na escola para pegá-la, ela apontou a mochila e viu que a mãe ficou parada por um longo tempo observando o menino. Quando se afastaram disse vou mandar buscar a mochila, mas tu não precisas pegar o tique dele e fungar desse modo. Algumas semanas depois voltou melancólica para casa, o menino fora de volta para a Alemanha. Entrara numa loja e Du a fizera experimentar algumas blusas de seda. Sabes muito bem do que estou falando, as meninas precisam de roupa, clamou a mãe. E tossiu. Tossia quando ficava nervosa. Estavam ela e a irmã no ponto de ônibus em frente de casa, quando ouviram os gritos vindos da janela da frente, a janela do quarto. As pessoas em volta levantaram os olhos para a casa, no alto. A mãe começou a tossir. Entreolharam-se. Esta casa é um inferno, vociferou o pai, batendo a porta. Deram graças a deus quando chegou o lotação apinhado. Provou uma calça de veludo. Parecem filhas de rainha, estás criando mal essas gurias, reclamou o pai. Não sabem fazer nada, nem ajudam em casa. Roupa, roupa, roupa, toda hora precisam de roupa. Um homem insistia para que a mulher comprasse um casaco de pele, mas ela acabou preferindo uma jaqueta de couro. Eram felizes. Depois, fez com ele experimentasse um gorro de pele. O pai enterrava o chapéu na cabeça, ia para o escritório. Estava brincando no quarto que tinha na primeira casa de Curitiba. Tinha febre e a mãe pedira à empregada e à avó que não a deixassem sair da cama. Ia buscar remédios. Um homem moreno, envolto numa pelerine marrom, de chapéu enterrado na testa, abriu a porta, de repente, e chamou-a pelo nome. Olhava para ela como enormes olhos úmidos e escuros. Viu brilhar um anel no dedo menor da mão esquerda que ele lhe estendia. Passou correndo por baixo de seu braço, em direção à cozinha, desesperada, ao encontro da avó. Agarrou-se a ela perguntando quem era. Teu pai, menina, ora, ora, não reconheces? Não se lembrava do pai, sempre viajando. Ele se aproximou, pediu-lhe um beijo e passou-lhe um pacote pequeno. O rosto era áspero. Abriu o pacote. Não, não gostava de boneca assim. Ficou segurando a caixa sem saber o que fazer. A avó ralhou com ela, não diz obrigada, não dá um beijo? Não quero a boneca, obrigada. O pai se afastou triste.

 

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Súbito a árvore do pátio em frente ganha uma copa de pássaros. Uma centena de pássaros voejando entre os galhos desfolhados. Abrem uma janela no edifício ao lado e eles alçam vôo em pequenos bandos. A árvore volta a ficar descarnada, sem aquela vida repentina. À noite, sentira pontadas, remexera-se o tempo todo. A avó dizia que um bicho a roía por dentro. No sonho, chorava a morte de alguém. Levantavam a tampa de dois túmulos recentes, a terra ainda revolta, e ela fazia deslizar lá para dentro duas pesadas pedras cobertas de inscrições. A infância dói e comicha como ferida recente. Luz azul fria de tevê em algumas janelas. O envelope pardo sobre a mesa, a Technische Universität Berlin lhe mandara os papéis para a inscrição. Relembra a conversa com o velho professor. Procurou a sala, Comunicação, 512. Um homem gentil, um pouco surdo, lhe estendeu a mão. Afável. Seria judeu? Uma polaca judia, dissera a prima da mãe, mordaz. Hoje, 10 de janeiro de 91, as atenções do mundo de voltam para o Golfo Pérsico. A crise pode levar a uma nova guerra, talvez cm conseqüências catastróficas. O povo americano sai às ruas, protestando contra um novo Vietname. Na tela, o rosto cinza do jornalista torturado e morto na prisão. O rosto cinza da mãe no caixão. Os pássaros voltam à árvore desfolhada e de novo voam assustados. Um corvo grasna ao longe, sinal de morte, diria a avó. Uma luminosidade viscosa escorre pela parede do edifício que dá fundos para o pátio de estacionamento, indo descansar no chão de pedregulho. Uma nesga de luz entra pela janela, desenhando uma linha reta na parede do quarto. Resolvera voltar a Staatsbibliothek, ontem, e continuar a leitura. No café, os estudantes conversavam, os estojos de canetas e lápis sobre as mesas redondas, diante das enormes xícaras de café com leite fumegando. Discutia com alguns colegas na lanchonete, o presidente renunciara e havia rumores. Não te metas em complicação, essa passeata é coisa de baderneiros, se acontecer algo não movo um dedo para te livrar, esbravejar o pai à mesa. Começo de 64, o curso de jornalismo mal havia iniciado. Manifestações constantes, greves e o golpe militar. O colega teve uma crise de choro, esmurrava a parede do corredor e gritava ditadura, não, ditadura, não. Uma tarde, a aula foi interrompida por um estudante que abriu a porta da sala e disse eles estão vindo. Saíram à rua. Na frente da faculdade, na Rua XV, os tanques, com soldados encarapitados na fuselagem, marcavam o asfalto, lentamente, ameaçadores. Jogou uma pedra num tanque, mas depois esforçou-se para refrear os colegas, nada a fazer na situação. Ao chegar em casa o pai a esperava, aflito. Ouvira dizer que os estudantes andaram se manifestando. Mostraram os soldados americanos se preparando para a guerra. Era noitinha, o soldado gritou alto. Passava sozinha por uma rua quase deserta, vinda de uma reunião com os colegas. Estavam preparando uma antologia poética. Com o coração reboando nos ouvidos, se deu conta de que estava na calçada do quartel. Sem saber como reagir, atravessou a rua e parou no ponto do ônibus do outro lado. O soldado manteve o fuzil apontado na sua direção. Algumas pessoas haviam morrido assim. Deviam pelo menos publicar a receita inteira, dissera a mãe, sorrindo matreira. O jornal dera para imprimir ora poemas ora receitas de bolo no lugar dos textos censurados pela ditadura militar. Retira do envelope os formulários e rasga-os. Começa a escrever uma carta para o professor. No segundo ano, em Blumenau, tivera uma professora muito nervosa, dona Dulce. Foi uma mulher rica, disse a avó, pôs tudo a perder. Gritava, dava cascudos, punha de castigo, humilhava os mais pobres. Uma manhã deu com a régua na cabeça de um aluno moreno, espigado, guarda-pó amarelado, pés metidos em alpargatas. Fora injusta. Ele ficou no canto, chorando, os demais em silêncio, atemorizados. Contou para a mãe, que ficou preocupada. O pai ouviu e disse que a professora tivera suas razões. A mãe imediatamente desviou o assunto. Na manhã seguinte, o menino moreno estava lá atrás, na última fileira. A professora entrou, fechou as portas e janelas e, chorando, anunciou que estava muito emocionada, recebera duas cartas, que ouvissem com os próprios ouvidos. Leu uma. Malcriada, proferiu, e mal escrita. Era o pai do aluno, defendendo o filho e queixando-se à diretora. Moveu lentamente a cabeça lá para o fundo e sorriu em cumplicidade. Ficou contente com a carta do pai do colega, corajosa e firme. A professora mudou o tom da voz e mostrou outro envelope, dizendo esta sim é que é carta para uma professora. Bem escrita, de gente educada. E leu a carta. Dizia que o professor é um educador com uma missão a cumprir e tem o direito de ser severo sempre que o aluno, alma em formação, merecer. Dava-lhe toda licença para corrigir a filha quando preciso fosse, sabia ser para o seu próprio bem. Ficou rígida na carteira quando leu o nome do remetente. O nome do pai. O que poderia dizer para o colega? Na semana seguinte, começaram a se preparar para voltar para Curitiba. Ficou contente. Terminou a carta. Amanhã a deixaria na universidade. Pensara a noite toda, sentia-se entristecida, mas aliviada com a decisão. Não ficará em Berlim.

 

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Terminada mais uma parte do romance, tentou sair, mas teve de voltar. Não se sentia bem. Ficou a ler na cama. De vez em quando fecha o livro e ouve os pássaros que invadem a árvore em frente, uma centena. O pássaro de madeira preso na beirada da tigela de água pousava o bico no fundo e voltava, num movimento contínuo. A madeira ia ficando intumescida com a água, pesada. Barulho de pneus no pedregulho molhado do pátio de estacionamento, o ronco de um avião ao longe. Quando se sentia mal a mãe lhe trazia uma canja que a avó preparava. Talvez se sentasse a seus pés, para conversar. Estivera doente. Ao voltar, o pai lhe trouxera o pássaro de madeira. Lançava o corpo para a frente, bicava a água da tigela, jogava a cabeça para trás e voltava a bicar a água, balançando-se sem parar. Equilibrou-o na mesinha de cabeceira e ficou a observá-lo horas seguidas. Estava fraca, ainda. Disseram para a mãe que no Batel um senhor espírita dava uma água para tomar em colheradas, que fazia muito bem. A mãe levou as duas. No jardim da casa pequena e escura já havia se formado uma fila de pessoas à espera do seu Habib. A casa lembrava o colégio onde a mãe quisera matriculá-la pela primeira vez. Dissera é tempo de ires para a escola, enquanto se aproximava do portão de ferro e apertava a campanhia. A hera cobria quase todo o muro. Espiou pela grade o longo corredor lá dentro. Uma mulher toda vestida de preto, saia longa, um imenso chapéu branco na cabeça vinha na direção delas. Teve medo que a mãe a abandonasse, apertou sua mão e choramingou vamos embora. Ela se aproximava rápido. Começou a chorar, vamos embora, mãe, quero ir embora, puxando-lhe a mão. Volte quando ela estiver mais calma, disse a freira. Ao chegar a vez delas foi entrando ressabiada. Era um senhor baixo e moreno, silencioso. A mãe lhe sussurrou alguma coisa. Ele se aproximou dela, passou as mãos por sua cabeça e seus ombros, agitando-as depois no ar, enquanto murmurava algumas palavras. Entregou-lhes a garrafa com água, da qual tomavam uma colher de sopa de manhã e à noite. Ao saber da visita, o pai protestou. Mal não faz, disse a mãe. O céu está cristalino, o sol vai apagando dos telhados a fina camada de gelo que se formou à noite. A água começa a pingar dos escoadouros. A propósito do Golfo, ronda o fantasma de uma terceira guerra mundial, na Europa.

 

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Um corvo grasna, sobrevoando a árvore descarnada. Na Lituânia, ontem, soldados russos puseram-se a massacrar a população. Viu pela televisão os tanques nas ruas, os feridos. Continuam as manifestações no mundo. Uma fina camada de gelo cobre os carros no pátio. Os telhados de ardósia negra estão brancos, o céu é azul intenso, como nos invernos de Curitiba. A geada atapetava o gramado. Acordava cedo e ia para fora, sem que mãe percebesse. Ia raspando com os dedos as partículas de gelo espetadas como fios de escova nas folhas. Levantava algumas peças de roupa esquecidas no gramado, duras como pedra. Abria a torneira, a água não saía, às vezes uma gota congelada refletia o sol. No tanque, uma camada de gelo recobria alguns panos que ficavam da véspera. Ao sair do metrô pegara o papel que um estudante lhe estendera. Demonstration. 12.1.91, 13 Uhr. Adenauerplatz. Dieser Krieg Darf Nicht Stattfinden! Resolvera descer a Ku’damm com as 300 mil pessoas que protestavam contra a possibilidade de uma guerra no Golfo. Stop dem Krieg am Golf. Muitos carros de polícia estacionados na praça, policiais conversando pelo walkie-talkie. Du vai até um deles e pergunta o rumo da multidão. Estão esperando que decidam, para acompanhá-los. Na Adenauerplatz, lugar da concentração, passeia à margem do aglomerado, ressabiada. Vários carrinhos de bebê, duas meninas brincando com máscaras contra gás, resquícios de outras guerras, algumas pessoas em cadeiras de roda. Kein Blut für Öl. Uma mulher traz no peito uma pomba branca de papel recortado, o menino que a acompanha segura um papelão colado numa régua de madeira: kein Krieg. Nada de guerra, nada de sangue pelo petróleo. O ajuntamento cresce. Decidem tomar café, mas os lugares por perto estão repletos. Encontram uma confeitaria, a moça com uma mecha de cabelo verde traz o café com leite. Está atarantada com tanto movimento. Voltam para a praça. De repente, avista na multidão um cartaz nas costas de uma jaqueta de couro negro, unidos venceremos, e a estrela do PT. Saiu atrás, queria ver o rosto do rapaz, mas acabou perdendo-o de vista. Devia ser estudante. Ele era alto, louro, de passadas largas. Também viera de Santa Catarina. Faziam política estudantil, antes de lacrarem as portas do Centro Acadêmico. Enquanto os tanques feriam o asfalto da Rua XV, em frente ao prédio da faculdade, em Curitiba, ele levantava os punhos cerrados e gritava destemido para os soldados. Comunistas, esbravejava o pai à mesa do almoço, fazem muito bem em dissolver essa baderna. Alguns colegas presos, cochichos pelos corredores, professores demitidos. Os soldados dissolviam as manifestações montados em cavalos altos, com cacetetes e bombas de gás lacrimogêneo. As torturas. O pai não acreditava. Um casal de idade levanta uma faixa. Ich habe Angst. Alguns bebês choramingam, mas logo se calam, distraídos pelo movimento. A mulher segura um cartaz com viel Blut que o homem completa com a outra metade für Öl. Esperam duas horas na concentração, os pés congelados. Procuram outro café, entram num restaurante repleto. Encosta-se no balcão. Sentada a uma mesa de canto, uma mulher escreve, alheia ao movimento. Ao lado, uma imensa xícara de café com leite. Olha pela porta de vidro do restaurante, os carros de polícia se movimentam para dar passagem à multidão ordenada. A passeata começa, saem à rua para acompanhá-la. No trajeto vê dois policiais com capacete e elmo se abraçarem, posando para uma foto. Descem em direção a Gedächtniskirsche.

 

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Seis horas da manhã, ouve o ruído de vozes abafadas. Du grudou-se na televisão, tentando obter um prognóstico sobre a guerra. Ontem à tarde acompanhara outra marcha na Ku’damm, desta vez dos estudantes, pela paz. Crianças que estendiam os braços bem ao alto para mostrar suas faixas, adolescentes fantasiados de caveiras, Ich habe Angst. Angústia pela morte vã. Não querem um novo Vietname. A Europa divide as atenções entre o Golfo e a Lituânia. A televisão passou a ter emissões especiais, de meia em meia hora. O aeroporto de Frankfurt já está sob vigilância. Medo de atentados. Muitos judeus chegaram ontem de Israel, num vôo especial. Alguns soldados americanos desertaram e foram aceitos por famílias alemãs, sorrisos intimidados nos rostos infantis. É tudo patético, como um vídeo muitas vezes visto. Guerras e massacres à mesa, na hora do jantar, desde a guerra do Vietname. Que futuro será o nosso, perguntara-lhe ia velhinha no Markhalle, onde fora comprar cerejas. Que futuro terão essas meninas, ouvira a mãe conversando com a avó na cozinha. Agora, não te preocupes, tudo vai melhorar, respondera a avó. Foi para o jardim e ficou a espiar por detrás dos três pinheiros altos, o vento acentuando o cheiro das bagas marrons que forravam o chão. O futuro tinha o calor daquelas luzes distantes e silenciosas. Pela cerca de sarrafos, o vizinho, marido de dona Linda, chapéu ensebado na cabeça, num sorriso de poucos dentes, dissera para que estudar tanto, vai acabar esfregando a barriga no tanque. A mãe ficara constrangida, pegara-a pela mão e se afastaram. Era quase fim de ano, estava terminando o primário e teria que prestar exame de admissão ao ginásio. O pai se queixava dos gastos, faça por dar, faça por dar, dizia para a mãe, estendendo-lhe um maço de notas, antes de cada viagem. Ainda estava de guarda-pó, acabara de chegar do grupo, contente com o boletim final. O pai entrou no quarto, pôs um livro sobre a cama ao seu lado, e disse agora não precisas mais ir para a escola, bobagem, é só estudares algumas coisas práticas, podes fazer isto em casa. Olhou o livro. Na capa azul-claro estava escrito Aritmética Progressiva. Agora não precisas mais ir para a escola, bobagem. Estudar em casa, não ir mais para a escola, coisas práticas, em casa, ficar em casa, foi repetindo mentalmente as palavras do pai. O coração disparou. Abriu a porta de um safanão, chamando pela mãe. Atravessou correndo a pequena sala, passou como azougue pela cozinha. Tua mãe está lá fora, no tanque, disse a avó. Cuidado, menina, cuidado com a caçarola. Ganhou a estreita faixa de quintal que dava para o rancho, ao seu encontro. A mãe, atrapalhada com a mangueira vermelha que alongava a torneira, não ouviu bem o que ela dizia, mas se assustou. O que houve? Repetiu, o pai disse que agora não preciso mais ir para a escola, que é bobagem, que é para estudar em casa. Ela largou o pijama na água, fechou a mangueira e fixou nela o olhar escurecido. O pai me trouxe um livro de aritmética e disse que agora não preciso mais ir para a escola estudar, posso aprender em casa, tornou a repetir. A mãe enxugou as mãos no avental. Entrou com ela. Cuidado com a caçarola, repetiu a avó. Aflita, sentou-se de novo na cama, agarrada às bordas, o livro azul ao lado, intocado, as enormes letras negras sobressaindo-se ARITMÉTICA PROGRESSIVA. Ouviu a voz da mãe, a voz do pai no quarto ao lado. A parede de madeira fina deixava passar as palavras. Ouviu as vozes se altearem, a mãe dizer vai, sim, filha minha vai para a escola até se formar, o pai endurecer, a mãe gritar. Pensou ela vai vencer, ela tem de vencer. Era a batalha mais importante de sua vida e ela não podia lutar. Não se imaginava sem escola. E começou a rezar meu deus fazei com que ela vença, fazei com que ela vença. Repetia sem parar, fazei que vença, que vença, vença. Seu futuro dependia desse breve momento. E da mãe. Como o pai podia pensar nisso? Para que estudar tanto, vai acabar esfregando a barriga no tanque, lembrou a fala do vizinho. Mas o pai era diferente daquelas pessoas. Estava num momento difícil, o pai, mas como podia, meu deus! Como podia trai-la desse modo? Meu deus! Tinha um deus todo particular. Compusera a imagem de um velho bom, como vira em algumas ilustrações, de barba branca e doces olhos azuis. Como lhe mostrara Otília, a empregada. Em pequena chamava a figura de papai-u-xéu. O pai não gostara, resmungara com Otília. Ouviu de novo a voz da mãe. Se o avô vivesse cuidaria dela e da mãe. Fazei com que ela vença, que vença, vença, voltou a rezar. Aprendera que para deus se usa o pronome vós. Pensou na história que lera, de dois irmãos. Prendera no guarda-roupa, com tachinhas, a capa do livro. Fugir de casa, mas para onde? Ajudava a mãe, repetindo baixinho vença, vença, vença com toda sua energia. O pai vociferou. Bruto, a voz da mãe já tinha um tom débil. A avó, preocupada, bateu de leve na porta do quarto, olha os vizinhos, não grita. Abriu a porta do quarto, olhou para ela, abraçada ao travesseiro, e suspirou, este teu pai! A irmã veio sentar-se ao seu lado, em silêncio. Súbito, ouviu a mãe, forças reunidas, dizer em voz enérgica, já rouca, minhas filhas vão estudar, nem que para isso eu tenha de ser empregada doméstica. O pai saiu batendo a porta. Ficou sentada na beira da cama, sem se mexer. A irmã pôs-se a folhear o livro. Aritmética Progressiva. A mãe devia ter-se deitado um pouco, como sempre fazia depois dessas discussões. Ficava com dor de cabeça. Não quis incomodá-la. Ouviu a avó perguntar queres um chá? Esperava quieta. Um pouco mais tarde, a mãe bateu à porta e disse venham almoçar. No fim do almoço, disse grave, agora vai te arrumar que vamos ao colégio fazer a matrícula para o exame de admissão.

 

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Os Estados Unidos bombardearam o Iraque às três horas da manhã, disse Du em aflição. Viu em seu rosto o olhar da criança que passara pela guerra. Um angústia antiga. A televisão alemã está de plantão desde às seis horas, fornecendo informações. Em todo o mundo multidões saíram às ruas pedindo paz. Dormira com a imagem do soldado cuspindo na bandeira inimiga, o presidente Bush sorrindo e a face dramática de Mitterrand. Um jato rompe o céu, deixando uma faixa de fumaça branca no azul cinza da manhã. Tudo está silencioso. As aulas foram suspensas, os alunos protestam nas ruas e em frente ao consulado americano, sob um nevoeiro denso. O governo alemão comunica sua oposição aos protestos, considerados anti americanos. As passeatas começam a ser desmanchadas com jatos de água. Dia e noite os Estados Unidos bombardearam o Iraque. Manifestações em Paris, Berlim, Madri. Israel é bombardeada pelo Iraque e responde aos ataques. Bagdá parece iluminada por fogos de artifício, num filme da BBC. Outro avião rasga o céu. De uma construção vêm as vozes dos operários. O sol começa a surgir timidamente atrás dos edifícios. A loja de departamentos Ka.De.We. tem suas vitrines protegidas por madeirame. Muitas foram apedrejadas. Os policiais estão nas ruas, os ônibus têm o curso desviado. Depois de escrever, fora ao mercado. Um poeta polonês queria lhe vender seus versos. Comprou cerejas e corrigiu imediatamente que era brasileira, quando lhe perguntaram se era americana. Ich bin Brasilianerin, repetiu três vezes durante a manhã. Trouxe peixe, almoçaram em silêncio. Não havia muito que conversar. Israel está sendo bombardeado. O mundo árabe vai se definir, rachando a aliança, explodem as manchetes. Descera a Ku’damm. No caminho, ouvira os acordes de Garota de Ipanema. Um saxofonista e um violonista tocavam a batida brasileira em frente a Ka.De.We. Du passava o dia registrando todos os fatos num caderno de capa dura para seus comentários jornalísticos. À noite, ligou no Antenne 2, demonstrações em Berlim, Stop dem Krieg am Golf, kein Blut für Öl. Jatos d’água, cassetetes. A história é cruel, dissera o pai, sempre a mesma. Ficara preso seis meses, quando jovem, por se negar a prestar serviço militar. Em Tubarão, durante a Segunda Guerra, percebera que desviavam a pensão de alguns judeus idosos que lá se haviam refugiado, enquanto os alemães ganhavam as suas. Resolveu averiguar. Foi a Florianópolis falar com o governador e, antes que fosse ao Rio falar com o presidente, obstinado como era, mandaram-no para uma ilha quase deserta. Era funcionário público, perdeu o posto e lá permaneceu um ano, sem livros, isolado, junto aos poucos pescadores, de castigo. Tinha antecedentes. Um dia chegara mais cedo à casa do professor de alemão. Batera, ninguém respondera. Era pontual, resolveu entrar. Viu estendidos sobre a mesa vários mapas dos portos do país, fotografias prontas para serem enviadas para o III Reich. Exigiu esclarecimentos. O professor, sem surpresa alguma, disse que tudo era feito com o consentimento de Vargas. Foi tirar a limpo. Fecharam seu jornal.

 

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Noite ainda, duas janelas acesas. Domingo. Acordara cedo, seis horas. Du se divide entre as notícias da guerra e alguns passeios. Queria hoje lhe mostrar Potsdam, Sanssouci. Ontem, haviam andado pela margem do Rio Spree até o dourado monumento à vitória, a Siegessäule, da época do Kaiser Wilhelm Friederich der GroBe, que estivera interditado. Haviam posto uma bomba na base. Numa da entradas do Tiergarten avistara o monumento a Bismarck. A mesma surpresa de quando vira pela primeira vez a Unter den Linden, uma grandiloqüência assustadora. Os corvos haviam tomado quatro árvores, no parque, grasnando em conjunto. Quando voaram, centenas deles, cobriam o céu de estrelas negras. Depois, tomaram o metrô na Hansaplatz. As estações estão repletas de bêbados. No noticiário de tevê, os franceses se mostram cheios de admiração pelas armas, descrevem a precisão dos mísseis, a agilidade dos aviões. Guerra pura, dissera o filósofo. Há pouca informação sobre mortos e feridos, o vídeo se enche de luzes coloridas como fogos de artifício. Nas ruas continuam os protestos. Estudantes, ontem, mais uma vez tomaram a Ku’damm com slogans e faixas. Na frente, abrindo caminho, uma caminhonete vertia sangue de porco no asfalto. A risca vermelha ia se espalhando pela avenida, escorrendo brilhante de um enorme barril. O cavalo ainda se debatia, a enorme cabeça erguia-se no impulso de se levantar. Ela vinha da escola, andando lentamente em direção ao ponto de ônibus quando viu o pequeno agrupamento. A carroça estava virada, galões de leite derramado, de um lado. Do outro, o sangue do cavalo ferido. Duas poças, uma branca e uma vermelha. Parou assustada diante do espetáculo. O enorme cavalo arfava. Alguém disse, aqui não é lugar para criança, vá para casa, vá. Continuou olhando, paralisada. De quando em quando o cavalo fazia um esforço, levantava a cabeça, olhos saltados, pescoço nervoso e jogava o peito contra o ar. Agonizava. É preciso matá-lo, disseram. A culpa foi do caminhão, saiu de ré. Em frente à fábrica de doces e bolachas Todeschine, a caminhonete verde, parada, o pára-choques manchado de vermelho. O homem confortava o cavalo, dando-lhe palmadas na cabeça. Dizia e agora, como vou viver? Apareceu um rapaz com uma espingarda. Dispersam todos, mandaram-na embora. Longe, imaginou ouvir o estampido e um frágil relincho. À noite, não dormiu, revendo a imensa cabeça, os olhos esbugalhados no esforço para sobreviver. A poça de sangue. Indo para a escola, em Blumenau, parara em frente à venda da esquina de casa, na frente do ponto do ônibus. O negro de cabeça branca havia caído de rosto no chão de ladrilho claro. Remexia-se na poça de sangue, sem poder se levantar, o corpo estendido de bruços. De repente, a boca vertendo um filete de sangue, olhou em sua direção. Teve medo. Era o pai do menino que morava no barraco em frente à sua casa, quase na beira da rua. Dias antes tinha ouvido a sirene estridente da polícia. Fora para a janela ver o corre-corre. De relance, avistou o vulto em chamas e viu quando cobriam com um cobertor o corpo da moça. Era a mãe do menino. É da vida, ouviu, sem saber o que significava. Da vida. O menino, sentado na soleira da porta, o corpo magro e moreno metido num calção azul desbotado, chorava. A ambulância chegou para levar a mãe. Ela gritava quero morrer, me deixem, quero morrer. O negro apareceu na porta e passou a mão na cabeça do menino. Vamos, vem tomar teu café, disse a mãe, afastando-a da janela. Amanhece. Já é possível distinguir o contorno do prédio em frente. Os turquinhos do zelador atravessam o pátio tagarelando, as crianças do apartamento de cima já fazem barulho. Uma camada fina de gelo cobre os pinheiros do pátio.

 

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Ao abrir a janela percebeu um lençol branco estendido fora do balcão, do outro lado do pátio. Berlim encheu-se de toalhas e lençóis brancos dependurados nas janelas. Em Sanssouci havia muita poluição, por causa do aquecimento a carvão da antiga parte oriental. Uma paisagem esfumaçada. Queria ver o aposento dourado em que Friederich der GroBe hospedara Voltaire, mas acabara discutindo com Du e desistindo de enfrentar a fila para entrar no palácio. O povoado antigo devia viver em torno do palácio barroco. O rei estava farto da estética prussiana e queria viver sem preocupações, estava escrito no guia. Passearam pelo monumental jardim, uma orangerie, um pavilhão chinês com figuras de mandarins em tamanho natural, inteiramente douradas. Recostadas às colunas, parecem à espera de que algo aconteça para despertarem do abandono. Ao lado do palácio, um velho moinho está sendo restaurado. O moleiro enfrentou o rei, diz-lhe Du. Interessa-se pela construção. Pedra sobre pedra, sem o cume e as pás de vento, parece uma torre de Babel anacrônica. O moleiro mandara dizer ao rei que não podia produzir sua farinha antes da farinha dos demais cidadãos, que esperasse. Há um ano essa parte ainda pertencia a Berlim Oriental. Acaricia no bolso o pedaço de cimento cinza onde alguém escrevera com letra miudinha freunde. Viera num saco plástico com atestado de origem comprovando que era parte legítima do Muro derrubado. A guerra continua. O lençol branco agita-se lá fora. Amanhece e começa a chover. Lembra a imagem do soldado americano na televisão francesa. Dissera sorrindo, lancei tantas bombas que aquilo lá ficou parecendo queijo suíço. Outro, também sorrindo, dissera que não encontrara seu alvo, mas acabara lançando o arsenal assim mesmo. Estava lendo a lição de história, um capítulo sobre a Segunda Guerra Mundial. O pai se aproximou, espiou e disse, irritado, mas do outro lado o bispo também abençoou soldados e canhões. De que lado estaria Deus? Ficou confusa e teve de ler todo o texto de novo. Vai à cozinha tomar café. Parece que Israel vai responder, diz-lhe Du. Os americanos levaram para Israel seus mísseis patriots, que têm o poder de atingir outros em pleno ar. Pátria, dizia o pai, é uma fronteira de interesses, indústria bélica. Brasões, bandeiras, adoradores de trapos. O lençol branco parece querer voar. De uma janela soltam-se algumas peças de roupa que o vento faz planar até o chão de cascalho do pátio. Via os meninos alçarem ao ar suas pandorgas de papel de seda colorido e longos rabos feitos de tiras de pano amarradas. Começara a ventar. Mais do que depressa foi à máquina de costura da avó e roubou o carretel de linha branca grossa. Pegou na gaveta da cômoda um pedaço de celofane transparente que viera embrulhando uma caixa de biscoitos par a mãe. Foi ao rancho onde a mãe passava roupa, amarrou três cintos de pano de antigos vestidos. Ganhara de um menino vizinho duas varetas de paina, amarrou-as numa cruz com a linha branca, estendeu sobre ela o celofane, dobrando as bordas e colando-as do outro lado. Amarrou o rabo, como vira fazerem. Era proibida de sair à rua quando ventava ou chovia. O vento soprava cada vez mais forte. Era tudo o que precisava. Saiu para o quintal, sentindo a lufada desmanchar os cabelos, varar o vestidinho curto de algodão. Botou a pandorga no ar, conseguindo desviá-la da pereira. Foi soltando a linha grossa do carretel, como via os meninos fazerem no campo em frente. Ela subia, subia. Sentiu a pressão do vento na linha. Embrulhou a mão no vestido, para não se cortar. Já quase nem via a pandorga transparente, lá no alto, só as tiras agitadas, trapos coloridos que formavam o rabo. O prazer de segurar aquele fio que a ligava diretamente ao céu. Ouviu a avó bater com os nós dos dedos no vidro do quarto, gritando alguma coisa. A voz era abafada pelo vento. Viu seu rosto se fechar numa máscara feia. A mãe apareceu na porta da cozinha, exigindo que entrasse. O vento abria um sorriso em seu rosto. A mãe ameaçou ir buscá-la. Cortou com os dentes o fio e soltou livre a pandorga nos céus, que desapareceu imediatamente. Mal entrou e a avó foi preparar o xarope mágico. Nenhum comentário sobre o feito. Ela e a irmã ficaram ao lado do fogão enquanto a avó dourava o açúcar e jogava água quente sobre o limão. Apagaram as luzes e ficaram contemplando a chama azul queimando a aguardente no prato fundo de louça branca. Ficou duas semanas presa em casa com um forte resfriado.

 

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A guerra continua, agora com um ritmo próprio. Não lhe abandona a memória a imagem do soldado americano escrevendo no míssil to Saddam with compliments. Quantos já teriam morrido? Haviam estendido um lençol com dois imensos símbolos femininos pintados com spray verde numa das janelas do prédio do pátio. O vento aproxima os dois sinais, fazendo-os se abraçar, como dois singelos bonecos de mãos dadas. Uma fumaça rala sai de uma chaminé, um gato atravessa o pátio correndo. A crise no Báltico se agrava. Os Estados Unidos pedem aos aliados, principalmente à Alemanha, que ajudem a pagar os custos da guerra com mais generosidade. No metrô para a Turmstrasse, linha 9, olhou em volta. Jovens turcos falando alto, velhos alemães silenciosos, uma moça carregando uma imensa pasta de couro, um casal indiano, ela com vários peircings nas narinas, trazendo pela mão um menino irritadiço, que choramingava o tempo todo, operários de mãos grossas e jaquetas de couro, uma mãe com o enorme carrinho de bebê, uma senhora com um cão peludo, um jovem casal de bicicleta e muitos estudantes. Só este ano Berlim tem mais duas mil e trezentas crianças nas escolas, filhas de refugiados políticos. Du murmura em inglês que devem descer na próxima estação. Um jovem turco se vira e diz entredentes Bush go home. Sorri, Ich bin Brasilianerin. Há sempre uma expressão de agradável surpresa quando diz que é brasileira. Olha-se no vidro da janela do metrô e sente um desconforto. Então, é assim. O ruído do trem fica abafado, o olhar se distancia. tudo é maia, filha, ilusão. O olhar da menina é o seu olhar interior, nele se reconhece ainda. Um certo desajeito, uma distração com as coisas externas. Olhem lá, passando, um brontossauro azul! Quem vai beijar aquele brontossauro azul que vem vindo lá, quem? O colegial encarapitado na estátua do bandeirante, apontara para ela. Passava distraída em frente ao Trianon. Os outros olharam em sua direção e riram. Estava de azul, referiam-se a ela, então. Um brontossauro. Lembrou-se do brontossauro de estanho que Du lhe comprara do artesão na barraca de Natal. Que estranhamento seria esse? Gosto desta tua blusa azul, dissera a mãe, pouco antes de morrer. O rosto cinza da mãe, o rosto do jornalista torturado e morto na prisão, o rosto do prisioneiro americano que mostraram na televisão, a máscara de dor da velha palestina, sentada em cima de uma pedra no meio da estrada, por não poder mais atravessar a ponte para trabalhar em Israel, como fazia antes. O vagão parou. Desceu e disse a Du que precisava andar um pouco. À sua frente, uma velhinha, arredondada pelos agasalhos, dava passos lentos, carregando duas pesadas sacolas. Vira ontem numa livraria da Ku’damm um álbum com fotos das alemãs, depois da guerra, salvando das montanhas de entulho os objetos não inteiramente danificados pelos bombardeios, tesouros para a nova vida, limpando os tijolos, um a um, empilhando-os para reconstruir suas casas. Andou até se cansar. Cresce o número de bandeiras brancas nas janelas, a população insiste em se manifestar contra a guerra em passeatas, agora já duramente dispersadas pela polícia. O governo alemão não aceita manifestações antiamericanas. Uma delegação de políticos da coligação alemã se apressa a ir a Israel prestar solidariedade e entregar um cheque para a causa humanitária, depois dos bombardeios. Descobriram que as bombas jogadas sobre Tel-Aviv eram de fabricação alemã. Mostram o grupo entregando o cheque a Isaac Rabin. Os estudantes passam com faixas tingidas de vermelho, Kein Blut für Öl. O chanceler Kohl anuncia o aumento dos impostos, a guerra custa caro. São mais de trezentos mil iraquianos mortos, diz, revoltada, uma missionária. Os patriots pegaram no ar dois mísseis dirigidos a Tel-Aviv, ontem, anuncia o correspondente americano. Um escapou, acabou caindo, e matou sete pessoas. A água fora cortada no Kwait, a alimentação é escassa. Há mulheres e crianças mortas pelas ruas de Bagdá, afirma o correspondente francês. Choca-se com as imagens precisas dos ataques. Câmaras fixas dentro dos aviões, simulação de alvos. Não parecem reportagens, mas filmes de guerra editados. O Iraque tem esconderijos subterrâneos que não poderão ser atingidos, mostra a BBC. Soldados americanos são capturados e torturados. A fábrica de armamentos bombardeada, segundo jornalistas ingleses e franceses, era, na verdade, de leite em pó. O parlamento alemão estuda novas leis contra a venda de armas químicas ou tecnologia nuclear. Du acordara em pânico, de novo, e lhe contara que durante toda a adolescência, anos depois de terminada a guerra, dormia sempre com um par de botas e o casaco grosso ao lado da cama, caso soasse algum alarme e tivesse de sair correndo. Da varanda que a avó mandara fechar com vidros viu a casinha de madeira em chamas que subiam altas, soltando uma fumaça preta, lá no fim da ruazinha de cascalho. Ardeu menos de meia hora. A professora negra que fora trazida num carro da polícia pôs-se a chorar, sentada numa pedra em frente ao entulho. Coitada, estava para se aposentar, disse a empregada. Du revolvia-se, entre pesadelos. De madrugada, sem poder conciliar o sono, levantou-se, colheu na estante de poesia de Du um volume ao acaso. Safo. O pai lhe estendera um maço de papéis manuscritos, grego e português. Poemas de Safo e Alceu, que ele mesmo havia copiado na mocidade. Foi lendo os poemas lentamente, ouvindo o ruído da água a correr. Em cima de dois tijolos, amiudada pela corcunda, a avó se esticava para alcançar o fundo do tanque. A letra caprichada do pai. Procura o poema que tanto a emocionada naquela tarde. Lê, agora em francês, tu n’a pas de part aus roses de Piérie, ton âme envolée errera parmi les morts obscurs. Por vingança ou compaixão escreva Safo estes versos? A errância dos seres humanos, o destino obscuro de algumas mulheres. Vidas anônimas, mortes anônimas. Guardou as folhas e, ao passar pelo tanque, ouviu, sem que a avó tivesse dito qualquer coisa, estuda, minha filha, estuda para seres alguém. Compreende agora o que é ser alguém, é estar no mundo e compreendê-lo. Então, é assim. Foi para o jardim pequeno em frente da casa, perto dos três pinheiros altos que aparavam o vento e a poeira que vinha do descampado em frente. Ficou aspirando o cheiro das folhas agitadas, contemplando as luzes que iluminavam a noite no horizonte. O calor colorido que vinha do Bairro dos Bancários. Amanhece. Uma luz rala vai cobrindo os prédios. O vento continua a agitar os lençóis brancos dependurados nas janelas do pátio.

 

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Discutira com Du e saíra abruptamente da Literaturhaus, na Fasanenstrasse. Voltara para ver o noticiário na televisão, cheio de novas revelações. O Libération sofreu um atentado, o bunker em que Saddam se esconde foi construído com a ajuda da tecnologia alemã, há políticos envolvidos, tropas russas se deslocarão para a frente báltica até o começo de fevereiro. Protestos. A Cruz Vermelha publica um anúncio, um menino sem rumo faz um enorme esforço para carregar nos ombros a trouxa de pano com seus parcos pertences, pisando o entulho de uma guerra qualquer, obrigado a debandar. He got in the way of someone’s war. Cada vez aparecem mais bandeira brancas nas janelas, enquanto o governo continua insistindo para que não haja manifestações antiamericanas. Grupos de estudantes se reúnem nas esquinas com faixas e tambores, fazendo alarido. Muitas lojas e empresas estão protegidas pela polícia. A Maison de France foi inteiramente cercada por um madeirame, uma elegante loja de móveis escreveu em letras enormes em todas as suas vitrines, não à guerra, em várias línguas, na Savignyplatz. A igreja do bairro organiza reuniões e também estende panos brancos na entrada. A Gedächtniskirche está rodeada de faixas, iluminada por centenas de velas. Os estudantes lá se reúnem todas as noites. A segunda casa que tiveram em Curitiba ficava no alto, numa esquina. Ouviu de longe o canto, avistou as pequenas chamas acesas envoltas em papel branco. A procissão foi se aproximando até parar no cruzamento. Ficou espiando por detrás dos pinheiros. Um coroinha depôs o banquinho de madeira que trazia na frente de uma mulher toda de preto. Ela subiu e começou a cantar, enquanto desenrolava lentamente um pano branco onde ia aparecendo um rosto pintado, encimado por uma coroa de espinhos. Correu para a mãe, na cozinha. É o canto da Maria Madalena, respondeu. Maria Madalena. Voltou a se esconder atrás dos pinheiros. Ela girava o corpo, mostrando aquele rosto ensangüentado para todos os lados. Teve medo. Quando terminou de cantar, desceu do banquinho que o coroinha pôs-se a carregar e todos continuaram a marcha lente, passando pelo lado da casa, subindo a rua e deixando atrás o murmúrio das rezas. O cheiro das velas, de mistura com o cheiro acre dos pinheiros, invadiu suas narinas. Correu para o pai, que marcou no evangelho a parte que ela deveria ler, que olhasse os mapas da época, era muito bons. Era uma Bíblia muito velha e cheia de anotações em vermelho, azul e preto. A caligrafia ordenada do pai no papel-de-arroz fino e já amarelado. Algumas partes havia retraduzido. Viu na primeira página o nome do pai, na segunda, a letra infantil de Carlos. Pôs seu nome na terceira página.

 

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Amanhece. O pátio está silencioso. A mãe turca do apartamento de baixo grita com o filho. Um bando de pássaros pequenos esvoaça entre os galhos da árvore, chilreando. Mostram na televisão as aves pesadas, mal podendo nadar, o litoral do Kwait tomado pelo petróleo. A agonia do imenso pássaro contorcendo-se para se livrar daquela veste negra e pegajosa, um outro, na impossível tentativa de sair do mar, pesado, afundando. Guerra pura, dissera o filósofo francês na televisão. Guerra que só pode acontecer com a tecnologia do nosso tempo. Como todas as guerras. Ontem, protestos massivos contra a guerra em Bonn, Tóquio e Paris. Os jornais trazem artigos pró e contra a propaganda e a venda de armas no mundo todo. Muitos países, agora, querem comprar o patriot, o míssil que consegue alcançar no ar os demais projéteis. Custa 800 milhões de dólares cada. Viu os anúncios nas revistas. Guerra pura, como num fliperama. Fizera café. Du deixara um bilhete na cozinha, Herr Schwarz kommt. Virá de novo consertar a ducha. Haviam ido passear no Botanischer Garten, por entre árvores e folhagens tropicais, o ar umedecido pelo vapor da água corrente. Na Gewächshaus, a Casa de Vidro, ficara maravilhada com os cáctus. O esplendor da vida na aridez da areia e das pedras. A estufa emanava um olor de seiva quente, como o obscuro miasma de uma floresta selvagem. Depois, voltara ao museu Dahlen, rever a luz nos quadros de Rembrandt. Ao retornar, os saltos das botas ecoavam no escuro. Sentiu um arrepio de frio e enlaçou o braço de Du, sem encontrar conforto. Os sinais vinham anunciando uma despedida que não previra. Tarde da noite vira pela televisão novas manifestações pela paz em Washington, Bonn, Töquio, Colômbia. O óleo continua escorrendo no Golfo, Tel-Aviv é ameaçada por bombas de gás. De que modo farão parte do futuro os crimes da atualidade? Têm ânsias de vômito, aparecem as alergias. Resolve marcar a passagem de volta para São Paulo. O romance está quase no fim. O romance que se prometera escrever nesses meses em Berlim. Sente uma extrema liberdade confundida com uma solidão profunda. Nela se aconchega. Andava pela Paulista, distraída, em direção à Livraria Cultura. A mãe morrera na semana anterior. De vez em quando ouvia ainda sua voz ao telefone, no desejo que a acompanharia vida afora, estás feliz? Ao passar em frente ao Trianon, o colegial pulara para a base da enorme escultura de Anhangüera, abraçando-se ao torso do bandeirante. Pusera a mão espalmada na testa, como um marujo a se proteger da luz, para enxergar melhor ao longe. O grupo de colegas embaixo fazia uma enorme algazarra. Avistou-a e gritou olhem lá, passando, um brontossauro azul! Quem vai beijar aquele brontossauro azul que vem vindo lá, quem? Riram. Ao passar diante do vitrine da agência de viagens, olhou-se. Estava de azul. Gosto desta tua blusa azul, dissera a mãe. Um brontossauro, sim, deslocado no tempo e no espaço. As palavras eram o seu lar neste mundo, lugar de reconhecimento e aprendizagem. Nesta vida se tem de aprender tudo, até a morrer, dissera Gertrude Stein. A ser feliz. A avó, já bem corcunda, sentada na escada da lavanderia, lhe confessara, entre um suspiro e outro, nessa vida, minha filha, credo, só uma vez, murmurou, cheguei perto de ser feliz. Era um marinheiro cheio de histórias, trazia perfumes de longe. Pequi. Suspirou e calou-se à aproximação da mãe. Um dia lhe contara a história de São Miguel, em Florianópolis. Viera de lá, como o avô. Falava na família do avô, mas não na sua. Guardavam os dobrões de ouro dentro de tachos de ferro dentro das largas paredes das casas. Os escravos da família de teu bisavô, quando da Abolição, permaneceram trabalhando por salário e ganharam sobrenome. Tem muito negro com teu sobrenome por lá. No final de cada conversa, a avó repetia, estuda, minha filha, estuda para seres alguém. Ajeita o maço de folhas, a escrita parece ser uma extensão da mão. A pena a conduzira até aqui, preenchendo a brancura ilimitada do papel. Escrever é como viajar. Tinha uma caneta tinteiro que a mãe lhe dera. Os colegas, no grupo, ainda escreviam molhando a pena no tinteiro enfiado num buraco da carteira. Um vasinho de porcelana branca vazando uma tinta azul muito rala. As penas faziam um barulho ríspido ao sulcar o papel, diferente do barulho que fazia sua caneta. Da carteira, na frente, ouvia fascinada o ruído das penas. Pediu insistentemente que a mãe lhe comprasse uma caneta daquelas, para experimentar. Ela acabou cedendo e trouxe-lhe do centro uma caneta de madeira, verde, com uma pena e algumas folhas de mata-borrão. Enfiou a penas na caneta e arrumou um canto da mesa de jantar para ela. Cuidasse do tinteiro, podia entornar. Molhou a pena na tinta e começou a riscar o papel. A letra saía diferente, a pena parecia não obedecer. A escrita se fazia por si mesma. Ficou encantada, raspando o papel branco durante muito tempo. Sem saber como, a cadeira virou, caiu contra o balcão de madeira escura que ficada atrás da mesa, protegendo a pena, que acabou se enfiando na palma da mão, quase atravessando-a. Muito trabalho e dor para arrancá-la da carne. A palma ficou manchada com um ponto de tinta preta, como uma tatuagem. Quando crescer, vou ser escritora, proferira. O pai a olhara de soslaio. Uma tarde, passando pela Praça da República, num sobressalto, de relance, viu num quiosque de livros usados Aritmética Progressiva. Voltou nos próprios passos e parou diante da banca. O título cresceu enorme na sua frente. Pegou o livro. A mesma capa azul dura. Aritmética Progressiva. Antônio Trajano. 85ª edição completamente revista e atualizada. 1955. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves. Abriu numa página, Operações Fundamentais, e fechou-o imediatamente. Olhara muitas vezes para o pai, o que será que estão querendo estes olhinhos negros?, tentando compreender seu universo dividido entre som e silêncio, duas culturas, duas famílias, a rejeição à violência e a impossibilidade da doçura, a desejada placidez e o constante atrito com o cotidiano, o desconforto pelas duas filhas já na maturidade, num acontecimento tardio e desprogramado, que lhe impusera novas e indesejáveis obrigações, desviando-o da dedicação ao estudo. Neste mundo9, minha filha, tudo é maia, ilusão. Tudo aparência, criação de nossa mente. Representação.

 

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O dia amanheceu ensolarado, mas logo começaram a cair tenros flocos de neve, enbranquecendo o chão. Amanhã estará de volta a São Paulo. A televisão continua, agora com menos insistência, a noticiar a guerra. Moral e humanitarismo são das duas palavras que mais ouve na televisão alemã. O canal francês, Antenne 2, põe no ar as dúvidas que a BBC levanta sobre as verdadeiras causas do óleo que se espalha no Golfo. Os Estados Unidos teriam bombardeado alguns oleodutos. O Iraque ameaça Israel com bombas químicas. Ao passar pela Fasanenstrasse, vira os vidros do Hotel Kempinsky partidos. Em frente à Sinagoga, a polícia havia levantado uma barricada. Os carros de polícia passavam silenciosos, mas em caravana, pela Ku’damm. Na Gedächtniskirche as faixas tomam a torre azul lateral, os estudantes permanecem acampados, em vigília, rodeados pelas chamas das velas. Mas a poucos quarteirões dali nada detém o esporte nacional predileto do momento, as liquidações. Algumas lojas são quase invadidas por uma multidão de pessoas que quer chegar antes e agarrar a melhor oferta. De manhã cedo formam-se filas enormes diante das lojas. Na estação de metrô Kurfürstendamm, às cinco hortas, um islamita tirou os sapatos, estendeu um pano e pôs-se a orar, voltado para a Meca. Um policicial imediatamente postou-se às suas costas, para que não fosse molestado ou ameaçado. O ano avança em crises. O General Schwarzkopf dissera na tevê que desde a exibição militar de abril de 1983, feita por Hussein para os olhos ávidos de todos os países convidados, vinha preparando essa guerra. The European confirma o fato. Firmas alemãs cederam a tecnologia militar para o Iraque, também francesas. E brasileiras. O Spiegel descobriu que firmas americanas venderam armas para o Iraque. Na última noite em Berlim viu pela televisão o show do travesti Mary, a que não faltou a clássica imitação de Carmem Miranda, de falsa baiana e frutas tropicais na cabeça. No final, despia-se no ar, deixando à mostra um comovente torso de menino. Na foto ampliada e colorizada dos dois anos, a menina, cabeça inclinada para a direita, olhar melancólico na testa larga, parece formular uma pergunta que é ao mesmo tempo uma resposta. É como se repetisse baixinho, então, é assim. Como se cada vivência inaugurasse uma aprendizagem e a vida fosse a relembrança de algo conhecido e há muito esquecido. De manhã, antes de embarcar, passeara com Du às margens do Rio Spree, congelado, de braços dados. As gaivotas, olhar irrequieto, e intrigado, parecia, imóveis no gelo acumulado sobre as muretas. Fez a mala, arrumou na valise a pasta onde reunira as folhas em que fora deixando seus rastros mais íntimos e fictícios. Terminara o romance. Pusera num envelope as poucas cartas recebidas. Pegara toda a correspondência da mãe e amarrara com uma fita branca. Fizera um pacote junto com as fotos do avô, da moça, era muito bonita, teu avô gostava muito dela, muito, e nunca mais abrira o pacote. Olhara em volta lentamente, não voltaria mais ali. 5 de fevereiro de 1991, pensou. Muita neve, o avião custou a decolar. Passou por uma revista completa antes de embarcar, o aeroporto de Frankfurt estava sob vigilância. Tivera de deixar o gravador. O vôo 749 da Varig veio repleto de jovens casais vindos de Israel com destino a Buenos Aires, crianças cansadas em grande indisciplina pelos corredores. Sentiu falta de ar, pediu água. Tudo parecia escurecer à sua volta. Em São Paulo, anos atrás, fora andar no Parque Ibirapuera em companhia de amigos. Sugeriu entrarem no Planetário. Quando tudo escureceu e restou só um ponto de luz redondo no centro do teto, perdeu a respiração. Não conseguia se libertar de uma sensação contínua, deslizava por um longo corredor escuro em direção a um ponto de luz, sem parar. Sufocava. Durante três dias e três noites ele a embalara, passeando pela casa de madeira avarandada. Reviu o rosto triste de Du do outro lado do vidro, no aeroporto. Afagou no bolso o diminuto brontossauro de estanho e mentalmente começou a lhe escrever uma carta, despedindo-se.

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Julho 2000

© 2000 - Sônia Régis
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