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eBookLibris

Galileu Garcia

B A R Z A C

—Ridendo Castigat Mores—


 

Barzac
Galileu Garcia
Edição
Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook
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Fonte Digital
RocketEdition de 2.000 a partir de html em
www.jahr.org
Copyright ©
Autor: Galileu Garcia
Edição eletrônica:
Ed. Ridendo Castigat Mores
(www.jahr.org)
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947-2002)

 


BARZAC
Peça em um ato

Galileu Garcia


 

APRESENTAÇÃO

Galileu Garcia sempre surprende. Conheço, há muitos anos, o cineasta, escritor, poeta. Sempre percebi sua admiraçào por Shakespeare, mas não observei tanto. Esta peça, “BARZAC”, não fala sobre a Dinamarca de Hamlet, nem sobre a Veneza de Otelo. É a nosso respeito, Brasil. Como em Shakespeare, há tristeza e alegria, amor e ódio, violência e remorso, vingança, prazer, dor, suicídio enfim. O velho Shake se orgulharia de seu discípulo.

Nélson Jahr Garcia


B A R Z A C

PERSONAGENS

OS PACTÁRIOS

ZACARIAS, o ZACA
TENÓRIO
BERTO
ZEQUINHA
DONA SANTA
SULAMITA, a SULA
AMORIM
PADRE
RODRIGÃO
MARINA
INFILTRADO
ARMANDO

E MAIS:

MÃE
LENÇO NO PESCOÇO

 


B A R Z A C


 

ESCURO TOTAL.
CONTRALUZ ACENDE EM RESISTÊNCIA E SILHUETA. HOMENS E MULHERES MALTRATADOS (sujos, feridos, rasgados). LUZ AZULADA DE TELEVISOR LAMPEJA SOBRE AS PESSOAS. ELES CONVERSAM COM FRASES CURTAS, INTRIGADAS...

VOZES
Por que fomos juntados na mesma cela?
O major mandou buscar a televisão.
Quer todo mundo vendo o jogo.
Ah, hoje nós jogamos.
Nós quem?
Nós, o Brasil, companheiro.
Olha o novo hino nacional.

O QUE FALOU VAI AO TELEVISOR, AUMENTA O VOLUME: (OS MOMENTOS QUE ANTECEDERAM O JOGO BRASIL X ITÁLIA, EM 1970 CAMPEONATO MUNDIAL). PALMAS, GRITOS, FOGUETÓRIO. EM SEGUIDA A ABERTURA DA MARCHA “PRA FRENTE, BRASIL”.

MARCHA, CORO
90 milhões em ação...
Prá frente, Brasil...
Do meu coração...
Todos juntos, vamos...
Prá frente, Brasil...
Salve a seleção...
De repente, é aquela...
Corrente prá frente...
Parece que todo Brasil...
Deu a mão...

O MESMO PRESO DIMINUI O SOM, A MARCHA FICA EM BG.

VOZES
Pelo menos estamos sossegados.
Sem choque e pau de arara.
Os torturadores são patriotas.
E nós descansamos...
Soldados e tiras do DOI-CODI
De olho na bola.
A Itália vai perder a guerra!
Bom a gente se reunir sem tortura.
Sem medo.
Vamos marcar um encontro assim.
Prá quando?
Quando der.
Daqui a algum tempo.
Se a ditadura acabar.
As ditaduras sempre acabam.
21 de Junho, qual é o santo de hoje?
A gente se encontra num 21 de Junho.
Do ano que for possível.
Contar como a vida nos tratou.
E como tratamos dela.
Se demorar, ninguém se reconhece.
Combinamos uma senha.
Chegar cantando um hino.
Canção revolucionária.
Música engajada.
Nesse dia fechamos prá balanço!
Sugestão!
Depressa, o jogo vai começar.
Quem morrer antes, não precisa aparecer.

RISOS ABAFADOS.

RUÍDOS DE FUTEBOL: INÍCIO DE TRANSMISSÃO.

ESCURECIMENTO.

NEON COM O NOME “BARZAC” ACENDE, VISTO ATRAVÉS DOS CAIXILHOS DE UMA JANELA. O BAR BOÊMIO SE ILUMINA AOS POUCOS. AO FUNDO: O BALCÃO E A PORTA QUE LIGA À COZINHA. À ESQUERDA: DOIS JANELÕES E A PORTA DE ENTRADA, ONDE ESTÁ FIXADA UMA SINETA. À DIREITA: O WC, CUJA JANELA É VAZADA E DÁ PARA A PLATÉIA. NUM CANTO, PRÓXIMO DO PÚBLICO, O SETOR DE SOM: PIANO, BATERIA, BAIXO ACÚSTICO, MICROFONE, FITAS E DISCOS. AS MESINHAS ESPALHAM-SE CONVENIENTEMENTE. EVENTUAL: MEZANINO, LIGADO AO SALÃO POR UMA ESCADA.

ZACARIAS VEM DO FUNDO, TIRA O AVENTAL DE BARMAN. PEGA UMA PLAQUETA “FECHADO PARA BALANÇO”... E PENDURA NO LADO DE FORA DA PORTA DE ENTRADA. VOLTA AO BALCÃO, TOMA UM DRINQUE SECO, LIGA O TELEVISOR COM CONTROLE REMOTO, NA ABERTURA DO CAMPEONATO MUNDIAL DE FUTEBOL DE 1990, EM ROMA.

SOM DO LOCUTOR DE TV
Abrem-se as cortinas do Estádio de Roma, na Itália. Começa outra etapa do Mundial de Futebol de 1990, caros ouvintes. Hoje, 21 de Junho, 17:00 horas o mundo espera a entrada em campo...

ZACARIAS ABAIXA O SOM E APURA OS OUVIDOS. ASSOBIO, LÁ FORA, AUMENTA DE VOLUME, APROXIMANDO-SE.

TENÓRIO (assobio)
De pé, ó vítima da fome... De pé, famélicos da terra... Se a ígnea razão ruge e consome...

A SINETA TOCA.

A PORTA É EMPURRADA. TENÓRIO APARECE.

TENÓRIO (canta)
Cortai o mal bem pelo fundo...De pé, de pé, não mais senhores. Se nada somos em tal mundo...Sejamos todos produtores!

TENÓRIO E ZACARIAS (cantam abraçados)
Bem unidos façamos... Nessa luta final...
De uma terra sem dono... A Internacional.

ZACARIAS (emocionado)
Velho Guerreiro! O primeiro a cumprir a tarefa!

TENÓRIO
Zacarias! O velho Zaca os bons tempos. Você está praticamente o mesmo...

ZACARIAS
Sempre generoso, Tenório. Vinte anos depois ninguém é o mesmo.

TENÓRIO (admirando o bar)
Sim Senhor... Barzac, o bar do Zacarias.

A SINETA TOCA. BERTO APARECE, TOCANDO LA MARSELHAISE NUMA GAITA-DE-BOCA E SEGURANDO UMA MALETA DE COURO.
SOM DA GAITA-DE-BOCA
Allons enfants de la Patrie. Le jour de gloire est arrivé. Contre nous, de la tyrannie... L’étandard sanglant est levé..

BERTO (expansivo)
O trecho que mais amamos!

BERTO, TENÓRIO, ZACARIAS (uníssono)
Aux armes, citoyens... Former vos bataillons...
Marchons, marchons... Qu’un sang impure... Abreuve nos sillons...

EFUSÃO, ABRAÇOS.

BERTO
Tenório, Zacarias!

TENÓRIO
M’siê Berto, o brasileiro seqüestrado pela arte francesa. Bom vê-lo aqui.

BERTO
Vim de Paris para o nosso 21 de Junho... só possível depois de duas décadas.

ZACARIAS
Sempre é tempo, mon ami.

SINETA TOCA.

PORTA É EMPURRADA. MÃO NEGRA MOSTRA GRAVADOR PORTÁTIL LIGADO NO JOGO BRASIL X ITÁLIA, DE 1970. ZEQUINHA FAZ ENTRADA TRIUNFAL.

ZEQUINHA
Olhaí, galera, o esquadrão de ouro, a quem devemos este encontro.

TENÓRIO
Companheiro Zequinha!

BERTO
O camponês do grupo!

ZACARIAS
Voltou prá lavoura?

ZEQUINHA
Sou motorista de caminhão, rodo pelo Brasil que conheço como a palma desta mão negra.

GARGALHADA

ABRAÇOS, RISOS.

A SINETA TOCA.

A PORTA É ABERTA DE SUPETÃO. MULHER SETENTONA ENTRA MARAVILHADA. LEMBRA-SE DA SENHA VOLTA DOIS PASSOS, DEPOIS AVANÇA.

DONA SANTA
Quero a aleluia no Brasil... Quero que a justiça...
Venha em meu país... Quero a liberdade...
Quero tudo de bom... Quero ser a amizade...
Quero o amor prazer... Quero a nossa cidade...
Sempre ensolarada... Os meninos e o povo no poder... Eu quero ver...

TODOS MANTÊM SILÊNCIO RESPEITOSO.

DONA SANTA (com simplicidade)
Se não tivesse conhecido vocês, nunca entenderia esta canção... (pausa) Será que vou reconhecê-los?

TENÓRIO (dá beijo elegante na mão de DONA SANTA) Dona Santa...

DONA SANTA
Ah... o senhor é o Tenório. Era conhecido como o guerreiro.

TENÓRIO
Hoje um guerreiro aposentado... às suas ordens.

DONA SANTA (tenta reconhecer)
Zacarias... professor Berto... Ah! o Zequinha... Só nós?

A SINETA TOCA.

SULA EMPURRA A PORTA, ENTRA, COMEÇA A CANTAR.

SULA
Quem sabe faz a hora... Não espera acontecer...

TODOS (acompanham Sula na canção)
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção...

ZACARIAS (num arroubo)
Sulamita, querida Sula, a brava israelita!

BERTO (emocionado)
Quanto tempo, querida. Vinte anos de saudade.

SULA, DESVIA DELE E JUNTA-SE AO GRUPO

TENÓRIO
Sula! Sula!

ZEQUINHA
A guerrilheira!

DONA SANTA
Continua linda...

BEIJOS, ABRAÇOS, CONFRATERNIZAÇÃO, CARINHO ESPECIAL.

A SINETA TOCA.

A PORTA É ABERTA COM ÍMPETO. AMORIM ENTRA, USA UM JORNAL DOBRADO COMO BATUTA.

AMORIM
De pé, ó vítimas da fome...De pé, famélicos da terra.

ZACARIAS
Não vale.

TENÓRIO
Essa eu já cantei.

ZEQUINHA
Escolhe outra.

AMORIM (contrariado)
Logo comigo! (Pensa e anuncia triunfante) Bandiera Rossa!

A ESCOLHA É APLAUDIDA. TEATRAL, AMORIM VOLTA PARA A RUA E FAZ A REENTRADA.

AMORIM
Avanti popolo... Alia riscossa... Bandiera rossa...
Bandiera rossa... Avanti popolo... Alia riscossa...
Bandiera rossa... Trionferà... Bandiera rossa...
La trionferà... Viva il comunismo... E la libertà
Bandiera rossa... La trionferà... Viva il comunismo...
E la libertààà...

TODOS
Amorim, Amorim, Amorim!

TENÓRIO
Além de fanático, barítono.

A SINETA TOCA.

MARINA SURGE CANTANDO, DE MANEIRA GAIATA, COM UM INCENSO ACESO E UMA PAPELETA.

MARINA
Hare Krisna, Hare Krisna... Krisna, Krisna...
Hare, Hare... Hare Ramã, Hare Ramã...
Hare, Hare...

TODOS FICAM CONFUSOS.

MARINA (compenetrada, lê o folheto)
Ofereço minha reverência a Sri Krisna Caitanya, Prabhu Nitayãnanda, e não sei mais o que lá! (Joga fora o papel, mostra o incenso). Esses carequinhas do Hare Krisna me encheram tanto o saco! Comprei o incenso e fiquei com essa xaropada na cachola.

SULA (correndo para Marina)
Marina, ainda maluquinha?

MARINA BEIJA SULA, CIRCULA COREOGRAFICANENTE E ENTREGA O INCENSO A ZACARIAS.

MARINA
A atrapalhada de sempre. Pra quem não se lembra: Marina Teixeira Longobardi, casada, catolicona e completamente a-política. Continuo grossa e ainda digo que eu si fiz por si mesma... (RI)

REAÇÕES ALEGRES DE TODOS. SINETA TOCA. ENTRAM RODRIGÃO E PADRE.

PADRE
Chegamos juntos...

RODRIGÃO
...cantamos juntos.

PADRE e RODRIGÃO
Pode ir armando o coreto...preparando aquele feijão preto... que eu tô voltando. ...Dá uma geral...Faz um bom defumador... Encha a casa de flor... que nós tamos voltando...

ABRAÇOS, CUMPRIMENTOS.

ZEQUINHA
Padre e operário juntos.

TENÓRIO
Opção pelos pobres?

DONA SANTA
Padre Carlos está elegante de clergyman.

PADRE
Hábito bonito, faz padre bonito.

BERTO
Finalmente, alguém com calo na mão.

PADRE (indicando)
Trouxe o representante do operariado.

RODRIGÃO
E eu, o emissário da fé.

PADRE
Deus abençoe todos.

ZACARIAS
Padre, o Barzac é a sua paróquia.

MARINA
Use e abuse, ad eternum e amen. Dómine Vobisco, per saecula saeculorum, alea jacta est que dura lex sed lex.

EFEITO DE PASSAGEM DE TEMPO, LUMINOSO OU APENAS CÊNICO. OS PACTÁRIOS ENTROSADOS NO SALÃO ESTÃO À VONTADE, EM GRUPOS, CIRCULANDO. ALGUNS JÁ SERVIRAM-SE DE BEBIDAS. MARINA, MEXE NOS INSTRUMENTOS DE MÚSICA. DONA SANTA FAZ TRICÔ. A SINETA TOCA. INFILTRADO ENTRA. A FIGURA GROTESCA E SOFRIDA PROVOCA SILÊNCIO. TERNO MAL AJUSTADO, BARBA POR FAZER, MALETA 007 GASTA.

INFILTRADO (hesitante)
Eu estava com vocês em 70.

TENÓRIO
Mas era um policial infiltrado.

OS PACTÁRIOS AVANÇAM, EM DEFENSIVA.

INFILTRADO
Perfeitamente, senhor.

AMORIM
Logo, errou de endereço,

INFILTRADO
Entendo, mas por favor, me deixem ficar.

SULA
Por quê?

INFILTRADO
Quero purgar meu pecado e homenagear um parceiro de vocês. (Pausa) É importante o que tenho a contar.

TENÓRIO (consultando o grupo)
E então?

BERTO
Para mim, tanto faz.

SULA
Eu me oponho.

PADRE
Ouvir é sempre bom.

DONA SANTA FAZ MUXOXO DE DÚVIDA.

AMORIM (inflexível)
Aqui acontece uma confraternização e ex-companheiros, irmãos de fé na luta revolucionária. Fizemos um pacto solene para um encontro memorável! Por isso, voto contra!

RODRIGÃO
A maioria resolve.

MARINA
O coitado tava junto quando decidimos, tem direito. A ferro e fogo eu também não devia estar aqui. Não tenho mais nada com política. (À parte) Graças a Deus...

TENÓRIO (relaxando a intransigência)
Então fica.

O INFILTRADO ARRASTA-SE ATÉ UMA MESA AFASTADA.

BERTO
Todos se apresentaram, menos o dono a casa.

AMORIM
Do Barzac a palavra, ou melhor, a canção do Zaca!

ZACARIAS (levado por Sula e Marina)
Não sei cantar, não tenho voz.

AMORIM
Mas tem quê!

ZACARIAS
Poesia vale?

TENÓRIO
Claro.

ZACARIAS
Então, vai lá!
“Saudades do tempo... Do tempo passado...
O tempo feliz... Que não volta mais...
Deus queira que um dia... Eu encontre ainda...
Aquela inocência... Feliz sem saber...
Mas hoje que sei... De toda verdade...
Já não acredito... Na felicidade...
E quando eu morrer... Então, outra vez...
Pode ser que eu seja... Feliz sem saber...”
Dante Milano, poeta carioca. “Poesia grave e meditativa” definiu Manuel Bandeira

ZEQUINHA
Triste demais.

SULA
Jururu para o meu gosto.

MARINA (cantarolando)
“Tristeza não tem fim, felicidade, sim”.

RODRIGÃO (desviando o assunto)
Belo boteco.

ZEQUINHA
Bom negócio?

ZACARIAS
Sem queixa.

PADRE
Casadão, mil filhos.

ZACARIAS
Solteirão, sem prole.

SOM
Por causa de Cleusa?

ZACARIAS (sente o golpe)
Por causa da vida.

TENÓRIO
Cleusa, bela companheira. Bom se estivesse viva.

AMORIM
Nunca desvendou o mistério?

ZACARIAS ABANA A CABEÇA.

SULA
Mas tentou?

ZACARIAS
Claro.

TENÓRIO
O desaparecimento de Cleusa foi o começo do fim. A queda de mais de 100 militantes.

AMORIM
Presos, mortos, desaparecidos.

SULA (insistente)
Você era a ligação entre os vários grupos armados. Não levantou nenhuma pista?

ZACARIAS
Procurei muito, mas nada descobri.

DONA SANTA (sem largar o tricô)
Ela estava mesmo grávida?

ZACARIAS
ZACARIAS DEIXA O GRUPO, SOFRIDO. TENÓRIO FAZ SINAL PARA SE MUDAR DE ASSUNTO.

BERTO
Quem diria, hein? Vinte anos.

DONA SANTA
Parece que foi ontem.

SULA
Para mim, uma eternidade.

PADRE
Nem acredito.

MARINA
Gostoso se encontrar assim, todos vivos.

AMORIM
Engraçado seria se encontrar, todos mortos!

RISOS. MARINA FEZ GESTO DE REPÚDIO À PIADA.

RODRIGÃO
No DOI-CODI éramos mais de 40. (Olha em volta). Aqui quantos somos?

SULA (olha para o Infiltrado)
Por enquanto, onze. Mas o Armando virá, e seremos doze.

MARINA (imitando caipira)
E... fumo morreno, fumo morreno e fiquemos eu...

ZACARIAS
Um estudante de 68 resumiu tudo: “Nós estávamos dispostos a perder e perdemos”.

RODRIGÃO
A esquerda sempre mais preparada para morrer do que para matar.

SULA
Uma minoria audaciosa, mas impotente.

BERTO
Os preciosismos que a gente usava e abusava!

ZEQUINHA
“O socialismo avança em todo mundo”.

RODRIGÃO
“O capitalismo vive os derradeiros dias, vítima das próprias contradições.”

TENÓRIO
“A análise política da realidade constata o acerto do Comitê Central”.

SOM
Ah... os comitês, sempre infalíveis.

AMORIM
Eu gostava mais das sacadas anarquistas. (t) Com licença do sacerdote: “a solução é enforcar o último militar na tripa do último padre”.

RISOS.

O PADRE ACHA GRAÇA. ZEQUINHA BRINCA COM O GRAVADOR, LEVANTA E ABAIXA O VOLUME DA GRAVAÇÃO DO JOGO BRASIL X ITÁLIA.

ZEQUINHA
Sem a seleção de futebol não teria havido aquela loucura federal que começou no dia 21 e virou carnaval até o dia seguinte.

MARINA
Pausa nos espancamentos estúpidos, torturas.

ZACARIAS
“Afogamentos”, (gesto) “telefones”, paus de arara, choques elétricos. (Lembrando) Dois dias de sossego.

DONA SANTA (parando o tricô)
E aquele Major resolveu nos dar lição de civismo.

BERTO (lembrando)
Fez o soldado pedir um televisor emprestado na vizinhança.

AMORIM (lembrando)
Reuniu, como ele dizia, “a putada toda”.

MARINA (lembrando)

O DISCURSO DO MAJOR É RECONSTITUIDO POR TODOS, NUMA INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICA / DEBOCHADA / CANASTRA. ZEQUINHA POSICIONA A FITA DO GRAVADOR E TOCA A MARCHA “PRA FRENTE, BRASIL”.

ZACARIAS (imita)
Que pelo menos uma vez...

TENÓRIO (imita)
...os seus corações vibrem...

BERTO (imita)
...junto com o coração do nosso povo.

ZEQUINHA (imita)
...torcendo pelo esquadrão verde-amarelo...

DONA SANTA
...que com a ajuda de Deus...

SULA (imita)
...e empurrado por 90 milhões de patriotas...

AMORIM (imita)
...há de chegar mais vezes ao gol inimigo...

PADRO, RODRIGÃO, SULA (imitam)
...e mostrar ao mundo o valor do Brasil!

MARINA (imita)
Ouviram, seus merdas?

TODOS
— Brasil! Brasil! Brasil!

PALMAS, RISOS, ASSOBIOS.

MARCHA “PRA FRENTE, BRASIL”, NO GRAVADOR DE ZEQUINHA, VAI AO AUGE. DEPOIS É DESLIGADA.

BERTO (Retira jornal antigo da pasta e lê)
Escutem, jornal da época! No Pasquim, a dica de mulher era Leila Diniz, a musa dos intelectuais. Cassius Clay: “sou um verdadeiro herói”. Embaixador alemão foi solto e 40 terroristas libertados em troca do diplomata, chegam a Argel. Além do bicho, cada jogador da seleção ganhará uma agência da loteca, um fusca do Prefeito de São Paulo e a gratidão eterna do povo...

MARINA (cantando)
“Olê, olá... o Brasil tá botando prá quebrá”. (t) O Presidente da República... era o Médice (bate numa madeira com os nós dos dedos) que arriscou 4 x 1 numa lista de palpites.

SULA (lembrando-se)
No DOI-CODI também teve bolão. O carcereiro pôs o mesmo, todos acharam exagerado.

PADRE (imita)
“O Presidente disse 4 x 1, vou na dele. Chefe não dá palpite, dá ordem”

DONA SANTA
Ganhou o velhaco.

RODRIGÃO
Não era tanto. Comprou um pacote de cigarro, nos deu de presente.

AMORIM (imita)
“Se tomarem o poder, contem comigo. Todo regime precisa de carcereiro”.

ZACARIAS
Um sábio.

MARINA
Pelamor de Deus, chega de saudades. Estou tinindo até prá saber o que aconteceu com cada um. (Vai até Dona Santa). Dona Santa, como a vida tratou a senhora?

DONA SANTA
Sempre bem. Só foi difícil naquele ano de 70. Como massagista eu cuidava da coluna de tanta gente... O meu nome estava na agenda de um cliente que foi detido. De repente eu estava presa, sem saber porquê.

MARINA (fazendo-se séria)
Sumário de culpa: apoio massagístico aos inimigos de Deus, da Pátria e da Família

DONA SANTA
E eu morria de medo, só de ouvir falar em política. Mas conheci vocês e tantos outros e... percebi que também eram gente! Fiquei horrorizada com as atrocidades. Não provaram nada contra mim, tiveram que soltar. Aproveitaram para ver se eu soltava “algum” (esfrega polegar e indicador). Além de tudo, corruptos!

SULA
O que a vida fez de você, Amorim?

AMORIM
O que faz a todo esquerdista conseqüente, que bebe na fonte pura do marxismo, sem o porraloquismo dos que brincavam de super-herói da revolução.

TENÓRIO
Sempre contra o movimento armado. Enfim, do grupo que preferia a cama, que é lugar quente.

AMORIM
Engajamento político não é coisa de conveniência, marxismo de boteco. Putaria de comunidades... Sem o povo não se faz Revolução!

BERTO
Enquanto o povo não vem (imita garçon) salta um slogan e duas frases-feitas! E de acompanhamento e um manifesto ao capricho!

AMORIM
Sem provocação!

MARINA
Sossega, leão... Uma curiosidade, Amorim, você casou?

AMORIM
Esse assunto não é pertinente.

MARINA
Sem me intrometer, parece que falta um rabo-de-saia na sua vida.

AMORIM
Ara...

TENÓRIO (rindo)
Calma. Vamos aproveitar o que nos une, não o que nos pode separar. E o nosso homem na França?

Na histeria do “Brasil, ame-o ou deixe-o” eu lecionava arquitetura, fui preso, cuspido da universidade e banido do país. Ainda leciono, sou professor na Europa, vou bem, obrigado. Sinto saudades do feijão, do carnaval e das praias. E de uma mulher...

SULA (desvia o olhar)
Está com você, Marina.

MARINA
Já tinha feito um treiler. Agora, o retrato de corpo inteiro: mãe de família, marido contador, firma própria, freguesia enóóórme! O Geraldo é craque em imposto de renda e ganha os tubos ajudando o cliente sonegar. O maridão me chama de “a primeira dama do lar” e sou feliz. Aquela prisão foi uma zebra, eu morria de medo e rezava escondida.

BERTO
E o Rodrigão?

RODRIGÃO
Dizem que virei marajá proletário, porque sou do ABC e monto automóveis. Especializado ganha bem. Tenho casa própria, apê na Praia Grande e filho estudando. Num ano me aposento.

AMORIM
Qualquer revolução atrapalharia essa vida mansa...

RODRIGÃO
O amigo é quem está dizendo

DONA SANTA
Durante o jogo um curioso perguntou pelo santo do dia

TENÓRIO
Esse um morreu. Não de curioso! De bala mesmo

MARINA
O padroeiro do 21 de junho, é um apagadão São Luiz Gonzaga, que só pensava em castidade. O dia 22, que foi emendado na comemoração, tem três santos.

DONA SANTA
Só uma equipe de santos para abrandar por dois dias a violência daquela prisão.

MARINA (conta nos dedos)
São João Fisher e São Thomas Moore, bispos inglêses. Henrique oitavo descartou a cara-metade para casar com um broto. Os padrecos foram contra e o rei cortou a cabeça dos dois. Eles viraram santos; o rei casou e foi feliz para sempre.

ZACARIAS
E o terceiro?

MARINA
São Paulino de Nola, francês. Largou a mulher e virou santo.

AMORIM
Vai ver era bicha...

MARINA
Ou um chato como você.

TENÓRIO
Não acredito em milagres, mas a verdade é que o futebol acalmou as feras e quebrou a rotina da tortura. Ninguém sofreu violência naqueles dias.

SULA
Eu sofri

ZACARIAS
Você nem assistiu o jogo, disso lembro bem

ZEQUINHA
Sula sempre foi radical, hoje seria xiita. (Lembrando) “Não assisto nem à força! Não faço arreglo com repressor”!

SULA
Mas sofri violência. (Pausa) Eu fui violentada, no sentido exato da palavra.

TODOS VOLTAM-SE PARA SULA. O INFILTRADO DENOTA INTERESSE.

SULA
No dia do jogo eu fui estuprada por um torturador.

LUZ GERAL DIMINUI, FOCO DESTACA SULA. OS OUTROS FECHAM EM SEMICÍRCULO.

SULA (como se estivesse revivendo)
Fiquei no cubículo perto da saída. Aquele torturador odioso, conhecido como Lenço no Pescoço, entrou. Que também detestava futebol, gostava do meu jeito. Tinha pena, mas nada podia fazer. Tesão à primeira vista quando me viu nua, sendo torturada. Mulher sempre é objeto. Em qualquer circunstância, o machismo é atroz. Ele avançou. Meu Deus, ele avança, eu estou sozinha! (Mãos crispadas. Cobre o rosto. Fica muda.)

BERTO
Não deu alarma, nem pediu ajuda.

SULA (volta ao presente)
Até hoje me pergunto por que fiquei tão passiva. Medo, pânico? Com semanas de prisão e muita tortura, você vira bagaço. Mas ainda estava nos meus limites. Nunca abri.

TENÓRIO
Você era um quadro da pesada, da ação armada. Até atiradora!

SULA
Pois fiquei à mercê de Lenço no Pescoço, sem reagir.

TENÓRIO
Por que ocultou o fato?

SULA
É que algo terrível aconteceu. (Pausa. começa reviver) Naquele clima sórdido, gritos, foguetes, irradiação histérica, cheiro de urina, de suor... Na cela úmida e abafada, eu tive orgasmo. Orgasmo total, completo. Para não gritar de gozo e de ódio pelo prazer que estava sentindo, sangrei os lábios, me enterrei as unhas. (Faz esforço, toma fôlego) Dois meses depois, saí da cadeia... fraca, anêmica e grávida. Sem condição física para abortar e com a proteção da família, fugi para o sul. (Volta ao presente) Quando recobrei a saúde, assumi a maternidade.

DONA SANTA
E o filho?

SULA
Nasceu, e eu o aceitei. Por um processo que até hoje não compreendo, eu o desvinculei daquele ato sujo. Como se ele tivesse nascido só de mim, o que acontecia com algumas divindades da mitologia, que concebiam por vontade própria, sem ter contato com o macho.

TENÓRIO
E o que é feito dele?

SULA
Ele tem 19 anos. Nascido de mãe judia, é considerado judeu. Foi para Israel, num kibutz, e teve que servir o exército. Foi preso numa área de conflito, por guerrilheiros palestinos, junto com outros soldados. O pelotão virou refém, para ser trocado por um líder. O prazo vence hoje e se a exigência não for aceita, com certeza eles morrerão. Vou aguardar o noticiário do telejornal aqui (olha o televisor). Achei mais confortador estar com amigos, num momento difícil como esse.

FOCO DIMINUI ATÉ APAGAR. LUZ GERAL ACENDE. O GRUPO DESFAZ O SEMICÍRCULO. TODOS ESTÃO CHOCADOS COM A REVELAÇÃO.

AMORIM
Entendo o seu drama, sou solidário com a sua história. Mas quem suporta corajosamente situação assim, tinha obrigação de ser mais conseqüente em relação ao filho. E não simplesmente mandá-lo para uma matança programada de palestinos.

SULA (controlando-se)
Amorim, tantos anos e você não aprendeu muito. É o mesmo tipo esquemático, intransigente e racista.

AMORIM
Um erro não justifica outro. Quem tanto sofreu como minoria racial, de repente inverte os papéis e se impõe com a mesma ferocidade com que sempre foi atingido

SULA
Não quero bate-boca. Se lhe dá prazer destilar veneno com seu radicalismo, jogue suas frustrações nos fantasmas que você alimenta e me deixe em paz

MARINA (impedindo Amorim de retrucar)
Pensa o quê? Que é o centro do mundo, com direito a bater martelo de juiz? Um garoto está em cana, periga morrer, e você aproveita para arrasar a raça dele?

PADRE
O Amorim está mais preocupado com as colocações políticas do que com a sorte de alguém. Mais do que egoísmo, isto é maldade!

AMORIM (sentindo-se isolado)
Todos contra mim!

AMORIM FAZ GESTO DE IRRITAÇÃO. DEIXA O BAR, SAI PARA A RUA BATENDO A PORTA. A SINETA TOCA.

RODRIGÃO
O Amorim continua o mesmo.

ZACARIAS
Ninguém muda. A gente é o que é.

DONA SANTA E MARINA CONDUZEM SULA PARA UMA CADEIRA.

O tal de Lenço no Pescoço que brutalizou a amiga sempre foi um torturador estúpido e sádico. O apelido vem de uma navalhada, fala-se que ele ficou com uma cicatriz, que esconde debaixo do lenço. Daí o nome, Lenço no Pescoço.

CANTO VINDO DE FORA ATRAI A ATENÇÃO

MÃE (off)
Glória, glória, aleluia
Glória, glória, aleluia...

A SINETA TOCA.

A MÃE IDOSA ENTRA PUXANDO O FILHO, ARMANDO. ELE É UM TIPO ABÚLICO, SEM REAÇÃO, QUE NUNCA FALA.

MÃE
Jesus Cristo é alegria... Jesus Cristo é o Senhor...
Da vitória sobre a morte... Deu a todos o penhor...
Venceremos a tristeza... Venceremos o temor...
Louvemos o Senhor...

MÃE (conduz Armando até uma cadeira)
Aí está o que restou do meu filho Armando, que esteve preso com vocês. Ele era jornalista, lembram?

NINGUÉM RESPONDE.

MÃE
Era um rapaz idealista e sincero. Daquele DOI-CODI foi requisitado por uma base militar. Nada tinha ou nada queria contar e um oficial resolveu puní-lo, “quebrar o orgulho besta desse preso”. (Num desvelo maternal. para a narrativa para ajeitar a roupa do filho). Foi amarrado no chão, no meio das fezes da latrina das sentinelas do campo. Os soldados urinavam e defecavam em cima dele. Em dois dias, perdeu a razão. Conseguimos resgatá-lo, quando foi deixado numa estrada, por milagre de Deus. Armando recuperou-se, contou o que lhe tinha sucedido, falou deste encontro e calou-se para sempre. Desde então, com esse silêncio obstinado ele protesta contra a besta-fera que o atingiu tão cruelmente.

MARINA (tocando no ombro da Mãe)
Meu respeito, Mãe, sincero respeito.

SULA (acariciando os cabelos de Armando)
Oi Armando. (Ele nada responde. Ela insiste.) Armando? (Armando continua impassível).

A SINETA TOCA.

AMORIM RETORNA AO BAR, RESSABIADO, CHUPANDO UM SORVETE.

MÃE (retoma a narrativa)
Sofro, e quando o sofrimento chega ao extremo, acontece um milagre. Armando me olha no fundo dos olhos, esboça um sorriso terno, quase fala! Sinto que ele está querendo dizer: “Mãe, não se aflija”. Eu me reconforto para suportar mais uma etapa do meu drama, na esperança que ele um dia volte à vida.

LUZ APAGA LENTAMENTE, EM RESISTÊNCIA. PASSAGEM DE TEMPO. LUZ ACENDE LENTAMENTE, OS PERSONAGENS ESTÃO EM POSIÇÕES DIFERENTES, COM O CLAREAMENTO ELES SE MOVIMENTAM. RUÍDOS DA RUA: BRECADA DE CARRO; ACELERADA E DESLIGADA DE MOTOR; BATIDA DE PORTA. UM ASSOBIO COMEÇA, AUMENTA, APROXIMA-SE. OS PACTÁRIOS AGUARDAM EM SUSPENSE.

SULA
Já somos doze. Não esperamos mais ninguém.

A SINETA TOCA

A PORTA É EMPURRADA DEVAGAR. SURGE LENÇO NO PESCOÇO, TAL COMO FOI DESCRITO E USANDO O CHAPÉU QUE TIPIFICA O POLICIAL.

LENÇO NO PESCOÇO
Olá, companheiros...

REAÇÃO GERAL DE ESPANTO, MEDO, ÓDIO. SULA DESESPERA-SE, CORRE PARA UM CANTO, FICA OLHANDO O VAZIO, NA DIREÇÃO DA PLATÉIA.

AMORIM
É o tira.

BERTO
O Lenço no Pescoço!

TENÓRIO (assume o controle)
A delegacia, cavalheiro, fica mais adiante.

LENÇO NO PESCOÇO
O meu destino é aqui.

RODRIGÃO
Estamos eu reunião particular.

DONA SANTA (indignada)
A reunião das vítimas!

LENÇO NO PESCOÇO
Desculpem, fui convidado.

TENÓRIO, BERTO, AMORIM E ZEQUINHA AVANÇAM PARA LENÇO NO PESCOÇO. ZACARIAS E PADRE PERMANECEM NOS LUGARES. DONA SANTA JUNTA-SE A MARINA. A MÃE PROTEGE ARMANDO. O INFILTRADO QUE DÁ PARA A PLATÉIA.

TENÓRIO
Convidado por quem?

LENÇO NO PESCOÇO
Por alguém.

OS PACTÁRIOS ENTREOLHAM-SE, GANHAM TEMPO PARA DECIDIR. NO LAVATÓRIO, O INFILTRADO DESESPERA-SE.

AMORIM
Que alguém?

LENÇO NO PESCOÇO
Não vem ao caso e eu não sou (maliciosamente) dedo-duro. Vim satisfazer uma curiosidade pessoal. Não se preocupem, não sou mais da polícia. Do aparelho repressor, como vocês diziam... (Afasta-se prudentemente dos que o ameaçam). Ou ainda dizem?

TENÓRIO (observando)
Você está armado.

LENÇO NO PESCOÇO
Sou empresário, sócio de uma firma de segurança. Vendo proteção a bancos, companhias, eventos, personalidades. (Pega um cartão, deixa sobre a mesa). Enfim, a qualquer um que pague a fatura. Por isso, ando com o três-oitão... (Retira o revólver)... que deixo nas mãos do senhor Zacarias, o patrão da casa.

ANTES DE ACEITAR O REVÓLVER, ZACARIAS CONSULTA TODOS COM O OLHAR. NINGUÉM DIZ NADA, ELE PEGA A ARMA E GUARDA NO BALCÃO

AMORIM (agressivo)
O que um crápula e tarado sexual viria fazer aqui?

PADRE
Todo criminoso tem a impulsão mórbida de rever a sua vítima.

LENÇO NO PESCOÇO
Já que a preocupação é essa: estou aqui por motivos estritamente pessoais e não pretendo sair. O Barzac é um estabelecimento público.

BERTO
Mas hoje está fechado.

LENÇO NO PESCOÇO
Li a placa. Fechado para balanço, espirituoso. Depois de vinte anos, senhores, a curiosidade bate e é excitante pagar para ver.

BERTO Só tem sentido aceitarmos a presença de um torturador, para se descobrir quem o teria convidado.

TENÓRIO
Se é que convite existiu.

RODRIGÃO
De qualquer maneira, também podemos pagar prá ver.

PACTÁRIOS DESARMAM-SE. LENÇO NO PESCOÇO ACOMODA-SE JUNTO DO BALCÃO. A LUZ DO SALÃO É REBAIXADA; A DO LAVATORIO, AUMENTA. O INFILTRADO TIRA DA 007 UM PAPELOTE DE COCAÍNA, E ASPIRA AVIDAMENTE, ENCORAJADO, VOLTA PARA O SALÃO, E FICA ILUMINADO POR UM FOCO.

INFILTRADO
Peço licença para falar. Realmente, eu era um agente infiltrado e já tinha atuado assim algumas vezes

ZEQUINHA
Por dinheiro?

INFILTRADO
Por ideologia. Sou advogado, vivia da profissão, mas sentia prazer em ser policial, não sei porquê. Em 70, dezenas de agentes como eu foram acionados para conseguir informações sobre o embaixador seqüestrado.

AMORIM (sarcástico)
De lá para cá o “espião” decaiu bastante.

LENÇO NO PESCOÇO, NO BALCÃO, ABRE E FECHA A TAMPA DE UM ISQUEIRO ZIPPO. O RUÍDO METÁLICO PERTURBA O INFILTRADO.

INFILTRADO
Realmente sofri uma derrocada. Durante a Copa do Mundo de 70, quando eu estava infiltrado na prisão, o meu filho maior tinha 16 anos. Em 72 ele fez 18 e eu fiz uma festa-surpresa em casa. (Pausa) O garoto não apareceu e achamos uma carta que ele tinha deixado. (Retira carta da 007 e lê): “Pai, sempre me abri com você, menos numa coisa. Sou militante político e aderi a um grupo de luta armada, por isso sumi. Sei que perdi uma bela festinha, mas ganhei a primeira ação contra a ditadura. Respeite a minha decisão. Gosto de você, apesar do seu reacionarismo. Não alarme mamãe, não se preocupe. Queime este papel, não me procure, nem diga nada a ninguém. Beijo”.

REAÇÕES NERVOSAS DOS PACTÁRIOS: SULA DEIXA A POSIÇÃO, PADRE FAZ DISCRETO SINAL DA CRUZ. LENÇO NO PESCOÇO CONTINUA O RUÍDO IRRITANTE.

INFILTRADO
Mêses depois recebo um telefonema anônimo que dizia...

TENÓRIO
Seu filho morreu como um bravo patriota. Pode orgulhar-se dele.

INFILTRADO
Foi o senhor!... (Pausa) Apesar de relacionado com a polícia, eu nunca soube onde, quando e como ele morreu. Me impus a penitência de vir a esta reunião prestar homenagem ao filho... que foi um companheiro de vocês.

ZEQUINHA (entrando no foco de luz)
Eu sei quando, onde e como ele morreu.

INFILTRADO (implorando)
Conte, por favor.

ZEQUINHA (rememorando)
Em 72, apesar de já estar condenado, fui levado do presídio onde cumpria pena, ao DOI-CODI, para uma acareação. Isso, da maneira mais ilegal possível, a ditadura mandava na justiça. O seu filho estava lá. Ele foi trucidado nos mesmos cubículos em que você operou como agente infiltrado.

INFILTRADO
Meu Deus, isso é castigo.

TENÓRIO (entra no foco de luz)
A história do garoto virou legenda no pequeno mundo da revolução. Numa ação de rua ele cobriu a fuga de três ativistas e foi baleado. Queriam saber dos fugitivos a todo custo. Mesmo seriamente ferido ele foi submetido a torturas tão intensas que em poucas horas morreu.

INFILTRADO (Tira da 007 um novo papelote de pó, cheira)
Perdão, é isto que me mantêm.

RODRIGÃO (entrando no foco de luz)
A crueldade foi bestial. Extraíram do seu filho unhas, pedaços de orelha, ponta do nariz e do queixo, mechas de cabelo — a poder de alicate e navalha.

INFILTRADO
O que eu ajudei fazer...

ZEQUINHA
Vi com estes olhos. Na volta à cela, ele estava praticamente morto. Resistência enorme, não delatou ninguém. Morreu herói.

INFILTRADO DÁ A ÚLTIMA CHEIRADA.

A LUZ GERAL VOLTA AO NORMAL.

INFILTRADO
Obrigado pela compreensão. Cumpri a promessa. Vou embora.

ARRASTANDO-SE, O INFILTRADO DEIXA O BARZAC. A SINETA TOCA.

TENÓRIO
A história correu. Perguntava-se como tanta coragem de resistir era possível num garoto de 18 anos.

ZEQUINHA
Com certeza por oposição ao caráter deletério do pai, um alcagüete desprezível.

RUÍDOS DA RUA: BRECADA DE ÔNIBUS, BRECADA DE CARROS, BUZINAS, VOZES, GRITOS, APITOS DE GUARDAS.

SULA CORRE, REPUXA A CORTINA, OLHA.

SULA
O pobre diabo infiltrou-se pela última vez... na roda de um ônibus.

AMORIM, ZEQUINHA E RODRIGÃO VÃO OLHAR. OS OUTROS PERMANECEM. LENÇO NO PESCOÇO ACENDE OUTRO CIGARRO. RUÍDO METÁLICO DO ISQUEIRO. AO LONGE, SOM DE SIRENE DE CARRO DE POLÍCIA.

MARINA
Será que se suicidou?

TENÓRIO
É quase certo.

AMORIM (vindo da janela)
Final bem merecido para um crápula.

PADRE (agitando-se)
Suicídio... isso é terrível, é trágico.

ZACARIAS
Aqui se faz, aqui se paga. Para certos crimes, padre, a única punição é o suicídio!

PADRE (em transe violento, atirado de um lado para outro)
Suicídio, suicídio, SUICÍDIO! (Fora de si, voz clamante) Deus, perdão para os suicidas! Piedade, Senhor, piedade... Não negue misericórdia aos que tentaram contra a vida! Acolhei o desesperado que violenta o próprio corpo! (chora convulsivamente) Não tive culpa, juro que não. Foi apenas fraqueza, Senhor. Eu fui formado para santo, não para a guerra. Tive medo, muito medo. Desde o começo, quando fiz oposição à ditadura, temia não resistir à tortura, Senhor.

LENÇO NO PESCOÇO SERVE-SE DE UISQUE; A MÃE ABRAÇA O FILHO, A PROTEGÊ-LO; AMORIM FAZ MENÇÃO DE SOCORRER O PADRE, MAS É IMPEDIDO POR TENÓRIO.

LUZ GERAL DIMINUI.

FOCO ILUMINA O PADRE.

PADRE
Eles foram cruéis. Perceberam que eu teria informação preciosa, a peça para armar um quebra-cabeça e muita gente cairia nas garras daqueles demônios. Me torturaram com o vosso santo nome, Senhor, por eu ser sacerdote. (Pausa) Assisti ao suplício de um infeliz. Puseram na sua cabeça a maldita cinta de aço (demonstra) que é apertada com um torniquete. O instrumento pavoroso chama-se “coroa de Cristo”, Senhor. (Ele anda cambaleante como se ouvindo vozes dos torturadores. Olhos arregalados, em pleno delírio. ilustra com as mãos o arrocho do torniquete e relembra). Veda a coroa de Cristo como penetra na cabeça do subversivo. Ouça como a coroa de Cristo tritura os ossos na cabeça. Sinta como a coroa de Cristo esmaga os miolos dos que não querem falar. (Padre está junto de Lenço no Pescoço e fala-lhe como se ele fosse o Senhor). Senhor, Senhor, os olhos do pobre homem saltaram das órbitas... (Segura Lenço no Pescoço pela lapela e fala diretamente com ele, girando em círculos, num balé alucinado). Obrigado, Senhor, por ter me concedido coragem e força para alcançar a mesa de instrumentos de tortura e pegar o estilete que me cortou os pulsos. (Solta Lenço no Pescoço e mostra os pulsos).

LENÇO NO PESCOÇO APROVEITA A SEPARAÇÃO E ESCAPA PARA O WC. ENQUANTO O MONÓLOGO DO PADRE PROSSEGUE, LENÇO NO PESCOÇO PROCURA RECOMPOR-SE, NO ESPELHO.

PADRE
Obrigado por me ter esvaído em sangue, me apagado a consciência e me levado à beira da morte, poupando-me a infâmia da delação. (Já quase sem voz) Obrigado por meu corpo ainda estar vivo

O PADRE DERRUBA-SE SOBRE A CADEIRA. DONA SANTA O AMPARA, PRESSIONA-LHE O VENTRE E AS COSTAS, LEVANTA-O; APERTA-LHE A FRONTE, SACODE-LHE AS MÃOS (ATENDIMENTO MEDIÚNICO).

FOCO DIMINUI.

LUZ GERAL VOLTA AO NORMAL.

PADRE (voltando a si)
O que aconteceu? Estou tão dolorido, tão fraco.

DONA SANTA TOMA CONTA DO PADRE, LEVA-O PARA UM CANTO.

AMORIM (pega o cartão de visitas de LP de mesa, fala com desdém)
Empresário de segurança... (olha na direção do WC). A intimidade dele com o Barzac me parece suspeita. É o próprio peixe dentro d’água.

ZACARIAS (justifica)
Hoje, excepcionalmente, o estabelecimento foi fechado para o nosso encontro. O resto da vida está aberto para qualquer freguês, desde que pague a conta.

AMORIM (irônico)
Ou pague a fatura... (olha na direção do WC) Como o canalha soube da nossa reunião?

BERTO
O Infiltrado poderia tê-lo avisado.

TENÓRIO
Ele ou tantos outros. Afinal houve traição. E não se sabe quem traiu.

MARINA
O dia de hoje foi marcado a menos de um mês,

RODRIGÃO
O tira foi avisado correndinho!

AMORIM
Com certeza por alguém que está aqui. Por um de nós. (Olha para todos) Ou melhor, por um de vocês!

SILÊNCIO CONSTRANGEDOR. TODOS SE ENTREOLHAM.

TENÓRIO
Por um de nós... quem será?

ZACARIAS
Boa pergunta, quem?

(ENQUANTO OS DIÁLOGOS ACONTECEM, A AÇÃO DE LENÇO NO PESCOÇO NO WC: TERMINA DE URINAR, FECHA BRAGUILHA, LAVA OS DEDOS, ENXUGA-SE, EXAMINA-SE NO ESPELHO, AJEITA O CABELO, LEVANTA O LENÇO E EXAMINA A CICATRIZ. O RELÓGIO DE PULSO DESPERTA, EMITINDO DIVERSOS BIPS, LENÇO NO PESCOÇO APRESSA-SE.

ZACARIAS (consulta o relógio)
Hora do telejornal!

SULA E OS DEMAIS ENCAMINHAM-SE PARA O TELEVISOR, QUE ZACARIAS LIGA PELO CONTROLE REMOTO. NO VÍDEO: APRESENTADOR.

APRESENTADOR
“Assim terminou mais uma partida do Mundial de Futebol de 1990, que apresentamos diretamente da Itália. Amanhã tem mais. A seguir, as notícias internacionais, a primeira nos vem de Israel. Dentro de um minuto, após os comerciais”.

ZACARIAS DIMINUI O SOM QUANDO ENTRAM OS COMERCIAIS. LENÇO NO PESCOÇO SAI DO BANHEIRO, VAI AO BALCÃO, PEGA O DRINQUE, COLOCA MAIS GELO E VEM PARA VER O PROGRAMA.

SULA (decidida)
O noticiário é coisa que me diz respeito, pessoalmente. Aqui, ele só será assistido por mim, e por companheiros.

LENÇO NO PESCOÇO
Sou convidado.

AMORIM (ameaçador, avança)
Mas não disse de quem!

LENÇO NO PESCOÇO (afasta-se prudentemente)
...e sou parte interessada.

SULA (indignada)
Interessado em quê?

LENÇO NO PESCOÇO (cínico, pausadamente)
Quero ver com quem o garoto se parece.

SULA CORRE ATE O BALCÃO, PEGA O REVÓLVER, VOLTA GIRA O CORPO, APONTA E ATIRA NO TELEVISOR, QUE DÁ UM CLIC E APAGA. SULA MIRA EM LENÇO NO PESCOÇO E ENGATILHA A ARMA.

SULA
A bala está na agulha.

PROVOCATIVAMENTE, LENÇO NO PESCOÇO LEVANTA O DRINQUE. SULA ATIRA, O COPO SE ESTILHAÇA.

SULA (ainda apontando)
O próximo é na cabeça! Resolva.

LENÇO NO PESCOÇO (amedrontado)
Vocês esquerdistas são complicados. (sai depressa... batendo a porta).

A SINETA TOCA.

SULA
Desculpe, Zaca. Mando repor.

ZACARIAS
Esquece.

TENÓRIO VEM COM VASSOURA E PÁ, RECOLHE OS CACOS.

SULA
Eu precisava fazer alguma coisa. Quanto ao resultado de Israel, o meu filho, tenho forças para esperar até mais tarde. Ou até amanhã. De certo modo, é preferível.

ZACARIAS
Parabéns, bom saber que a sua pontaria continua certeira.

SULA
Por quê?

ZACARIAS
Porque, modéstia à parte, a minha também está em cima. E tudo isso me lembra Cleusa, que era tão decidida quanto você.

TENÓRIO TERMINA DE RECOLHER OS CACOS. SULA ENTREGA O REVÓLVER A ZACARIAS, QUE O PÕE NUMA MESA.

BERTO
A nossa pequena guerra pós 64, deixou muitas marcas em cada um. E seqüelas, que pelo visto nos acompanharão a vida toda.

MÃE
Então por que fizeram este encontro? (Pausa) Já sofreram tanto, precisavam remoer o passado e reabrir feridas tão fundas?

SULA
Chega uma hora, mãe, a gente tem que expulsar os seus demônios para viver em paz.

BERTO
Mesmo que se fale sozinho, as palavras devem ser ditas. É o que muitos fizeram durante a prisão, para vencer o medo, e a loucura.

TENÓRIO
Fale pelo seu filho, mãe.

LUZ GERAL DIMINUI.

FOCO DESTACA MÃE E ARMANDO.

MÃE
E quem dá ouvidos a uma pobre mãe? Quem pode esclarecer sobre a mente humana? Que mecanismo comanda no cérebro do homem a prática de atos tão insanos e cruéis, como os impostos ao meu filho? (Acaricia os cabelos de Armando). A História oficial é falaciosa, esbanja adjetivos. (Relembrando) O valoroso Duque de Caxias, à frente do aguerrido batalhão brasileiro, comanda intrépidos soldados e solta o brado heróico: a minha espada é comandada pela Virgem!

MARINA
Até a mãe de Cristo contra os pobres paraguaios!

MÃE
Nos monumentos, os militares cavalgam e empunham armas pela nação. O povo e as deusas aplaudem, eles representam libertação, justiça. Mas o que fizeram com meu filho. Preso numa latrina, no meio das fezes...

DISCRETAMENTE, ZACARIAS AFASTA-SE DO GRUPO E DIRIGE-SE AO BALCÃO.

MÃE
Oxalá os militares fossem só de bronze, meras estátuas plantadas em pedestais, povoando a imaginação das crianças, imbuindo fé, respeito, só sentimentos belos.

ZACARIAS EVITA BARULHO. SERVE TAÇAS DE VINHO BRANCO.

MÃE
Olhem meu filho. Ficou para sempre a expressão de desprezo pela maldade humana. E assim que protesta contra a prepotência do militar que, quando pequeno ele aplaudia nos desfiles. O soldado que um dia recusou ser capitão de mato e pela esdrúxula teoria da segurança nacional, foi reduzido a policial e torturador.

FOCO DIMINUI.

LUZ GERAL VOLTA AO NORMAL.

MÃE RECOLHE A BOLSA, PEGA O FILHO PARA SAIR.

MÃE
Fiquem com Deus.

NINGUÉM TEM ÂNIMO PARA RESPONDER. AO CHEGAR A PORTA, ARMANDO VIRA-SE E FAZ ESFORÇO PARA FALAR. A MÃE EXULTA, OS PACTÁRIOS FICAM EM SUSPENSE, MAS ELE NÃO CONSEGUE E A MÃE LEVA-O EMBORA. SULA FECHA A PORTA, ENCOSTA-SE NELA, SOFRE.

A LUZ GERAL APAGA LENTAMENTE.

PASSAGEM DE TEMPO. FOCO DE LUZ ACENDE NA ESCADA QUE CONDUZ AO MEZANINO. SULA ESTÁ PARADA NO COMEÇO DA ESCADA, AGUARDA BERTO QUE SE APROXIMA.

(OS DEMAIS MOVIMENTAM-SE EM RITMO LENTO, NA SEMI-ESCURIDÃO).

BERTO
Deveríamos conversar, não?

SULA
Claro. Devemos

OS DOIS SOBEM PARA O MEZANINO.

SULA
Berto, por mais que eu procure me culpar, não consigo. Fui levada pelos acontecimentos. Coisa que não consegui dominar.

BERTO
Não peço explicações, querida. Foi duro suportar o seu desaparecimento, sem saber o motivo. Mas golpe maior foi o de hoje, ao saber porquê.

SULA
E vinte anos depois.

BERTO
Vinte anos depois.

SULA
Ao fim deste turbilhão em que se transformou minha vida, nem sei o que pensar, muito menos o que lhe dizer.

BERTO (carinhoso)
Nem precisa. (Pausa) Para mim você continua linda. (Berto afaga os cabelos escorridos de Sula e beija-a na testa, delicadamente) É exatamente desse jeito que eu te imaginava, nesses tempos todos. (Pausa) A gente se beijava tanto, lembra?

SULA (relembrando)
Claro que sim. (Pausa) Feliz ou infelizmente, agora estou com a vida estabilizada. (De supetão) E comprometida, sabe?

BERTO
Sempre fui um sonhador, mas preparado para o que desse e viesse, se conseguisse encontrá-la. Gostaria que tudo fosse diferente.

SULA
Ninguém escreve o seu destino.

BERTO
Mesmo assim, Sula, a melhor coisa foi te ver.

SULA
Que bom seria se nossas vidas tivessem tomado outros rumos.

ABRAÇAM-SE POR LONGO TEMPO. SÃO INTERROMPIDOS PELO CHAMADO DE ZACARIAS. NO SALÃO, A LUZ GERAL ACENDE, ENQUANTO A DO MEZANINO APAGA.

ZACARIAS (gritando)
Alô, pessoal! Convocação geral. Quem estiver vivo que se manifeste e compareça.

ZACARIAS VEM PARA O CENTRO DO SALÃO, TRAZENDO A BANDEJA REPLETA DE TAÇAS DE VINHO. É ASSEDIADO POR TODOS.

ZACARIAS
Formemos a frente única contra a tristeza e o sofrimento. (Já cercado por todos) Precisamos e merecemos uma dose de alegria. Comemorar! Enterrar os nossos mortos, apagar as tragédias.

BERTO E SULA CHEGAM DO MEZANINO E INCORPORAM-SE AO GRUPO.

BERTO
Viva a coragem dos que deram a vida na guerra inglória.

TENÓRIO (pega uma taça, brinda)
Aos que morreram nos combates, nas guerrilhas. Aos que sofreram nos porões da polícia. Aos torturados, humilhados e liquidados pelos esquadrões da morte.

MARINA (interrompe, levanta a sua taça)
Aos que, segundo os laudos oficiais se suicidaram, se enforcando com gravata, meia ou cordão do sapato.

PADRE
Um brinde ao ano de 70.

SULA
Esse ano me dá arrepios.

TODOS ERGUEM AS TAÇAS

TENÓRIO (interrompe)
Por que não a 68? Foi o melhor ano, das últimas décadas.

AMORIM
Que viva 68!

NA GAITA-DE-BOCA BERTO TOCA MARCHA ALEGRE. COMEÇA DESFILE ALEGÓRICO.

TODOS CIRCULAM, BEBENDO, SALVANDO.

PADRE
O ano da aleluia!

AMORIM
68, o ano do êxtase da História, disse o historiador.

PADRE
Ano da demência coletiva, falou um assustado.

ZEQUINHA
Psicodrama coletivo, quem disse isso?

TENÓRIO
Ano da tempestade dos estudantes de Paris. (citando) “Será preciso muito tempo para se entender o que aconteceu”.

MARINA (canta)
“Não confio em ninguém com mais de trinta”. Era o que se cantava.

PADRE (rindo)
E se hoje alguém dissesse isso?

AMORIM
Eu quebrava a cara!

RISOS, EXCLAMAÇÕES, TINTINS.

MARINA (canta)
“Sem lenço nem documento, eu vou”!

TENÓRIO
Esplendor de Marx, Mao e Marcuse.

PADRE
Os três emes da década!

SULA
Gil, Caetano, Vandré, Chico!

MARINA (canta)
“Alô, alô, Realengo, aquele abraço”!

RODRIGÃO
A Primavera de Praga!

PADRE
Os estudantes do Calabouço. A passeata dos cem mil no Rio de Janeiro!

MARINA (canta)
“O Rio de Janeiro continua lindo”!

MARINA
68 tinha Beatles, hippies e muita maconha!

BERTO (parando de tocar)
Nem tudo o que é bom termina bem...

TENÓRIO (prosseguindo)
... no Brasil o AI-5, o golpe dentro do golpe.

BERTO (após acorde gaiato)
O povo seduzido pelos milagres da sociedade de consumo. Carros, eletro-domésticos, ritmo de Brasil Grande, Ilha de Tranqüilidade.

RODRIGÃO
Deixar o bolo crescer, depois dividir as fatias.

MARINA
Comeram o bolo e deixaram a conta para o povo.

TENÓRIO
Da oposição o governo cobrou alto.

SULA
Como os do nosso grupo, que foram inteiramente aniquilados.

TENÓRIO
Vítimas da delação que liquidou o movimento. Só que o grande traidor conseguiu ficar oculto.

AMORIM (faz gesto teatral)
Pára, pára, pára!

TODOS SE AFASTAM DO CENTRO DO SALÃO, SÓ AMORIM PERMANECE.

LUZ GERAL DIMINUI.

FOCO DESTACA AMORIM

AMORIM
Eu contesto colocações tão simplistas. Claro que houve traição, dedo-durismo. Mas nem por isso se deve relevar erros políticos. A força do povo foi substituída pelo individualismo heróico. Todos eram honestos, mas queriam virar super-homens. Mas ninguém era personagem de gibi e tudo deu errado.

SULA
Você ainda se arvora em crítico?

AMORIM
Eu vim de um grande partido de esquerda, muito respeitado.

TENÓRIO (declamativo)
Era uma vez um partido grande que partiu-se em muitos partidos, que partiram-se em outros partidos... e partiram para enfrentar o dragão da ditadura que infelicitava o povo e enclausurava Libertas, a deusa da República.

AMORIM (Inicia duelo)
Mas com a fraqueza dos pequenos e a valentia de super-herói, só cotucaram a onça com vara curta!

RODRIGÃO
De simples espectadores da História, interviemos nela, para mudar o seu curso.

AMORIM
Deixando os botecos de chope (com desprezo) as comunidades, os pontos de fumo. Cansados de cabular escola, foram brincar de guerra.

SULA
Abandonou-se a posição contemplativa. Nos rebelamos contra a mansidão brasileira de apanhar calado. Fomos à luta!

AMORIM
Ações suicidas. Clamando no deserto para os grãos de areia. Nunca para a base — o povo, o povo!

BERTO
Se você vivesse em 1790 também teria criticado o alferes Joaquim José.

MARINA
Não tinha nenhuma multidão ao lado de Tiradentes. Só gatos-pingados, poetas e padres. O povo só compareceu para assistir ao enforcamento.

AMORIM (entrega os pontos)
O que vocês querem de mim?

TENÓRIO
Coração aberto. Vinte anos depois ninguém tem saco para o jogo do bom e do mau.

ZEQUINHA
Soviético, ótimo — americano, péssimo. Comunista, mau. Capitalista, bom. Ou vice-versa!

RODRIGÃO
Invadir o Vietnã ou Afeganistão, não dá no mesmo?

PADRE
A cadeia do Pinochet era diferente da masmorra do Aiatolá?

AMORIM
Qual é o caminho?

MARINA
Tirar a viseira, não olhar numa única direção.

AMORIM
Meu drama é esse. Cresci na cartilha, ouvindo a mesma lição. Não vi, não gostei. Não experimento e não aprovo. Não li mas critico.

ZEQUINHA
Cumpridor de palavras de ordem.

AMORIM
Escravo do centralismo. Eu vibrava ouvindo o fecho de ouro do assistente político: “camaradas, não permitamos que os porcos imperialistas focinhem nos canteiros de flores dos jardins soviéticos”.

TENÓRIO
Tão imbecil como “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

AMORIM
O meu muro despenca, os tijolos viraram souvenir de turista. O socialismo é abjurado, adere às leis do mercado, em nome da modernidade. O que a moral política condenava, acontecia debaixo do meu nariz. É melancólico você ser órfão e viúvo do que sempre acreditou.

BERTO
A roda da História não pára.

AMORIM
É horrível se ela vem em cima da gente.

SULA
Tudo tem dois lados, Amorim.

AMORIM
Como no seu caso, Sula. Os nazistas mataram milhões de judeus em nome da raça pura. Os judeus matam palestinos, drusos e outras minorias, em nome de quê?

TENÓRIO
Para cometer injustiça, o homem só precisa de pretexto. Aí ele degola um armênio, fuzila um negro na África do Sul ou enforca um jornalista num DOI-CODI brasileiro.

AMORIM (enterra a cabeça entre as mãos)
Mais penso, mais sofro. O meu desespero, companheiros, é constante. Estou sozinho e pergunto sempre: “e agora, José?”

MARINA (gaiata, solidária — coça a cabeça dele) E agora, Amorim...

FOCO DE LUZ APAGA.

LUZ GERAL AUMENTA.

ZACARIAS (fraternal, aproximando-se de Amorim)
E triste, amigo, estar só. Como você está. Como eu estou.

SULA
Você nunca se conformou com a perda de Cleusa.

ZACARIAS
Como ela era importante para mim... Viciado em poesia, às vezes me surpreendo a parodiar um poema em voz baixa, de forma obsessiva.

DONA SANTA
Faça isso em voz alta. E bom para lavar a alma.

ZACARIAS (hesita, decide-se)
“Cleusa, Oh Cleusa!... Onde estás que não respondes?... Em que mundo... Em qu’estrela tu te escondes... Embuçada nos céus?... Há vinte anos mandei meu grito... Que embalde, desde então... Corre o infinito... Onde estás, Oh Cleusa?”

TENÓRIO
Castro Alves, generoso.

SULA (à queima-roupa)
Olho no olho, Zaca, nunca soube realmente como Cleusa desapareceu?

ZACARIAS (pequena hesitação)
Sinceramente, não.

TENÓRIO
O delator foi visto em camaradagem com os repressores, na delegacia. A testemunha foi eliminada, mas antes passou uma informação escrita. Por milagre, o bilhete chegou às mãos de Cleusa. Normalmente seria endereçado a você, Zacarias. Mas caçado vivo ou morto, você estava em total clandestinidade.

MARINA
Doente e grávida, Cleusa saiu para divulgar a denúncia que recebera. (Pausa) E nunca mais apareceu.

ZEQUINHA
Quem teria sido o último a vê-la?

RODRIGÃO (apresenta-se)
Eu.

ZACARIAS (leva tremendo choque)
Você?

TODOS SE AGITAM COM A INFORMAÇÃO.

RODRIGÃO
Eu mesmo. Naquele dia era minha tarefa dar segurança a ela. Fomos aguardar um carro que nos pegaria, ele atrasou quinze minutos e corri a um telefone, para checar. Do orelhão vi a viatura aparecer e prenderem Cleusa. Nada pude fazer.

ZACARIAS
Por que não contou antes?

RODRIGÃO
Sempre evito o assunto. Pelas circunstâncias, virei suspeito e fui afastado do movimento, o que me abalou profundamente.

TOQUE DE CAMPAINHA.

TODOS SE SOBRESSALTAM. ZACARIAS ENTREABRE A PORTA, E RECEBE UM BUQUÊ DE ROSAS VERMELHAS.

MARINA (maravilhada)
Rosas mais lindas.

ZACARIAS (entrega um envelope a Marina e o buquê à Dona Santa)
Veja quem mandou.

MARINA (mostra o cartão, faz suspense)
Tantan-ra-tantam! (voz assustadora) De quem será? (começa a ler) “Em nome do meu falecido pai, Oduvaldo Santana, envio estas rosas. “O nosso símbolo”, dizia o velho. Ele queria tanto comparecer a essa reunião e abraçar os companheiros de prisão e cumprir o pacto! E informar que entre vocês fatalmente está o traidor responsável pela morte de tanta gente. O fio da meada é Cleusa, que meu pai e outros esperavam para a reunião em que ela informaria o nome do delator. Faço votos que tudo se esclareça”. Assinado, Denise.

REAÇÕES DURANTE A LEITURA.

SULA (suspeitosa, olha para Amorim)

AMORIM (Olha para Rodrigão).

RODRIGÃO (Abaixa a cabeça, pressentindo confusão para seu lado)

ZACARIAS (Triste e inconformado quando Sula o encara).

TENÓRIO (Concentrado)

PADRE (Acaricia a cruzinha de ouro)

BERTO, ZEQUINHA e DONA SANTA (Mantêm a calma).

MARINA (Enquanto lê, lança olhares indagadores na direção de todos).

SULA
A solução do enigma está entre nós.

AMORIM (a Rodrigão)
Você testemunhou a prisão de Cleusa... deve ter mais a esclarecer.

RODRIGÃO
O que sabia, informei.

AMORIM
Excluindo Dona Santa, cada um tem o mesmo grau de suspeição. Eu, Sula, Tenório, Zequinha, Marina, o Padre, todos! (acusando) Você foi testemunha, o último que viu Cleusa viva.

RODRIGÃO (atraca-se com Amorim)
Tudo o que insinuar vai engolir! Descobrir o traidor é mais importante para mim do que para vocês.

TENÓRIO (separando os dois)
Viemos para uma festa, não para duelo.

ZACARIAS
Por mais que te aborreça, quero toda a verdade.

RODRIGÃO
Quando a polícia liquidava alguém do movimento, fazia alarde, contava vantagem. Se pavoneava diante da sociedade, prestava conta aos financiadores da repressão...

SULA
Mas sobre Cleusa não se publicou nenhuma notícia.

ZACARIAS (abatido)
Por que?

RODRIGÃO
Se encontraram o bilhete com ela, o que é quase certo, teriam que matá-la para acobertar o delator

SULA
Isso faz sentido. Concorda, Zaca?

ZACARIAS
Infelizmente, sim.

ALGUNS APROXIMAM-SE DE ZACARIAS, A CONFORTÁ-LO.

DONA SANTA
Pobre mulher, e ainda grávida.

AMORIM
Baque duro, amigo.

ZACARIAS
Como ela se sentia?

RODRIGÃO
Ansiosa.

ZACARIAS
Não disse nada?

RODRIGÃO
Nem perguntei, segurança não pergunta. Ela parecia arrasada.

ZACARIAS (para si mesmo)
Então os miseráveis a pegaram... Eu deveria ter previsto e a levado embora, como tinha planejado. Queria tanto aquele filho, e que nada acontecesse a ela.

SULA
Cleusa era a minha maior amiga. Eu a levei para o movimento. (a Zacarias) Onde ela te conheceu e vocês se apaixonaram.

ZACARIAS
Por isso, o meu carinho especial por você.

SULA (correndo os olhos por todos)
A memória de Cleusa e de todos que morreram, exige o desmascaramento do maldito vilão.

ZACARIAS
Tantos anos depois de que adiantaria descobrir um culpado? Os mortos ressuscitariam? Cleusa viveria de novo? O filho que ela gerava, o meu filho, nasceria?

ZACARIAS SENTA-SE, ENTERRA A CABEÇA NAS MÃOS. FAZ-SE SILÊNCIO PESADO. DONA SANTA COLOCA O BUQUÊ NUM BALDE DE GELO, E AJEITA-O NUMA MESA.

AMORIM
Suspense de Hitchcock. O mistério do delator... que está entre nós. Quem será? (Pega o vaso). Rosa vermelha, símbolo de todos os libertários, socialistas, anarquistas, êmulos da revolução. (Pausa) Eis o problema... que revolução? (Vai até Tenório) O Velho Guerreiro, 80 anos bem vividos, idade da santificação em vida. Claro que vira santo. (Aproxima-se de Marina) Ontem organizando comunidades de base. Hoje, do lar. (Irônico) Primeira dama, pode uma coisa assim?

MARINA
Pode e deve. Sou assumida, com muita honra. Não tenho vergonha de ser feliz. Me dou muitíssimo bem com o maridão. Até em motel a gente transa. E terminamos a noite com uma bela pizza com vinho.

AMORIM
A gente discutindo assunto importante e a senhora vem com patacoadas, tenha paciência.

MARINA (dá gargalhada)

AMORIM
Nada de conclusivo acontece neste Brasil porque todos têm um motivo justo para pular fora do barco.

DONA SANTA
Com o tempo fica-se menos radical.

AMORIM
Fica-se frouxo.

BERTO
O que é mais importante, após tanto tempo? Esquecimento, ódio, perdão?

TENÓRIO
A certeza da missão cumprida.

PADRE
Perdoar também é um ato de inteligência.

SULA
Mas crime político não pode ser esquecido. Quem matou Lincoln, Trotski, Lorca ou Vladmir Herzog deve ser execrado pelo resto da vida. Hitler, Stalin, americanos no Vietnã ou a ditadura brasileira de 64, podem ser absolvidos?

ZEQUINHA
E quem foi o responsável pela morte de Cleusa e de todos os companheiros, merece o quê?

SULA
Isto! (cospe no chão)

SILÊNCIO PROFUNDO, COMO SE TODOS MEDITASSEM SOBRE A CONDENAÇÃO AO DELATOR.

ZACARIAS
Mudando de assunto: acham que o que fizemos valeu a pena?

BERTO
Quem sabe?

PADRE
Ainda é cedo para responder.

DONA SANTA
Valeu e significou muito. Coisa de jovens, de sangue novo. Ninguém lutava por vantagens pessoais. A juventude deve ser idealista, e vocês eram!

TENÓRIO (olha o relógio)
Pelo visto, a nossa reunião chegou ao fim. Foi proveitosa, espero que para todos. Ao menos, eliminou algumas dúvidas.

RODRIGÃO
Conseguimos nos rever depois de vinte anos. Marcar um encontro para acontecer precisamente num 21 de junho foi preciosismo. Coisa difícil de conciliar. Muita coragem.

AMORIM
Ou loucura.

SULA
De qualquer modo, emocionante.

MARINA
Tão emocionante que merecia repeteco.

RODRIGÃO
Como?

MARINA (rindo)
Um novo encontro, para daqui a vinte anos: 21 de junho de 2010.

TODOS SE DIVERTEM COM A IDÉIA.

ZEQUINHA
Faltou gravar as nossas conversas.

MARINA (imita repórter)
Já estão ouvindo o registro dos fatos, na hora que eles acontecem! Marina Teixeira Longobardi, diretamente do Barzac. Hi, cadê o microfone? (Tem idéia. pega uma rosa. Usa como microfone) Daqui para o mundo, informando o que vai pelo íntimo de cada um... O Velho Guerreiro, compareceria na reunião de 2.010?

TENÓRIO
Se chegar aos cem, contem comigo.

MARINA (ao Padre)
Gostaria de registrar o quê?

PADRE
O caso do pastor protestante que era tira do DOI-CODI. De dia torturava, e à noite emprestava Bíblias aos presos. “Ofereço a palavra do Senhor. Mas para quem não escutar...” E coçava a 45.

MARINA
A nossa fisioterapeuta.

DONA SANTA
Sinceramente, ter sido presa com vocês foi a coisa mais importante que aconteceu na minha vida!

MARINA
Liiiindo... (A Zequinha) Dessa confusão toda, alguma coisa que nunca esqueceu?

ZEQUINHA
Um sentinela do DOI-CODI, escuro como eu. Sempre me olhava de longe, um dia chegou perto para perguntar: Ei, raça, você acha que esse negócio de política é coisa prá negro?

MARINA
E o missiê Bertô?

BERTO (olha para Sula)
Valeu ter vindo. Tentar é importante.

MARINA
E o l’enfant terrible?

AMORIM
Cheguei com uma dúvida.

MARINA
E...

AMORIM
Vou sair com um montão delas.

MARINA
Fica frio. (A Rodrigão) E o proletário?

RODRIGÃO
Não me arrependo de nada. Só tenho certo sentimento de culpa por não estar fazendo nada de útil a não ser para mim.

MARINA (para Sula)
E a amigona?

SULA
Difícil resumir vinte anos em algumas palavras, mas vá lá: assumo tudo o que aconteceu comigo!

MARINA
Só?

SULA
Nunca entendi a lógica dos repressores, que se esmeravam em humilhar os meus atributos. Uns diziam: “Além de judia, comunista”!

MARINA
E os outros?

SULA
“Além de comunista, judia”!

AS DUAS RIEM

MARINA
Por último, o anfitrião... Tudo o que fez, faria de novo, Zaca?

ZACARIAS (hesitante)
Sei lá... é complicado dizer. Mas tudo, tudo não! Com certeza.

MARINA (faz flexão elegante. entrega a rosa-microfone a Tenório)
A rosa-símbolo... ao mais puro revolucionário que tinha (como é que a repressão dizia?)... o codinome de Toledo.

TENÓRIO
Obrigado por terem vindo.

BERTO (pegando pasta, guarda o jornal e a gaita).
Era o que faltava na confusão da minha vida.

PADRE (levantando-se)
Positivamente, um confessionário.

SULA
Um grande divã.

RODRIGÃO
Fechamos o balanço, cumprimos a promessa, exatamente vinte anos depois. Respeitamos tudo, data, senha...

MARINA
E só comparecer os que estivessem vivos.

RISOS

TODOS ESTÃO PRONTOS PARA A SAÍDA, PEGAM OS PERTENCES.

BERTO
Foi emocionante entrar cantando. Por que não sair cantando também?

APLAUSOS GERAIS.

ZACARIAS
Mas sem repetir música.

PADRE
Assim é difícil.

SULA
Tem Chico, Caetano, Gil, Vinicios, Jobim. Fora os novos: Cazuza, Renato Teixeira.

MARINA
Vamos partir prá cabeça, um rock da pesada... (fazendo chifrinho)... metaleiro!

AMORIM (exasperando-se com o gosto de Marina)
Aiiiii!

ZEQUINHA
Bolerão ou sertanejo.

TENÓRIO (iluminando-se)
Partido alto!

RISOS.

MARINA (junto do som, mostra um cassete)
Achou-se o que é doce. Nosotros, o que necessitamos es un pueco de latinoamericanidad. Que tal um tango?

MARINA INJETA O CASSETE. O SOM DE “ADIOS MUCHACHOS” INVADE A SALA. MARINA CANTA JUNTO COM A GRAVAÇÃO

MARINA/CASSETE
“Adiós muchachos, compañeros de mi vida
Barra querida, de aquellos tiempos
Me toca a mim empreender la retirada
Debo alejarme de mi buena muchachada”

MARINA PASSA POR AMORIM E O ENLAÇA. ELE RESISTE, ELA FORÇA. AMORIM TERMINA ADERINDO. OS DOIS DANÇAM BONITO, COM PASSOS COREOGRÁFICOS.

TODOS (juntos)
“Adiós muchachos, já me voy y me resigno
Contra el destino nada la talla
Se terminaran para mi todas las farras
Mi cuerpo enfermo no resiste más”

ENQUANTO OS DOIS DANÇAM, COMEÇA A RETIRADA. ABRAÇOS, BEIJOS, GESTOS.

ALGUNS/CASSETE (repete a primeira parte)
“Adiós muchachos, compañeros de mi vida
Barra querida, de aquellos tiempos
Me toca a mi empreender la retirada
Debo alejarme de mi buena muchachada”.

MARINA E AMORIM PARAM DE DANÇAR, VÃO PARA OS QUE SE DESPEDEM. (DE PASSAGEM, AMORIM ABAIXA O VOLUME DO SOM).

TENÓRIO
Que o destino nos proporcione um outro encontro. E que até lá o traidor, seja descoberto.

SULA
E se não for, que tenha uma morte infame. Você disse bem, Zaca: para certos crimes, bom castigo é o suicídio.

A PORTA DA RUA JÁ ESTÁ ABERTA. TENÓRIO JA SE DESPEDIU DE ZACARIAS, BERTO. ABRAÇA AMORIM, BEIJA MARINA E SAI. PADRE, ZEQUINHA, RODRIGÃO E DONA SANTA O ACOMPANHAM.

DONA SANTA
Aproveitando a companhia!

TENÓRIO (já fora)
De pé-dois, até o metrô. Adeus para os que ficam. Zaca, Sula, Berto, Amorim, Marina, acreditem: valeu a espera de vinte anos!

O VOZERIO DO GRUPO DISTANCIA-SE.

RUIDO: CARRO CHEGA E BUZINA.

SULA (olha, faz sinal)
Fantástico ter encontrado vocês.

MARINA (abraça Sula)
Bye, bye, Sula. Tudo em riba para o seu filho. Pensamento positivo e o seu soldadinho vai se safar bonito.

SULA AGRADECE MUDAMENTE.

ZACARIAS (abraça Sula)
Grande amiga, meu Cupido... até quando?

SULA
Acho que até nunca. É a última vez que a gente se vê.

SULA SEPARA-SE DE ZACARIAS. ABRAÇA BERTO, SEM NADA DIZER E SAI RÁPIDO. RUÍDO: PORTA DE CARRO FECHA, MOTOR ARRANCA.

BERTO (sem graça)
Com esta, me vou. Au revoir.

BERTO SAI. AMORIM E MARINA ESTÃO PRONTOS PARA IR, MAS UM ESPERA A INICIATIVA DO OUTRO. O TELEFONE TOCA.

ZACARIAS
Dêem um tempo, já volto.

AMORIM
Espera o maridão ou vai sozinha?

MARINA (sem jeito)
Sabe, Amorim, não tem maridão nenhum.

AMORIM
Não brinca.

MARINA
E isso mesmo que você ouviu: não tem maridão nenhum. Foi tudo invenção minha. Sou solteira da silva.

AMORIM
Outra tirada maluca?

MARINA
Fiquei com vergonha.

AMORIM
De quê?

MARINA
De após tanto tempo, não ter nada de bonito ou importante para contar. Pode ter sido burrada, mas eu sou assim mesmo. A minha vida não foi um mar de rosas.

AMORIM
Pelo menos você tem imaginação, inventa bem.

MARINA
Nem isso, simples apropriação indébita. O que contei é verdade, mas acontece com minha irmã, que é casada com o contador. Moro com eles, sou assistente social. (Pausadamente) Sozinha, livre e disponível.

AMORIM (rindo)
Gostei mais desse filme. Já estava cheio do tal maridão.

MARINA FAZ REAÇÃO INFANTIL E ENGRAÇADA DE CULPA. OS DOIS RIEM.

AMORIM
Ninguém vem lhe buscar?

MARINA
Não.

AMORIM
Logo, tenho de bancar o cavalheiro?

MARINA
É.

AMORIM
Posso acompanhá-la?

ENQUANTO SE DESENVOLVE A CENA ENTRE MARINA E AMORIM, OUVE-SE ALGUMAS FRASES DA CONVERSA TELEFÔNICA DE ZACARIAS: “CLARO, PODE VIR”, “QUANDO QUISER”, “ESPERO, ESPERO”.

MARINA
Pode e deve, mas com uma condição.

AMORIM
Que condição?

MARINA (provocativa)
Do senhor estar com más intenções...

AMORIM (encabulado)
Você é imprevisível.

MARINA
Sempre fui sincera, Amorim. Gosto de pensar alto, falar o que me der na telha, fazer o que dá vontade.

AMORIM
Por exemplo...

MARINA
Que esta história acabasse com um final feliz. Um happy end como em filme de Hollywood, com beijo e tudo. (Notando o embaraço de Amorim). Você tem medo de ser feliz?

MARINA APROXIMA-SE, PROVOCATIVA. FECHA OS OLHOS, FAZ BIQUINHO, OFERECE BEIJO. ZACARIAS RETORNA E FLAGRA A SITUAÇÃO.

ZACARIAS
Interrompo alguma coisa? Desculpem a demora, era um freguês chato e complicado.

MARINA
Demora providencial.

ZACARIAS
Enfim, o nosso pacto foi cumprido. E triste vê-los partir. Voltem um dia... juntos!

MARINA (cantarola)
“Quem parte leva saudades de alguém, que fica chorando de doooor... ai, ai, aiai...” (Abraçando Zacarias) Até mais, Zaca, obrigado pela hospitalidade. Só lamento não termos desmascarado o filho da puta que sacaneou tanta gente. E entregou a sua Cleusa, a nossa Cleusa.

ZACARIAS (abraça Amorim)
Ele vai aparecer ainda, com certeza.

MARINA
Tchau.

ZACARIAS
Adeus, adeus.

ZACARIAS FICA SOZINHO. O SOM DA CONVERSA RUIDOSA DE MARINA VAI DIMINUINDO. AMORIM RECOLHE A PLACA “FECHADO PARA BALANÇO”, ENCOSTA A PORTA, APAGA ALGUMAS LUZES, A ILUMINAÇÃO TORNA-SE DRAMÁTICA. O LUMINOSO “BARZAC” CONTINUA ACESO. ZACARIAS DEIXA A PLAQUETA NO ENCOSTO DE UMA CADEIRA, COM O LETREIRO VIRADO PARA A PLATÉIA. VAI ATÉ O SOM, EJETA O CASSETE E RECOLOCA-O DO OUTRO LADO. A PRIMEIRA PARTE DA GRAVAÇÃO (DE “ADIOS MUCHACHOS” ATÉ “MI BUENA MUCHACHADA”) E SÓ ACOMPANHAMENTO MUSICAL. EM SEGUIDA, ENTRAM AS ESTROFES DA VERSAO BRASILEIRA.

CASSETE
“Perfumes do Oriente... Alcovas de cetim... Um riso, um beijo ardente... — E o paraíso, enfim... A vida inteira passa... Em louca fantasia... Há prata em meus cabelos.. . Cansaço em minhas mãos... No peito eu sinto o gelo... Em vez do antigo ardor... Não há mais sol, há sombras... Nos dias meus... Adeus, rapaziada... Adeus, adeus”.

AÇÃO DE ZACARIAS DURANTE A MÚSICA: DEIXA O EQUIPAMENTO DE SOM, VAI AO BALCÃO. SERVE-SE DE DRINQUE CAUBOI. TOMA O DRINQUE NUM GOLE, JOGA O CÁLICE À MODA GREGA. PEGA O REVÓLVER, DESLOCA O TAMBOR, PÕE A BALA NA AGULHA. FAZ PONTARIA NO BUQUÊ DE ROSAS, ATIRA HIPOTETICAMENTE DIVERSAS VEZES. A SINETA TOCA. A PORTA ABRE DEVAGAR. ZACARIAS ESCONDE A ARMA, SOB A MESA (EM POSIÇÃO NAO VISÍVEL PARA QUEM CHEGA).

RESSABIADO, LENÇO NO PESCOÇO ENTRA.

LENÇO NO PESCOÇO
A putada já foi?

ZACARIAS ACENA QUE SIM. LENÇO NO PESCOÇO SENTA NO TAMBORETE JUNTO DO BALCÃO.

LENÇO NO PESCOÇO
Eu estava muito curioso. Ainda deu tempo de assistir o jornal. Não se sabe direito, mas parece que os judeuzinhos foram pro vinagre. (Como Zacarias nada responde, ele prossegue) Será que perdi um filho?

ZACARIAS
E bem possível.

LENÇO NO PESCOÇO
A mãe continua gostosa. Ótimo vê-la de novo. O que achou?

ZACARIAS DÁ DE OMBROS, ACARICIA O REVÓLVER (SÓ VISTO PELA PLATÉIA).

LENÇO NO PESCOÇO
Sente a loucura: dou-lhe uma trepada e tanto, ela goza feito histérica, nunca vi coisa igual... antes se falava furor uterino. As musas do amor livre engravidam logo e querem ser pai e mãe ao mesmo tempo. (Revelando o que o que o preocupa). Acha mesmo que o garoto era meu?

ZACARIAS
Certamente

LENÇO NO PESCOÇO
Então fiz um filho. O primeiro e único, sabe? Nunca tinha emprenhado uma mulher, em dois casamentos e muita fêmea avulsa. (Levanta-se, caminha ao longo do balcão) E a Cleusa, que tanto procura, alguma pista?

ZACARIAS BALANÇA NEGATIVAMENTE A CABEÇA.

LENÇO NO PESCOÇO
Bobagem esquentar por uma franga que nunca mais se viu. Xoxota é tudo igual. Usou, lavou, tá nova.

LENÇO NO PESCOÇO VAI ATÉ O BALCÃO, PREOCUPADO. A SINETA TOCA, ALGUÉM MEXE NO TRINCO. ZACARIAS FICA TENSO, APERTA O REVÓLVER. LENÇO NO PESCOÇO, EM PASSOS FELINOS, CHEGA ATÉ A PORTA E ABRE-A DE SUPETÃO. A VOZ ENGROLADA DE UM NOTIVAGO BÊBEDO.

NOTIVAGO
Porra, tudo escuro!

LENÇO NO PESCOÇO
Saco, não percebe que está fechado?

NOTIVAGO
Porra, por que?

LENÇO NO PESCOÇO (exasperado, impaciente).
Tchau! (bate a porta e tranca à chave. O Bêbedo solta uma praga. Lenço no Pescoço volta ao balcão). onde eu estava mesmo? Ah... o meu 38, levaram?

ZACARIAS
Não, está te esperando.

LENÇO NO PESCOÇO
E o endereço da fera, conseguiu?

ZACARIAS
Hum, hum, queria por quê?

LENÇO NO PESCOÇO (sorrindo)
Bela guerrilheira, Lenço no Pescoço atacará de novo. Mulher valente e tesuda vale o sacrifício.

ENQUANTO FALA, LENÇO NO PESCOÇO VAI AO BALCÃO, PEGA COPO, COLOCA GELO E BITTER (BEM VERMELHO).

LENÇO NO PESCOÇO (confidenciando)
Como é que pode? Trinta anos de polícia e eu igual ao caranguejo: andando prá trás, fazendo cagadas. Hoje mesmo eu teria evitado um bocado de besteiras.

LENÇO NO PESCOÇO DÁ ALGUNS PASSOS NA DIREÇÃO DE ZACARIAS, AGITANDO O COPO

LENÇO NO PESCOÇO
Primeiro: não se envolver com presos, muito menos com ex-presos. Segundo: jamais se separar da arma de fogo. Terceiro: (riso) nunca voltar ao local do crime...

ZACARIAS
De uma quarta coisa, você também esqueceu.

LENÇO NO PESCOÇO (riso de deboche)
Mais uma? Qual?

ZACARIAS (levanta-se, o revolver ainda está escondido) Nunca confiar num TRAIDOR! (Dá o primeiro tiro) Este é por Cleusa. (Dá o segundo tiro) Este é por Sula. (Dá o terceiro tiro) Este é por mim.

AO PRIMEIRO TIRO, LENÇO NO PESCOÇO CAMBALEIA; AO SEGUNDO, DERRUBA O COPO; AO TERCEIRO, DESABA. ZACARIAS SENTA-SE E DIRECIONA O CANO DO 38 PARA A PRÓPRIA TÊMPORA.

LUZ APAGA LENTAMENTE.

AO FUNDO, FORA, FICA ACESO O LUMINOSO “BARZAC”.

EM PLENO ESCURO, OUVE-SE O DISPARO DO SUICÍDIO.


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