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Libero Badaró

O Sacrifício de Um Paladino da Liberdade

Augusto Goeta

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Libero Badaró
Augusto Goeta

Memorabilia

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Í N D I C E

I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
Esclarecimentos
Nota Bibliografia


 

 

B A D A R Ó

 

 


AUGUSTO GOETA

Libero Badaró

O SACRIFÍCIO DE UM
PALADINO DA LIBERDADE


J. B. LIBERO BADARÓ
(De uma litografia distribuída por ocasião da
transladação dos despojos em 1889)


Libertá va cercando, ch’é sí cara
come sa chi per lei vita rifiuta.

DANTE


... altamente declaramos que não temos o menor medo de ameaças. Aconteça o que acontecer, a nossa vereda está marcada e não nos desviamos dela: não há força no mundo que nos possa fazer dobrar, senão a da razão, da justiça e da lei. Estamos em face do Brasil e para servi-lo daremos por bem empregada a vida. A opinião pública está bem fixa a respeito de certa gente; qualquer atentado lhe será imputado, e ficarão com um crime a mais, sem que isso acabe com os públicos escritores...“.

LIBERO BADARÓ
(“O Observador Constitucional”,
número de 17 de setembro de 1830)


 

 

I

 

A época de transição política e social, agitada por exaltadas paixões em contraste, em que D. Pedro I, monarca do ainda recém-proclamado independente e constitucional Império do Brasil, já se debatia entre as múltiplas dificuldades, que se avolumaram, mais e mais constrangedoras, até à abdicação.

Na noite de 20 de novembro de 1830, na escuridão silente de uma deserta rua da então pequena capital da Província de São Paulo, ecoou o estrondo de um tiro de pistola; e as primeiras pessoas que acudiram, encontraram ferido de morte, caido ensangüentado em frente da casa em que morava, o imigrado italiano doutor Badaró.

O estampido de uma pistola, noite a dentro; um homem prostrado no meio do caminho: não devia ser coisa para pôr em alvoroço toda uma população, naquela quadra do século XIX, nem no planalto piratiningano.

Entretanto aquela antiga Rua de S. José, transformada numa das principais artérias da moderna metrópole de São Paulo, ostentou em seguida o nome de Rua Libero Badaró, perpetuando a homenagem dos patriotas brasileiros à memória de um paladino do progresso e da liberdade: “...ele adotou a causa do Brasil como sua, e o Império então nascente contou desde logo entre as vítimas sacrificadas à sua grandeza futura o nome d’esse estrangeiro ilustre”.

É pois evidente que o arbítrio da inexorável Parca, cúmplice naquela noite num traiçoeiro malefício, tinha caido sobre uma vítima excepcional.

Isso teve que constatar depressa, muito contra sua vontade – sob o imperativo de uma reação popular que podia afetar a sua própria responsabilidade perante a côrte – o Bispo diocesano D. Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade, que governava então a Província de S. Paulo como Vice-Presidente em exercício, e que precisou recorrer a urgentes convocações extraordinárias do Conselho do Govêrno, para excogitar providências que conseguissem restabelecer a calma na cidade, pois “a noticia de que o Dr. Badaró tinha sido assassinado correu como uma centelha elétrica, e incentivava perigosa agitação”.

E como o Bispo-Governador, alarmou-se o Comandante das Armas, o coronel Carlos Maria de Oliva, opinando talvez que as manifestações, iniciadas para exigir pronto e exemplar castigo dos indigitados criminosos, pudessem, estimuladas pelos políticos liberais, tomar outro rumo: e mobilizou todas as forças disponíveis, e pediu ao Bispo que providenciasse “para lhe franquear as munições de guerra, armamentos, peças de artilharia, e mais objetos que podem repentinamente ser necessários...”

Isso teve que aprender, com muito íntimo azedume, o Ouvidor Candido Ladislau Japi-Assú, a principal autoridade judiciária da Comarca, notório inimigo figadal de Badaró (nisso sintonizando perfeitamente com o chefe da Província) e designado pela voz do povo como mandante dos assassinos. O autoritário representante da justiça imperial, transformado em acusado, e apavorado diante da exasperação popular, safou-se da sua residência. refugiando-se na do Comandante das Armas; e à custa de muitas dificuldades conseguiu, depois de pronunciado e preso, chegar a salvo, sob escolta militar, de São Paulo a Santos, e de Santos ao Rio de Janeiro, numa viagem de vinte e cinco dias em canoa de voga.

Isso quis afirmar solenemente o povo de São Paulo, quando, ao anoitecer do dia 22 de novembro de 1830, prestou à pranteada vítima espontâneas e significativas homenagens, num funeral imponente que uma testemunha de vista assim recorda: “No dia 22 eram conduzidos, a braços, da casa da sua residência, à Rua Nova de S. José, para a igreja do Carmo, os restos mortais d’esse martir da liberdade; era tão numeroso o concurso, que ainda o caixão não havia saído da casa e já o préstito entrava no templo situado no outro extremo da cidade e à grande distância.

“A luz trêmula das tochas niortuárias, os sons abafados e plangentes da música, os soluços dos inúmeros amigos do finado, o susurro doloroso e consternador de centenares de famílias pobres que faziam alas à passagem d’aquele sacerdote da medicina, cercaram aquela solenidade fúnebre de uma verdadeira e imponente majestade! Quem pôde reunir em torno do seu leito de morte uma população inteira, grandes e pequenos, ricos e pobres, levados ali não por mera curiosidade, mas por imenso pezar, a não ser uma alma justa, um coração grande e generoso?”.

E um jornal da época, confirma falando do concorrido enterro: “Não está aqui um povo inteiro, que viu n’esse funeral quase toda a população de S. Paulo?... Homens de todas as classes: eclesiásticos, militares, empregados civis, negociantes, magistrados, lentes; advogados etc. etc., todos accompanharam tristes e silenciosos essa lúgubre procissão, onde se divisava em todos os semblantes uma mistura de sentimentos, que mutuamente se combatiam; ora sobrepujava a magua, ora a indignação contra o monstro que era causador de tantos desastres juntos...”

Isso, afinal, além dos limites da província de São Paulo, a voz admoestadora dos sinos de Minas fez lembrar ao próprio Imperador.

Quando, algumas semanas depois desse triste acontecimento, D. Pedro I, confiando na força do seu prestígio, e convicto que a sua presença pudesse reavivar entusiasmos já muito arrefecidos, resolveu visitar a província de Minas Gerais, o monarca e o áulico séqüito “mais de uma vez encontraram, por coincidência incrível e mal encoberta, em vez de festejos devidos à real pessoa, ofícios mortuários a celebrarem-se em honra de Badaró. Muito significativos eram esses dobres de finados extemporâneos...”.

Deve ter sido chocante a desilusão do soberano, constatando que “onde todos os joelhos se haviam curvado, quando passara em 1822, e onde seu nome, poucos anos antes, só era pronunciado com reverência, celebravam-se exéquias fúnebres em honra do assassinado Badaró, mesmo debaixo das vistas da imperial comitiva”: em Ouro Preto, em Barbacena, noutras cidades e vilas por onde passou.

Soturno dobre que acirrava a crise já evidente: aviso do povo ao Imperador; melancólico presságio para a recém-casada segunda Imperatriz que o acompanhava naquela viagem.

De fato, o destino tinha marcado dentro em breve o desfecho.

A renúncia ao trono pela abdicação deu-se no dia 7 de abril de 1831. Seis dias decorridos, retomaram o rumo do velho mundo, para nunca mais voltar, D. Pedro I e a desencantada nova consorte D. Amélia Augusta Eugenia Napoleona – aos dezenove anos ex-imperatriz – filha de Eugênio De Beauharnais, enteado daquele Napoleão cujas hostes conquistadoras – invadindo a península ibérica, vinte e quatro anos antes – haviam pôsto o “Amabilíssimo Príncipe Regente D. João”, com toda a família real (D. Pedro ainda era bem moço) e a côrte lusitana apavorada, em fuga pressurosa do Portugal para o Brasil.


LAIGUEGLIA — A casa em que nasceu Libero Badaró


Biblioteca da Casa Badaró em Laigueglia


 

 

II

 

Foi no decorrer do ano de 1826, que chegou ao Rio de Janeiro o jovem médico italiano Giovanni Battista Libero Badaró: ádvena pertencente àquela classe que pôde justamente ser considerada como uma “elite” dos emigrantes.

Tempos duros e irrequietos, aqueles também, para os patriotas da Itália. Depois do furacão napoleônico, velhos governos restaurados e novas perseguições. A península partida e repartida, conforme o arbítrio e a sorte dos diversos dominadores. A reação revigorada implacavelmente, vigilante e resoluta em sufocar qualquer tentativa de revolta contra o absolutismo; qualquer aspiração de unidade e de independência nacional.

Os perseguidos, os infensos à tolerância da servidão política, tinham que procurar em terra estrangeira, na mesma Europa ou nas alicientes Américas (chegavam do além-mar, no velho mundo, notícias atraentes de atividades inovadoras, em países jovens valentemente libertados da antiga dominação) um abrigo; a esperança de poder desenvolver com eficiência as peculiares aptitudes num ambiente mais propício.

Êxules não empurrados por determinações econômicas – somente muitos anos mais tarde é que teve início a grande corrente da emigração proletária – foram esses emigrados, no geral, convictos assertores das novas idéias que empolgavam os povos; românticos à moda do tempo; homens de têmpera já posta à prova. Muitos houve, também entre aqueles que aportaram ao Brasil, cujos nomes ficaram enaltecidos nas páginas da História.

O decênio desde 1826 até 1836, registra no começo a chegada, na capital do Império, de Libero Badaró, e no fim a de outro denodado filho da Ligúria, predestinado a iniciar sob o Cruzeiro do Sul, a série maravilhosa de façanhas que se tornaram lendárias: Giuseppe Garibaldi, o herói de dois mundos.

Nasceu Libero Badaró, em 1798, em Laigueglia, pequena vila aprazível, a oeste de Gênova, entre opimos olivais e o mar, na bela “riviera lígure”, onde a família era de muito tempo estabelecida e tida na melhor consideração. Seu pai, o dr. Andrea Badaró, médico reputado, gozava de largo prestígio, como emérito cidadão ativa e sinceramente liberal; e muitas vezes foi escolhido para desempenhar importantes cargos públicos, enquanto perdurou a República Lígure.

Do pai auferiu o amor pelo estudo perseverante e a paixão pela liberdade; e como o pai quis ser médico.

Acabado o ensino das primeiras letras, superou brilhantemente, no R. Colégio de Gênova, os cursos secundários, e freqüentou em seguida as aulas de medicina da Universidade de Pavia.

Atraído já desde moço pelo estudo das ciências naturais, foi em Bolonha aproveitar as lições do afamado cientista prof. Antônio Bertoloni, catedrático de botânica naquela Universidade; e, finalmente, completou seus estudos na Universidade de Turim, onde também conquistou (4 de agosto de 1825) a láurea de médico e cirurgião.

Escreveu um biógrafo contemporâneo: “Desde a pia batismal o Dr. Badaró foi consignado por seu pai à liberdade: tal é a significação do nome Libero que este lhe pôs no tempo em que a liberdade raiava no horizonte de sua pátria...

“Dotado de viveza e talento não vulgares, e de um gênio ativo e empreendedor, e sempre sequioso de se instruir, fez grandes progressos em todos os estudos a que se aplicou, e na flor da sua mocidade mereceu a estima e consideração dos ilustres naturalistas Viviani, Moretti, Bertoloni, e de outros sábios principais da Itália, sua pátria, fazendo chegar seu nome aos dos países estranhos.

“O estudo das ciências não era já para ele uma rotina; era antes verdadeiro estado de ação e exercício, em que o espírito desenvolvia todo o elastério das suas faculdades, e adquiria novos conhecimentos que a ninguém devia senão a si mesmo, e aos trabalhos da própria reflexão. Assim os princípios das doutrinas médicas que bebera no seu tirocínio, nunca o fascinaram a ponto de imprimir, como ordinariamente acontece, um timbre particular a todas as opiniões de sua vida. Um prudente ecletismo regulava os passos da sua prática.

“Mas de todos os ramos das ciências que ele cultivou, a botânica e a zoologia foram os seus prediletos, e aqueles aos quais se aplicou com mais assiduidade. A botânica sobre tudo lhe é devedora de alguns conhecimentos relativos a algumas espécies e variedades, que ele ilustrou nas suas excursões feitas nas montanhas da Ligúria, no Piemonte e na ilha Sardenha. Alguns fascículos que publicou a este respeito andam pelas mãos dos primeiros sábios da Europa, e o nome de Badaró aparece citado pelo insígne De Candole”.

Seus notáveis merecimentos, a posição social e o bom êxito inicial, legitimavam portanto, como ressalta evidente, as esperanças mais otimistas para o futuro do jovem cientista na própria pátria. Mas no jogo da sua vida entrou o trunfo da política; e daí o curso de novas circunstâncias, que impôs a repentina modificação dos seus possíveis projetos.

Andava então Badaró nos vinte e oito anos. Detestava o conformismo e a rotina; e, sempre que tivesse consciência de estar no seu direito, do lado da justiça que queria para todos, obedecia ao impulso instintivo de protestar às claras, e de agir decididamente. Tinha o dote natural dum cavalheirismo cujas manifestações espontâneas eram estimuladas, mas antes que contidas, pelas dificuldades. Era o homem da linha reta.

(Tornou-se tudo isso patente, no desenrolar-se da sua breve vida, até a hora – como afirmou imparcial historiador paulista – em que “foi vil, covarde e traiçoeiramente assassinado, sendo sua única culpa o seu estremecido amor pela liberdade, e a coragem verdadeiramente romana com que defendia as doutrinas liberais que professava sem olhar a comprometimentos, sem atender a perigos”.)

Um caráter que o impropriava a sofrer a intolerância de regimes juguladores da liberdade, e portanto da dignidade, do cidadão; baseados sobre a violência ou a indecorosa arrogância do exclusivismo partidário.

O desconfiado zelo policial considerava imperdoável, não digamos agir, somente falar, ou ser suspeito de pensar, liberalmente. Chegou, por conseguinte, o dia em que Badaró teve de pensar em passar para fora do alcance do despotismo.

Nesse transe, seu espírito empreendedor não lhe sugeriu, por mais acomodatícia, a resolução cuidadosa de ficar longe o menos possivel da sua gente; mas concordando com os anseios do intelectual sempre ávido de novos conhecimentos, indicou-lhe ultramar, por terras da América, o atrativo de um raro cabedal científico, a esperança de um vasto campo para uma livre atividade.

E demandou o Brasil.

Iria começar uma vida nova num mundo novo: o maravilhoso caminho do oceano, sempre teve uma particular atração para os decididos filhos da Ligúria, descendentes dos grandes navegadores que se atiravam de encontro ao mistério, nunca hesitando por receio.


1830 – D. MANOEL JOAQUIM GONÇALVES DE ANDRADE:
Bispo Diocesano e Vice-Presidente da Província de São Paulo.


 

 

III

 

Na capital do Império permaneceu Badaró cerca de dois anos, que não foram perturbados por ocorrências desfavoráveis.

Para o recém-chegado, a cultura já adquirida na Europa, a natural força de vontade e a pronta intuição, o caráter franco e aberto atraindo simpatias, facilitaram a obrigatória tarefa inicial de normalizar a própria existência entre gente estranha (poucos eram naquele tempo os residentes italianos) e num ambiente novo, tão diferente. Aclimatar-se, na acepção ampla do termo; aprender outro idioma – já conhecia o inglês e o francês – e ganhar consideração no meio escolhido.

Revalidado na côrte o seu título de médico, a prática da profissão proporcionava-lhe os recursos indispensáveis, enquanto podia continuar a contento os estudos prediletos, pois a natureza exibia ao botânico apaixonado o tesouro da maravilhosa vegetação tropical. Sabe-se que nesse período reuniu apontamentos e desenhos para a publicação de uma monografia sobre exemplares da família das convolvuláceas, e já tinha preanunciado ao pai a remessa de uma coleção de plantas do Brasil; mas infelizmente todo esse trabalho foi depois disperso.

Desejoso, como demonstrou ser, de bem compreender a vida do país em todas as manifestações; e estudioso já experimentado também dos assuntos políticos-sociais, de certo não pôde Badaró deixar de prestar atenção à marcha da crise que, por muitos sinais, era evidente na capital irrequieta.

Arrefecido o entusiasmo que o enlevou gloriosamente quando foi proclamada a independência, D. Pedro I perdia a popularidade em troca das bajulações dos saudosistas do absolutismo, e dos conselhos interessados daqueles que visavam, apesar da proclamada independência, manter no país a reacionária influência dos antigos dominadores. Acabou, desse modo, por não ter nem a força do prestígio, nem o prestígio da força, pois que mais tarde, nas horas decisivas e angustiosas que precederam a abdicacão, até o Batalhão do Imperador passou do lado do povo em tumulto.

No ano seguinte ao da sua chegada no Rio de Janeiro, assistiu Badaró ao vitorioso início (dezembro de 1827) da “Aurora Fluminense”, o periódico fundado por Evaristo da Veiga, jornalista e político de grande renome, que saiu a campo em favor da consciência nacional, com êxito que os historiadores da época julgam resolutivo.

O terreno era propício à sementeira da propaganda pela brasilidade liberal. O comportamento do Imperador excitava a desconfiança e aumentava as fileiras dos descontentes. Muito dizia D. Pedro I se ufanar dos gloriosos títulos de “Imperador Constitucional” e “Defensor Perpétuo do Brasil”; entretanto, na prática, parecia pretender que seus súditos tivessem que se mostrar agradecidos só pelo rótulo das promessas, e que a “Brava gente brasileira” tivesse que se dar por satisfeita só com as notas do Hino Constitucional.

D. Pedro I, “sempre oscilante, entre os bafejos da popularidade e as prerrogativas de representante da dinastia bragantina”, perdeu a coroa. – comentava Armitage “por nunca ter sabido ser o Homem do seu Povo; nunca ter-se constituído inteira e verdadeiramente brasileiro. Esta circunstância, irritando o ciúme e o amor próprio dos seus súditos, o privou gradualmente daquela auréola com que o ornaram a independência e sua augusta origem; a revolução francesa de 1830 vigorou o impulso dado ao espírito público; as tropas estrangeiras foram dissolvidas; os militares nacionais uniram as suas simpatias ao partido exaltado, sem experimentarem da parte das autoridades obstáculo algum, e deste modo se tomou inevitável uma revolução...”.

Não consta que Badaró, durante a sua demora no Rio de Janeiro, tomasse ativamente parte na lide política; mas de certo, ampliando o círculo das suas relações, o impulso da afinidade eletiva avizinhou-o com preferência aos intelectuais que professavam idéias liberais. Assim é de se crer que tenha estreitado, nesse período, conhecimento com o “leader” Evaristo da Veiga, freqüentando a loja de livros, onde se reuniam habitualmente amigos e admiradores, em palestra com o afamado publicista. Sabe-se que Evaristo da Veiga conhecia o idioma italiano, e que era grande amigo de outro ilustre emigrado, compatriota de Badaró, também formado em medicina e exímio humanista: o dr. Luigi Vincenzo De Simoni, cujo nome aparece entre os fundadores da Academia Nacional de Medicina, e que, por muitos bons títulos, ainda é lembrado como benemérito no Brasil.

À roda liberal, então companheiro de Evaristo, pertenceu também o deputado de São Paulo José da Costa Carvalho, franco amigo do dr. Badaró.

O dr. José da Costa Carvalho, depois Marquês de Monte Alegre, fundador e orientador do “Farol Paulistano”, o primeiro jornal que circulou em São Paulo (7 de fevereiro de 1827), foi personagem de notável prestígio. Tendo começado a sua carreira em São Paulo (era natural da Bahia) como Juiz de Fora, tornou-se em pouco tempo um dos chefes políticos; e chegou, durante a menoridade de D. Pedro II, a fazer parte de Regência Trina do Império. Os cargos desempenhados – foi Diretor da Faculdade de Direito e Presidente da Província de S. Paulo, Conselheiro de Estado e Senador – atestam o realce da sua personalidade.

Simpatizando com o dr. Badaró, quase coetâneo, e muito apreciando o seu talento multiforme, o dr. Costa Carvalho ofertou-lhe hospitalidade e recomendações, e facilitou-lhe assim a determinação de seguir para a província: era um campo novo para o estudioso, um ambiente prometedor para suas atividades.

Foi em São Paulo que o prendeu novamente a política. Badaró tornou-se por sua vez um “leader”; mas, breve e tragicamente, um golpe traiçoeiro findou a sua jornada esperançosa.

O relevo da sua atuação e a importância da repercussão que teve o desfecho violento, estão consignados por todos os historiadores daquele período; e passando em revista as coleções dos periódicos da época, vê-se quão intensa foi a comoção da opinião pública. “A morte de Badaró – também anota Armitage – suscitou a simpatia de todos os jornalistas liberais. Seu espírito de corporação se ressentiu, e o resultado foi uma reação que se manifestou em linguagem violenta”.

Martim Francisco Ribeiro de Andrada, no “Século Paulista”, lembra o ano de 1830 por um só acontecimento: “1830. Assassinato do dr. João Baptista Badaró. Agitação na capital e em outras localidades”.

Outro Andrada, o glorioso José Bonifácio, o Patriarca da Independência, muitos anos antes, tinha fixado, em notas íntimas, claros pensamentos, com referência à situação política que se delineou seguidamente à dissolução forçada, na capital do Império, da primeira Assembléia Constituinte Brasileira: “Pedro I engana-se com a popularidade alcançada no começo, se cuida que o povo há de favorecer as suas vistas e desejos de absolutismo e de “reunião”, como se vangloria do título de Protetor que nunca lhe foi dado senão contra os Portugueses.

“Dizem que há liberdade teórica na carta, mas há escravidão dura na prática. Que vasto campo para meditar sobre a ineficácia das Leis, e a imperfeição das instituições humanas! Quando sonhávamos felicidades, segue-se um período de opressão e calamidades que não provêm de guerras, fome e peste, mas de uma administração perversa e corrompida. Quanto é, pois, vã e fútil a máxima de que as Leis fazem tudo, e que cumpre tratar mais das coisas que dos homens!”.


 

 

IV

 

Na capital provinciana, as apresentações do acatado amigo franquearam-lhe desde logo numerosas relações, e a meritória atuação tornou rapidamente o seu nome conhecido e benquisto.

Mudou-se Badaró para São Paulo nos primeiros meses de 1828. Hóspede por algum tempo do dr. Costa Carvalho (no solar da Rua do Ouvidor, hoje Rua José Bonifácio), fixou depois residência na então Rua de S. José, num prédio térreo, este também há muitos anos demolido, defronte à atual Ladeira Dr. Falcão Filho.

À porta da sua casa, modesta porém acolhedora, ninguém batia debalde; e a base inicial da benquerença alcançada, foi o desprendimento demonstrado no exercício da profissão, prestando-se ele para todos com a mesma dedicação humanitária.

Tendo logo constatado que a varíola fazia continuadamente vítimas numerosas na povoação, ofereceu espontâneo às autoridades da província seus préstimos e a vacina por ele mesmo preparada.

Sua notável atividade, não interesseira, ficou aliás patenteada não somente na prática da medicina, mas em todas as manifestações da sua incansável boa vontade. E quando foi decidida a construção dos cemitérios fora da zona habitacional, escolhendo uma comissão de “facultativos e físicos hábeis”, a Câmara Municipal apelou também ao “reconhecido zelo pelo bem público” do dr. Badaró.

Na pequena capital paulista – a atual metrópole, cujo maravilhoso progresso é motivo de legítimo comprazimento, então contava apenas cerca de nove mil habitantes nas suas quatro freguesias – a figura do prestimoso médico italiano tornou-se logo popular. “Sóbrio, frugal e afável além de instruído (lemos numa folha da época) era estimado e querido de todo o brioso povo de S. Paulo... Os pobres recebiam nas enfermidades más, o beneficio de seus caridosos e gratuitos cuidados... Dir-se-ia que instruir a si e aos outros era a paixão dominante do seu espírito, e que a ciência da Moral, da Política, e a da Natureza no seu sublime intelecto, formavam um só corpo, e eram portanto inseparáveis”.

Badaró era alto e magro. Tinha feições bem pronunciadas, larga fronte. Os óculos, as “suissas” que emolduravam o rosto pálido, davam-lhe aparência de mais idoso; mas bem juvenil era a energia no desempenho de múltiplas incumbências, era o seu entusiasmo para com todas as boas iniciativas, era a vivacidade com que sustentava, integrando-se no ambiente brasileiro, o pleito dos devotados à liberdade, apesar da sombria probabilidade de atrair sobre si o desagrado dos potentados.

No mesmo ano da sua chegada, foi inaugurado solenemente em São Paulo (março de 1828) o primeiro Curso Jurídico do Brasil; mas, por falta de docentes habilitados, algumas cadeiras dos indispensáveis cursos preparatórios ainda não estavam preenchidas. Badaró, então, gratuitamente se ofereceu para reger a cadeira de geometria, dedicando-se ao novo mister com o desvelo que sempre o caraterizou.

“A mocidade brasileira – diz um contemporâneo – corria de todos os recantos do Império a alistar-se nas fileiras dos adeptos da ciência do Direito, e o dr. Badaró, moço ainda, viu-se logo rodeado de uma grande parte dos inúmeros talentos que então surgiam no horizonte brasileiro”.

Achava-se ele otimamente no meio daquela mocidade voluntariosa; e os estudantes todos recorriam confiados à orientação do professor-amigo, que compreendia e compartilhava os anseios e os entusiasmos dos moços, norteados, naquela época de efervescência política, pelo culto dos mesmos ideais que fortaleciam a sua incoercível aspiração liberal.

“Princeps juventutis”: assim o acadêmico Osvaldo Orico evoca Libero Badaró, “paladino de sangue itálico, sacrificado pela generosidade com que, na província paulista, sustentava a causa da monarquia constitucional, congregando homens e idéias e defendendo o partido dos estudantes perseguidos pelo colonialismo do Ouvidor da comarca...

“Foi em S. Paulo – continua o brilhante escritor – no Curso Jurídico de que saiu a tradicional escola do Largo de S. Francisco, viveiro de patriotas e estudiosos, que Badaró iniciou a vocação do seu sacrifício.

“A província de S. Paulo, que fora o núcleo central da Independência, o ninho de onde partiram as asas da autonomia, lutava por fazer voltar ao leito a corrente desviada e dispersa do Império. Batia-se pela obediência à Constituição liberal. Bradava contra as manobras do gabinete secreto que açulava o despotismo do Imperador. Reagia contra a preterição acintosa dos brasileiros em holocausto ao partido português; protestava contra o martírio e execução dos revolucionários pernambucanos.

“Badaró contagiou-se e contagiou a mocidade. Foi um autêntico “princeps juventutis”. Cercaram-no logo as simpatias da classe. Essas simpatias estenderam-se depois a todo o curso. O mestre fez de sua residência um prolongamento da escola. Solteiro, seu lar povoou-se de estudantes. Com eles constituiu a sua família. Uma grande família, de que era apenas o irmão mais velho”.

A conscienciosa compreensão dos problemas que no Brasil agitavam os espíritos naquele período de transição política e social; a ligação com muitos políticos militantes, o caloroso incitamento dos muitos que nele confiavam, tiveram fácil influência sobre a sua deliberação de dar ao público paulistano um novo jornal liberal.

Esclarece a “Astréa” (folha democrática que foi publicada no Rio de Janeiro desde 1826 até 1832) a respeito: “O entusiasmo ardente d’essa mocidade que para ali afluía a uma escola nascente, trazendo, para assim dizer, a flor e o sumo das doutrinas liberais de todas as partes do Império, comunicou-se ao seu espírito e abalou seu coração, que sempre ardera pelo amor da liberdade, debaixo de cujos auspícios nascera. Suas virtudes e sua instrução o tinham disposto a prestar-se naturalmente para tudo o que fosse dirigido a beneficiar a espécie humana e a esperança de lhe ser útil com seus conhecimentos, unida aos convites de uma grande multiplicidade de vozes, que se erguiam de toda a parte contra os inimigos do sistema político estabelecido e jurado, o determinaram a desposar a causa d’este mesmo sistema, e a levantar como escritor público a espada sobre as indignidades e as maquinações dos perversos, fazendo-se para com os povos o intérprete da razão e da lei, e o órgão geral dos sentimentos da gente livre e cordata. A atividade, a constância e a coragem marcharam sempre a par da vontade e da resolução e mem uma dificuldade munca lhe serviu de obstáculo...”.

Sobre essa base quis Badaró fundar uma livre tribuna para apressar a vitória do liberalismo progressista. Apareceu então o segundo jornal de São Paulo: “O Observador Constitucional”. O segundo jornal “ao qual coube oferecer a primeira vítima em holocausto à liberdade da imprensa paulista”.


 

 

V

 

Homem que não apreciava os meios termos, Badaró deu à nova tarefa toda a capacidade do versátil talento e da firme vontade.

Às dificuldades iniciais de ordem prática, pela falta de recursos tipográficos, supriu o apoio do seu amigo José da Costa Carvalho, editor e proprietário de “O Farol Paulistano” – o único jornal então existente em São Paulo – autorizando a impressão do novo periódico na sua tipografia; e o primeiro número de “O Observador Constitucional” circulou no dia 23 de outubro de 1829, obtendo, do público paulista e da imprensa liberal do Rio, a mais animadora acolhida.

“Escreveu com tanto tino, tanta dedicação e tanto amor pela causa pública – julgava o já citado jornal “Astrea” que o Brasil acolheu das mãos de um estrangeiro o Observador Constitucional como uma produção do seu solo, tanto os princípios n’ele expendidos eram brasileiros e sãos... Com moderação e decência fez soar por toda a parte o grito da Lei, da Ordem e do Dever”.

O fundador quis logo afirmar os bons propósitos da empresa: “Deus queira (dizia o “Prospecto” impresso na primeira página) que tenhamos muito para louvar. Ele bem sabe que não deixaremos escapar nem uma ocasião que se nos apresentar. O prazer de ver que todos os membros da sociedade fazem o seu dever, em qualquer posição que sejam colocados, é tão grande, tanta satisfação se acha na felicidade comum, que palavras não faltam ao escritor público, ainda menos fecundo, para louvar, enquanto o dever de censurar torna estéril, penoso e amargoso o seu trabalho”.

Vamos transcrever mais alguns trechos elucidativos do seu programa:

“Espectadores não interessados, fora das lutas das paixões locais, procuraremos de justificar o título de Observador Constitucional, usando da imparcialidade a mais severa no apresentarmos as reflexões, que nos tiverem ocasionado os fatos que virmos praticar.

“A qualidade de estrangeiros nos põe na melhor situação possível para desempenharmos honrosamente e com exatidão a nossa tarefa.

“Sobre os atos do governo diremos mui francamente o nosso parecer, tanto em louvor, como em contrário, sem por isso darmos nossas palavras por Evangelhos, ficando cada um livre de combater a nossa maneira de pensar, sendo que cada um pensa como sabe e como pode.

“Mas se por uma parte entendemos falar com toda a franqueza, sem medo, sem receio e sem paixão, por outra evitaremos com o maior cuidado expressões indecentes, que não deturparão a nossa folha.

“As nações, apesar de longínquas, têm laços que as unem mais ou menos estritamente e não devemos viver isolados n’este mundo como tatus na sua cova, sem saber o que se passa na cova do visinho e que talvez nos possa muito interessar; em conseqüência disto uma porção da nossa folha será destinada a darmos notícias bem escolhidas do que acontece de mais interessante nos outros países, principalmente do que nos possa servir de instrução, pois é melhor aprender à custa alheia, do que à nossa.

“A nação precisa de instrução e mais nada; mas não é culpada se não a tem: 300 anos de escravidão, que passaram sobre ela, teriam feito pior, se os seus membros pelo seu natural brio não tivessem tido a coragem de furtar as poucas luzes, que os seus opressores lhe negavam com tanta injustiça. Mas do passado, já se não se fale; a nação é livre, é independente; os agigantados passos que nesses poucos anos ela deu na carreira da civilização são fiadores do ponto até onde ela pode chegar pelo futuro.

“Instrução e mais instrução, ela é o martel do despotismo, é o alicerce em que se funda o edifício da organização política. Felizes nós se com esta pequena fadiga pudermos concorrer a aumentar a instrução, principalmente das classes inferiores, fazendo-lhes conhecer os seus direitos, as leis que os garentem e os meios de os manter.

“E para obtermos mais seguramente este fim, procuraremos dar sempre algum artigo que tenda a explicar, quanto for possível às nossas tênues forças, os princípios e as aplicações da nova legislação do Brasil, de maneira que os inimigos da liberdade, se existem alguns, não tenham mais a excusa de dizerem que a nação não está ainda capaz disto, que a constituição é somente para os povos já instituídos, enquanto pelo contrário, nos parece que já se deve aproveitar do terreno inculto para deitar-lhe semente boa, e não esperar que as más sementes cresçam para obrigar os vindouros a fazerem esforços, talvez perigosos, para arrancar o que se não devia deixar crescer”.

Tal o programa do “Observador Constitucional”.

Desde os primeiros números foi evidente o alarma, no campo daquela que um cáustico político classificou como “mediocracia escravocrata”.

Na pequena capital provinciana, somente dois anos antes, não existia jornal algum que perturbasse a ingênua crença dos mandões na imperturbável perpetuidade do direito de fazer e desfazer, sem incômodo de perguntas impertinentes ou atrevimento de críticas: essa nova intrometida sentinela do liberalismo, era um detestado estorvo.

O interêsse suscitado, e a repercussão que as publicações de “O Observador Constitucional” tinham na côrte e na imprensa (vê-se na coleção da “Astrea” que muitos artigos de Badaró sairam reproduzidos no Rio) estimulavam simultaneamente a combatividade dos liberais e a hostiidade das altas autoridades.

O ardoroso propagandista tornou-se o pesadelo dos adversários apreensivos. Tendo, certa vez, “O Observador”, publicado, por simples pilhéria, o prenúnció de duas comédias satíricas, chegou à pressa da côrte uma solene portaria do Marquês de Caravelas, proibindo a representação por ordem de Sua Majestade o Imperador!

A excitação dos ânimos tinha alcançado, correndo o ano de 1830, intensidade tal, que deixava pressagiar graves acontecimentos.

Afastado, por outros encargos, o Presidente da Província José Carlos Pereira de Almeida Tôrres, Visconde de Macahé, governava São Paulo, como Vice-Presidente em exercício pela terceira vez, o Bispo D. Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade, português, ligado aos círculos absolutistas, político autoritário e intolerante.

A justiça imperial era representada pelo Ouvidor da Comarca, dr. Candido Ladislau Japi-Assú de Figueiredo e Mello, magistrado atrabiliário (julgando pelas publicações da época), politiqueiro oportunista, noto pelos abusos “com que – testemunha o jornal de Evaristo da Veiga – se tornou odioso à população de S. Paulo e adquiriu no Brasil um nome abominado”.

Contra os dois, que pela intolerância simbolizavam o despotismo reinante; e contra o procedimento de muitos funcionários públicos que, educados na prática do arbítrio, não se adaptavam a novos regimes, Badaró continuava a campanha destemido. “O Observador Constitucional”, os jornais todos da oposição liberal, não concediam trégua aos absolutistas: nem aos pequenos, nem ao mais alto. Os historiadores depõem concordes sobre a importância que teve a imprensa, no período de incerteza politica e de desequlíbrio governamental que culminou com a abdicação.

O Imperador Pedro I procurava sem sucesso, ainda irresoluto, reafirmar o seu prestígio. “Era tarde – comenta Euclydes da Cunha no seu admirável ensaio de síntese histórica “Da Independência à República” – Nas eleições de 1830 haviam triunfado, em maior número ainda, radicais e federalistas, e a imprensa, com um vigor que nunca mais teria no Brasil, dirigida pela “Aurora Fluminense” de Evaristo da Veiga, tomara a direção do movimento, tornando-o irreprimível, generalizando-se nas províncias com o “Observador Constitucional” de Libero Badaró; com o “Universal” em Minas, e, no norte, com o “Bahiano” de Rebouças...“.


JOSÉ DA COSTA CARVALHO
Marquês de Monte Megre


Os primeiros jornais de São Paulo:
“O Farol Paulistano”
de José da Costa Carvalho,
e o “O Observador Constitucional”
de Libero Badaró


 

 

VI

 

Quando o magistrado dr. Candido Ladislau Japi-Assú foi nomeado (1829) para a ouvidoria de São Paulo, a má sorte do seu frenesi reacionário decidiu que o primeiro juri por ele presidido, fosse contra “O Farol Paulistano”, do então deputado José da Costa Carvalho, processado sob a acusação de abuso da liberdade da imprensa, por ter o jornal publicado abertas críticas contra um ex-ministro.

Foi uma estréia desastrada. A sessão do juri acabou em tumulto; e naquele dia voaram pelos ares, juntamente com a papelada que estava sobre a mesa do juiz desacatado, também as suas possíveis esperanças de firmar simpatias em São Paulo.

Libero Badaró, iniciando nesse ano as publicaçées de “O Observador Constitucional”, quis defender e reafirmar, numa série de artigos, o direito à liberdade da imprensa, básico para os liberais de todos os tempos, assim como a équa repressão dos verdadeiros abusos.

Reproduzimos aqui alguns trechos desses artigos do século passado, que completam a verídica e imparcial explicação do honesto programa do “Observador”:

“Muitos já disseram, e muitos repetiram, que a liberdade de imprensa era a alma de qualquer governo fundado sobre direitos e não sobre força; mas também muitos não o entenderam ou fizeram mostra de não entender e continuaram a vociferar que tudo se não devia dizer, que ninguém se devia meter nos negócios do governo, que os empregados bons e maus se deviam respeitar por causa da boa ordem e do sossego, e mil outras coisas tão mesquinhas como estas, que descobrem o fraco destes tais e confirmam admiravelmente o ditado que “o pior surdo é aquele que não quer ouvir”.

“Tudo isto que também faz ainda alguma impressão sobre alguns daqueles que ainda falam em “nosso Rei” e sobre outros a quem toca mais de perto, nos obriga a repetir o que tantos disseram sobre as vantagens da liberdade de imprensa e não somente desta vez que principiamos a escrever, mas tantas vezes quantas forem necessárias ao depois, para corrigir estes duros de ouvido.

“Nas sociedades aonde os homens não têm parte no governo, aonde eles são propriedade alheia, aonde são coisa e não seres livres e ativos, certamente não eram consultados sobre a maneira com que se conduzia o rebanho, se tosquiava e se disimava.

“Neste estado de coisas, não era necessária a opinião pública, ninguém devia manifestá-la, porque ninguém se há de intrometer nos negócios dos outros, Mas logo que este rebanho cessou de sê-lo, quando o governo foi para bem de todos; cada um em particular concorreu a formá-lo, para vantagem própria e comum, e cada um teve deste instante o imprescriptível direito de discutir e vigiar as ações deste mesmo governo, que concorreu a estabelecer. Ninguém é perfeitamente sábio e ninguém tem tanta experiência que possa duma vez conhecer o que melhor convém, ou que não. A sabedoria de todos concorrendo a iliuminar os que estão à frente da nação, a experiência de todos reunida será sem dúvida o preciosíssimo meio que os governantes têm nas suas mãos para conhecer o que melhor convier aos governados, e mesmo a eles próprios.

“A este propósito não podemos deixar de transcrever uma passagem de Benjamin Constant, que vem extremamente a propósito para o que acabamos de dizer: “É no momento em que uma lei é proposta, quando se discutem as suas disposições, que as obras que têm relação com esta lei podem ser úteis. Os panfletos em Inglaterra acompanham cada questão política, até no seio do parlamento, e desta forma toda a parte pensante da nação intervém na questão que lhe interessa. Os representantes do povo e o governo, vê-se-lhes apresentar de um golpe todos os lados de cada questão e todas as opiniões atacadas e defendidas. Aprendem não somente toda a inteira verdade; mas também, o que é tanto importante como a verdade abstrata, aprendem como é que a maioria, que escreve e fala, considera a lei que estão para fazer, a medida que estão para adotar. São instruídos do que convém à disposição geral; e o perfeito acordo das leis com esta disposição, compõe a perfeição relativa das leis, talvez mais necessária do que a perfeição absoluta”.

“Sem liberdade de imprensa, todas estas vantagens estão perdidas; a lei se decreta, e os espíritos que teriam iluminado os legisladores, se tornam inúteis; e enquanto uma semana dantes teriam indicado o que precisava fazer, agora provocam a desaprovação contra o que se fez.

“Quando querendo servir aos próprios interesses e vinganças um ministro espalhará os sustos e o terror, qual será o superior que tomará conhecimento dos seus crimes? O soberano? Sim, se o ministro criminoso não achasse os meios de fechar qualquer adito ao trono, se não tivesse a ousadia de enganar o monarca, e mesmo de multiplicar impunemente as persecuções sobre os queixosos. Luiz XVI, no princípio do seu reinado, querendo conhecer a opinião pública acerca dos negócios do dia, encarregou secretamente um livreiro de lhe deitar em uma caixinha, da qual o rei só tinha a chave, todos os opúsculos que acerca dos negócios públicos saissem à luz. O negócio por certo tempo andou bem; mas o ministro que não tinha interesse que o rei soubesse como aquilo marchava, fez prender o livreiro e metê-lo na Bastilha. O rei achando a caixa vasia, mandou chamar o livreiro e muito teve que se admirar, quando lhe foi respondido que estava preso por ordem de S. M...

“E se não é a liberdade de imprensa, que faça chegar ao ouvido dos imperantes gemidos dos oprimidos, qual será o outro meio? Se é do maior interesse, que o trono seja rodeado de luzes, que o soberano não ignore nada do que pode concorrer a formar a felicidade dos seus súditos, ou pelo menos aliviar os seus padecimentos, deixemos que a liberdade de imprensa dissipe as tenebrosidades com que ordinariamente os reis são cercados, e que retardam inevitavelmente a prática dos desejos, que os bons reis têm a favor dos seus povos.

“Os homens que pensam são os que governam o mundo, a opinião dos sábios, apesar de todos os pesares, é que determina as leis, a forma do governo, a conveniência ou desconveniência das instituições políticas; este movimento imprimido pelos pensamentos dos sábios à marcha social, que tende sempre à perfeição, tanto mais rápido será quanto maior será o número de pensadores e a liberdade de imprensa estabelecida entre um povo livre tende admiravelmente a multiplicar este número. Não são somente as instituições políticas, que devem os seus maiores e rápidos progressos à liberdade de imprensa; as artes, as ciências, a civilização toda é intimamente ligada a ela.

“De todas as garantias que o pacto social concede aos cidadãos, parece-nos que a liberdade inteira de publicar os seus pensamentos (salvo responder pelos abusos) seja aquela a que menos se deve atacar; por isso que em certa maneira é o guarda de todas as outras.

“É por isso, que a liberdade de imprensa torna-se a melhor garantia do governo, quando as suas operações não são escondidas e tenebrosas, pois que tendo sido discutidas, examinadas pela nação e adotadas aquelas que mais com o voto dela se conformam, ela tem um interesse particular de sustentar a sua obra e de repelir qualquer ataque que se tencionasse fazer-lhe. Mas pelo contrário quando tudo se faz às escondidas, quando o cidadão ignora o motivo e a utilidade das medidas do governo, quando vê os inconvenientes sem ver as vantagens, então se entregará às desconfianças, às maquinações, deixando-se facilmente seduzir pelos hipócritas, que vociferando continuamente as vantagens do povo, querem somente pescar nas águas turvas.

“O direito de segurança individual, precioso para cada cidadão, é debaixo da imediata dependência da liberdade de imprensa, e ninguém certamente atrever-se-á negá-lo, se quiser se lembrar a facilidade com que se pode secretamente violar esse direito; e como seja difícil de sabê-lo, e portanto reparar esta violação.

“Nos não lembramos bem agora em qual dos diários ministeriais temos lido, que as declamações da imprensa liberal estorvavam a marcha do ministério. Não duvidamos que seja verdade, e damos por isto sinceros parabéns ao Brasil, pois sempre temos visto que as “declamações” da imprensa liberal eram dirigidas constantemente a melhorar as instituições constitucionais, e a diminuir os abusos e as violações que continuamente contra a constituição se praticavam...

“Um governo que quer o bem dos cidadãos não tem que temer dela: procura-se de ajudá-lo e não de estorvá-lo, não há senão os loucos que gritem contra o bem, ou talvez aqueles a quem o bem geral não faz conta, porque se não liga com o seu particular. Os privilegiados ou os que desejam sê-lo, têm medo que estes privilégios pretendidos sejam submetidos ao público intuito, têm medo que as acumulações apareçam, que a ignorância, a injustiça sejam expostas à luz do dia.

“Incapazes de resistir à evidência dos argumentos positivos sobre que se apoia a necessidade de imprensa, os amigos das trevas se vestem da capa da moral e do sossego público, apontam os abusos desta liberdade, a calúnia, a difamação, as provocações diárias, os axincalhes continuados, que tornam a vida um suplício. É, meus Deus! Os abusos? E de que se não abusa neste mundo? Forte raciocinio! E porque se abusa de uma qualquer coisa, já já suprima-se? E aonde iríamos com estas supressões? Um mau juiz abusa do seu ministério: suprima-se a magistratura; um mau sacerdote abusa da religião: suprima-se a religião; um mau marido abusa do matrimônio: suprima-se o matrimônio! Forte raciocinio! Suprimam-se os abusos que será melhor...

“Nada há de mais baixo, de mais vil, de mais criminoso, que mereça mais todo o peso do público opróbio, do que aquele que prostitui a sua pena com sátiras indecentes, vitupérios insultantes, expressões vergonhosas, que alguns, tendo pejo de proferir em companhias polidas, têm a imprudência de imprimir...

“A publicação da prevaricação tira a máscara à hipocrisia, excita a atenção geral: todos os olhos são fixos sobre o criminoso. Ele, cercado pela pública vigilância, não pode afastar-se outra vez dos deveres que a lei lhe impõe. A hipocrisia é uma homenagem que o vício rende à virtude, diz La Rochefoucauld; nenhum homem, por mau que seja, quer ser tido como tal, cada um faz todos os esforços ao seu alcance para conservar a opinião dos seus concidadãos, e quando alguém diz que não lhe importa do que se possa dizer dele, mente e não fala em consciência: ora, pois, que punição terrivel não será para o malvado a falta desta opinião?...“

“A lei contra os abusos existe; sirvam-se dela; e se não é boa faça-se outra; e liberdade a todos de esclarecerem os legisladores pela imprensa livre...“.

Cento e quatorze anos decorridos, poderiam os artigos de Libero Badaró, ter ainda palpites interessantes?


O número 17 marca onde existiu a casa em que morava Badaró, na antiga Rua de São José
(De Freitas. Plan’Historia da Cidade de São Paulo 1800-1874)


REPRODUÇÃO DE UM AUTÓGRAFO DO DR. BADARÓ
(Rev. do “Estado de São Paulo”)


 

 

VII

 

A agitação política generalizada, no declínio de 1830, refletia os pródromos dos acontecimentos que poucos meses depois irromperam na capital do Império.

As campanhas que Badacó sustentava em São Paulo, no “Observador Constitucional”, ao lado dos muitos talentos brasileiros votados à defesa dos mesmos ideais, desprezando a calúnia, desmascarando perfídias, denunciando abusos, repelindo alterosamente as ameaças, dizendo verdades sem rebuço, cercavam o paladino de muitos devotados amigos; mas acirravam também o rancor vingativo dos adversários, que se julgavam impelidos à ousadia, pela notória animosidade das altas autoridades contra o intemerato liberal.

Para silenciar de vez o inflexível publicista que pedia para todos a luz do progresso e da liberdade, foi urdido nas trevas um golpe traiçoeiro.

Na noite de 20 de novembro de 1830, dois indivíduos foram decididamente à procura do dr. Badaró; e uma sinistra expressão de malvadez mostravam de certo suas fisionomias, porquanto depois se apurou durante o processo, que um português Antonio José da Lima, vizinho, “deu abrigo à cozinheira do doutor Badaró, uma parda de nome Antonia, que lh’o foi pedir, receiosa de dois alemães que procuravam o seu patrão, nos quais percebeu atitudes suspeitas”.

Costumavam os companheiros, depois das reuniões amigáveis, acompanhar o jornalista quando se recolhia para sua residência. Naquela noite quis o destino que voltasse sozinho, facilitando assim o plano criminoso dos dois abjetos malfeitores, que ficaram esperando em frente da casa. Quando um tiro de pistola e os gritos da vítima alertaram a vizinhança, e as primeiras pessoas acudiram, já os sicários tinham desaparecido na escuridão.

Neste passo, parece-nos legítimo escrúpulo não deixar à fantasia possibilidade alguma de procurar efeitos emotivos com trabalho de ficção; e reproduzimos fielmente as palavras da única testemunha que deixou escritas as suas recordações, o dr. Joaquim Antonio Pinto Junior, então jovem estudante, que esteve naquela noite perto do ferido: “... Um numeroso concurso de estudantes de direito corria a chamar nosso prezado pai, o cirurgião-mor Joaquim Antonio Pinto, para que fosse prestar os socorros da ciência ao seu infeliz colega; nós o acompanhávamos, e ao chegar à pequena casa térrea em que habitava a vítima, na Rua de S. José, dificilmente pudemos atravessar a onda de povo que literalmente enchia toda a rua.

“Badaró estava deitado sobre um leito, alagado em sangue, pálido, com essa palidez da morte que lhe estava próxima, a larga fronte banhada de um suor frio, o pulso linear, mas o rosto sereno e a palavra sonora.

“Aos amigos que o cercavam, aos colegas que o procuravam iludir acerca da gravidade do ferimento, ele respondia tranqüilo: Não me iludem, eu sei que vou morrer. Não importa. Morre um liberal, mas não morre a liberdade. Palavras memorandas que a tradição conserva ainda cheias de vida, e que as successivas gerações levarão à mais remota posteridade para que todos conheçam com quanta resignação morre aquele que se sacrifica por uma causa santa.

“Lia-se a consternação e o desânimo no rosto dos facultativos que correram a prestar os socorros da ciência ao infeliz colega; pairava em todos os espíritos a triste e desanimadora realidade: Badaró está mortalmente ferido!...

“A multidão imensa que se apinhava na frente da casa, conservava um aspecto doloroso, mas imponente; não houveram vociferações em torno ao leito do moribundo, porém lágrimas, soluços abafados e solenes protestos contra os assassinos, que apontavam sem rebuço.

“Às 11 horas da manhã do dia 21, lhe foi levado o sagrado Viático acompanhado de um numeroso concurso, no qual se achavam, salvas muito poucas exceções, todos os acadêmicos de então...

“O dr. Badaró recebeu o sacramento e as consolações da igreja cristã com o maior recolhimento, com o mais profundo respeito... Suas palavras eram todas de mansidão...

“Dores cruéis, ardente sede, martírio prolongado, sofreu o infeliz Badaró, e 24 horas depois do atentado, pelas 10 horas da noite de 21, na idade de 32 anos, inclinou a cabeça e dormiu para sempre o sono dos justos!”.

Acrescentamos à comovida evocação, as informações contidas na cópia de dois interessantes documentos:

Dos autos da devassa “ex-officio”. Interrogatório do dr. Badaró, pelo juiz José da Silva Merciana: “.... Vindo de recolhida para a sua casa, pelas 101/2 para 11 horas, ao chegar à porta avistou dois homens sentados; e levantando-se lhe perguntaram se era ele o dr. João Baptista Badaró; e respondendo que sim falaram-lhe para servir de empenho para com o desembargador ouvidor da comarca, Candido Ladislau Japi-Assú, sobre umas farinhas de trigo; e respondendo ele dr. que não era amigo do dito ouvidor, foi a resposta dar-lhe um deles um tiro de pistola, que foi empregado no ventre, e que depois partiram; e conheceu ele que eram dois alemães; e não está certo como estavam vestidos, mas está certo que um estava de chapéu, e outro nada tinha na cabeça; e que conheceu serem alemães pela fala, mas não pelas pessoas, e que não havia mais alguém. E sendo presente o facultativo Joaquim Antonio Pinto, cirurgião-mor do sétimo batalhão de Caçadores de 1.ª linha, passou se ao exame dos ferimentos...

“O juiz pediu ao paciente que declarasse, suposto não conhecesse os alemães por pessoas, se desconfiava de onde lhe viesse este mal, declarou desconfiava lhe viesse do desembargador ouvidor Candido Ladislau Japi-Assú”.

Do ofício de 22 de novembro de 1830, do mesmo juiz, contendo o relatório da autópsia: “Presentes os Drs. Físico-mor das tropas Justiniano de Mello Franco; Joaquim Antonio Pinto; Francisco Alves Machado de Vasconcellos; dr. Luiz Napoleão de La Plane (francês); João Manoel Lopes de Carvalho Pimentel, deu-se princípio à autópsia cadavérica. Acharam uma ferida combusta situada na parte lateral direita da região hipogástrica, quase no fim do músculo piramidal do mesmo lado, tendo 3 linhas de diâmetro externo, e de profundidade tal que o quarto de bala foi encontrado na parte anterior e lateral esquerda do osso sacro, por onde se viu que aquele corpo extranho atravessou o abdomen da parte anterior à posterior, não ferindo em seu trajeto senão levemente o intestino colon, porém dividindo um ramo da ilíaca do que se seguiu a morte em conseqüência da hemorragia interna... Este ferimento produziu no estado fisiológico do paciente um estrago tão iminente que nos primeiros momentos de tal acontecimento logo se apresentaram traços gerais de mortalidade que bem faziam conhecer pelo rosto hipocrático, respiração anelante, que o termo da vida seria o resultado de tal desastre” (cfr. Egas “Estudos”. V. Nota bibl.).

No mesmo dia dos funerais, “O Observador Constitucional” (22 de novembro de 1830) publicava, noticiando o fim trágico do fundador do jornal, um vibrante artigo: “Um acontecimento horrível acaba de perpetrar-se nesta cidade. O Dr. João Baptista Badaró, redator desta folha, acaba de ser indignamente assassinado. Na hora em que traçamos estas linhas, já não existe o corajoso defensor da causa brasileira. Negra traição!...

“O punhal dos assassinos tem dignamente ornado a mão desses monstros, que pretendem arrancar-nos a nossa liberdade, cevar sua ambição e orgulho nas mercês e honras, que um governo traidor tem prodigalizado aos inimigos das instituições juradas, e da reforma da administração pública. Marcados pela opinião com o ferrete da infâmia, fingem desprezá-la, incensando unicamente as aras do poder e da venalidade. O descrédito geral tem para com o governo achado crédito, e título de louvores.

“Pois nada valem e podem contra o clarão com que o facho da liberdade da imprensa alumia seus vícios, as suas prevaricações; lançam mão de arma homicida. Pensam assim os míseros sufocar as vozes da liberdade corajosa...

“Os liberais têm esgotado o calix da paciência e da amargura. Temam de represálias. Tremam da hora fatal. Então todo o sangue desses monstros, será pouco para lavar as nódoas de horror, que têm manchado as páginas da nossa história...“.

Na capital do Império, o jornal de Evaristo da Veiga (“A Aurora Fluminense”, número 421 de dezembro de 1830) informava com palavras de grande indignação: “Um horrível atentado acaba de enlutar a Cidade de São Paulo. Um monstro, para ali mandado pelo Governo, a fim de perturbar aquela população tranqüila e constitucional, vem de monstrar para quanto é capaz a sua alma, e de justificar todas as suspeitas que haviam já nascido sobre atos anteriores da sua vida. Investido de autoridade judiciária, encarregado portanto de conservar a ordem, serve-se do braço do assassino para perpetrar uma atroz vingança; enraivado de não poder satisfazer os seus projetos de engrandecimento pessoal, vendo que a devassa das algazarras e os outros meios pueris que empregara, não surtiam efeito, atribuiu estes contratempos à imprensa livre e não ao seu sombrio frenesi...“.

E o jornal “Astrea” (número de 11 de dezembro de 1830) publicava: “O Dr. João Baptista Libero Badaró, ilustre médico e diretor do “Observador Constitucional” de S. Paulo, já não existe! A mão de fascinorosos mercenários, comprada por um malvado, o roubou às Ciências e à estima do reconhecimento dos paulistanos e de todos os brasileiros constitucionais. O pranto dos amigos da Liberdade, corre sobre seu túmulo, e a gratidão que triste e saudosa o cobre de flores e de lauros, deseja levantar um monumento à sua memória. Ela vai colocar esse monumento nas páginas da história, traçando as particularidades que ilustraram a vida, e que glorificaram a morte do seu benemérito. Assim o novo martir da Liberdade será assaz conhecido, e a voz da calúnia não contaminará as suas cinzas...

“Vingar uma morte que tanto sente e honrar os restos e a memória do defensor de seus direitos, são os cuidados que ao Brasil ficam: é o que por ele o grato e leal povo de S. Paulo tem sabido desempenhar, fazendo à ilustre vítima o mais pomposo dos enterros que se viram, e armando-se todo para fazer prender e castigar os assassinos...“


BADARÓ NO LEITO DE MORTE
(O original de Hercules Florence pertence ao
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo


São Paulo Antigo – O Convento e a Igreja do Carmo,
onde foi sepultado Libero Badaró em 1830


 

 

VIII

 

Não é verdade que Libero Badaró – como já opinou um dos seus biógrafos – fosse “em seu entusiasmo levado até a beira do abismo, sem sentir a rápida inclinação do terreno em que descansava os pés”.

A documentação da época comprova que ele sabia perfeitamente quão movediço e perigoso fosse o terreno em que voluntariamente se colocara, levando por diante uma ousada propaganda de oposição. Sabia também, pelos informes solícitos de amigos devotados, que ameaças de morte pendiam sobre sua cabeça; mas quis permanecer firme na trincheira do “Observador Constitucional”, proclamando que desprezava o perigo e que nunca deixaria de obedecer ao imperativo da consciência, pois tinha lealmente adotada como sua a causa do Brasil liberal. Isso é que enaltece a nobreza moral da personalidade do entusiasta paladino. Quando, meses antes do atentado, alguns amigos apreensivos, assinalando o risco de cruentas vinganças, aconselhavam cautela, Libero Badaró publicou (número de 17 de setembro de 1830) no seu jornal:

“Muito agradecemos a esses amigos: mas altamente declaramos que não temos o menor medo de semelhantes ameaças. Aconteça o que acontecer, a nossa vereda está marcada e não nos desviamos dela: não há força no mundo que nos possa fazer dobrar, senão a da razão, da justiça e da lei.

“Estamos em face do Brasil e para servi-lo daremos por bem empregada a vida. A opinião pública está bem fixa a respeito de certa gente; qualquer atentado lhe será imputado, e ficarão com um crime a mais, sem que isso acabe com os públicos escritores”.

Nem poderia alguém, incrédulo, supor que se tratasse de artifício jornalístico, para fazer alarde de valentia, pois que mais tarde, durante o processo, testemunhas de responsabilidade, confirmaram nos seus depoimentos ter informado diretamente o redator de “O Observador Constitucional” do perigo que estava correndo:

O sacerdote P. Manoel Joaquim Leite Penteado, capelão do hospital militar de S. Paulo, disse que “era voz pública estar a morte de Badaró premeditada há mais tempo... Que a inimizade do Ouvidor ao Badaró provinha deste ter censurado e falado a verdade nas suas folhas. Ele mesmo, depoente, preveniu ao Dr. Badaró que se acautelasse, pois que o Ouvidor lhe poderia fazer alguma fúria...”.

O sargento-mor Antonio José Bordini: “preveniu o Dr. Badaró para se acautelar não saindo à noite, pois lhe poderiam fazer mal. Sabe por ouvir publicamente, que o Dr. Badaró fora assassinado por dois alemães, a mandado do Ouvidor Dr. Japi-Assú...”

E o próprio escrivão da Ouvidoria, Amaro José Vieira, “disse que, em razão do seu ofício, conheceu a indignação que o Ouvidor tinha contra o Dr. Badaró, chegando a falar em tirar-lhe a vida, sentindo-se capaz de dar liberdade a um escravo para dele se vingar. Para evitar algum acontecimento funesto, ele depoente muitas vezes disse ao Dr. Badaró que se acautelasse e que não andasse desprevenido, e que foi talvez por isso que o mesmo Badaró disse pelo seu jornal que apesar de avisado não temia a morte... No dia seguinte ouviu geralmente que o Dr. Badaró fora assassinado por 2 alemães a mandado do Ouvidor Japi-Assú... Que o alemão Stock tinha grande intimidade com o Ouvidor, cuja casa freqüentava familiarmente...“.

Demais, prescindindo dos sobreavisos alheios, não seria razoável admitir que Badaró, homem de ciência e de experiência, cujo entusiasmo tinha raízes na profunda convicção e não receptava impulsos irrefletidos, não percebesse as possíveis extremas conseqüências de uma luta aspérrima desde o início.

Muito evidentes ressaltavam os riscos da oposição política, no meio de desenfreadas paixões, contra exacerbados adversários colocados no alto.

(Disso teve, mais tarde, violenta confirmação também o ilustre orientador da “Aurora Fluminense”, Evaristo da Veiga, quando os antagonistas tentaram, mas felizmente não conseguiram, anular a tiros de pistola o sucesso da sua patriótica atuação.)

Ter prosseguido sem hesitar, com plena consciência do perigo, é que comprova a exemplar firmeza do homem, a sinceridade da dedicação prometida à pátria adotiva, a feição retilínea do seu caráter.

Afirmando ter reconhecido como alemães os infames sicários – informa “O Farol Paulistano” de 23 de novembro de 1830 – Badaró acrescentava: “Para honra do Brasil, não foi entre os aqui nascidos que se achou a quem assalariar para um tal feito”.

E já encarando a morte de perto, aos companheiros que ficavam em liça pela vitória do Brasil liberal, recomendava não planear vinganças sempre odiosas, e deixar que só os absolutistas “usassem de meios tão próprios dos sentimentos vis”.

Tal o imigrado, que, muito merecidamente, o Visconde de Taunay (o ilustre brasileiro cujo centenário foi há pouco comemorado) colocava em destaque, publicando uma imparcial resenha, entre “os estrangeiros ilustres e prestimosos, que concorreram, com todo o esforço e dedicação, para o engrandecimento do Brasil”.

Interessante é também relembrar que, assim como o apreço pelas benemerências do paladino, continuou no Brasil o nome de Badaró.

Vivo apesar da sangrenta repressão das primeiras conspirações, também na província de Minas Gerais o espírito liberal empolgava os patriotas. Vinha de longe o incitamento. Um eco mais que secular, repetia aos moradores da montanhosa as palavras que Felipe dos Santos, enforcado e esquartejado em Vila Rica depois da insurreição de 1720, proferiu no cadafalso: “Jurei morrer pela liberdade, cumpro a minha palavra”. Nem tinha o tempo apagado o recordo da malograda conjura patriótica de 1789, que a história registra com a denominação de Inconfidência Mineira, e que fixou para sempre, na figura de “Tiradentes”, um símbolo da confiança inabalável no triunfo dos ideais pelos quais os povos sofrem e combatem.

O sacrifício de Libero Badaró, como já assinalamos, teve grande repercussão naquela província.

“Uma dor inesprimivel – reportava “O Pregoeiro Constitucional” de Pouso Alegre, noticiando o assassínio – te arrancou a milhares de corações que te estimavam. Tu mesmo no meio da serenidade com que encaravas a morte, os deixaste com pesar; mas a glória que de ti fica, é uma vida imortal incomparável com a que perdestes. Uma morte em cuja vingança um povo inteiro se interessa, não é, nem pode ser encarada como uma desgraça...”.

Liberal dos mais entusiastas, o chefe de distinto lar brasileiro, em Minas Gerais, deliberou então adotar o nome da vítima do ódio dos absolutistas e formou-se assim uma nova família Badaró, ligada aos Badarós de além-mar, não pelo vínculo do sangue, mas por nobres vínculos ideais.


SÃO PAULO (1830) – MISSA EM MEMÓRIA DE BADARÓ
(De um desenho de Hercules Florence)
Quadro do pintor Alfredo Norfini.
Museu Paulista


 

 

IX

 

O crime ficou impune.

São Paulo passou muitos dias em contínuo sobressalto, pois o povo começou a protestar violentamente contra a morosidade da justiça, e a contemporização do Bispo D. Manoel, que muito se preocupava com manter a ordem na cidade, ostentando excepcional aparato de força; mas parecia querer ganhar tempo a favor dos culpados.

Grupos armados percorriam as ruas, reclamando a prisão dos indigitados executores, os alemães apontados desde as primeiras horas, e também do mandante, que a “vox populi” clamava ser o próprio Ouvidor Japi-Assú.

Conta (no número de 22 de novembro de 1830) o “Observador”: “Foram conhecidos os assassinos, entretanto as autoridades dominam até que o povo paulistano amigo da justiça e zeloso de seus direitos, perseguiu os homicidas, ocultos em casa do infame Japi-Assú, e os conduziu à prisão. Deviam imediatamente as autoridades competentes pôr todos os meios, para que aqueles homens não se evadissem; entretanto passaram-se 12 horas sem que se procurassem os meios de conseguir os facinorosos, então o povo já magüado de que se esquecessem da lei, pediu, instou, e por si mesmo ofereceu-se para a execução da justiça...”.

No assassínio do redator de uma folha liberal, e no comportamento da suprema autoridade, via o povo atacadas de frente as públicas garantias e liberdades; e as demonstrações tornaram-se tão ameaçadoras que foi preciso reunir urgentemente o Conselho do Governo.

Fazia parte então do Conselho do Governo de São Paulo um cidadão insígne que alcançou depois, pelas proeminentes qualidades, altíssimo posto na história do Brasil: Diogo Antonio Feijó. E deve-se, parece, à sua intervenção ter conseguido solucionar o difícil problema de, ao mesmo tempo, subtrair o magistrado Japi-Assú à vingança popular, e acalmar a cidade: problema que o autoritarismo e o rancor pouco... evangélico (é o que demonstram peças oficiais da época) contra Badaró e os liberais, da parte do Bispo-Governador, teriam possivelmente complicado.

“Diogo Feijó percebeu, de relance – resume o historiador Eugenio Egas – que a vida do Ouvidor Candido Ladislau Japi-Assú, corria grave perigo. Pediu ao Bispo Presidente uma reunião dos membros do Governo, e fez espalhar na cidade a notícia de que os alemães da colônia de Santo Amaro vinham atacar a cadeia, onde estavam presos os dois alemães autores do crime de morte na pessoa de Badaró. Desta maneira, por sua iniciativa, o Governo deliberaria com responsabilidade coletiva, e a multidão que estacionava em frente da casa em que Japi-Assú se havia refugiado, iria postar-se em defesa da cadeia. Foi o que se deu. Japi-Assú viu-se livre da impetuosa fúria popular, e a cadeia ficou perfeitamente guardada”.

Conseguiu assim o juiz Japi-Assú, que concordou (sic) em ser considerado como em custódia a bem da sua segurança, sair da casa do Comandante das Armas onde se abrigara apavorado, e deixar São Paulo, rumo a Santos, acompanhado por um oficial do exército; e foi em seguida possível apaziguar o povo, anunciando que o Ouvidor tinha sido preso e remetido ao Rio de Janeiro, para ser entregue às ordens do Ministro da Justiça, e que os alemães encarcerados, Henrique Stock e João Nicolao Dieterich, seriam julgados em São Paulo.

De fato o processo criminal correu os seus trâmites, e a Junta de Justiça de S. Paulo condenou Henrique Stock “a galés perpétuas”, absolvendo o segundo acusado. Um terceiro alemão, um tal Jozé Paschoal da colônia subsidiada de Santo Amaro, que tinha sido preso como cúmplice, foi posto em liberdade durante a devassa. O julgamento do Ouvidor dr. Japi-Assú teve lugar, após de muitas delongas, na capital do Império, e o juiz suspeitado foi absolvido, por sentença de 18 de junho de 1831, pelos magistrados seus colegas do Tribunal da Relação.

Também o processo do alemão Stock, pela interposta apelação, passou de São Paulo ao Rio de Janeiro; e, na côrte, o mesmo Tribunal da Relação, que já havia posto em liberdade o indigitado mandante, absolveu o indigitado executor. O assassínio de Libero Badaró ficou portanto impune, e o desfecho continuou sendo tema de apaixonadas discussões.

Muitos anos decorridos, o dr. J. A. Pinto Jor., já citado, publicando a sua memória, narrava que se achando, em 1850, nas vizinhanças da cidade de Santos, tinha ouvido dizer de alguém que o verdadeiro assassino do infeliz Badaró era um solitário miserável que ele teve ocasião de ver junto à barra da Bertioga: “... um velho de longas barbas brancas, alquebrado pelos anos, senão pelos remorsos; a velhice, que chama a atençâo de todos e inspira respeito, naquele vulto sinistro incutia repugnância... Esse desgraçado fez cair ensanguentado a seus pés um apóstolo da liberdade, e não achando depois quem aprovasse ou premiasse semelhante crime, corrido de remorsos, vergado ao peso da reprovação geral, foi viver vida obscura e desprezada na solidão das matas, donde nunca devera ter saído...”. Mas, limitando-se à imprecisa referência, o dr. Pinto Jor. não publicou o nome do esquivo indivíduo, nem o nome do informador, nem comprovação alguma.

Mais anos ainda decorridos, apareceu no jornal “O Rebate” (órgão de propaganda republicana fundado em São Paulo, em 1888, por Júlio Ribeiro, eminente filólogo romancista) uma nova versão. Reconstruindo, com fartura de detalhes, a cena do velho crime da Rua de S. José, “O Rebate” publicou (número de 26 de junho de 1888) que o verdadeiro assassino de Libero Badaró foi um oficial do exército, um tal tenente dos Caçadores Carlos José da Costa, “vindo por terra do Rio a São Paulo para executar a “sentença” sob promessa de ser promovido ao posto de capitão”. O oficial, indigitado como emissário da famigerada “Coluna do Trono”, não conhecendo o “condenado”, teria sido auxiliado na delituosa empreitada, pelo tal alemão Henrique Stock, que do rol de executor principal passava assim ao de cúmplice.

A nova versão, reproduzida em sucessivas publicações comemorativas, às vezes com variantes fantasiosas, tem sido largamente divulgada. É uma narrativa interessante, mas evidentemente romanceada. O artigo sensacional, não teve ulteriores garantias documentadas; e não concorda com as crônicas da época, nem con a documentação até agora conhecida, nem com as declarações do próprio Badaró.

Acham-se portanto os estudiosos, ainda hoje, diante dos mesmos pontos de interrogação, que tiveram respostas desencontradas depois das sentenças absolutórias da Relação da côrte.

Confirma Rocha Pombo, na sua História do Brasil: “Suscitando a simpatia de toda a imprensa liberal, a morte de Badaró, considerado como um martir da liberdade, vem pôr o país ainda em maior agitação. Todos os jornais fizeram-se solidários numa reação violenta contra o governo, que se sabia estar protegendo os assassinos do jornalista sacrificado”.

É certo que naquela época, que já vai tão longe, de exaltadas paixões, esses pontos de interrogação facilitaram à propaganda política muitas audazes conjeturas.

O ilustre historiador Pedro Calmon, na sua ótima “História da Civilização Brasileira”, refere a mais ousada:

“D. Pedro julgou poder vencer também o jacobinismo nascente no Brasil, a indisposição dos patriotas e a prevenção, cada vez maior, da província de Minas Gerais. Não o conseguiu; Minas não elegeu o próprio ministro do Império que acompanhou o imperador na sua viagem às montanhas - viagem impopular e melancólica, que produziu resultados contrários aos que obtivera D. Pedro I em 1822. Por toda parte o acolheram a frieza, o susto, a indiferença ou a hostilidade dos mineiros. Em Ouro Preto sinos dobraram a finados quando se avizinhava o imperador... Era em memória do jornalista Libero Badaró, assassinado em S. Paulo, dizia-se que a mando do imperador...”.


 

 

X

 

Chegou o epílogo da monarquia: o 1889. A confirmação dos direitos do povo, e a queda de um trono, que já representava, cercado de repúblicas, “a exceção americana”.

Desfraldando a nova bandeira, os que tinham vitoriosos alcançado a meta, não podiam descuidar um preito de honra aos precursores: aqueles que haviam combatido, firmes até o sacrifício, aplanando o caminho para o triunfo da idéia liberal.

E foi mesmo na quadra de entusiasmo dos primeiros dias republicanos, que em São Paulo, com solene cerimônia cívica, foi exaltada a figura do paladino da Liberdade.

A transladação dos restos mortais de Libero Badaró dá igreja do Carmo para a necrópole da Consolação, deu ensejo para uma significativa manifestação. Os novos dirigentes, os ilustres políticos da propaganda, juntaram-se solidários, perto da urna funerária, aos compatriotas do homenageado, honrando a memória do voluntário benemérito.

Desde algum tempo, a coletividade italiana, entremente muito acrescida e que dava alacremente a contribuição da sua operosidade ao admirável desenvolvimento de São Paulo, já manifestara o propósito de uma pública homenagem ao ilustre compatriota. O grato projeto pôde finalmente, em 1888, entrar na fase da realização, organizando-se um “Comitato Libero Badaró”, para cuidar da exumação e da ereção de um túmulo no cemitério municipal: iniciativa que teve logo o apoio da imprensa liberal e ativa adesão dos patriotas paulistas.

O prestigioso órgão “A Província de S. Paulo”, que depois passou a denominar-se “O Estado de S. Paulo”, e que era orientado pelos ilustres Francisco Rangel Pestana e Júlio Mesquita, publicou com destaque (número de 21 de novembro de 1889) um vibrante editorial, franca apologia e grata afirmação de cordialidade, incitando todos os brasileiros amigos da liberdade a tomar parte nessa honrosa manifestação, pois “Badaró foi um herói ítalo-brasileiro. No Brasil e pelo Brasil morreu”.

No mesmo dia, assinado por Américo de Campos, que dirigia o “Diário Popular” com José Maria Lisboa, foi publicado outro entusiástico apelo:

“Há 59 anos, nesta capital, deu-se o assassinato político de João Baptista Badaró, jovem patriota italiano, que aqui, espírito alevantado e de notável ilustração literária e científica, e ardente apóstolo das doutrinas democráticas que naquele tempo já avassalavam o mundo, abriu campanha franca e leal contra o despotismo e contra o regime violento e dominador que D. Pedro I instituíra e procurava consolidar no Brasil.

“Filho da antiga e altiva república de Gênova, pertencente a uma família de posição saliente pelo patriotismo e pelo amor e cultura científica, dispondo de todos os recursos de esmerada educação e já formado em medicina pelas universidades de Pávia e Turim, o moço patriota veio para a América trazendo aqueles sagrados pecúlios, preparado para ser, como foi, um tipo exemplar de honestidade, de cultura cerebral e de civismo.

“O moço Badaró aportou ao Rio de Janeiro no ano de 1826, ocupando-se ali de sérios e notáveis estudos de botânica e zoologia. Pouco tempo depois veiu para São Paulo, firmando residência nesta capital, e aqui ligou-se à melhor sociedade e particularmente a quantos mantinham a luta e a propaganda pelas idéas e regime democrático.

“De logo o moço ilustre e ardente patriota salientou-se entre os mais distintos trabalhadores, constituindo-se o periódico que fundara e de que era redator, “O Observador”, centro e bandeira da mais e mais alevantada guerra contra a opressão monárquica, contra os abusos do clero, contra as imoralidades da administração.

“O valente jornalista mui naturalmente acumulou, em ódios e perseguições, em torno do seu nome e de sua pessoa, quanto distribuía em ataques e intemerata flagelação aos violentos e despóticos senhores e exploradores do povo e do país.

“A prepotência dos déspotas daquele tempo e de seus asseclas, o caráter intolerante de Pedro I, a altivez indomável de Badaró são os claros fatores que explicam a “execução” traiçoeira do martir da liberdade, morto, por um tiro, à noite e sem testemunhas, em uma das ruas desta capital.

“Foi seu cadáver sepultado no Carmo. Ali jazeram seus restos mortais, e ficaria desconhecida a sua sepultura a não ser a dedicação com que há meses empenhou-se um grupo de cidadãos italianos, no propósito de fazer a transladação dos restos sagrados do martir para o cemitério geral, levantando-lhe ali uma lápide comemorativa...

“A causa porque morreu Badaró é a causa de todos os livres, mas é particularmente a nossa causa.

“Isso basta para que saibamos honrar a glorificação de sua memória, honrando ao mesmo tempo a nobreza patriótica com que os filhos da Itália sabem atestar, na pátria e no estrangeiro, seu proverbial ardimento democrático.

“Paulistas, brasileiros, apenas há dias instalados à sombra do regime republicano, façamos do modesto túmulo do imortalizado martir o altar sacrosanto onde prestemos, nós, os italianos e todos os estrangeiros de S. Paulo, o leal juramento de confraternização de todos os povos e de todas as raças sob o largo e glorioso pavilhão da República...”.

Proclamada a República em 15 de novembro de 1889, a póstuma homenagem foi realizada, com memorável solenidade, no dia 24 de novembro, presentes os triúnviros do Governo Provisório de S. Paulo – dr. Prudente de Moraes, dr. Francisco Rangel Pestana e coronel Joaquim de Souza Mursa – acompanhados pelas novas autoridades civis e militares.

No imponente préstito, que percorreu as ruas principais, onde a população se aglomerava por espontânea solidariedade, figurava entre as muitas bandeiras das associações e escolas brasileiras e italianas, o estandarde da nova República cercado pela oficialidade de 10.° Regimento de Cavalaria, ao comando do ten. coronel João da Silva Barbosa. No cemitério da Consolação, o ilustre dr. Prudente de Moraes, foi quem depositou a urna na caixa central, inaugurando o monumento funerário.

“Alla mano del sicario – All’ingiuria del tempo – Vendicano – In G. B. Libero Badaró – Il pensiero dei sofo – Il cuore del medico e del cittadino – L’umanitá”: assim o epitáfio gravado no mármore do sepulcro.

A Câmara Municipal de São Paulo já tinha aprovado, dias antes, distinguir com o nome de Libero Badaró a antiga Rua de S. José.

Na Itália, aonde o destino não consentiu que voltasse mais, Laigueglia que foi seu berço, deu também o nome do filho ilustre a uma rua da cidade.

O Conselho Municipal de Laigueglia, com deliberação unânime de 27 de março de 1890, mudou para “Corso Gio Batta Libero Badaró” o nome da rua em que se acha a antiga casa da família Badaró, e em que ele nasceu. Na mesma casa era guardado um herbário da Ligúria, coligido pelo jovem Badaró antes da sua partida; e existia uma rica biblioteca da qual muito cuidavam o pai, dr. Andrea Badaró, e um irmão que era sacerdote. Anos decorridos, a biblioteca tornou-se propriedade da família Preve, residente em Gênova.

Em Roma o nome de Libero Badaró é gravado no travertino do artístico monumento em forma de obelisco – obra do escultor Gazzeri – que lembra os italianos beneméritos no Brasil, e que foi inaugurado com excepcional solenidade em 15 de janeiro de 1933, na Galeria do Palácio Doria Pamphili, sede da Embaixada Brasileira, por iniciativa de S. Exa. Alicibiades Peçanha. Diz uma das inscrições latinas:

“Joannes Bapt. Liber Badaro – Doctrina excultus et diurniarius insignis – Jura hominis constanter asservit – MDCCCXXVIII-MDCCCXXX”.

A expressiva cerimônia é lembrada numa elegante edição ilustrada, que expõe os fundamentos históricos e sentimentais da iniciativa, e reúne interessantes estudos sobre os homenageados. Num capítulo dedicado a Libero Badaró, o exímio diplomata dr. Roberto de Macedo Soares comemora o grande liberal, ligado nobremente ao passado do Brasil, figura de notável relevo e de luz.

Valha sempre, para firmar nobres pensamentos e dignas realizações, a lembrança do “paladino de sangue itálico”, cuja figura reaviva na memória os versos do imortal Poeta: “Libertá va cercando ch’é si cara – come sa chi per lei vita rifiuta”.


ROMA – GALERIA DO PALÁCIO DORIA-PAMPHILI
“Janns Bapt. Liber Badaro – Doctrina
excultus et diurniarius insignis – Jura
hominis constanter asservit”.


 

 

Esclarecimentos

 

O jornal de Badaró, “O Observador Constitucional”, continuou circulando até 1832. Porém, desaparecido o dinâmico fundador e animador, e modificado o ambiente político, perdeu o prestígio inicial.

— “O Observador Constitucional, era publicado na tipografa do “Pharol Paulistano” e tinha apenas 30 centímetros do alto à base e 20 centímetros de largura, incluindo nestas dimensões as margens, quatro páginas de duas colunas, e nenhum anúncio; saía duas vezes por semana, sendo a assinatura de 1$440 por trimestre e 80 réis o número avulso. Era intensa a animosidade da redação contra o absolutismo e este nobre sentimento, levado às vezes à exageração, se manifestava em artigos de fundo, em máximas e pensamentos, anedotas, quase sempre em prosa, mas às vezes em versos”. (cfr. A. de Toledo Piza “Recordações Históricas”).

— “Assignava-se “O Observador”, a princípio, na tipografia do “Farol Paulistano”, onde ao tempo era impresso, e mais tarde, 1831, na loja do Sr. Villares, esquina da Rua do Ouvidor e da de S. Bento, a 1$440 rs. por trimestre: a venda avulsa era feita a 80 réis o número. Em 1832 passou “O Observador” a imprimir-se na tipografia Patriotica estabelecida à Rua da Esperança; publicava-se então três vezes por semana, às segundas e quartas-feiras e aos sábados, e assinava-se na loja do Sr. Caetano Antonio de Moraes, à Rua Direita e na própria tipografa”. (cfr. A. de Freitas, “A Imprensa periódica de São Paulo”).

“O Observador Constitucional”, no começo, repetia no alto da primeira página: “E leis mais brandas regerão o mundo – Quando homens mais humanos – C’o raio da verdade a luz espalhem”. Depois, em francês: “Interrogez le monde entier, vous n’entendrez qu’un cri: Liberté”. Era a moda do tempo. “O Farol Paulistano” publicava no cabeçalho: “La Iiberté est une enclume qui userá tous les marteaux”, e “O Pregoeiro Constitucional”, órgão liberal de Minas Gerais, trazia como divisa: “Outrager est d’un fou, flatter est d’un esclave – Il faut banir l’audace, et non la liberté – La balance a la main, peser la verité”. Mais tarde “O Novo Farol Paulistano”: “Celui qui dedaigne la moderation, repousse la justice”; e “O Observador Paulistano”, de Diogo Antonio Feijó: “La liberté de la presse forme en dehors une opinion national que remet bientôt les choses dans l’ordre”.

O já citado escritor Osvaldo Orico, ilustre membro da Academia Brasileira de Letras, assim comenta (vid. Nota bibl.) o sucesso do jornal de Libero Badaró e o fatal desenlace: “Em 1829, para mais de perto falar ao coração da terra adotiva, Badaró funda o “Observador Constitucional”, assestando baterias contra a cidadela colonista, representada em S. Paulo pelo Bispo e pelo Ouvidor. Ambos desesperam-se com os ataques: o Bispo, porém, esconde os ódios sob a mitra torturada e espalha as iras com o báculo da missão pastoral; enquanto o Ouvidor entende que deve fazer justiça pelas próprias mãos. Ameaça o jornalista. Prepara a vingança. Inaugura o terror.

“O jornal de Badaró fora recebido em toda parte como um toque de aleluia. Escrito “à la diable”, sem esmero de linguagem e apuro de forma, tudo nele era coragem e intenção. Suas idéias repercutiram fortemente no Rio, denunciando o ambiente eletrizante de S. Paulo contra a política do Império.

“Tal propagação leva ao desespero as autoridades que, na província, representavam o pensamento da côrte.

“Badaró foi escolhido para alvo das prevenções e ódios que lavraram no seio do governo; tido como responsável pela onda de opinião que encrespava a província”.

*

A primeira “História do Brasil” que pôs em relêvo o drama político de Badaró, e salientou a importância e a influência que teve a imprensa liberal no difícil e turbulento período que precedeu a abdicação do Imperador D. Pedro I, foi a de Armitage, cujo prefácio é datado de 1835, e que foi editada em Londres em 1836, com este frontispício: “The History of Brasil, from the period of the arrival of the Bragança family in 1808 to the abdication of Don Pedro The First in 1831. Compiled from State Documents and other Original Sources forming a combination to Southey’s history of that country, by John Armitage. Esq.”.

A autoria da primeira monografia sobre Badaró, é do notável paulista dr. Joaquim Antonio Pinto Jor (advogado e publicista, teve também assento na Assembléia Legislativa Provincial de S. Paulo) que presenciou a agonia da ilustre vítima e os acontecimentos daqueles tristes dias. A valiosa testemunha manifestou calorosamente seu espontâneo elogio escrevendo: “O Dr. João Baptista Badaró não era somente um entusiasta pelas idéias livres, que começavam então a conquistar a América; ele era além disto um homem bom, ilustrado, cheio de virtudes e sobretudo levita do templo da caridade; compreendia como poucos os sagrados deveres do médico”.

Iniciando a sua Memória, o dr. Pinto Jor. declarava nobremente: “Este trabalho, nós o oferecemos à ilustre nação italiana, que tão sentidas lágrimas derramou então pela perda de um de seus filhos ilustres; saiba ela que o nome desse martir da liberdade ainda se conserva acompanhado de sincera gratidão no coração dos brasileiros”.

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Notável contribuição, para a biografia de Libero Badaró, deu o estudioso publicista Nicoláo Duarte Silva, digno vice-presidente do benemérito Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, cujas diligentes e inteligentes pesquisas nos arquivos, enriqueceram com farta documentação a ótima monografia publicada em 1930: “Mais uma homenagem – dizia o A. no prefácio – à memória daquele que, selando com o próprio sangue uma intemerata campanha pela regeneração dos costumes públicos e pela consolidação dos direitos populares, se tornou assunto obrigatório da história do Brasil”.

Devida à pena do egrégio Duarte Silva é também uma interessante página, que foi publicada no prestigioso jornal “O Estado de S. Paulo” (número de 20 de novembro de 1930) assinalando a passagem do primeiro centenário da morte do fundador de “O Observador Constitucional”.

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O túmulo de Libero Badaró, no cemitério da Consolação, em São Paulo, fica situado na Quadra 26, da Rua 17.

Essa obra, de mármore branco italiano, foi acabada, num estabelecimento dos Irmãos Martineili, em 1889; e até esse ano os despojos do abnegado democrata ficaram na igreja de N. S. do Carmo, em modesta sepultura. No tempo em que morreu Badaró, era ainda consuetudinária a prática das inumações nos terrenos dos templos e dos conventos. A necrópole da Consolação foi aberta muitos anos depois, em 1858.

O mesmo Badaró, como já foi dito, fez parte de uma comissão, escolhida em 1829, para estudar o importante problema urbano dos cemitérios. Reproduzimos, a propósito, dois ofícios da época:

“Ao Dr. J. de Mello Franco – Em conseqüência de uma exposição que S. Exa. o Sr. Bispo Diocesano houve por bem transmitir a esta Câmara Municipal a respeito da mudança dos cemitérios para longe das povoações e fora do recinto dos templos, resolveu a mesma Câmara, afim de se tomarem as necessárias medidas, que se exigisse de facultativos e físicos hábeis a indicação de um lugar ou lugares mais favoráveis, e que ao mesmo tempo menos sujeitos sejam a conservar o ar mefítico, e mais apropriados por sua natureza a consumir prontamente os corpos, para neles se formar um ou mais cemitérios dentro deste Município. É portanto que confiando na filantropia, patriotismo e abalizados conhecimentos de V. Sa. a Câmara espera, que de acordo com o Dr. João Baptista Badaró, e cirurgião-mor Candido Gonçalves Gomide, queira com a brevidade possível apresentar, por escrito a mencionada indicação. Deus guarde a V. Sa. Paço da Câmara em São Paulo. 14 de setembro de 1829”.

“Ao Dr. Sr. João Baptista Badaró – Constando achar-se já nesta cidade o Dr. Justiniano de Mello Franco, cuja ausência de certo motivou a demora do parecer que por duas vezes foi pedido por esta Câmara Municipal à commissão de que Vossa Senhoria é digno membro sobre o lugar ou lugares mais apropriados para a fundação dos cemitérios fora da cidade, novamente a mesma Câmara solicita com instância o referido parecer sem o qual não pode o marechal Muller dar a planta que prometeu. O que espera do seu reconhecido zelo pelo bem público. Deus guarde a Vossa Senhoria”.

*

Merece realce a iniciativa filantrópica de Badaró na campanha para debelar a varíola que grassava, fornecendo espontaneamente o material necessário e sugerindo a intervenção das autoridades, à vista dos arraigados preconceitos do povo que era hostil à vacina, influenciado pelos empíricos ou curandeiros.

Devia ser grande a mortalidade por causa da varíola endêmica, pois uma memória sobre as condições da província, com data de 1822, constatava: “Há outra falta de remediar-se, do uso e administração da vacina, objeto de simples curiosidade e que devia servir de meio eficaz para atacar a terrível enfermidade das bexigas, que tem causado o maior terror aos nossos paulistas, devorando grande parte da povoação...”

A complemento do já referido, reproduzimos a carta de Badaró, e o ofício da Câmara de S. Paulo, em resposta ao meritório oferecimento:

1 — “Illustríssimos Srs.: Persuadido da grande filantropia e do alto zelo com que V.V. S.S, querem cumprir com o seu Regimento, persuadido de que os prejuízos do vulgo cessam em face de uma autoridade paternal e tão respeitável como a da Câmara Municipal; tenho a honra de remeter a V.V. S.S. dezenove lâminas de ótimo pus vacínico, por mim coligido nesta cidade, afim de que V.V. S.S. as façam distribuir pelas diferentes vilas que mais necessitarem.

“Pode a Câmara contar que eu não me descuidarei e continuarei a coleção do pus; por tanto, se por ventura precisar, pelo futuro, ainda algumas lâminas terei a honra de lhas apresentar”.

2 — “Illmo. Sr. Dr. João Baptista Badaró: A Câmara Municipal desta cidade acusa a recepção do ofício de V. S.ª de 20 do corrente a que acompanharam 19 lâminas de excelente pus vacínico que V. S.ª generosamente oferece para serem distribuídas pelas diferentes vilas e em resposta lhe agradece tão interessante oferta como uma prova de mais do seu zelo pelo bem da humanidade, aceitando desde já a promessa que V. S.ª faz de continuar a fornecer o mesmo pus, quando seja preciso. Deus guarde a V. S.ª Paço da Câmara em São Paulo 23 de outubro de 1830 – Joaquim Antonio Alves Alvim, Presidente e José Xavier de Azevedo Marques, Secretário.”

O exímio catedrático Dr. Spencer Vampré (vid. Nota bibl.) lembra com palavras de encômio a atuação do humanitário propagandista, concluindo: “Instruído, bondoso, caritativo, grangeou logo na alma popular esse ambiente de estima, que os corações bem formados criam, por força das irradiações da sua mesma bondade”.

*

Fizemos menção do alarma suscitado na côrte pela publicação, no jornal de Badaró (número de 25 de junho de 1830) dos títulos, claramente jocosos, de dois entremezes: “O Cabido escolheu um Prebendado” e “Os badalos fugidos e um Ten.-General pedindo guarda para eles”.

Relembra o segundo título um curioso episódio da incipiente vida estudantil em S. Paulo.

Numa noite daquele mesmo junho, os badalos dos sinos do Curso Jurídico, instalado no antigo Convento de S. Francisco, desapareceram misteriosamente. Uma das primeiras – e não devia ser a última! – empresas burlescas, excogitadas pelos bem-humorados estudantes. Mas assim o áspero governador, o Bispo D. Manoel; como o primeiro diretor do Curso Jurídico, o ilustre ancião, Ten-General José Arouche de Toledo Rondon – que exerceu esse cargo até 1833 – não se mostraram propensos à indulgência, e tomaram muito a sério o negócio dos badalos fugidos, mandando fosse rondada por uma sentinela a sede do Curso, dia e noite.

Porém ao Comandante das Armas, coronel Carlos Maria de Oliva, não agradou o encargo hostil, e respondeu com o seguinte ofício: “ao Exmo. e Revmo. Snr. Bispo Vice-Presidente da Província”:

“Determinando V. Exa. que se mande postar uma sentinela rondante na frente do Edifício do Curso Jurídico, em conseqüência de requisição do respectivo Diretor, a fim de acautelar os estragos que pessoas mal intencionadas possam fazer com notável perjuízo da Fazenda Nacional, como já tem acontecido; é do meu rigoroso dever ponderar a V. Exa. que, sejam quais forem os estragos que se devam recear no material do Edifício, sempre serão menos atendíveis do que os que podem resultar à sociedade pela desarmonia, e má inteligência entre o Corpo Acadêmico e a Classe Militar, que necessariamente acarretará a execução desta medida. Não serão precisas muitas combinações para qualificar este negócio puramente Civil, e tanto por isto, como pela sua entidade impróprio da interferência Militar, além do que, se o Estabelecimento tem seus Empregados privativos, como me consta, a eles unicamente pertence as deligências de semelhante natureza, e nunca a militares; cuja profissão tem fins mais nobres e urgentes. Estas são as reflexões que por agora me occorre levar à consideração de V. Exa. para decidir à vista de sua importância como assentar mais justo. Deus guarde a V. Exa. Quartel do Comando das Armas em São Paulo 18 de Junho de 1830”.

O dr. Badaró, que vivia simpaticamente rodeado pelos estudantes, quis secundar a brincadeira dos jovens amigos anunciando a representação do satírico entremez. Daí nova troca de ofícios, e a portaria da côrte e o acrescido rancor do Governador contra o diretor de “O Observador Constitucional”.

Rancor que sobrepujava a habitual prudência do sacerdote, e que vem à tona claramente na resposta a tal portaria; pois o Bispo D. Manoel escreveu à côrte informações sobre o dr. Badaró, que são desmentidas por toda a documentação da época. É interessante reproduzir “ipsis verbis” a cópia dos dois documentos:

1 — Portaria do Marquês de Caravellas, Ministro do Império: “Sendo das intenções de Sua Majestade o Imperador o favorecer quanto esteja ao alcance do Governo, os Estabelecimentos Teatrais, que todas as Nações cultas têm reconhecido como um dos meios mais eficazes para ensinuar no coração dos Povos as idéias de virtude, e adoçar a rudeza e barbaridade dos costumes, mas desejando ao mesmo tempo prevenir e evitar por meio de uma circunspecta vigilância, e prévio exame das Peças que se hajam de representar, que tão uteis Estabelecimentos não degenerem daqueles louváveis fins pela introdução de doutrinas, umas opostas aos bons costumes e à moral pública, e outras tendentes a inflamar as paixões exaltadas e a destruir de qualquer maneira o Sistema Constitucional que felizmente nos rege, e vendo pelo anúncio publicado em o n.o 62 do Observador Constitucional da Cidade de São Paulo de 25 mês passado estarem próximos a sairem a dois Entremezes, um intitulado – O Cabido escolhendo um Prebentado – e outro Os Badalos fugidos, e um Ten-General pedindo um Corpo de Guarda para guardá-los à vista –: Manda o Mesmo Augusto Senhor pela Secretaria d’Estado dos Negócios do Império que o Vice Presidente da referida Província proiba que as ditas Peças se ponham em cena, bem como quaisquer outras cujo fim seja o desautorizarem Corporações ou Autoridades, as quais pelo contrário se devem respeitar, cumprindo outro sim que informe se deu as convenientes providências para obstar a representação das mencionadas Peças, no caso de que ela se tenha efetuado, e qual foi o embaraço que essas providências encontraram para se não executarem. Palácio do Rio de Janeiro em 21 de Julho de 1830”.

2 — Resposta do Bispo D. Manoel ao Ministro do Império: “Ilmo. e Exmo. Sr. Marquês de Caravelas: Recebi a Portaria de 21 do mês pp. pela qual S. M. Imperial, em conseqüência do anúncio publicado no Observador Constitucional n. 62 de 25 do mesmo mês findo, é servido ordenar, que eu proiba porem-se em cena os dois Entremezes ali anunciados, e quaisquer outras Peças, cujo fim seja desautorizarem Corporações ou Autoridades, as quais pelo contrário se devem respeitar, e que outro sim informe eu se dei as convenientes providências para obstar a representação das mencionadas Peças no caso de que ela se tenha efetuado, e qual foi o embaraço que essas providências encontraram para se não executarem. Fico na inteligência do que Sua Majestade com tanta justiça ordena, para o executar quando for necessário, pois presentemente já aqui não há Teatro, por quanto faltando Cômicos, ficou a Casa em descuzo, e vendida a um Negociante espanhol que comprou para outros fins (sic!). Consta-me com tudo que vários Estudantes do Curso Jurídico alugaram a Casa por cinco anos para terem como Teatro particular destinado a seus divertimentos. Por onde parece-me que os pertendidos Entremezes não poderão sair à luz. Por outra parte sou por ora de parecer que o anúncio do Observador não foi se não um Improviso de seu Redator, o qual é um Italiano de nome Badaró, que em 1828 para aqui mandou o Deputado Dr. Costa Carvalho, e entrou nesta Cidade com o título de grande Médico, mas esse crédito em breve tempo desapareceu. Depois não tendo ainda chegado o Professor de Geometria, ele se ofereceu para ensinar Ciência gratuitamente; eu lho permiti, e lhe franquei uma Aula nos baixos da Casa do Governo, de fato ensinou perto de um ano, com a desgraça de que nenhum dos seus discípulos aproveitou. Por fim não se verificando nele o verso Latino – Dat Galenus opus etc. – passou por acesso a Redator daquela Folha, que tem extração pelos continuados ataques e chincalhoagens às Autoridades, e pelas correspondências de intrigas de que é cheia; sendo estas as matérias que a gente miuda lê com apetite, ao menos por ser o que pode entender. Mas para que V. Exa. venha no pleno conhecimento dos motivos que fizeram lembrar ao Redator esses Entremezes peço licença para em resumo contar a história. Vagando na Catedral desta Cidade a Cadeira de Tesoureiro-mor, foram pertendentes a ela os Cônegos Joaquim Jozé Carlos de Carvalho, e Antonio Paes de Camargo. O Redator Badaró declarou-se logo advogado do 1.o, com um de seus números advogou a sua causa com ameaças. Eu querendo acertar consultei o Cabido, cujos votos em pluralidade foram a favor do 2.° dito Cônego Antonio Paes. Eis aí tem V. Exa. o objeto do projetado Entremez — O Cabido escolheu um Prebentado.

“Tendo-se roubado com chave falsa, na noite de 15 de Junho passado, os badalos dos sinos do Curso Jurídico, e por cujo motivo não houveram Aulas no dia 16, recebi nesta data um ofício do Diretor, participando-me o referido, e pedindo duas providências, 1.ª que eu desse logo as necessárias ordens para se fazerem novos badalos, 2.ª ordenar que se pusesse naquele lugar uma sentinela rondante de dia, e de noite, a qual serviria não só para guardar o edifício, pois que já ali se tiraram vidros das janelas das Aulas em razão de ali existir um chafariz. Isto bastou para que aquele Redator projetasse em sua mente, e anunciasse o outro Entremez — Os badalos fugidos, e um Ten-General pedindo um Corpo de Guarda para guardá-los à vista —. Entretanto terei vigilância em fazer observar as ordens de Sua Majestade, o Imperador. Deus Guarde a V. Exa. São Paulo 12 de agosto de 1830”.

As malévolas apreciações do Governador despeitado, tiveram eco na côrte, pois vê-se que, meses depois da morte de Badaró, “O Observador Constitucional” ainda travava polêmica (número de 4 de fevereiro de 1831) com jornal reacionário do Rio de Janeiro, afirmando: “O Dr. Badaró, quando se apresentou nesta cidade, foi já acompanhado de reputação médica. Não era um charlatão, como se procura inculcar: era um homem de princípios, por tal reconhecido à primeira vista por quem quer não fosse besta, ou hóspede nas ciências. Ignoramos que matasse gente; temos notícias de bem boas curas que fez; e tinha mesmo tato médico, como asseguraram alguns da Faculdade, com quem temos conversado...

“Não sabemos que ele andasse coberto de trapos. Vimo-lo sempre vestido com a decência de um filósofo, sem curar muito, é verdade, de andar à moda ou embonecrado; porque, firme em seus princípios queria passar na opinião de todos pelo que valia como homem, por seu próprio mérito, suas qualidades, e suas virtudes cívicas, e não como um pedaço de asno que faz consistir toda a sua glória em andar enfeitado como bailarin, com tetéias que dão nos olhos aos tolos”.

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No seu livro de história de São Paulo (V. Nota bibl.) publicado em 1895, com prefácio do cônego Valois de Castro, o prof. Tancredo do Amaral dedica ao drama de Badaró um capítulo do qual reportamos alguns períodos: “O Dr. João Baptista Badaró, comquanto italiano de origem, foi um martir das idéias liberais e por isso deve o seu nome figurar em nossa história ao lado dos de Tiradentes, Ratcliff, Frei Caneca e tantas outras vítimas da prepotência e do absolutismo monárquico, cuja eliminação, até hoje tanto sangue brasileiro tem custado. Era pelo ano de 1830. Pouco tempo havia que se tinha proclamado a independência do Brasil da metrópole, que durante quase três séculos exaurira as forças deste grande país, absorvendo todo o ouro de suas minas e toda a produção de suas terras e escravizando-o subservientemente como a um fâmulo de quem se necessita o trabalho.

“... Portugal perdera a mais importante e preciosa de suas colônias, e os seus filhos que no Brasil ainda ocupavam os primeiros cargos públicos, não se podiam afazer facilmente a esse estado de coisas. O hábito em que se achavam de governar despoticamente no tempo colonial não fora abandonado completamente. Daí a prepotência e o absolutismo batidos diariamente pelos bons brasileiros e pelo partido liberal.

“Governava então São Paulo, como vice-presidente, o bispo diocesano D. Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade, natural da ilha de Madeira...

“Libero Badaró era formado em medicina, e em São Paulo exerceu a clínica com rara proficiência obtendo grande nomeada pela sua habilidade e pelo seu talento. Na aula pública então vaga, nas horas que lhe sobravam do exercício de sua profissão, lecionava gratuitamente matemáticas e o fazia com tanta competência, que tinha como alunos muitos rapazes que se destinavam à Academia, gozando entre os estudantes e acadêmicos de grande simpatia e popularidade...

“Como todos que naquele tempo atacavam de frente os abusos e os preconceitos ainda enraizados, atraiu logo Badaró o ódio de indivíduos altamente colocados...

“Conhecido o fato criminoso, produziu ele grande alarma, reunindo-se o povo em grupos, comentando o fato e procurando por toda a parte os assassinos. Para logo espalhou-se a notícia de que havia sido mandante do delito o ouvidor Dr. Candido Japi-Assú. A efervescência popular subiu de auge e era visível o furor da grande massa que, armada de facas, pistolas etc., procurava desesperadamente os delinqüentes... O povo prendeu três alemães, dois dos quais escapando da escolta entraram repentinamente na casa do ouvidor, que recebeu os maiores insultos, sendo de novo, porém, capturados os delinqüentes...

“... Afirmaram mais tarde que o verdadeiro assassino havia sido um oficial do exército, que o havia declarado em artigo de morte. Esta afirmação, porém, carece de fundamento...“.

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Tendo a notícia dos graves acontecimentos de São Paulo chegado na côrte, à “Secretaria d’Estado dos Negócios da Justiça”, antes que a mesma fosse diretamente informada pelo Governador da Província, o Visconde d’Alcantara, por ofícios em data de 4 e de 22 de dezembro de 1830 (vid. Duarte Silva, Documentos) censurou severamente o Vice-Presidente em exercício, pela demora e por ter desviado da verdadeira marcha que cumpria seguir”.

O Bispo D. Manoel respondeu ao primeiro ofício com o relatório que aqui referimos integralmente:

“Ilmo. e Exmo. Sr. Visconde d’Alcantara: Pelo Aviso que V. Exa. me dirigiu em 4 do corrente mês me foi estranhada a falta de participação pela Secretaria d’Estado dos Negócios da Justiça dos acontecimentos que tiveram lugar por ocasião do horroroso assassínio perpetrado na pessoa do Doutor Badaró, visto que a notícia de um semelhante atentado aí chegara muito antes da saída do próximo Correio desta Cidade para essa Corte.

“Como a defesa é de direito natural, e eu entenda, que quando muito só se poderia notar (caso ainda negado) a incompetência da Repartição a que a princípio me dirigi, e não a falta de pronta participação, por isso que nenhuma omissão houve da minha parte, permita V. Ex.a que em meu abono expenda as razões em que me fundei, seguindo a marcha dos acontecimentos até o ponto de julgar dever dirigir-me à Repartição da Justiça como sendo então ocasião própria.

“Principiando no dia 21 do mês de 9bro pp. a manifestar-se com veemência a indignação pública pelo atentado que tão grande como justa execração havia merecido eu dei todas as providências que estiveram ao meu alcance para manter a tranqüilidade geral, e convoquei logo o Conselho do Governo querendo proceder com todo o acerto e discreção nas ulteriores medidas, e por ofício datado no dia seguinte levei ao conhecimento do Governo de S. M. o Imperador pela Secretaria d’Estado dos Negócios do Império, detalhada conta do que até então havia occorrido, por isso que no dia 23 devia partir o Correio para essa Corte; e não havendo até ao fechar do dito ofício provas legais e procedimento regular, que constituisse criminoso o Ouvidor da Comarca, e somente indícios, entendi que semelhante participação como de acontecimentos extraordinários tinha cabimento, e era bastante pela Secretaria d’Estado dos Negócios do Império, marcha esta que ora ainda reputo bem acertada, visto que na Portaria de 29 de 9bro, que acabo de receber expedida pela dita Repartição se me recomenda que por todos os Correios eu continue a comunicar qualquer novidade que ocorrer nesta Província.


“Planta da Imperial Cidade de São Paulo”,
no início do século XIX
(“São Paulo de Outrora”, P. Cursino de Moura)


“Sendo-me porém remetido às 6 horas da tarde do referido dia 22 de 9bro. o auto de corpo de delito, e pronúncia pela qual se achava implicado o Ouvidor da Comarca no assassínio do referido Dr. Badaró, eu reservei o seu conhecimento, e deliberação para o Conselho do Governo, e julguei que p. então ainda era prematura qualquer participação dirigida à Secretaria d’Estado dos Negócios da Justiça sobre aquele Magistrado, que até o ato da pronúncia e sua execução pelo Conselho no dia 23 só procurava evadir-se, de alguma excessiva demonstração do ódio, e vingança do Povo, como indiciado daquele crime; mas verificando-se depois pelos meios legais achar-se complicado, eu o fiz partir para essa Corte, e por ofício de 25 do referido mês, de que foi portador oficial encarregado de acompanhar o d.o Magistrado; dei conta a V. Ex.a do que a respeito do mesmo occorria, remetendo o mencionado Corpo de delito, e pronúncia, e nem o devera acusar antes sem as únicas provas admitidas em Direito, e procedimento regular: conseqüentemente me parece que levando ao conhecimento do Governo de S. M. o Imperador por ofício de 22 de 9bro. os acontecimentos que tiveram princípio no dia 21, e dando conta a 25 do que havia de positivo, e legal contra o Ouvidor da Comarca preenchi exatamente o meu dever, esperando com razão que quando não merecesse louvor; ao menos não me tornaria com justiça digno de censura, muito mais tendo procedido com tanta madureza que consegui evitar desastrosos acontecimentos, que poderiam resultar de qualquer precipitação, ou medidas violentas. Deus guarde a V. Ex.a São Paulo 22 de Dezembro de 1830”.

O ofício mencionado no documento acima, e enviado à Secretaria dos Negócios do Império com data de 22 de novembro de 1830, foi o seguinte:

“Ilmo. e Exmo. Sr. José Antonio da Silva Maia: Levo ao conhecimento de V. Exa, para ser presente a S.M. o Imperador que às dez horas da noite de 20 do corrente foi o Doutor João Baptista Badaró Redator do Observador Constitucional assassinado em uma rua desta Cidade à porta de sua Casa, e sobrevivendo 24 horas declarou, que o assassinio fora perpetrado por 2 Alemães, no ato de lhe dizerem, que levavam uma correspondência contra o Ouvidor desta Comarca Candido Ladislau Japi-Assu. No dia 21 a cada momento se espalhava a notícia ou a suspeita de quais Alemães fossem os Assassinos, e de que o dito Ouvidor era o mandante: a Cidade se pôs em grande agitação, os espíritos exasperados com semelhante atentado, a reunião do Povo no ato de sacramentar-se o moribundo deu motivo a diferentes conversações, e o povo em magotes rompeu por toda a parte em busca dos agressores indicado pela voz pública; o Juiz de Paz foi procurado, mas não foi encontrado, e quando muitos dispunham a prender os delinqüentes, que (se diz) já haviam declarado sê-lo; o Juiz de Paz duma das Freguesias da Cidade, que se achava presente, encarregou-se de dirigir a prisão; obteve auxílio do Comandante Militar, e fez prender os indiciados afim de obstar a que o povo se arrogasse o direito de prender arbitrariamente. Prenderam-se 3 Alemães; não houve tumulto, ou motim; houveram sim diferentes magotes de povo, que presenciavam as diligências ou acompanhaam os presos até a Cadeia; e porque dois dos presos escapassem no momento de ser agarrados, e fossem refugiar-se na Casa do Ouvidor, grande concurso de povo, os perseguiu, e encontrando nela o Juiz de Paz, lhe requereram, que os fizesse prender, ou lhos entregasse para serem recolhidos à Cadeia, o que se verificou. O Juiz de Paz, que dirigia a diligência, fez entrega dos presos ao Juiz Criminal, e este se acha procedendo contra os mesmos. O Ouvidor aterrado com tanto concurso e a agitação pública, sem dúvida porque o envolviam na cumplicidade de fato tão horroroso, temeu de sua segurança, e oficiou-me para prestar-lhe auxílio necessário; a que prontamente me prestei, por ver, que a cada momento creciam as suspeitas, e o ódio público contra o mesmo. O mesmo Ouvidor em seu ofício fala todas estas circunstâncias, e acrescenta que pela sua porta passeava grande concurso com bandeira branca em um pau, o que a ninguém ainda ouvi, nem pude obter a menor informação, que a verifique. Dei as providências, que julguei a propósito para que nem a pessoa do Ouvidor sofresse, nem a ordem pública fosse alterada pelas paixões exaltadas do momento; o que V. Exa. melhor conhecerá pela cópia dos ofícios, que remeto, e até este momento a Cidade está tranqüila, e espero, que a ordem pública se não altere, apesar de que a pequenhês da povoação, o fato da morte do Assassinato; o funeral pomposo, que premeditam os seus apaixonados há de conservar por algum tempo em viveza a indignação contra os supostos Assassinos.

“A pouco me enviou o Juiz de Fora pela Lei a pronúncia, em que se acha compreendido o dito Ouvidor, convoquei conselho extraordinário para deliberar amanhã as providências que o caso exige, vendo-me sumamente embaraçado, porque se a Lei não autorizar a prisão do Ouvidor é muito de temer então qualquer ato violento da parte do povo ressentido à vista do fato recente, mas espero, que o Conselho me ajudará acertar com as medidas de, sem faltar com a Lei, providenciar a segurança do dito Ouvidor, e satisfazer os votos da Justiça. A Província não está em circunstâncias de se tentar, à força, acalmar semelhantes agitações, e persuado-me, que só com prudência, e meios suaves se poderá conseguir a tranqüilidade dos espíritos em semelhante conjuntura. Em fim eu só posso assegurar a V. Exa. que não pouparei esforços, e diligências para que a Lei se observe, e as Autoridades sejam respeitadas, esperando por isso mesmo desculpa aos meus erros, se os houverem”.

Três dias decorridos, o Bispo D. Manoel enviava, à mesma autoridade, outro ofício que é interessante conhecer:

“Ilmo. e Exmo. Sr. José Antonio da Silva Maia: Continuando a narração dos acontecimentos que tiveram lugar nesta cidade, por causa do assassínio do Doutor Badaró, que já participei a V. Exa. em ofício de data de 22 do corrente, direi: Que nesse mesmo dia às 6 horas da tarde recebi um ofício da Pronúncia, e Auto de Corpo de delito, pelo qual se achava complicado no assassínio o Doutor Ouvidor Candido Ladisláu Japi-Assú, estando reunido o Conselho, que extraordinariamente havia convocado em conseqüência de haver oficiado o Comandante Militar sobre a necessidade de municiarem-se as patrulhas, e atender a segurança de sua Casa, que se dizia estar em perigo de ser atacada pelo povo para dela tirar o Dr. Ouvidor que ali supunham refugiado. Ficou adiado o negócio da Pronúncia para a Sessão do dia seguinte, afim de meditar-se com severidade sobre a resolução que se deveria tomar a tal respeito. Neste tempo compareceu o mesmo Comandante Militar: expôs vocalmente que era verdade ter-se refugiado em sua Casa o Ouvidor, o qual muito temia por sua pessoa, a tento o furor popular, e que o mesmo Ouvidor não duvidava ser preso a bem da sua própria segurança. O Conselho adotou a proposição e com isto, apesar do grande concurso de povo no enterro de Badaró nenhum excesso se praticou, que me conste, segundo se temia. Divulgando-se que o Ouvidor se achava pronunciado, principiou a desenvolver-se nova efervescência popular, observando as medidas, que o Governo tomava em conseqüência da dita Pronúncia. O Conselho viu-se muito embaraçado, por um lado via a Constituição declarar, que a Lei era igual para todos, que o efeito da Pronúncia era a prisão por ser crime de morte, e que a exceção Constitucional a favor dos Senadores e Deputados para o Juiz não proseguir no ulterior procedimento da Pronúncia firmava a regra em contrário, e que a mesma Lei de 18 de 7bro. de 1828 no Art.° 25 indicava, que a pronúncia podia ser feita por outro Juizo além do Tribunal Superior, por outro lado notava que o Ouvidor tinha fôro privilegiado, e que talvez só o Tribunal competente pudesse decretar-lhe a prisão, em tal aperto resolveu consultar ao mesmo Ouvidor se abem da própria segurança ele aprovava ser conduzido por um oficial a apresentar-se na Corte a V. Exa. para dar-lhe o destino legal, e isto quanto antes. Ele conhecendo bem o perigo em que se achava, aprovou a medida, é então, que o Conselho vendo, que a prisão, e remessa, ainda fosse ilegal, não se tornava injuriosa a parte por ser um meio pela mesma adotado abem de própria salvação, resolveu participar-lhe estar pronunciado, e mais que V. Exa. verá das cópias, que este acompanham.

“Acalmou-se, ao que parece, com estas medidas a indignação pública. A Cidade fica tranqüila té o fazer deste, assim informa o Juiz, a quem encarregou-se a polícia da Cidade na falta criminosa do Juiz de Paz, que nada absolutamente tem feito, e nem ao menos tem respondido aos ofícios, que por parte deste Governo se lhe dirigiram, e cuja responsabilidade torna-se ineficaz por falta de Lei.

“Devo confessar a V. Exa. que os ânimos se exasperaram em extremo, que a indignação pública foi demasiadamente pronunciada contra os supostos perpetradores do assassínio que se assegura, que grande parte do Povo se armou de pistolas, e facas, que publicamente se reuniam em pequenos magotes, e instavam pela prisão dos indiciados delinqüentes, mas no meio desta quase geral convulsão da Capital, onde se viam centenares de homens de dia e de noite, como desesperados, não consta, que autoridade alguma fosse insultada, nem excesso algum se cometesse. Não foi necessário o emprego da força; foi bastante que o Governo se mostrasse enérgico, e disposto para fazer-se obedecer. Alguma coisa foi mister ceder às circunstâncias para não desafiar a indecisão ou a imprudência de alguns. As poucas forças para combater a uma massa tão grande de povo, o estado de desconfiança de toda a Província com notícias exageradas vindas da Côrte, a atrocidade do delito, tudo isto junto obrigou ao Governo a não lançar mão de meios violentos, se não como o último recurso, que provavelmente trariam conseqüências, que eu certamente temo, e que com dificuldade se poderá prever no presente estado das coisas.

“Espero portanto que S M. I. informado de tudo quanto se passou; das circunstâncias apertadas, em que se achou o Governo da Província, haja de aprovar as medidas adotadas pelo mesmo as quais salvarão a honra do Governo; tranqüilizarão os ânimos, pouparão desgraças e a ninguém prejudicarão. A cópia de tudo quanto se fez servirá de esclarecimento ao que fica narrado. Deus guarde a V. Exa. São Paulo 25 de novembro de 1830”.

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Três documentos, datados do mesmo dia – 21 de novembro de 1830 – e assinados pelo Comandante das Armas de S. Paulo, cel. Carlos Maria de Oliva, confirmam a gravidade da agitação provocada pelo atentado contra o paladino liberal:

1 — “Exmo e Revmo. Snr. Bispo Vice-Presidente da Província: O horroroso assassínio cometido ontem na pessoa do Dr. João Baptista Badaró tem agitado bastante uma parte dos habitantes desta Cidade, a ponto de vir uma chusma hoje pelo meio dia à minha casa, requerendo-me por boca do atual Juiz de Paz da Freguesia de Santa Efigênia o Padre Vicente Pires da Mota uma escolta de Soldados para efetuar a prisão dos perpetradores daquele crime, que me disseram ser entre eles um alemão Stock, ao que eu me prestei depois do dito Juiz de Paz me haver feito a precisa deprecação por escrito. O que me apresso a comunicar a V. Exa. para que tome o referido na devida consideração, e se digne comunicar-me as suas ordens. Deus guarde a V. Exa. Quartel do Comando das Armas em São Paulo 21 de Novembro de 1830”.

2 — “Para os Comtes. do 6.° e 7.° B.es de 1.ª Linha: Remeto a V. S. a cópia do Ofício que me dirigiu o Exmo. Bispo Vice Presidente da Província, para que V. S. faça cumprir literalmente o que no mesmo se contém, ordenando desde já a saída de quatro patrulhas, compostas de quatro homens, e um Comandante cada uma, as quais rondarão os Distritos freqüentados desta Cidade, a fim de manterem a tranqüilidade pública pela forma no mesmo Ofício ordenada, fazendo V. S. compreender aos respectivos Comandantes da maneira de se comportarem em um serviço tão melindroso, e sobre tudo recomendando toda a prudência compatível com o ponto essencial do sossego público. Deus guarde a V. S. Quartel do Comando das Armas em São Paulo 21 de Novembro de 1830”.

3 — “Aos Corpos da 2.ª Linha da Cidade; Tendo-se procedido a providências por ordem do Exmo. Bispo Vice Presidente desta Província para sossegar o espírito público presentemente alguma coisa alterado nesta Cidade, para as quais se tem empregado uma grande parte da força de 1.ª Linha; e não sendo possível por esta causa fornecer as guardas da Guarnição a manhã com praças da mesma; ordeno a V. S. mande quanto antes reunir os Soldados, e Inferiores, que menos falta façam às suas casas, das Companhias do Batalhão do seu Comando, do Distrito da Cidade, para coadjuvarem o serviço da Guarnição por estes dois, ou três dias advertindo que as praças que vierem vindo se devem logo apresentar no Quartel do 6.° Batalhão de 1.ª Linha. Deus guarde a V. S. Quartel do Comando das Armas em São Paulo 21 de Novembro de 1830”.

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As atas das sessões do antigo Conselho do Governo, guardadas no arquivo do Estado de S. Paulo (cfr. Duarte Silva. Obra cit.), comprovam quão difícil fosse a situação derivante da pronúncia do juiz Japi-Assú, e da indignação do povo, que queria impedir a sua evasão.

Extraímos da ata da sessão extraordinária de 22 de novembro de 1830: “... Requereu ser admitido à audiência do Conselho o mesmo Comandante Militar, e sendo introduzido, expôs que repetidos avisos lhe tinham chegado, de que a sua casa ia ser invadida por uma porção de povo, afim de ser daí arrancado o Desembargador Candido Ladislau Japi-Assú, Ouvidor desta Comarca, que se diz ser cúmplice no assassinato do Doutor João Baptista Badaró: que com efeito o dito Ouvidor estava recolhido em sua casa, por se ter ido valer dele Comandante das Armas, contra os insultos e ameaças de alguns do povo: que não estando ele resolvido a entregá-lo ao furor da população, mas somente a requerimento duma Autoridade Legal, via-se numa posição assás difícil, e por isso reclamava providências...”

Da ata da sessão extraordinária do dia 23 de novembro de 1830: “Reunido o Exmo. Cons.° pelas 11 horas da manhã para resolver sobre o Ofício do Juiz de Fora pela Lei datado de ontem, em que participa achar-se o Dez.or Ouvidor da Comarca, Candido Ladislau Japi-Assú, pronunciado na Devassa, que estava tirando sobre o assassínio perpetrado na pessoa do Dr. João Baptista Badaró, e pede a deliberação do Governo acerca do procedimento que deve ter com o pronunciado Réu... depois de longa reflexão sobre uma matéria de tanta importância, e entrando em dúvida o Cons. se podia, ou não, mandar executar a pronúncia, deliberou ouvir primeiro ao mesmo Ouvidor, se ele convinha a bem de sua própria segurança em retirar-se para a Corte acompanhado de um Oficial de 1.ª Linha, para apresentar-se ao Exmo. Ministro da Justiça, e recebida a resposta afirmativa e vendo o Conselho, que já então qualquer procedimento não lhe seria injurioso, ainda quando não fosse legal, e persuadido de que a medida lembrada, nas atuais circunstâncias da Província, era o único meio de aplacar a agitação pública, resolveu que se oficiasse ao mencionado Juiz de Fora, dizendo-lhe que o Governo mandava executar a Pronúncia, e que ele remetesse ao Ouvidor a Nota, que a Constituição e a Lei determinam, e depois de ultimada a Devassa, fizesse dela remessa ao Tribunal competente, e que se oficiasse ao Comandante Militar para q. participasse ao sobredito Ouvidor, que se achava pronunciado, e que o Juiz lhe comunicaria a Nota; que nomeasse um oficial de 1ª Linha para acompanhá-lo até a Corte do Rio de Janeiro, o qual deveria partir dentro de três dias, em q. ele mesmo conviera, sendo entretanto conservado em sua casa debaixo da responsabilidade do referido Comandante, como até aqui...”.

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As colunas da imprensa liberal mantinham ao nome do juiz Japi-Assú uma indesejável notoriedade; e parece que, apesar de ter sido absolvido, o ex Ouvidor de S. Paulo não conseguisse eliminar o enfado de sentir-se ainda suspeito, pois que algum tempo depois da sentença (cfr. Pinto Jor. página 347) resolveu dirigir publicamente aos compatriotas de Badaró, um apelo patético, redigido no idioma italiano, que aqui reproduzimos:

“Signori italiani — Alcuni miei infami nemici, crudelissimamente m’imputarono l’assassinio del vostro infelice compatriota Giovanni Battista Badaró: M’accusarono d’un delitto orribile, che eglino soli, anime vili, potevano commettere senza ribrezzo.

“Io sempre vi amai di vero cuore: e non mi par possibile lasciar di amare uomini che parlano la dolce e elegante lingua di Metastasio, Petrarca, Cesarotti, Dante, Ariosto, Tasso e Guarini; uomini nati nella patria di Virgilio, d’Orazio e d’Ovidio; di Tito, d’Antonino, d’Aurelio e di Cincinnato; di Beccaria, di Filangieri e di Alfieri; di Ganganelli, Michel’Angelo, Raffaello e Rossini. Discendenti tutti di tanti eroi e di una patria alfine, che avendo dettato leggi al mondo, oggi lotta per rompere le catene che iniquamente posero alla sua indipendenza.

“Molto desidero che tutti conoscano la mia innocenza, peró molto piú che i miei figliolini non ricevano la triste ereditá di un cattivo nome che uomini perversi vollero dare al loro padre. Questi poi sono i motivi perché rimetto alle vostre biblioteche esemplari della mia difesa, perché puó anche succedere che un giorno, volendo voi scrivere la vita del vostro disgraziato compatriota, e non sapendo che la mia unica colpa fu un’ingiusta persecuzione, diceste al mondo che io sia stato il carnefice dell’infelice.

“Leggetela, come spero, a sangue freddo, e con imparzialitá; e concorrete nel sentimento e nell’orrore che m’inspirano gli infami che l’assassinarono.

“Colla maggiore simpatia sono il vostro ammiratore: Candido Ladisláo Japi-Assú”.

Perguntamos: que juízo podemos fazer dessa retórica “excusatio non petita”; da sinceridade da comoção do missivista; do seu caráter, quando se verifica que, pouco antes dessa carta, o mesmo Japi-Assú caluniava Badaró escrevendo que em São Paulo se desacreditou (cfr. Egas “Estudos” página 69), que era homem venal, que não passava de um instrumento ao serviço dos seus inimigos, que os próprios amigos o assassinaram para “se verem livres do infeliz estrangeiro que julgavam traidor”?!

*

Documentos oficiais sufragam a opinião dos que afirmaram que a campanha de “O Observador Constitucional”, contrária à conduta do Ouvidor Japi-Assú, não era absolutamente motivada por ressentimentos particulares do diretor; mas sim o fiel reflexo dos sentimentos do povo paulista.

De fato, vê-se que, já antes do assassínio de Badaró, a Câmara Municipal de São Paulo, com ofício de 8 de outubro de 1830 (cfr. Duarte Silva. Documentos) reclamava do Vice-Presidente em exercício e do Conselho do Governo, providências contra esse magistrado: “A Câmara Municipal cumprindo uma das mais sagradas de suas obrigações vem requerer a V. Exa. contra o atual Ouvidor da comarca... O procedimento anti-constitucional, arbitrário, e tirânico do Ouvidor tem posto em perigo a tranqüilidade pública... quem nos pode afiançar, que uma sublevação contra este Ouvidor não se realize? A Câmara ponderou tudo isto, ela se reuniu extraordinariamente só para este fim, e vem requerer a V.V. Exas. a suspensão deste Magistrado, porque de sua conservação, ao menos na crise atual, podem, e quase é certo, que resultarão males incalculáveis. V.V. Exas. não tomando este fato na sua verdadeira consideração ficarão responsáveis por tudo quanto acontecer. V.V. Exas. responderão ao Brasil, e a S. M. o Imperador pelas desgraças que estão iminentes...“.

Depois do trágico fim de Badaró, os membros da Câmara Municipal, dando prova de cívica coragem numa época de reação absolutista, dirigiram ao Bispo D. Manoel novo ofício, que expunha detalhadamente os abusos imputados a esse magistrado. O ofício, com data de 20 de dezembro de 1830, foi asssinado pelos vereadores: Joaquim Antonio Alvim, Antonio Joaquim Xavier da Costa, Antonio Cardoso Nogueira, José Rodrigues Vellozo de Oliveira, Joaquim Floriano de Godoy e Francisco Garcia Ferreira.

Nessa comprida representação, a Câmara acusa abertamente e responsabiliza o Ouvidor Japi-Assú pela morte de Badaró, terminando com esta enérgica afirmativa: “... Os membros desta Câmara asseveram que o Ouvidor denunciado é o autor desse crime, porque estão tão certos disso, assim como estão da sua existência. Deixando pois chicanas, e desdenhando a censura de pretendidos apáticos que exigem a frieza do gelo em todas as peças oficiais, a Câmara muito pelo contrário, sendo como é composta de cidadãos, que ou nasceram debaixo do ameno clima paulistano, ou a ele ligaram sua existência, clama vingança e invoca o Brasil inteiro contra o malvado que veiu ludibriar sua pátria, assassinar seus concidadãos, e fez quanto pôde para torná-la o teatro da guerra civil, da carnagem, e da assolação”.

*

A propósito do tal marceneiro alemão Stock, que foi entregue pelo povo à justiça, sujeito a julgamento e condenado em S. Paulo como assassino de Badaró, diz, na publicação citada, o dr. Pinto Jor. que o mesmo acabou de cumprir a pena no presídio de Guarapuava. Porém Eugenio Egas (vid. “Estudos”) documenta não ser essa a verdade, pois que houve apelação, e o acórdão, com data de 11 de junho de 1833, do Tribunal da Relação com sede no Rio de Janeiro, reformando a sentença da Junta de Justiça de São Paulo, absolveu também Henrique Stock.

Há portanto engano outrossim nas citadas Memórias do prof. Vampré, quando refere que o Stock foi condenado e enforcado. Esse indesejável sujeito de maus antecedentes, que na sua terra já tinha escapado por uma vez da forca e por outra da guilhotina (cfr. “O Farol Paulistano” número 419 de 23 de nov. de 1830), conseguiu mais uma vez recobrar sua liberdade.

Comenta o dr Egas (vid. “Estudos” página 52): “Impressiona igualmente na devassa e processos originados pela morte de Badaró o fato de encontrarem os juizes fundamento para sentenças diametralmente opostas: Japi-Assú, absolvido; João Nicolau, idem; Henrique Stock, condenado a galés perpétuas e só absolvido em grau de recurso. Os juizes do Rio, logo em primeiro julgado, lavraram a absolvição do desembargador, os de São Paulo, também em primeiro e único julgamento condenaram Stock...

“Afinal, aqueles que a justiça, o povo, a opinião geral entregaram aos tribunais, como responsáveis pela morte do inditoso jornalista estrangeiro, foram tidos como inocentes, e livres de qualquer culpa ou participação no hediondo delito. Quem matou o dr. Badaró?

“É incrível que num pequeno centro de população, como a cidade de S. Paulo em 1830, fosse possivel dar-se tão grande e horripilante crime, sem que os assassinos pudessem ser conhecidos desde logo, ou sem maior demora“.

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Encontramos freqüentes referências à linguagem violenta de “O Observador Constitucional”. No seu importante estudo, p. ex., o dr. Egas releva que o jornal publicava somente artigos “em termos desabridos” contra as autoridades constituídas; e lembra particularmente os comentários violentos contra o magistrado Souza Chichorro, que foi Ouvidor em São Paulo antes do juiz Japi-Assú.

É exato. Mas é justo relembrar também qual o motivo dos comentários desabridos. É que “entre os erros de Chichorro se apontava a funesta sugestão que fez às vilas de Taubaté, São Luiz do Piraitinga e Pindamonhangaba, abrangidas pela circunscrição judicial em que exercia o cargo de Juiz de Fora, afim de pedirem, como pediram, a Pedro I, o restabelecimento do absolutismo, à semelhança do que fizera o cabildo de Montevideu em dezembro de 1824.

“O Ministro da Justiça, Clemente Ferreira França, suspendeu e mandou se processasse o juiz, assim rebelado contra a carta constitucional, o que não impediu, comtudo, fosse Chichorro no ano seguinte despachado Ouvidor para a comarca da capital de S. Paulo, onde se tornou objeto dos ataques violentos de Libero Badamó.

“Mais uma vez se veio mostrar, dess’arte, que nem sempre os príncipes gravam no coração os conselhos edificantes de Minerva, cuja sabedoria prudente lhes ensina que a justiça não se inebria com os perfumes corruptores da lisonja” (cfr. Rev. do Inst. Hist. e Geogr. de S. Paulo “Discurso do dr. Julio Cesar de Faria” vol. XXVIII — Vid. também Rocha Pombó “História do Brasil” Cap. XVII).

Depois dessa retrógrada exibição anti-constitucional, e da estranhável promoção, é fácil imaginar como “O Observador Constitucional“, jornal de combate da vanguarda liberal, comentou a atuação do comendador, coronel e juiz Manoel da Cunha de Azeredo Coutinho Souza Chichorro, auto-candidato às delicias do absolutismo.

Reportamos concluindo, um parecer imparcial: “...A linguagem usada por Libero Badaró, não era mais violenta do que a dos outros jornais do tempo. A causa do seu assassinato, occorrido alguns meses depois, não foi a forma dos seus ataques aos adversários, mas o espírito da propaganda liberal que fazia contra a política reacionária de D. Pedro e seus auxiliares, que os levou ao 7 de abril e entregou o Brasil ao domínio de si mesmo” (cfr. A. de Toledo Piza – V. Nota bibl.).

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Observando o desenvolvimento do jornalismo local desde o início, A. de Freitas (vid. Nota bibl.) dizia no seu estudo sobre a imprensa periódica de São Paulo:

“Ao aparecimento do “Farol Paulistano”, órgão de tendências conservadoras, seguiram-se – em referência somente aos periódicos políticos – o do “Observador Constitucional”, francamente liberal e federalista em sua última fase, do “Novo Farol” conservador como o seu quase homônimo, da “Voz Paulistana” e do “Federalista,” estes ultra-liberais, refletindo por eles o jornalismo de S. Paulo, desde os primeiros momentos de sua existência, todas as idéias que agitavam a política nacional no tumultuoso fim do primeiro Império e inauguração do período regencial.

“Em 1838, quando já reunidos em pujante agremiação sob a poderosa vontade de Bernardo Pereira de Vasconcellos os elementos da política conservadora que desde a independência se manifestavam dispersos, aparece o órgão liberal “Observador Paulistano” orientado pela cerebração extraordinária de Feijó, e pegoreiro dos prenúncios da agitação partidária que dentro em breve deveria levar S. Paulo à revolução de 1842.

“Nessa primeira fase do jornalismo político o aventamento das questões partidárias só não chegou a tomar em S. Paulo o caráter acentuadamente pessoal e violentamente azedo a que atingiu em outros centros do país, e ao qual o próprio grande Evaristo da Veiga não se pôde furtar, por que ali, mais do que em qualquer outra parte, as medidas de repressão de abuso de imprensa, com excessivo rigor aplicada dentro e fora da lei, converteram-se em espantalho e pesadelo do jornalista de antanho.

“Toda linguagem viva e quente, qualquer enérgica citação pessoal ou frase mal soante aos órgãos auricolares de adversário poderoso, dava ensejo a que reclamada fosse a aplicação draconiana da lei.

“O jornal tal, entende que ao governo ocorre o dever de modificar sua orientação na administração pública e melhor zelar do bem do Estado? É subversivo das instituições: deve ser processado.

“O periódico tal, afirma obedecerem os atos do ministro fulano mais às sugestões partidárias que às do interesse público? É demolidor do Governo constituído: prcesso nele. Envolvido nessa atmosfera saturada dos gases mefíticos das mais lôbregas ameaças; rodeado da fantasmagórica multidão de juizes, acusadores de polícia e beleguins, o jornalista, ante a perspectiva em todos os tempos desagradabilíssima de ir parar à cadeia, e ainda sob a pressão da vindita pessoal, já uma vez bárbara e estupidamente exercida contra Libero Badaró, procurava ser o mais comedido possível em sua linguagem, falando dos adversários por alegoria...“.

*

Há antiga discordância, com referência ao texto exato das palavras pronunciadas “in extremis” por Badaró; palavras que a tradição repete exemplarmente: “Morre um liberal, mas não morre a Liberdade”.

Lendo os jornais da época, depara-se com algumas variantes. “O Farol Paulistano” (n.o 419 de novembro de 1830) assim dizia: “Nunca, portanto, a liberdade ganhou vitória mais completa. Bem o disse o homem liberal, cuja perda choramos: no meio da coragem e resignação, verdadeiramente heróicas, com que suportava as dores, e encarava a morte, ele disse: “Não importa: morre um homem livre, mas fica a liberdade”.

No Rio de Janeiro a “Aurora Fluminense”, de Evaristo da Veiga, (N.° 421, Dezembro de 1830) publicou tecendo o necrológio: “...finalmente foram as suas últimas palavras: Morre o homem, mas fica a liberdade”.

Difícil é um juizo categórico. Pareceu-nos bom conselho continuar com a frase tradicional.

O dr. Pinto Jor, testemunha fidedigna nisto que não relata “por ouvido contar”, na já citada Memória afirma textualmente: “...aos amigos que o cercavam... respondia tranqüilo: Não me iludem; eu sei que vou morrer, não importa! Morre um liberal, mas não morre a liberdade”.

Hercules Florence, que retratou o pranteado seu amigo no leito de morte, também deixou escritas embaixo da imagem as palavras que por certo o impressionaram: “Morre um liberal, mas não morre a liberdade”.

O historiador inglês Armitage, que naquela época se achava no Brasil, registra que essas palavras foram as últimas de Badaró e foram inscritas sobre o seu féretro: informação confirmada depois pelo Visçonde de Taunay, Rocha Pombo e outros.

Recentemente o dinâmico e brilhante publicista dr. Assis Chateaubriand (“Diário de S. Paulo” de 2 de setembro de 1943) ainda argumentava a favor da versão da “Aurora Fluminense”. Reproduzimos alguns trechos da comemoração: “...A sentença teria sido esta, mais comedida: “Morre o homem, mas fica a liberdade”. É menos teatral, menos enfática e mais conciliável com o temperamento de um homem também ocupado com problemas científicos, e absorvido por estudos de história natural, matemática e medicina.

“Segundo nos afirma o depoimento do jornal de Evaristo da Veiga, Badaró, antes de entregar a alma ao Criador, diz: “Eu morro pela liberdade. Em mim acharão os liberais exemplo, e deixem que os “corcundas”, sós, usem de meios tão próprios dos sentimentos vis; o liberal só marcha com a lei”.


São Paulo — O túmulo de Libero Badaró,
no Cemitério da Consolação.


Medalhão de mármore, com retrato de Badaró em alto relevo
(Cemitério da Consolação).


“Esse o autêntico Libero Badaró; aquele puro e honesto liberal, cujos serviços ao Brasil e à liberdade hoje aqui comemoramos.

“O perfil político do redator do “Observador Constitucional” anda por aí horrivelmente deformado, como de um petroleiro sem entranhas, um agitador desalmado que recebeu tiros no ventre, porque esse andava timpânico de cóleras e gases sulfídricos contra a lei e a autoridade.

“Senhores: Libero Badaró era um desses democratas da República da Ligúria que amava doidamente a liberdade, mas que, nas suas relações com esta perigosa deusa ou rainha, não atingia ao extremo que se supõe. Temos que identificá-lo como nosso colega de imprensa, daquela imprensa de doutrina, vazia de publicidade, do seu tempo. O jornal da época de Badaró era aqui, como na Europa, um veículo de idéias e de princípios...”

*

O conhecido escritor prof. F. Assis Cmtra, lembrando Libero Badaró entre os fundadores da imprensa paulista, escreve: “Em 1829, o italiano João Baptista Libero Badaró, homem de grande cultura e que fugira da Itália para não ser enforcado, pois lá o condenaram como carbonário e anarquista, fundou o segundo jornal de São Paulo, que teve o nome de “O Observador Constitucional”, impresso na antiga tipografia do “Pharol Paulistano”.

“Usando de uma linguagem violenta, pregando abertamente idéias liberais, atacava Libero Badaró o imperador Pedro I, o presidente da Província, o ouvidor Uadislau Japiassú e outras autoridades. Libero Badaró era médico e com a sua profissão exercia também a de professor de humanidades.

“Como era de prever-se, Libero Badaró, em pouco tempo, atraiu contra si a odiosidade das autoridades e dos homens da política dominante. No dia 20 de novembro de 1830, quando, à noite, ele transitava pela rua Nova – depois São José e hoje Libero Badaró – recebeu um tiro, desfechado por um desconhecido embuçado. Poucas horas depois, cercado de amigos, expirava o jornalista, proferindo estas palavras, que se tornaram célebres: “Morre um liberal, mas não morre a liberdade” (cfr. Assis Cintra “Os primeiros jornaes paulistas” no vol. “O General que vendeu o Império”. São Paulo. Edit. Fagundes. 1936).

Pode ser avançada razoavelmente a hipótese que Badaró pertencesse à Carbonária, porquanto é notório que se congregaram numerosos, nessa organização secreta, os patriotas italianos, na conspiração contra os dominantes liberticidas.

E sabe-se por certo que outro glorioso milite da Liberdade, Garibaldi, quando aportou ao Brasil, já tinha sido, à sua revelia, condenado à morte, depois de uma falida tentativa de revolta (1834), pelo Conselho de Guerra de Gênova.

O jovem dr. Badaró, vibrante liberal, afastou-se, como ele mesmo disse, do pátrio solo para escapar aos rigores dos esbirros, porém não consta que já tivesse sido condenado a ser enforcado. Demais: esse “anarquista” doutor Badaró, defensor da liberdade dentro da constituição; das garantias que o pacto social concede aos cidadãos; do conceito que o liberal só marcha com a lei...

*

A sensacional repercussão que o assassínio de Badaró provocou em todo o país, não teve somente o eco dos veementes artigos dos órgãos liberais. O sacrifício do abnegado paladino, exaltou também a inspiração dos poetas do tempo.

Eis uma das composições poéticas que maior circulação tiveram:


“Morreste, Badaró! Mas ah! teu nome
Há de ser entre nós eternizado!
Em áureos pedestais sendo gravado,
Monumentos que a terra não consome.

“O tempo estragador, que tudo come
Ao mundo devorando o qu’há criado,
Onde vir o teu nome levantado
Memorável padrão, ah! não carcome!

“Por seres defensor da humanidade
Libertador do solo brasileiro
Fiel agricultor da Liberdade;

“Tirano Japiassú, vil carniceiro
A vida te mandou à Eternidade!
Chora-te do Brasil o povo inteiro.


Dessa poesia, que o dr. Egas reporta, transcrita do periódico “O Farol de Campos” (número de 27 de janeiro de 1831) não conhecemos o nome do autor.

O soneto seguinte, é do dr. José Marciano Gomes Baptista:


“Seja-te leve a terra, ó grande, ó justo!
Corajoso escritor, da Pátria esteio.
Outr’ora ela te viu, sem vil receio,
Regar da Liberdade o tronco augusto.

“P‘rigos venceste, subjugaste o susto,
Ao Despotismo audaz puseste um freio.
Viste de benções mil, de glória cheio,
Triunfar a razão mas não sem custo.

“Ah! se podem soar na Eternidade
Os tristes ecos de maguado pranto,
Que em nós excita funeral saudade;

“Atende lá do emprego sacrosanto
À dor pungente, à lugubre ansiedade
Do Brasil, que, em perder-te, perdeu tanto!

*

Entre os amigos íntimos de Libero Badaró, em São Paulo, foi o muito talentoso artista Hercules Florence, que deixou, em dois preciosos desenhos, um retrato de Badaró (Arquivo do Inst. Hist. e Geog. de S. Paulo), e um aspecto da missa do sétimo dia. Sobre o desenho de Florence, que fixou a lembrança de um comovedor episódio da cerimônia religiosa, o pintor A. Norfini compôs o quadro que existe no Museu Paulista do Ipiranga e que podemos reproduzir graças à gentileza do ilustre diretor do Museu, dr. Afonso de E. Taunay.

Hercules Florence nasceu em Nice no ano de 1804, e morreu em 1879 no Brasil, onde se estabeleceu, casando-se em Campinas e tendo prestigiosa descendência. Dotado de instrução variada e temperamento aventuroso, não limitou às belas artes a própria inteligente atividade.

A Revista do Inst. Hist. e Geog. do Rio de Janeiro, publicou (1876, Vols. XXXVIII e XXXIX) traduzidos do francês pelo Visconde de Taunay, um curioso estudo, intitulado “Zoophonia”, e o muito interessante, e único, relatório da expedição ao interior do Brasil, que foi chefiada pelo naturalista russo Langsdorff, em 1825, e que o Florence acompanhou como desenhista..

*

Logo depois da proclamação da República, antes da transladação dos despojos, foi mudado o nome da antiga Rua de S. José para Rua Libero Badaró.

Lemos na crônica de “A Província de São Paulo” de 20 de novembro de 1889:

“Ontem, às 11 horas da manhã uma comissão popular composta dos drs. Martinho Prado Junior, Carlos Garcia e Clementino de Souza e Castro, precedidos da banda de música do 10o Regimento de Cavalaria e povo, depois de percorrerem as ruas centrais da cidade, dirigiram-se à Câmara Municipal, que realizava uma de suas sessões ordinárias.

“Aí, presentes os vereadores Domingos de Morais, Carmillo, Garcia, Pedro Vicente, Azambuja, Pereira Borges, Mendes da Silva e Silveira da Motta, sob a presidência do cidadão Domingos Sertorio, depois de lido um ofício do Governo Provisório, o dr. Martinho Prado Jor; obtendo a palavra, leu a seguinte mensagem: “Viva a República! Honrados representantes do município de São Paulo, os abaixo assinados comissionados por uma grande parte da população desta cidade, vêm perante vós, pedir que sejam mudados os nomes das seguintes ruas: Do Imperador para “Marechal Deodoro” — Imperatriz para “15 de Novembro” — Princeza para “Benjamin Constant” — Conde d’Eu para “Glycerio” — Principe para “Quintino Bocayuva” — São José para “Libero Badaró” — Commercio da Luz para “Avenida Tiradentes” e Largo 7 de abril para “Praça da República”.

“Acatando a vossa prerogativa, respeitosamente esperam que acolhais esta justa petição, hoje desejo pronunciado dos vossos eleitores. Saúde e fraternidade!”.

“O vereador Silveira da Motta, em patrióticas palavras justificou um por um os novos nomes dados a essas ruas, sendo a proposta aprovada pela Câmara unanimimente” (Vide também J. J. Ribeiro “Chronologia Paulista”).

— Rua Libero Badaró: “Primitivamente Rua Nova de S. José, mandada abrir em 1787 na administração do Capitão-General D. Frei José Raymundo da Gama Lobo, Governador da Capitania de São Paulo (1786-1788). A primeira denominação foi-lhe dada em honra àquele Governador, e a atual (1889) em comemoração à residência ali do publicista liberal Dr. João Baptista Libero Badaró e do seu assassínio em a noite de 20 de novembro de 1830” (cfr. A. De Freitas “Plan’Historia da Cidade de São Paulo”).

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Da comissão que foi nomeada pela coletividade italiana de S. Paulo, para a ereção do túmulo e a transladação dos despojos de Libero Badaró, faziam parte os seguintes cidadões: Giuseppe Rossi (presidente), Luigi Tonissi (secretário), Rosalbino Santoro, Eusebio Gamba, Francesco Pedatella, Antonio Giusti, Salvatore Logelso, Giovanni Pozzera e Michele Rizzo. Sobre a atividade da comissão e as cerimônias realizadas na tarde do dia 24 de novembro de 1889, os jornais da época publicaram notícias pormenorizadas.

Depois de um solene ofício religioso celebrado na igreja da Ordem Terceira do Carmo, milhares de pessoas formaram um préstito imponente. No cemitério da Consolação oradores italianos e brasileiros comemoraram dignamente o paladino da liberdade.

Pelos estudantes da Faculdade de Direito, falou nessa ocasião o jovem paulista Argimiro da Silveira. O mesmo publicou, no ano seguinte (V. Nota bibl.) uma interessante monografia sobre Libero Badaró “com o intuito (declarava o A. no preâmbulo) de trazer a público o sentimento de gratidão, que vive no peito de todos quantos têm tido notícias do nome, do martírio e da glória de Libero Badaró, esse venerando campeão das liberdades do povo. Sessenta anos fazem (em 1890) que ele caiu ensangüentado, vítima do seu nobilíssimo apostolado; não era justo que transcorresse despercebida esta data memoravel depois da proclamação da República Brasileira... A divisa de Libero Badaró foi —Ciência e Liberdade— este duplo pedestal inquebrantável, em que se baseia todos os progressos da humanidade...“.

D. Rangoni (vid. Nota bibl.) informou a propósito da transladação: “Nel 1886, per il 56o anniversario della morte il “Garibaldi”, giornale che qui si stampava, pubblicó un numero unico dedicato alla memoria di Libero Budaró, incitando la colonia italiana ad erigergli almeno una pietra, che ricordasse ai posteri il grande concittadino. E l’invito non andó perduto. Fu costituito un Comitato che apri una sottoscrizione per innalzargli un monumento nel Cimitero della Consolazione. Il 20 novembre 1889, fu compiuta in San Paolo una cerimonia che rimase memorabile. Furono trasportati con grande pompa i resti mortali di Libero Badaró della Chiesa del Carmine al Cimitero della Consolazione. Tutti gl’italiani di San Paolo e molti venuti dai di fuori intervennero a prestare omaggio all’illustre estinto. Al Cimitero, dove ora sorge il monumento, furono sotterrate le ossa dei martire insigne, e dissero di Lui eloquentemente italiani e brasiliani”.

(Só há engano na data, pois a cerimônia foi realizada no dia 24 de novembro, domingo, de 1889).

A imprensa toda deu especial relevo à civica manifestação que se revestiu de solenidade descomunal. O já citado “Diário Popular” assim concluía (número de 25 de novembro de 1889) a crônica da transladação:

“À colônia italiana apresentamos os nossos cumprimentos pelo modo brilhante e digno com que soube honrar a nossa festa nacional, erigindo aquele monumento que levará à posteridade o nome de um dos gloriosos mártires da liberdade deste país”.

*

Concluindo o seu diligente trabalho de investigação histórica, perguntava Duarte Silva: “Mas de onde surgiu o ramo Badaró que existe no Brasil e é um tanto conhecido em São Paulo?”.

O eminente político republicano dr. Fausto Ferraz, que foi deputado de Minas Gerais numa sua conferência publicada em 1920 (vide Nota bibl.) esclarecia: “O nome de Badaró foi consagrado na inteira província de Minas Gerais, e é hoje um dos nobres ornamentos da República. Uma ilustre família brasileira, sem ligação alguma de sangue com o valoroso italiano, tomou o nome de Badaró, que se ilustra no ambiente político e científico da minha Pátria”.

Ainda no tempo da monarquia, figuram na imprensa paulista: Washington Badaró, redator-chefe da folha jurídica “Ihering” (1882), estudante de Direito, natural de São Paulo de Muriahé, província de Minas Gerais, filho de José Coelho Duarte Badaró e D. Gertrudes Umbelina Duarte Lima; e Francisco Coelho Duarte Badaró — também matriculado na Faculdade de Direito — redator do jornal “O Constitucional” (1881) e colaborador da revista “Idéia”, fundada por Randolpho de Oliveira Fabrino.

Depois da proclamação da República, entre os representantes do povo brasileiro no “Congresso Nacional Constituinte”, o dr. Francisco Coelho Duarte Badaró, deputado de Minas Gerais, tomou parte ativa (cfr. jornal “O Paiz” do Rio de Janeiro, número de 6 de abril de 1891, e Agenor de Roure “A Constituinte Republicana”) na discussão dos artigos da Constituição que diziam respeito às relações entre o Estado e a Igreja. O mesmo ocupou importantes cargos públicos, e deixou diversas obras impressas: “Fantina”, cenas da escravidão (1882); “Parnaso Mineiro”, crítica literária (Ouro Preto, 1887); “Discursos Parlamentares” (Rio de Janeiro, 1893); “La République du Brésil et le Royaume de Portugal” (1894); “L’Eglise au Brésil” (1895); “Tiro ao alvo” (1896); “Les Convents au Brésil” (Florence, 1897). Colaborou na “Revista do Brasil”, que foi editada em São Paulo: redator-chefe o dr. Plínio Barreto.

Pessoalmente, lembramos com simpatia o jovem Eduardo Coelho Badaró, bom amigo e colega na redação do cotidiano “Fanfulla” em São Paulo.

Na lista dos estudantes da Faculdade de Direito de S. Paulo, aparece também Ovidio Paulo Badaró, formado em 1897. O dr. Ovidio Badaró, conceituado profissional, ocupou diversos cargos públicos, e faleceu há poucos anos, na capital.


São Paulo - Um trecho da moderna Rua Libero Badaró.


 

 

Nota Bibliográfica

 

João Armitage História do Brasil, Rio de Janeiro. Edit. Zelio Valverde (3.ª edição brasileira) — Rocha Pombo Historia do Brazil — Joaquim Antonio Pinto Junior O Dr. João Baptista Badaró, Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico Geographico e Ethnographico do Brasil. Vol. XXXIX, 1876 — Argimiro da Silveira Alguns Apontamentos Biographicos de Libero Badaró e Chronica do seu assassinato, Rio de Janeiro, Rev. do Inst. Hist. e Geog. Brasileiro. Vol. LIII, 1890 (Id. Id Appunti biografici su G. B. Libero Badaró: Trad. italiana di A. Ricci-Bitti. São Paulo. Ed. Bordoni e C., 1907) — Nicoláo Duarte Silva Libero Badaró: Contribuoção para a sua biografia. Rev. do Inst. Hist. e Geog. de São Paulo. Vol. XXVIII. 1930 — Eugenio Egas Estudos: Badaró. Japiassú. Regencias. S. Paulo. Tip. do Liceu Coração de Jesus. 1932 — Id. Id. Diogo Antonio Feijó. São Paulo. Tip. Levi. 1912 – Euclydes da Cunha Da Independencia à Republica, Rio de Janeiro “Revista Americana” 1909 — Pedro Calmon Historia da Civilização Brasileira, São Paulo. Edit. Comp Nacional. 1933 — M. Junqueira Schmidt A segunda imperatriz do Brasil, Edit. Comp. Melhoramentos. 1927 — Lafayette de Toledo Imprensa Paulista, Rev. do Inst. Hist. e Geog. de São Paulo. Vol. III. 1898 — José Jacintho Ribeiro, Chronologia Paulista, São Paulo. Tip. do Diário Oficial. 1899 – Antonio de Toledo Piza, Recordações Históricas, Rev. do Inst. Hist. e Geog. de São Paulo. Vol. X. 1905 — Affonso de Freitas Plan’Historia da Cidade de S. Paulo, Rev. do Inst. Hist. e Geog. de São Paulo. Vol. XVI 1911 — Id. Id. A Imprensa Periódica de S. Paulo, Vol. XIX, 1914 e Vol. XXV, 1927 da mesma revista — Antonio Egydio Martins São Paulo Antigo, São Paulo. Tip. do Diário Oficial. 1912 — Martim Francisco Contribuindo, São Paulo. Edit. Lobato & Cia. 1921 — Visconde de Taunay Estrangeiros Ilustres no Brasil, S. Paulo. Edit. Comp. Melhoramentos. 1932 (A primeira vez publicado no Rio em 1896) — Spencer Vampré Memórias para a História da Academia de São Paulo, Edit. Saraiva & C. 1924 — Osvaldo Orico, Evaristo da Veiga e sua época, Rio de Janeiro. Edit. Guanabara. 1932 – Tancredo do Amaral, A História de São Paulo ensinada pela Biografia, Edit. Alves & C. 1895 — D. Rangoni Studio sulle relazioni tra l‘Italia ed il Brasile, São Paulo. Tip. Duprat, 1903 — Dr. Fausto Ferraz Influenza dei Genio Italiano nella Formazione dei Brasile. Roma. Rivista “L’Italia e l’America Latina”. 1920 — Antonio Piccarolo Gli Italiani nel Brasile. São Paulo. 1922 — Francesco Pettinati O Elemento Italiano na Formação do Brasil. São Paulo. Tip. Pocai — G. Doria Storia dell’America Latina. Milano. Edit. Hoepli — Cenni storici sugli italiani benemeriti del Brasile. Roma. Tip. Novissima. 1933 — Aureliano Leite A História de São Paulo. Edit. Livr. Martins. São Paulo. 1944.


 

 


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Dezembro 2000