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eBookLibris

Vera Siqueira

AVENTURA
NO
REINO VERDE

—Ridendo Castigat Mores—


 

 

Aventura no Reino Verde
Vera Siqueira

Edição
Ridendo Castigat Mores
Fonte Digital
http://www.jahr.org
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
Nélson Jahr Garcia
(1947-2002)

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

© 2000 — Vera Maria Ferraz de Siqueira
Todos os direitos reservados


 

A AUTORA

 

Minha cidade natal chama-se Serra Negra, no interior do Estado de São Paulo, muito conhecida pelas suas águas, das mais radioativas do Brasil. Aí eu morei num casarão do Largo da Matriz. A chave da porta era enorme. E eu ficava imaginando que a chave de São Pedro deveria ser daquele tamanho... Nos fundos do casarão tinha um quintal, onde até passava um rio. E o que eu brincava, tanto no quintal quanto no Largo, nem pode ser descrito: correrias, esconde-esconde, acusado...

Minha mãe e minhas tias eram grandes contadeiras de estórias. Eu adorava ouvi-las e pensava: “Um dia ainda vou inventar as minhas também”.

Dito e feito. Cresci, morei em várias cidades do interior, fiz Magistério, estudei na USP, onde me graduei e pós-graduei, sempre escrevendo estórias, a maioria delas até hoje guardadas na gaveta.

Mãe sete vezes, é claro que minhas crianças ouviram quase todas, principalmente à hora de dormir. Mesmo agora, estando elas já criadas e crescidas, ainda invento estórias. Misturo lembranças de minha infância com fatos ocorridos em outros lugares e casos que ouço contar. Como me interesso muito pelo nosso Folclore (cultura popular, você sabe), sempre coloco alguma coisa dele no que escrevo.

Vera Siqueira
(1927-1988)


 

imagem

Prêmio Câmara Municipal de São Paulo
1987


 

“VAMOS DAR A MEIA VOLTA
VOLTA E MEIA VAMOS DAR...”

Para três crianças muito queridas:
Vera Alice,
John III e
Alexander.


 

OS GÊMEOS

 

imagemEra uma vez dois irmãozinhos gêmeos que moravam numa vila, perto da floresta Amazônica. Deviam ter uns nove anos, mais ou menos. Eram pobres, habitavam numa barraca humilde e viviam com a tia Zefa, mulher má, que judiava deles.

Os dois eram muito amigos e unidos. E chamavam, um ao outro, de “Maninho” e “Maninha”.

Ela era uma pequena franzina, rosto comprido e magro, pele cor de cobre, olhos grandes e assustados, cabelo corrido, despenteado, com uns fios caídos na testa. Sua roupa era, geralmente, camisola curta de chita. E tinha os pés descalços.

Ele era igualzinho à irmã (pudera! eram gêmeos!). Vestia, quase sempre, calção de riscado grosseiro e blusa que ele mesmo remendava. Usava uns sapatos enormes que mais pareciam lanchas. Ganhou-os do dono da venda que, por sinal, tinha os pés muito maiores que os dele... Mesmo assim, esses sapatos eram seu orgulho.

Um dia a menina disse ao irmão:

— Tia Zefa maltrata tanto nós dois... A gente tem de cozinhar, limpar o rancho, tratar das criações. E ainda carregar lenha pesada o dia todo. Quando não é isso, é pegar na enxada ou cuidar da roça de mandioca. Nem dá tempo de brincar.

— Se fosse só isso, ainda não era tão ruim — respondeu o menino. — O pior são os maus-tratos, os castigos, as surras... isto que é triste. Mão pesada a dela! Olhe só o meu braço, cheio de manchas roxas. Ela olhou, olhou e perguntou:

— Sabe de uma coisa? Vamos embora? A floresta está aí, é tão grande... Quando vou buscar lenha, fico pensando como deve ser bom ir andando, andando, por lá. Maninho riu:

— Sabe, eu também penso nisso. Engraçado.

E Maninha, enquanto tentava fazer uma bola de trapos, comentou:

— Engraçado, nada. Pois a gente não é gêmeo? O que um pensa, outro pensa também.

— Maninho pegou a bola das mãos da irmã, começou a jogá-la e foi dizendo: — É mesmo. E onde vai um, vai outro, não? Tia Zefa diz sempre: “Esses dois são corda e caçamba”.

A menina era resolvida e decidiu:

— Pois vamos embora juntos!

Ficaram os dois sentadinhos no chão, pensando. Era difícil poderem ficar um pouco assim folgados, mas a tia havia saído e eles aproveitaram para descansar e fazer planos.


 

EM BUSCA DO DESCONHECIDO

 

imagemManhãzinha ainda, tia Zefa roncava, talvez cansada de uma longa caminhada que fez na véspera. A menina chamou, baixinho, o irmão:

— Vamos, Maninho?

— Psiu! — fez o menino. Foram para fora do barraco e ele comentou:

— Fazia uma porção de tempo que estava acordado, esperando. Eu ouvi a “Maria já é dia” cantar. Passarinho engraçado esse, parece despertador!

— Muito antes dele cantar, eu já estava acordada. Tudo pronto?

— Há que tempo!

Caminhavam pé ante pé. Estava escuro ainda.

Cada qual levava sua trouxa: alguma roupa e os brinquedos de estimação que eram dos dois: a boneca de pano, chamada Calunga, e o alçapão antigo e todo consertado. Não se esqueceram do canivete que um tapuia lhes deu, uma vez.

— Maninha do céu, esqueci uma coisa! Tenho que voltar — disse o menino, mal tinha caminhado uns dez passos.

— Cuidado! Tia Zefa pode acordar. Vê se volta logo.

— Espere aí.

Voltou, depois de algum tempo, arrastando os sapatões cambados que o dono da venda lhe dera. Como poderia viajar sem eles?

Contou para a irmã:

— Tia Zefa estava ainda ferrada no sono, sabe? Nem se mexeu...

— Vai ver que estava sonhando com o Tinhoso — comentou Maninha e apressou o irmão:

— Depressa, antes que fique dia claro. Você tem um pouco de pão no bolso, não é?

— Tenho. Foi bom trazer, não?

E lá se foram, cada qual roendo seu pedaço, rumando em busca do desconhecido.


 

DENTRO DA MATA

 

imagemEntraram, por fim, na floresta imensa. No meio daquelas árvores gigantescas, abraçadas por cipós, árvores seculares que se misturavam, entrelaçando as copas ramalhudas, as crianças desapareciam. Eram quase nada, assim como dois grãozinhos de areia. Sumiam na imensidão verde. Eram duas folhinhas que se agitavam ao vento.

Pássaros cantavam, animaizinhos assustados escondiam-se e havia orquídeas e parasitas amarelas, roxas, rosadas, entrelaçando-se pelos troncos. Havia planta trepadeira que não acabava mais.

— Como é lindo tudo por aqui — exclamou a menina. — Vamos colher flores, fazer um colar para a Calunga?

— É uma beleza mesmo... — disse o menino. — E o melhor é que tem tanta fruta que a gente pode comer.

É uma gostosura!

A menina logo se lembrou da água. Deus livre de passar sede... Foi dizendo:

— Olhe, Maninho, quantas nascentes. Veja aquela água tão clara ali, rolando, no meio das pedras. E água fresquinha, essa. Tem mais: a folha do japá guarda água boa, você sabe.

— É mesmo — concordou o garoto. — E a folha do imbé também.

— E podemos caçar — continuou a menina. — A gente apanha aves pequenas, depois cata paus secos, acende fogo e prepara a comida, não é? Maninho falou: — Cozinhar é o de menos. E coisa que a gente sabe fazer muito bem. Lembra aquela vez que fiz um molho de tucupi?

Tia Zefa até lambeu o beiço.

— E mesmo — confirmou a menina. — E sabe no que estou pensando? É que esfregando duas pedras, uma na outra, se faz fogo. Lembra que um índio ensinou tia Zefa, uma vez?

E assim, fazendo planos, foram caminhando os dois irmãozinhos pela mata adentro.


 

A CASINHA DE MENTIRA

 

imagem— Vamos arranjar um esconderijo — propôs a menina. — Assim os bichos bravos não pegam a gente. É capaz de ter onça pintada por aqui.

Depois de procurarem um pouco, conseguiram um lugar muito bom: o oco de uma gigantesca sumaueira.

— Faz de conta que é uma casinha! — alegraram-se os dois ao mesmo tempo.

E, trocando idéias, resolveram fazer uma vassoura com galhos de árvore para varrer o chão. Com uns paus catados ali por perto improvisaram uma mesa e dois bancos.

— Pronto! — arrematou Maninho. Agora, só falta um lugar para a Calunga dormir. Com estas folhas dá pra arrumar uma cama bem fofinha.

Tiraram da trouxa a boneca, que foi embrulhada num trapo, e começaram a niná-la. Cantavam juntos:

“Tutu marambá
não venhas mais cá
que o pai do menino
te manda matar
murucututu
vai embora já daqui
porque a menininha agora
vai dormir”.

Acabada a cantiga, Maninha gritou:

— Agora é sair pra caçar.

— Psiu! — fez o menino. — Não vê que a Calunga está dormindinho?

Saíram. Algum tempo depois, voltaram felizes porque tinham apanhado alguma coisa. Limparam as caças, fizeram fogo, assaram tudo. Comeram bem e depois saborearam uns araçás gostosos.

O menino lamentou:

— Pena a gente não poder pegar aqueles favos de mel, não?

E mesmo, mas foi melhor assim. Com abelha não se brinca. Dói tanto uma picada! Cruz, credo!

Maninho parecia distraído. Por fim, disse:

— Estou pensando é na cara que a tia Zefa fez quando acordou...


 

A CARA DA TIA ZEFA

 

imagemTia Zefa acordou meio assustada, com o sol a lhe bater no rosto. Bocejou, espreguiçou-se, pulou da rede.

“Os dois já devem estar trabalhando”, pensou.

Saiu na porta da tapera e deu o grito de costume:

— Maninho, Maninha! Tragam a lenha! Os dois venham já me ajudar!

Grande silêncio, só interrompido pelo cururicar do galo no terreiro.

— Já pra dentro! Ficaram surdos?

Nenhuma resposta. Então, ela espiou para fora. Nada! Entrou de novo, percebeu que as poucas roupas das crianças não estavam no velho baú de marupá. Nem Calunga, nem alçapão. “Vai ver que fugiram, os danados!”, pensou.

Começou a resmungar, despeitada:

— Não valiam nada, aqueles dois. Uns vadios, uns tratantes. Mas, para alguma coisa, bem que serviam. Catavam lenha, cortavam os paus, faziam fogo. Bem ou mal, cuidavam das criações, da rocinha de mandioca e de milho e me apanhavam peixes. Faziam um pirão de farinha, daqueles de dar água na boca... Ninguém sabia fazer carne cozida no arroz como os dois.

Sacudiu os ombros. Sempre desconfiou que mais tarde ou mais cedo aconteceria isso.

Mas ainda tinha uma certa esperança de encontrá-los. Por isso, andou mais um pouco e perguntou a algumas pessoas se tinham visto as crianças. Um caboclo informou-a, vagamente, de que as vira dirigindo-se para o lado da floresta.

O Missionário, que passava por ali, quis saber do que se tratava.

— Os dois fugiram de casa — explicou tia Zefa.

— Que pena! Eu gostava deles. Sempre que podiam iam até a escola. Chegaram mesmo a aprender alguma coisa. E eram bem espertos e inteligentes. Vou fazer tudo para encontrá-los.

Tia Zefa, desapontada, voltou para o rancho e não teve quem lhe rachasse lenha, pegasse peixes ou fizesse comida.


 

A MULHER DOS CABELOS SOLTOS

 

imagemNo dia seguinte, os dois estavam sentados, conversando, quando ouviram um barulho nas folhas do chão.

— E bicho, Maninho!

— Parece mesmo — respondeu o irmão, aguçando os ouvidos.

Nisto, o barulho tornou-se mais forte e passos foram se aproximando.

Assustados, eles olharam na direção do ruído e viram, caminhando, uma mulher morena, magra, com os cabelos soltos e despenteados, olhos muito abertos. Ela parou e ficou olhando para eles. Passaram-se alguns minutos e a mulher continuava ali parada, observando as crianças sem dizer nada. A princípio eles ficaram assustados, mas depois o medo foi passando. Por fim, quando a mulher chamou-os, com a mão, para que a seguissem, a menina falou ao ouvido do irmão:

— E melhor a gente ir. Não adianta fugir, Maninho. Vamos pegar nossas coisas.

Ele concordou e seguiram a mulher. Foram andando atrás dela, até chegarem a uma tapera. Ela fez sinal para que entrassem e guardassem suas trouxas num velho baú de lata, único móvel que ali estava. Os meninos obedeceram. A mulher, então, tirou de um balaio uns frutos bonitos, um favo de mel cheiroso e deu para eles. Colocou as mãos nas cabeças dos dois, tentando fazer um agrado.

As crianças entreolharam-se, espantados com o bom trato. Tia Zefa nunca fez isso. A mulher então mandou-os, com um gesto, brincar fora e ficou admirando os dois por muito tempo.

— “De hora em hora Deus melhora”, não, Maninho?

— E mesmo. Será que agora a gente vai ter um bocado de sossego e alguém pra fazer agrado?...

A noite, a mulher cobriu sua esteira com folhas e uns trapos, fez os dois deitarem e ela mesma estirou-se no chão para dormir.


 

UM NOME PARA ELA

 

imagemOs gêmeos tiveram um sono agradável, pois sentiram-se seguros com a presença de uma pessoa grande perto deles. Ela não havia falado, ainda, mas parecia bondosa e os tratara bem.

A menina comentou:

— Engraçado! Ela é tão esquisita, mas eu não tenho nem um tiquinho de medo.

— Nem eu — acrescentou o menino. — E sabe de uma coisa? Já estou gostando dela! Nisto, a mulher vinha voltando com as mãos cheias de coisas de comer. A menina ficou pensativa:

— Como é que a gente vai chamar essa dona, hein, Maninho?

— Não sei, não. Só se chamar de “Ela”. Maninha discordou:

— Que bobagem! Isso não é nome. Que tal chamar de mãe?

— Acho bom. É um nome muito bonito. E gostoso de dizer!

Nesse momento, a mulher entrou no rancho e Maninha quis logo pôr em prática sua idéia. Foi logo perguntando:

— Já de volta, mãe?

Ela parou, olhos arregalados, sorriu e balançou a cabeça, como quem diz que sim. Maninha cochichou:

— Parece que ela gostou do nome.

Os gêmeos sempre a observavam: além de arrumar comida, ela ia a uma nascente próxima lavar alguma roupa e o resto do tempo passava colhendo folhas e raízes. Apanhava muito caruru, verdura que contém sal. Ocupava-se também fazendo cestos, balaios e peneiras.

As crianças, nessas horas, interessavam-se: ficavam por perto olhando, querendo aprender. Parece que ela entendeu, pois arranjou material para eles, que começaram a imitá-la. Tia Zefa nunca tivera essa paciência.

À noite foram deitar e os dois disseram, ao mesmo tempo:

— Boa noite, mãe!

Ela acenou com as mãos, sorriu e ficou olhando para eles.

Lá de fora vinha o coaxar dos sapos numa lagoa próxima.


 

A CANTIGA

 

imagemPassaram-se uns dias e eles iam vivendo felizes. Brincavam, ajudavam a mulher e conseguiram fazer pequenos cestos e peneiras.

Como tivessem espírito de aventura, certa vez perguntaram:

— Mãe, a gente pode dar um passeio?

Ela parou de tecer o balaio e fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Sairam os dois.

— É tão bom — disse ele — ter a mãe que cuida da gente, dá comida e não ralha, nem bate!

— É mesmo — confirmou a menina. — Ela é tão diferente da tia Zefa! Pena que é muda, não, Maninho?

— Muda, nada. Outro dia estava cantando baixinho. Eu ia até te chamar para escutar.

— E mesmo? Que canto era?

— Engraçado! E aquele que a gente sabe, Maninha. Assim:

“Te mandei um passarinho,
patuá, miri pupé,
pintadinho de amarelo,
- iporanga ne iaué.”

— E mesmo? — disse a pequena, entusiasmada. — Que boa notícia! Me deu até vontade de cantar de alegria! — E continuou a cantiga:

“Vamos dar a despedida,
mandu sarará,
como deu o passarinho,
mandu sarará.”

O menino interrompeu-a: — Tenho de voltar. Não vê que a gente esqueceu Calunga?

— E mesmo. Sem ela não tem graça — disse Maninha, que se assentou numa pedra, à espera do irmão. Ficou cantarolando o fim da cantiga:

“Bateu asa e foi-se embora,
mandu sarará,
deixou a pena no ninho,
mandu sarará.”

O menino voltou logo, arrastando Calunga.

A pequena parou de cantar, levantou-se e propôs:

— Vamos bem longe, não sabe? Está um dia tão bom para caminhar!


 

CONVERSA SOBRE SACI

 

imagemAnda que anda, até chegarem ao lugar desejado.

Estavam cansados, pois caminharam muito e fazia um calor de rachar.

Maninha propôs:

— Agora, é sentar pra tomar fôlego. Olhe lá, aquele toco está de jeito. Parece até um banco!

Ajeitaram Calunga ali por perto e ficaram conversando.

Disse o menino:

— A gente aqui, bem contente, mas pense só se o Saci aparece. Que medo, hein, ver aquele negrinho de uma perna só, com o pito de barro na boca.

Maninha comentou:

— Ouvi dizer que tem a mão furada e usa uma carapuça vermelha. É danado o moleque: faz muita arte, rouba crianças...

O menino suspirou:

— O pito é encantado. Ouvi dizer que quem tirar uma baforada pode pedir alguma coisa que ela acontece. Fosse comigo, sabe o que eu ia pedir?

— Claro que sei — gritou a menina. O mesmo que eu: para a mãe sarar, não é?

— Isso mesmo. E depois eu saía correndo, com aquele cachimbo lindo, vermelho e amarelo. O moleque, com uma perna só, não ia poder me alcançar. Maninha deu uma boa risada:

— E eu arrancava a carapuça vermelha, punha na minha cabeça. Ele riu também:

— Até que você ia ficar bonitinha! Pena que Saci não existe. O povo fala, fala nele, inventa tanta coisa. Mas ninguém viu!

Maninha olhou para os pés do irmão.

— Ainda bem. O moleque era capaz de querer seus sapatos. O menino levou um susto:

— O quê? Não brinca, não.

Depois, mais calmo:

— Ele não usa sapato. Tem um pé só! Se levasse, ia ser um só. Maninha disse:

— Aí você ficava com o que sobrou e tinha que ficar pulando num pé só. Feito o Saci!

Riram muito.

Depois de comer as frutas que apanharam, pegaram Calunga e voltaram para o rancho. Já era tarde. Deviam ser quase cinco horas, porque a saracura já estava cantando.


 

A JANTINHA GOSTOSA

 

imagemQuando voltaram, a mãe estava na porta, aflita, olhando de um lado para o outro.

Assim que viu as crianças, sorriu e acalmou-se.

Os gêmeos correram a abraçá-la. Ela olhou para os dois, agradou-os, mostrou-se feliz por eles terem voltado depois de tanta demora.

Com um gesto, mostrou um balaio onde havia caça, peixe e mandioca.

Lidaram com tudo, prepararam bem. Em seguida cavaram a terra, fizeram um braseiro para assar as coisas. Como os índios costumam fazer.

Depois de pronto, sentaram-se e ela deu uma cuia a cada um. Fizera-as, enquanto os gêmeos estavam fora.

Maninha foi logo pedindo:

— Eu quero aprender a fazer cuia. Me ensina?

— Eu também — falou o menino que não queria ficar atrás da irmã.

A mulher consentiu, com a cabeça.

E os três comeram aquela jantinha tão gostosa.

Depois chuparam cajus bem maduros, amarelo-avermelhados, com aquele caldinho de dar água na boca.

Maninho sugeriu:

— As castanhas a gente guarda para assar qualquer dia.

— E Maninha teve, então, uma de suas boas idéias:

— E mesmo. Mas agora vamos brincar com elas.

E imaginando que eram bichos, carroças, barracas, distraíram-se longo tempo, enquanto a mulher os observava, interessada.


 

A COBRA GRANDE

 

imagemAs crianças adoravam conhecer lugares novos, queriam explorar tudo. Descobriram, um dia, um riacho.

Era um pequeno no que fazia ziguezague no meio da mata. Tão bonito, com suas águas sempre alegres!

— Escute só o barulho da água. Parece que ela está cantandinho.

Foram ladeando o riacho, devagar, parando de vez em quando.

De repente, a menina disse:

— Estou ouvindo um barulho que não é da água.

— Você tem um ouvido que nem de índio, Maninha.

O menino aguçou os ouvidos e concordou:

— É mesmo.

Olharam os dois para o lugar de onde vinha o som e recuaram, horrorizados. Perto de uma touceira de mato, toda enrolada, estava uma imensa cobra.

— É a cobra grande — gritou o menino. — É a mboi-guaçu!

A menina pôs o balaio numa das folhas enormes que estavam à tona do riacho. Atiraram-se os dois na água e foram para a outra margem.

De lá ficaram espiando a cobra grande. -

— Olhe só, Maninha. Ela dá sete voltas, tilintando os guizos. E danada de ruim. Se pegar uma pessoa, some com ela.

— Ainda bem que a gente escapou e com o balaio seco.

— Também, pudera! Cada folha de vitória régia desse tamanho! Nunca vi folha assim. Serviu de ponte.

Ficaram um pouco por ali, na várzea de mereçá, se recuperando do susto. Então, Maninha aconselhou:

— É bom ir indo. A cobra grande deve estar acabando a sétima volta. Se ela cisma de atravessar o riacho, vem pegar a gente...

Maninho se benzeu e tratou de ir embora com a irmã.

O calor era tão forte que logo as roupas das crianças secaram e elas riam, riam, lembrando o banho inesperado.

Maninha propôs:

— Olhe lá aquele tocari tão grande! Vamos fazer um balanço com cipó de imbé?

O irmão concordou logo. Dito e feito. Daí um pouco, estavam os dois balançando. E uns macaquinhos, que andavam por lá, começaram a imitá-los.

Pra cá, pra lá.

Foi uma festa!


 

TIA ZEFA ARRUMA A TROUXA

 

imagemEnquanto isso, Tia Zefa está no seu rancho, pensando na vida. Afinal de contas, acha-se sozinha: não tem com quem falar, com quem brigar. Não tem mesmo em quem bater. Isto não é vida para ela. Além disso, agora, tem que fazer tudo: buscar lenha, cuidar do roçado e das criações, ir à vila, em dia de feira, vender alguma coisa. Se quiser comer peixes com pirão, ela mesmo tem de ir apanhar alguns. Não, isto não é vida!

Arrumou uma trouxa com a roupa que pôde juntar. Arrebanhou trastes velhos, estragados: uma rede, uma esteira, um pote, um baú, um espelho trincado. Um calendário colorido. A mesinha de perna quebrada e dois bancos que mal paravam em pé, ela deixou. Não dava pra carregar.

Saiu.

— Aonde vai, com trouxa e tudo, tia Zefa?

A voz do Missionário cortou o fio de seus pensamentos.

— Por esse mundo afora. Quero ver se acho minha filha casada e vou ficar com ela.

— E as crianças, nada?

— No rancho, não apareceram. Fugiram, mesmo, os danados. Doidos como a mãe que perdeu a razão e sumiu quando eles tinham dois anos. E onde vai um, vai outro. Feito corda e caçamba.

— Eles voltam, ainda. E uma questão de tempo. Tia Zefa ficou pensativa um momento.

— E se voltarem mesmo?

O Missionário apressou-se em responder:

— Vá sossegada... Eles se arranjam.

A velha suspirou, pegou a trouxa e despediu-se.

Foi embora toda jururu.

— Vá com Deus — disse o Missionário.

— Essa vai é com o diabo — comentou um seringueiro que ia passando.


 

A SURPRESA

 

imagemAs crianças começaram a notar que a mulher estava escondendo alguma coisa deles. Observaram que ela se afastava repetidas vezes e ficava lá longe, sentada no chão, como quem está fazendo algum trabalho.

Se os gêmeos aproximavam-se, ela, imediatamente, juntava umas coisas que havia espalhado pelo chão e guardava tudo no balaio.

Maninho, que era muito desconfiado, segredou à irmã:

— Será que ela não quer que a gente aprenda esse trabalho que está fazendo?

— Acho que não — respondeu a menina. — Ela é tão boa e quer bem a nós dois.

Um belo dia, a mulher veio caminhando para dentro do barraco, com as mãos para trás. Tossiu para chamar a atenção das crianças, que estavam consertando a bola de trapos.

Os gêmeos levantaram-se e ficaram alerta, olhando para ela que, devagarinho, trouxe as mãos para frente e mostrou o que nelas havia.

— Que beleza! — gritaram os dois ao mesmo tempo. Correram apanhar Calunga:

— Olhe o que você ganhou! — dizia Maninho para a boneca, enquanto Maninha arrebatava das mãos da mulher uma roupinha feita de penas variadas e coloridas, a coisa mais linda do mundo!

Vestiram a boneca, que ficou uma lindeza. Enquanto o menino dançava com Calunga, a menina dava umas cambalhotas de alegria.

E a mulher ficou rindo, rindo...


 

O PÁSSARO ENCANTADO

 

imagemMadrugadinha.

Os gêmeos saíram, cada qual com seu brinquedo. Levavam Calunga muito bem arrumada com a roupinha de penas coloridas que a mãe fizera. Transportavam também o alçapão, pois estavam decididos a caçar passarinhos.

O tempo estava agradável e os dois iam caminhando.

— Mais pra lá, Maninha, é que deve ser bom.

Quando acharam um lugar conveniente, acamparam. Armaram o alçapão que estava bem preparado, com sementes escolhidas dentro.

Ficaram de tocaia, esperando.

Os pássaros, ali, eram muitos. Esvoaçavam, saltitavam e cantavam lindamente, numa festa verdadeira, como se dessem ação de graças a Deus por terem asas, saberem cantar e serem belos.

A mata, naquele lugar, não era muito espessa, de modo que os meninos podiam ver pedaços do céu azul e os raios do sol que se filtravam por entre as copas das árvores.

Os pássaros cantavam cada vez mais.

De repente, pararam todos, como por encanto. Só se ouvia o leve agitar das ramagens, tocadas pela brisa.

Apareceu, então, um pássaro que ficou sozinho num ramo, pois os outros todos afastaram-se para lhe dar lugar. Era pequenino e feio.

Começou a cantar e seus trinados eram tão lindos e suaves que os gêmeos também pararam, imóveis, para ouvi-lo.

Era uma verdadeira música. Nem canários e sabiás juntos seriam capazes de um canto assim belo. Parecia que a garganta do passarinho era de cristal e que no seu peito estava escondido um instrumento musical.

Quando o pássaro fez uma pausa, a menina aproveitou para cochichar com o irmão:

— Vamos colocar o alçapão mais pra lá. Quem sabe consigo pegar esse passarinho para ele cantar no rancho. Nossa mãe vai gostar de escutar o bichinho...

— Deus me livre disso, Maninha. Ele é encantado, não sabe? A gente não pode prender... Aquele seringueiro que mora perto da Tia Zefa me contou tanta coisa desse passarinho...


 

A ESTÓRIA DO UIRAPURU

 

imagemManinha era muito curiosa e logo quis saber. O que foi que o tal de seringueiro disse?

— Que, se prender o Uirapuru, ele não canta. Que só canta dentro da mata. A menina concordou:

— Faz ele muito bem. Que graça tem viver na gaiola?

— E mesmo. E o seringueiro contou uma estória, também.

Maninha era louca por estórias e pediu que o irmão repetisse a que o seringueiro contou.

Maninho não se fez de rogado:

— Havia um índio que andava pelas florestas. Tinha uma linda voz e vivia cantando. Os animais paravam para ouvir. As aranhas, principalmente, e as cobras ficavam imóveis, escutando...

E ele cantava, cantava e achava bonita a sua voz. Foi ficando vaidoso, orgulhoso. Pensava que estava perdendo tempo na floresta. Já não gostava mais que os animais ouvissem. Resolveu, então, sair da mata e foi andando, andando, procurando o fim da selva. Queria se ver livre das árvores e dos bichos, no meio dos quais sempre viveu.

Quando já estava para sair da floresta, apareceu o curupira — um anão de cabelo avermelhado e pés para trás. Ele é o protetor das matas.

Falou para o índio:

— Não pense que vai sair daqui. Seu canto faz falta na floresta. Já faz parte dela. Para que não invente de ir embora outra vez, vai virar um pássaro de canto maravilhoso. Todos os outros vão calar-se para ouvi-lo.

Enquanto o menino contava essa lenda à irmãzinha, o Uirapuru deu seus últimos trinados e desapareceu.

Os outros pássaros foram embora também e só restou o silêncio na clareira.


 

A IARA

 

imagemO dia estava muito bonito e as crianças aproveitaram para dar um passeio.

Maninha propôs que fossem até a cachoeira:

— Vamos procurar. Lembra que outro dia ouvimos, ao longe, o barulho de água?

— É mesmo. Tomara que a gente chegue lá.

Caminharam muito. Maninho queixou-se:

— Arre! Já estou com o pé doendo.

— Sai, enjoado! Você tem seus sapatos e eu que ando descalça?

O menino consolou-a:

— Outro dia vi a mãe fazendo sandália com casca de árvore. Aposto que é para você.

Por fim acharam a água, muito branca, que rolava nas pedras e caía espraiando-se.

Pararam, sentaram-se e a menina abriu o balaio que a mãe arrumara: peixe assado, pipoca, mel, frutos gostosos. Até mingau de coco de patauá, numa pequena cuia.

— Agora a gente nem tem mais trabalho de colher fruta, procurar comida, não, Maninho?

— É mesmo. Ela prepara tudo, cuida tão bem de nós!

— A coisa melhor do mundo é ter mãe.

Comeram, comeram até verem o fundo do balaio.

Então começaram a apanhar folhas de inhame, enchê-las de água e beber. Depois que bebiam, deixavam algumas gotas que pareciam brilhantes.

Maninha pensou em voz alta:

— Será que existe Iara? Ouvi dizer que é uma moça muito bonita, de cabelos verdes... Ela vira a igara do pescador...

O menino continuou:

— Mora num palácio de vidro no fundo da água. As vezes sobe e canta. Maninha teve uma idéia.

— A gente fecha os olhos, faz de conta que ela está lá, sentada nas pedras da cachoeira.

Maninho entrou no brinquedo:

— Ela está penteando o cabelo com o pente encantado.

A menina afastou-se um pouco, sempre de olhos fechados. Faz de conta que ela está cantando. E com sua vozinha afinada começou a entoar sua cantiga predileta:

“Sapo cururu
da beira do rio
Sapo quando chora
Maninho
é porque tem frio.”

O menino pediu:

— Agora sou eu. Me deixa acabar o canto!

“A dona sapa
diz que está lá dentro
fazendo renda
para o casamento...”

Maninha sugeriu:

— O finzinho, nós dois juntos vamos cantar:

“Sapo cururu
da beira do rio
empresta seu capote
que eu estou com frio.”

Acabada a cantoria, o menino perguntou:

— Já posso abrir os olhos?

— Não ainda. Agora, faz de conta que a Iara atirou o pente encantado e disse: “Levem de presente para a mãe.”

O menino falou, abrindo os olhos:

— Foi boa idéia. Até que não é difícil fazer um pente para ela.

Maninha abriu os olhos e ajudou a procurar madeira, a lidar com o canivete, até que enfim saiu um pente meio torto e mal feito. Mas era um pente feito com amor.


 

O PENTEADO

 

imagemA mãe já estava aflita. Era quase noite. Ela fizera urna linda fogueira e andava de um lado para outro, olhando em todas as direções, à procura das crianças.

Ficou satisfeita quando chegaram. Deu-lhes comida e depois sentaram à beira do fogo.

— Mãe, deixa a gente pentear a senhora? — pediu a menina.

— Eu também quero — apressou-se em dizer o irmão. — Um pouquinho cada um!

E com o pente que fizeram, um e outro vão desembaraçando aqueles cabelos compridos.

Maninha disse, orgulhosa:

— Olhe que lindo cabelo ela tem, Maninho! Não parecia, porque estava tão mal cuidado!

— É mesmo — concordou o menino. Agora está como o da Iara. Vamos dar um beijo nela?

— Vamos — aprovou a menina.

Se bem falaram, melhor o fizeram Os olhos dela estavam vivos, o rosto tinha uma expressão inteligente. Sentou os dois no colo, beijou-os também. Não sabia se ria ou se chorava. Por fim, vieram as palavras que eles sempre quiseram ouvir:

— Meus filhos. Os meus gêmeos! Maninho e Maninha. Vamos sair desta mata? Eu sei o caminho de volta!


 

 

Ridendo Castigat Mores
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