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AVARENTO

Molière


O Avarento
Molière (Jean-Baptiste Poquelin)
(1622-1673)

Tradução
António Feliciano de Castilho*
(1800-1875)

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Teatro Francês
Clássicos Jackson
Volume XXVIII
W. M. Jackson Inc.
Rio de Janeiro, 1950

Digitalização,
revisão para o português do Brasil e
Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Capa: L'Avare, Frontispice de l'édition de 1682, par P. Brissart, gr. par J. Sauvé.
Imagem interna: Molière par Coypel d'après Mignard, Comédie Française
Fonte: www.toutmoliere.net

© 2006 — Jean-Baptiste Poquelin


 

ÍNDICE
ATO PRIMEIRO
ATO SEGUNDO
ATO TERCEIRO
ATO QUARTO
ATO QUINTO
Nota Editorial


MOLIÈRE

[imagem]

O AVARENTO

Tradução de
ANTÔNIO FELICIANO DE CASTILHO*


PESSOAS

HARPAGÃO DE SOUSA — Empregado no Paço. Viúvo, com um filho e uma filha; 60 anos puxados. Gênio ríspido. Fato antiquário e rafado; com seu hábito de Cristo. Botas de borla. Cabeleira estupentada, e de rabicho. Cangalhas no nariz. No dedo um belo anel de brilhantes.

JÚLIO DE SOUSA — Filho de Harpagão. Rapaz esbelto e puxado; 25 anos. Amante de D. Mariana.

TOMÁS — Criado particular, e confidente de Júlio.

D. LUÍSA DE SOUSA — Filha de Harpagão. Cerca de 20 anos. Gênio amorável. Traje singelo.

SEBASTIÃO — Cozinheiro e cocheiro de Harpagão. Velhaco descambado. Por baixo do sobretudo de cocheiro traz encoberto o avental de cozinha.

MEALHADA — Outro criado de Harpagão, mais ordinário que o precedente.

CLAUDINA — Criada da casa de Harpagão. Mulher quarentena, vestida mais à saloia que à cidade; com seu avental de riscado e lenço amarrado na cabeça. Não fala.

ANSELMO — Negociante rico, e orçando pelos seus 60. Vestuário sério e de luto. Noivo destinado por Harpagão a D. Luísa. Modos graves e afidalgados.

DUARTE — Mancebo de menos de 30 anos. Esperto e simpático. Fingindo mordomo em casa de Harpagão, e amante oculto e correspondido de D. Luísa de Sousa.

D. MARIANA — Menina de 26 anos. Senhoril e naturalmente melancólica, trajada de preto, sem galas de espécie alguma.

GUIOMAR DOS ANJOS — Velha casamenteira, adela espertalhona e de grande lábia. Vestido de roda. Grandes arrecadas e cordão de ouro.

SIMÃO FORTUNA — Traficante de agências de todo o gênero.

FELISBERTO — Escrivão do regedor.


 

DESCRIÇÃO DO TEATRO EM TODOS OS CINCO ATOS

Sala em casa de Harpagão.

Ao fundo porta larga e envidraçada entre duas janelas de
peitos, olhando todas três para o quintal da casa, que fica no mesmo plano. Nas vidraças há seus vidros quebrados e supridos com papel. Duas portas do lado direito; do esquerdo outras duas em correspondência.

A primeira da direita, que é a da rua, tem rodízio de campainhas, sendo o peso da corda uma pedra tosca.

A segunda dá para a casa do jantar, cozinha, quartos de criados, etc.

A primeira da esquerda para os aposentos de Júlio e Harpagão.

A segunda para o de D. Mariana.

Ao canto direito do topo da casa, mesa com tinteiro de chumbo, penas e um caderno de papel. Diante desta mesa, um biombo roto.

Entre as duas portas da esquerda, outra mesa ordinária de pinho pintado, e sobre ela dois castiçais desirmanados, com velas de sebo meio gastas.

Duas ou três cadeiras ordinárias dum e doutro lado.

Entre a primeira e segunda porta da direita, um espelho muito falto d’aço.

Pendente do teto, por uma corda ao meio da sala, um candeeiro de três bicos apagado.


 

ATO PRIMEIRO

CENA I

DUARTE
Luísa! pois a alegria
que me entrou co teu amor,
fez-se em ti melancolia!
Que mistério! a que vem dor?
Suspiras! por que suspiras?
Arrependes-te? é pesar
de teres feito acabar
a minha isenção?

LUÍSA
Deliras,
meu caro injusto Duarte;
e és um mau: não, não mudei:
amei-te, amo-te, hei-de amar-te,
sempre, sempre; mas não sei
o que o peito me adivinha.
Não me pesa do que fiz,
mas esta imprudência (a minha)
terá desfecho feliz?
De tudo o que eu mais receio
é que este amor que arde aqui
me desgrace um dia.

DUARTE
Creio
que ou sonho, ou zombas! Em ti
caber tal pressentimento!
pois há razão?!...

LUÍSA
Mil razões:
Um pai de gênio violento,
o mundo, as murmurações
de estranhos e de parentes...
e mais que tudo: o poder,
isso que hoje por mim sentes,
vir ainda a arrefecer.
Mudar e mudar de escolhas
diz que é nos homens pensão;
como do álamo as folhas,
reza a trova, os homens são.

DUARTE
Os mais sejam muito embora
volúveis, falsos, cruéis;
o coração que te adora,
Luísa, é dos mais fiéis.
Enquanto a vida me dure,
juro que hás-de aqui reinar.

LUÍSA
Não há nenhum que não jure;
e as juras leva-as o ar.
Querem-se obras, não palavras.

DUARTE
As minhas te farão ver
que na sentença que lavras
fazes mal em me abranger.

LUÍSA
Não abranjo; sou contente
de entregar-me à tua fé.

DUARTE
Junto a um anjo é vil quem mente;
e Duarte um vil não é.

LUÍSA
Não por certo; desta parte
descansar já quero enfim.
Hás-de amar-me, e eu sempre amar-te;
por ti o juro, e por mim.
Entretanto... (à parte) Não me atrevo.

DUARTE
Fala! deves tudo expor.

LUÍSA
Sim, bem sei, bem sei que devo...
mas é custoso.

DUARTE
Valor!
Se tu sabes que eu te adoro,
e sou teu, e todo teu...
que receias? coras!

LUÍSA
Coro.

DUARTE
Assustas-me; fala!

LUÍSA
Se eu...
pudesse, como desejo,
fazer que os olhos dos mais
te vissem qual eu te vejo!...
Se os teus méritos reais
pudessem ser conhecidos
de toda a gente!... (oxalá!)
Se soubessem quão devidos
te são meus afetos!...

DUARTE
Vá;
conclui; não vês que me assusta,
Luísa, essa indecisão?

LUÍSA
Diriam que eu fora injusta,
e um monstro de ingratidão,
se o que tu por mim tens feito,
e estás fazendo por mim,
não no pagasse este peito
como o paga. Mas assim,
quando ninguém te avalia
mais que eu só, quando ninguém
senão nós, sabe que um dia
tu me salvaste!!...

DUARTE
O meu bem
é que eu salvei em salvar-te.

LUÍSA
Ao mar, que me ia engolir
quem, senão o meu Duarte
se arrojou por me acudir?
Posso eu deslembrar-me disto?
generoso, sem tremer,
sem nunca me haveres visto
expores-te...

DUARTE
Era um dever
acudir a quem lutava
coa morte horrenda, e o cumpri.
Roubo-te a uma fúria brava,
e o prêmio acho-o logo em ti.

LUÍSA
Mal escapo dos terrores
de expirar entre escarcéus,
abro os olhos, acho amores:
teus sorrisos, e os dos céus.
Por ti e em ti renascida
desde então só tua sou,
porque desde então a vida
és tu só quem ma enflorou.
Generoso me salvaste;
mais generoso depois,
a tudo renunciaste
por mim só.

DUARTE
Não; por nós dois.
Para mim sem ti deserto
me era o mundo, e glacial;
dele fora, e de ti perto
gozo um Éden perenal.
Ambos sob o mesmo teto!
onde há sorte mais feliz?
respirar o teu afeto
não vale mil céus de huris?

LUÍSA
Mas que amargos sacrifícios
te não custa o que me dás!
eu, desfruto os benefícios;
e tu num martírio estás.
De senhor, de respeitado,
(de mais alto ninguém cai)
transformaste-te em criado,
vieste servir meu pai;
tragas o pão da amargura...

DUARTE
Mas vejo-te; a que vem dó?
Raquel só coa formosura
paga o servir de Jacob.

LUÍSA
Subir a maior façanha
não podia um fino amor.
De heroicidade tamanha
sinto bem todo o valor;
mas o mundo por ventura
como eu julgo julgará?

DUARTE
Vivas tu de mim segura;
do mundo que se me dá?

LUÍSA
Uma filha!... uma donzela!...
tal mistério!... esta união!...

DUARTE
União tão pura e bela,
esta quase adoração
que te eu consagro, o respeito
que eu jamais te quebrarei,
mostram bem que achaste um peito
não indigno...

LUÍSA
Achei, achei,
mas o mundo maldizente
que o não sabe como nós,
e na ação mais inocente
sonha um crime, e lhe uiva após,
não no hei-de eu temer, Duarte?

DUARTE
Não, Luísa; oh! não; jamais.
Quem, quem há-de criminar-te
vendo o teu e os outros pais?
os outros sempre extremosos;
o teu de avareza tal,
de modos tão rigorosos,
de alma tão desnatural,
tão pouco pai, ou tão nada...
(desculpa um falar tão cru,
mas a verdade é sagrada)
pois assim devias tu
imolar-lhe a tua dita,
o meu bem, o nosso amor?

LUÍSA
Não sei... a consciência hesita;
mas enfim... seja o que for...
depois de dado um tal passo,
não há já retroceder.
Se é mal ou bem o que faço,
não sei por ora entender;
fatalmente a ti me entrego;
o teu braço me conduz;
fecho os olhos, e sossego;
confio em quem leva a luz.

DUARTE
Sim, sossega; se algum dia
(como o interior mo prediz)
acho meus pais...

LUÍSA
Que alegria!

DUARTE
Somos o par mais feliz;
verás que teu pai consente,
e abençoa esta união.
Por isso aguardo impaciente
as novas que me virão;
e se tardarem, protesto
que as hei-de ir eu próprio achar.

LUÍSA
Pelo teu amor te obtesto,
não me hás-de aqui só deixar;
basta a idéia dessa ausência
para matar-me; e a ti não?
Fica, fica; era imprudência
quereres largar por mão
o plano, em que te empenhaste,
de cativar a meu pai.
Logra obtê-lo; isso te baste.
Cuidados meus, sossegai!
Vosso emprego (os meus amores)
não nos deixa.
(Para Duarte, com muito afeto)
Não é assim?

DUARTE
A rogos tão sedutores
resistir não cabe em mim.
Ficarei junto a Luísa;
fico; ao mais Deus proverá.

LUÍSA
Aqui é que é mais precisa
a tua presença; lá
confia no amor paterno
que te há-de enfim descobrir.
Cedo ou tarde se hão-de unir
o bom filho e o pai mais terno.

DUARTE
Assim o espero! (exclamando) A coroa
que eu reservo às suas cãs,
dando-lhe filha tão boa,
e inveja das mais louçãs!!

LUÍSA
Isso, não; mas toda extremos
para o pai de um filho tal,
juro-o eu já.

DUARTE
Portanto, iremos,
té por amor filial,
seguindo o mesmo sistema
que a princípio me propus.
Oxalá que o estratagema
surta efeito! se o produz,
abençoada seja a hora
em que atrevido e sagaz,
lançadas soberbas fora,
e oculto em libré falaz,
consegui ser bem aceito
pelo senhor Harpagão!

LUÍSA
E entraste com pé direito
nesta sua habitação.
Dentre filhos e criados,
se se confia de alguém,
se alguém logra os seus agrados,
és tu só, tu, mais ninguém.

DUARTE (rindo)
E que outrem no mundo tinha
(não sei se é glória ou desar)
paciência igual à minha
para assim representar?
cingir-me sempre ao seu gosto?
fazer do seu vício o meu?
ser o espelho em que o seu rosto
se mire, e diga: sou eu!

LUÍSA (sorrindo)
É que possuis o prestígio
do maior encantador.

DUARTE
Não, não; se aqui há prodígio,
quem no opera é só o amor.
Mas sério — sério, que admira
que eu, tornado outro Harpagão,
logre o crédito e a afeição
do próprio que assim me inspira?
E olha que de dia a dia
me torno melhor ator,
lhe acrescento a simpatia,
e vou de servo a senhor.

LUÍSA
O meu receio (confesso)
é que possa alguma vez
meu pai, pelo próprio excesso
com que ostentas mesquinhez,
dar na burla, e então caiamos
de um mal noutro inda pior.

DUARTE
Quando a alguém lisonjeamos,
nem a hipérbole maior
o acordaria do pasmo
em que o lançou, e o retém,
a idéia do entusiasmo
que ele excita em nós.

LUÍSA
Porém...

DUARTE
Não há poréns, nunca viste
nesta regra uma exceção;
nem o mais forte resiste
aos que no fraco lhe dão.
A lisonja mais rasteira,
mais párvoa, e descomunal,
engole-a num ai, e inteira,
e ri do riso geral.
Se a pílula é bem dourada,
e em bom mel ungida vai,
seja embora asselvajada,
engole-se. Com teu pai
o tenho visto, e vou vendo.
Verdade é que este papel,
que eu com ele estou fazendo,
este andar tingindo em mel
mentiras continuamente,
custa ao meu gênio leal;
mas que remédio! a quem mente
não se há-de levar a mal,
se o enganado o precisa,
o agradece, o estima, o quer.
Tens melindres de mulher
tenho-os eu também, Luísa;
mas vou-lhes tapando a boca;
não há remédio, bem vês;
faze como eu: desta vez
dize à lealdade que é louca.

LUÍSA
Quanto a meu pai, já me calo;
porém quanto a meu irmão,
devias associá-lo
à nossa conspiração.
Não achas tu? Se a criada
violar o arcano, convém
que eu, pobre filha sem mãe,
pelo irmão seja escudada.

DUARTE
Bem vejo; tendo-o por nosso
ganhamos forças...

LUÍSA
Então?...

DUARTE
Mas prender eu só não posso
a teu pai e a teu irmão.
São de gênio tão contrário!
um, avaro em sumo grau;
o outro quase perdulário.
Luísa, o que não é mau
é que tu da tua parte
empenhes, quanto em ti for,
o vosso fraterno amor
em nosso bem.

LUÍSA
Sim, Duarte.
Não me falece a vontade;
mas se o valor falecer?

DUARTE
Cautela; a sinceridade
não deve indiscreta ser.
Convém por ora resguardo;
confio em ti. Ficai sós;
lá vem ele; dessa voz
até prodígios aguardo.
(Sai pela segunda porta da direita)

CENA II

LUÍSA e JÚLIO (que vem da primeira porta da direita)

JÚLIO
Estimo achar-te só; preciso, irmã querida,
revelar-te um segredo, em que se empenha a vida.

LUÍSA (rindo)
Morte d’homem, talvez; moeda falsa...

JÚLIO
Amor!
mas o amor mais profundo, o mais dominador.

LUÍSA
Tu! tu amas?!

JÚLIO
Oh! se amo!

LUÍSA (com sorriso irônico)
Ah! parabéns!

JÚLIO
Primeiro
devo-te declarar que é mais que verdadeiro
o afeto que hoje nutro; e todavia sei
que a obediência aos pais é religião, e é lei
que não deve infringir-se; aos filhos não é dado
sem outorga paterna o eleger estado;
com razão, porque um pai, melhor do que ninguém,
sabe, julga, deseja, anseia o nosso bem.
Quando a paixão nos cega, a experiente idade
nos acode e nos salva. Aquela autoridade
portanto é natural; foi Deus por sua voz
quem aos filhos a impôs, por bem de todos nós.
Tudo isto que te digo é só para tu veres
que escusas de pregar-mo; eu sei quais meus deveres.
Entretanto, Luísa, hás-de saber também
que amor como este meu, quer seja mal, quer bem,
perderias o tempo em mo impugnar.

LUÍSA
Já deste
palavra à tua eleita?

JÚLIO
À minha flor celeste?
inda não, mas vou dar-lha; e torno-to a pedir:
não me alegues razões que já não posso ouvir.

LUÍSA
Tão louca me crês tu, ou tão extravagante,
Júlio?

JÚLIO
Não no és, bem sei, mas nunca foste amante.
Um coração isento, um ânimo donzel,
nem sonha o que amor pode, e é muita vez cruel.
Tremo do teu juízo; e se ele fosse acaso...

LUÍSA
O meu juízo aqui vem pouco para o caso.
Quem há que não doideje ao menos uma vez?
Se chegasses a ler nest’alma, já talvez
não falasses assim.

JÚLIO
Prouvera aos céus! prouvera
que em teu seio também...

LUÍSA
Mas inda estou à espera
do nome da feliz... (o mais virá depois)
Falemos dela agora; estamos sós os dois,
confessa-te sem pejo. É pois a tua amada...

JÚLIO
Uma nossa vizinha, uma recém-chegada
não sei donde, um feitiço, um anjo, a perdição
de quem chega a avistá-la; o nome que lhe dão
é Mariana, e mais nada. Está sob a tutela
de uma pobre mulher, mãe sua, que a desvela,
bem que enferma e infeliz, com todo o imenso amor
de um coração materno; um par encantador!
Mas como ela lho paga! os mimos, o carinho
com que a serve, e a distrai! Parece a casa um ninho
doido de primavera! e tal, que ali ninguém,
se não fossem as cãs, distinguiria a mãe.
Queria, minha irmã, que a visses! com certeza
morrias por Mariana, assim como eu. Beleza,
tem-na como nenhuma; e esse adorável dom
é o mínimo dos seus! a graça, o gênio...

LUÍSA
Bom!
em tudo o non plus ultra; entende-se.

JÚLIO
É divina!
em quanto diz e faz, na ação mais pequenina,
põe uma graça, um mimo, um bem-querer tão seu,
que não há resistir-lhe! hás-de o sentir como eu,
quando a vires, Luísa, e confessar tudo isto.

LUÍSA
Até já o confesso, inda antes de a ter visto;
claro o prova a impressão que está fazendo em ti.

JÚLIO
A poder de explorar, achei que andava ali
muita desaventura (em mostras de decência
se escondem muita vez martírios de indigência).
Vê se não era dita, um júbilo, um dever,
salvá-las, reflorir, dourar-lhes o viver.

LUÍSA
Sim, sim.

JÚLIO
Nem digo tanto; ao menos quereria
podê-las de algum modo aliviar; seria
bastante, por agora, o ter com que as vingar
das sumas precisões; que orgulho e que folgar
ir com todo o melindre, e por subtis caminhos,
tirando-lhes diante as pedras e os espinhos!

LUÍSA
Certamente.

JÚLIO
Mas como? Um pai avaro, e tal,
que já no coração não tem senão metal!...
que posso eu dele obter?

LUÍSA
Dele, por certo nada.
Que aflição para ti!

JÚLIO
Dobrada, tresdobrada
do que se pode crer. Que pai! que situação
a de ambos nós, Luísa! Os pobres, quando o são,
é por culpa da sorte, ou culpa talvez sua;
mas em nós a miséria é culpa minha? ou tua?
ou do fado sequer? Sabermos, só por fé,
que há ouro em casa, e muito! e com tanto ouro ao pé,
e a chave em mão de um pai, raivarmos carecentes
de cômodos, de bens, das coisas mais urgentes!
Se é para nós que ajunta, a nós que se nos dá
de um haver, que só tarde ou nunca nos virá!
Jejue a mocidade, e tenha paciência
à espera da velhice; então é que a opulência
se pode desfrutar. Eu por mim já não sei
para onde me volte. Empréstimos? cansei
quanto usurário há hi; nem a cento por cento
querem já mutuar-me. O como eu me apresento!
e tu também! faz rir; excita raiva, ou dó.
Trajo, apenas decente; e este, ainda assim, é só
fiado que se obtém. Que outrem da nossa classe
conheceste jamais que tanto se ralasse?
mas ponto em queixas vãs. Eu vinha-te pedir
que sondes nosso pai, e o movas a anuir
ao meu consórcio; aliás, se eu vir que o não consigo,
caso, sem mais tardar, e emigra-se; um abrigo
acha-se em qualquer parte; e quando uma mulher
só ambiciona amor, de pouco se há mister.

LUÍSA (sorrindo)
Já o li numa novela.

JÚLIO
E é certo, e muito certo.
Num sertão do Brasil! que paraíso aberto
a quem foge do mundo! ali, calco eu por vil
o ouro que almejo cá. Florestas do Brasil,
ides ter vossa Eva, a quem no ano inteiro
presenteeis cos dons de um Deus, seu pomareiro.

LUÍSA
Mas para chegar lá (cuido que não quereis
ir a nado; pois não?) do ouro precisareis.
Se debaixo dos pés também por cá o houvesse...

JÚLIO
Ri, Luísa, do amor; bem ri quem não padece.
Eu não quero pensar; fugir só quero, e pôr,
se meu pai nos for surdo, em salvo o nosso amor;
entendes? para isso emprego quanto sei,
a ver se a todo o custo ainda alcançarei
um empréstimo novo (agora é o derradeiro).
Bem franco te falei; franqueza igual requeiro;
suponho que também o coração te diz,
Luísa, alguma coisa em prol de algum feliz...
Se é certo (praza ao céu!), comigo e Mariana,
deixando esta galé, sereis da caravana.

LUÍSA
Improvisa, poeta; eu, que terrestre sou,
gemo, curvo a cerviz, invejo-te, e cá vou
remando esta galé, já que uma estrela escura
me quis, órfã de mãe, fadar à desventura.
(Ouve-se dentro confusamente Harpagão a vociferar)
Mas saiamos daqui; vem lá o pai. Convém
que em lugar mais seguro a sós falemos. Vem.
(Saem ambos pela segunda porta da esquerda;
fica o teatro vazio por um breve espaço
).

CENA III

HARPAGÃO e TOMÁS
(Vêm ambos da segunda porta da direita, Tomás fugindo, Harpagão trazendo-o diante si aos encontrões)

HARPAGÃO
Rua! rua! já na rua!
respondão! mal-ensinado!
Criado mais malcriado
nunca o houve.

TOMÁS (à parte)
Está coa lua.

HARPAGÃO
De mais a mais ratoneiro!

TOMÁS
Quem? eu?!

HARPAGÃO
Pois quem? eu? Tomás,
não se rouba só dinheiro.

TOMÁS
Eu que lhe roubo?

HARPAGÃO
És capaz
de negar (diz que não rouba)
que me sisaste do almoço
quase um palmo de alfarroba,
e vinte, ou vinte e um tremoço?
Eu trago tudo contado.

TOMÁS
Que mais, senhor Harpagão?

HARPAGÃO
A quinze do mês passado,
um pedaço de sabão;
a dezesseis, sêmeas.

TOMÁS
Sêmeas!
ah! sim; foi pra me lavar;
sempre mãos limpas; livrar
de fazer entejo às fêmeas.

HARPAGÃO
A dezenove uma bula...

TOMÁS
Já rota.

HARPAGÃO
E mais uns cordéis.

TOMÁS
Para embrulhar uns pastéis...

HARPAGÃO
Pastéis! oh! monstro de gula!

TOMÁS
Mandou-me o senhor seu filho,
o senhor Júlio, o meu amo...

HARPAGÃO
Pois aquele peralvilho
gasta pastéis? até bramo!

TOMÁS
Nada, foi para um presente
que eu lhe levei a umas damas.

HARPAGÃO
Além de pastéis, madamas!
Cada vez mais excelente.

TOMÁS
Isso é com ele; adiante;
que mais lhe pilhei?

HARPAGÃO
Pilhaste
a vinte e dois, grande traste!
depois do almoço, tratante!
de dentro do açucareiro
três pitadas.

TOMÁS
O cigarro
tinha-me feito pigarro...

HARPAGÃO
Pois não cigarres, brejeiro,
perdulário!

TOMÁS
Uma pessoa
precisa-se distrair.

HARPAGÃO
Pois cace moscas.

TOMÁS
É boa!
E quando as não há?

HARPAGÃO
Dormir,
faltando em que trabalhar;
poupam-se solas e fato;
divertimento barato,
e inocente. Mas fumar!!!
fumar!!! fazer do dinheiro
um fumo, ou coisa nenhuma!!!

TOMÁS
Também o meu amo fuma.

HARPAGÃO
Fumo e pastéis! guapo herdeiro
que Deus me dá! Tal criado,
tal amo. Isto vai bonito!
Fora já daqui, repito;
rua! ou levo-te a cajado.

TOMÁS
A ordem do meu patrão
foi que eu o esperasse.

HARPAGÃO
A sua
talvez fosse; a minha então...

TOMÁS
Qual é?

HARPAGÃO
Que o esperes na rua.
Não quero aqui um espia
de quanto em casa se faz,
do que há e não há, capaz
de alguma malfeitoria!

TOMÁS
Que malfeitorias?

HARPAGÃO
Roubos,
se o queres mais explicado.

TOMÁS
Em curral que não tem gado
não têm que cheirar os lobos.

HARPAGÃO
Sempre resposta prontinha!

TOMÁS
Pois quer que eu não lhe responda,
se traz tudo à chave, e ronda
noite e dia a casa!

HARPAGÃO
É minha;
posso-a rondar quanto eu queira.
Espia tudo que faço!
(à parte) Queira Deus que este madraço
não me aventasse a melgueira!
(alto) Capaz eras tu até
de andar nos teus conhecidos
espalhando... o que não é:
que há dinheiros escondidos
em minha casa.

TOMÁS
Pois há!?
não sabia; estimo.

HARPAGÃO
O quê?
(à parte) asneei. (alto) Não me dirá
o que é que estima você?
É tolo ou faz-se? Eu não disse
que tinha nenhuns dinheiros;
perguntei se por tolice
tu lá cos teus companheiros
não andarias palrando
de dinheiros amuados
em minha casa. Era um bando
deitado aos ladrões. Criados,
todos o são.

TOMÁS (à parte)
Que mania!

HARPAGÃO
Tu que é que rosnas, Tomás?

TOMÁS
Nada. Vossa Senhoria
não me dirá que me faz,
ou a mim ou a ninguém,
que tenha ou não tenha oculto
algum busilhão de vulto,
se dele não sai vintém?

HARPAGÃO (ameaçando a Tomás com uma bofetada)
Galras-me? ateimas na tua?
queres por força provar?

TOMÁS (recuando e à parte)
Daquilo sabe ele dar.

HARPAGÃO
Rua! repito-te, rua!

TOMÁS
E é já.

HARPAGÃO (correndo a fechar a primeira porta da direita)
Primeiro, alto aí;
hei-de saber se este pilho,
digno servo do meu filho,
não leva escondida em si
alguma coisa furtada.

TOMAS
Que coisa furtada?

HARPAGÃO
Eu sei...
mostra cá, e eu to direi,
mostra...

TOMÁS
O quê? não levo nada.

HARPAGÃO
Vejo essa algibeira a impar;
mostra...

TOMÁS (tirando do bolso uma tangerina)
É uma tangerina.

HARPAGÃO
Quem ta deu?

TOMÁS
Deu-ma a menina
para me eu desjejuar.
Pergunte-lho.

HARPAGÃO
Não preciso.
Tudo que há na casa é meu;
e se a menina lha deu,
provou seu pouco juízo.
Dá, dá.
(Tira-lhe da mão a tangerina, mete-a na algibeira, e cobre-a com o lenço)

TOMÁS (à parte)
Abafada, (alto) Pronto?
(à parte) E eu é que sou rapinante!
(alto) Posso-me ir? findou-se o conto?
ou inda vai por diante?

HARPAGÃO
E o outro bolso?

TOMÁS
Vazio;
quer que o vire?

HARPAGÃO
Pois então?
desse é que eu mais desconfio,
por tais demoras.

TOMÁS (revirando o bolso e sacudindo)
Cotão;
assente no rol.

HARPAGÃO (apalpando-lhe as botas)
E aqui?
nas botas que enfardelaste?

TOMÁS
Os pés.

HARPAGÃO
Graceja, meu traste,
e tu verás...

TOMÁS (à parte)
Nunca vi
farejar furtos como isto.

HARPAGÃO
Botas largas em criados
são alforjes disfarçados,
invenção do demo.

TOMÁS
Visto?

HARPAGÃO
E o peito? desabotoa;
noto aí certo enchimento...
(Desabotoa-lhe o colete, e apalpa-lhe o peito)

TOMÁS (dando guinchos agudos e rindo convulsivamente)
Olhe que sou coceguento;
basta; largue; esta é que é boa!

HARPAGÃO (medindo-o com os olhos de alto a baixo)
Que tens nessa mão fechado?
restitui-mo.

TOMÁS (abrindo a mão)
Eu, nada; aí tem.

HARPAGÃO
Mostra a outra.

TOMÁS
Aí vai também.

HARPAGÃO
E a outra?

TOMÁS
Não sou dotado
de mais de duas.

HARPAGÃO (depois de meditar)
Tomás,
tens alma?

TOMÁS
Cuido que sim.

HARPAGÃO
Crês que há inferno sem fim,
e nele te afundarás
se jurares falso?

TOMÁS
Creio.
(à parte) Fez-se agora padre cura.

HARPAGÃO
Então, Tomasinho, jura,
jura, sem nenhum receio,
que vais dizer-me a verdade.

TOMÁS
Juro.

HARPAGÃO
Tu furtaste, não?

TOMÁS
Não senhor.

HARPAGÃO
Na realidade?

TOMÁS (com grande intimativa)
Olhe, senhor Harpagão,
se lhe eu furtei, Deus permita
que antes de um’hora o senhor
tenha um ramo de estupor,
ou qualquer coisa esquisita.

HARPAGÃO
Põe-te a andar; sume-te; rua,
ladrão! e não tornes mais.
(Sai Tomás pela primeira porta da direita)

CENA IV

HARPAGÃO só (passeando dessossegado de um lado para o outro)
Que inferno é ter cabedais!
Quando a gente os encafua,
sempre os supõe bem guardados;
mas em saindo de ao pé,
são logo dez mil cuidados!
Eu cá, perco o sono até.
Se alguém mos aventaria!
Se adivinhassem! sei lá!
há tantos exemplos! se há!
E enquanto a gente vigia,
inda lá vai; mas dormindo,
não ’stá o que é meu sem dono?
e não pode ir algum mono
atabafar-mo? era lindo!
Que tal não ficava um homem,
se acordando antes do dia,
coas ralações que o consomem,
achasse a caixa vazia!!
Era logo pendurar-se,
Deus me perdoe!

Se eu pudesse
por tudo, muito ao disfarce,
fora a render! sim, se houvesse
certeza de algum banqueiro,
que não pudesse quebrar...
Mas qual! maldito dinheiro!
como és ruim de guardar!!

Dizem então: "burras! burras!
casa-forte chapeada!"
providências de caturras
que não pescam disto nada.
As burras e casa-forte
são até um chamariz...
Valha-me Deus! triste sorte
a de quem julgam feliz!

Tenho um milhão a render
no banco inglês; mas se a guerra
toda essa Europa envolver,
não pode ir o banco a terra?
Então, se estourando as silhas
a burra mãe me abalar,
poder-me-ei sequer tornar
a estas burrinhas filhas.
Por isso vou enterrando
já num, já noutro lugar;
isto é: vou multiplicando
razões de me atormentar.

E este meu costumezinho
de falar alto comigo!
nem que às vezes um vizinho
não possa ouvir o que eu digo!

CENA V

O mesmo, LUÍSA e JÚLIO

(Os dois últimos saindo da segunda porta da esquerda, ficam conversando entre si ao fundo do teatro sem ser ouvidos)

HARPAGÃO (continuando, no primeiro plano sem reparar neles)
Mas também... por outro lado...
se eu comigo não falar...
a quem posso revelar
o que me traz desvelado?
Os quatro contos de réis
que ontem cobrei, e enterrei
ali no quintal... não sei...
O menino dos pastéis
tem cara de ter um faro!
E os moços!... valha-me Deus!
que farei?
(reparando nos filhos e sobressaltando-se)
Pecados meus!
Jesus! agora reparo
que não ’stava só. Deus queira
que não me ouvissem; talvez;
talvez não!... ou sim!... Que asneira
pensar alto!
(virando-se para os filhos, e fingindo que só agora ê que os vê)
Ah! são vocês?...

JÚLIO
Sim, somos nós, meu pai.

HARPAGÃO
Não os senti chegar;
É um sestro que têm de andarem devagar!...
Tinham chegado há muito?

LUÍSA
Agora mesmo.

HARPAGÃO
Dou
que me ouviram falar.

JÚLIO
Quem? nós? se nos falou,
não ouvimos, meu pai.

LUÍSA
Certo que não.

HARPAGÃO
Luísa
não mintas; e nem tu, (para Júlio). Quer-se a verdade lisa: ouviram?

JÚLIO
Nós! o quê, meu pai?

HARPAGÃO
O que eu dizia
cos meus botões.

JÚLIO
E que era?

HARPAGÃO
Era que isto hoje em dia
in verbo coscorrinho é tudo uma desgraça;
não há pilhar ceitil, por mais que um homem faça!
exclamava eu então... (por força que me ouviram)...

LUÍSA
Eu não.

JÚLIO
Nem eu.

HARPAGÃO
Pois sim. Dizia: muitos giram
com milhões e milhões; e eu, que preciso tanto,
nem quatro contos posso aí coalhar a um canto!

JÚLIO
Vínhamos receando acaso interrompê-lo...

HARPAGÃO
Interromper-me! qual! chegaram muito a pelo;
entre filhos e pai deve reinar franqueza.
O que pensava a sós acerca da pobreza
de novo lho repito, e é bom tê-lo presente:
os tempos não vão bem; vão mal; pessimamente;
que será o futuro? ainda se eu tivera
quatro contos de réis! quatro contos! quem dera!

JÚLIO
Nenhum de nós, meu pai, lhe pede contas.

HARPAGÃO
Não;
bem sei; isto é falar; é uma explicação
que eu a meus filhos devo, a fim de que os meus tontos
não julguem que esta casa é talvez a dos contos.

JÚLIO
Quem pensa tal! que fosse a casa até dos bicos,
nós que temos com isso?

LUÍSA
Eu não invejo aos ricos.

HARPAGÃO
E eu sim; só por vocês.

JÚLIO
Para que está com isso?
graças a Deus, tem muito; um cabedal maciço;
ninguém há que o não saiba.

HARPAGÃO
Eu! eu!

JÚLIO
Meu pai.

HARPAGÃO
Mentira.
Deus permita...

JÚLIO
Não jure; a praga que se atira
às vezes ricocheta.

HARPAGÃO
A súcia que isso espalha
são por força ladrões. Arreda, vil canalha!
Rico! eu rico!

LUÍSA
Meu pai, sossegue; que lhe presta
o estar-se a enraivecer?

HARPAGÃO
Eu rico! inda mais esta!
agora até são já meus filhos, o meu sangue,
que espalham que sou rico, e estranham que me zangue!

JÚLIO
Dizer que tem de seu é ser seu inimigo?

HARPAGÃO
É. sim senhor, pois que é? Quem vir como este amigo
por aí pimpa e luxa, e ouvir que eu tenho, assenta
que isto é vaza-barris; vem o diabo, atenta
alguma alma perdida, entra-me em casa, à espera
de ouro em pó; não no acha, assanha-se, pudera!
amordaça-me, e zás! coseu-me de facadas!
E a culpa de quem foi? das línguas depravadas,
e do luxo, repito, aqui do meu peralta.

JÚLIO
Que luxo?

HARPAGÃO
Bom cavalo, anéis, nada lhe falta!
alfinete de peito! alfaiate francês!
francesa a engomadeira! o sapateiro inglês!
teatros! que sei eu! já hoje mesmo eu disse
ali à sua irmã: com tanta garridice
isto afinal estoura, e muito breve!
Ingrilou-se-me toda; acha que um pai não deve
acudir aos seus bens, que vão pela água abaixo!
pois achem muito embora; eu cá é que não acho;
e hei-de lhe enfim pôr cobro. Olhem-me aquele fato,
e comparem-no ao meu; sou eu que pago o pato;
por força; ele não tem!... não ganha!... não tirou
sorte grande, que eu saiba; eu, certo, lho não dou...
(porque o não tenho); então, é claro como o dia,
que, seja como for, mo extrai por qualquer via.
Tem as manhas da cobra: a cobra também mama,
tão velhaca e subtil, que não acorda a ama.

(Luísa, notando no irmão movimentos de impacientado com o insulto, faz-lhe sinal para que tenha mão em si)

JÚLIO (em meia voz, e em rápido aparte para a irmã)
Outrem que me afrontasse em minha probidade,
pagava-o logo, e caro; aqui, há imunidade.
(alto para Harpagão e afetando serenidade)
Que lhe posso eu tomar? ou como?

HARPAGÃO
Eu sei!

JÚLIO
Mas rogo
que mo ensine.

HARPAGÃO
E eu pergunto as suas rendas.

JÚLIO
Jogo.
A fortuna (talvez por ver-me desgraçado)
favorece-me; ganho; o ouro assim ganhado,
se havia de enterrá-lo ou despendê-lo em vícios,
vai logo alimentar as artes e os ofícios,
vestindo a minha irmã de um modo mais decente,
e a mim também; não devo inspirar tédio à gente.

HARPAGÃO
O que o senhor devia, uma vez que a fortuna
o favorece ao jogo, era, em vez de ir-se à tuna
desbaratar o seu, pô-lo a render. Dinheiro
cria dinheiro. Um cento é menos que um milheiro;
e como cem é bom, mil, que é dez vezes cem,
é dez vezes melhor. Calcula um só vintém
dez vezes a dobrar; (um só vintém; atenta;)
pode-te dar... dez mil duzentos e quarenta!
torna a dobrar por dez; calcula, e pasmarás!
são dez contos de réis...

JÚLIO (sorrindo)
Sim senhor! Já me apraz.

HARPAGÃO (continuando)
Quatrocentos...

JÚLIO
Melhor.

HARPAGÃO
Acrescenta, acrescenta
oitenta e cinco mil set’centos e sessenta,
Que tal!

JÚLIO
Acho bem bom. Quem os cá dera!

HARPAGÃO
Aí tens,
filho pródigo, aí tens o que é poupar vinténs.

JÚLIO
Tem razão.

HARPAGÃO
Toda. Então, digo eu, que se emprestasse
a cem por cem ao ano os ganhos que apurasse...
não andava pavão, mas era milionário.

JÚLIO
São gênios; não nasci no signo de usurário.

HARPAGÃO
Bem; não falemos mais em tais matérias. Vejo
que o signo em que nasceu foi o do caranguejo.
Falemos noutra coisa.
(Reparando em que Júlio e Luísa estão fazendo sinais um ao outro, querendo cada um que seja o outro quem encete a declaração; à parte)
Ali anda tratada!
Mau! temos peditório. (alto) O que é lá isso?

LUÍSA
Nada.

HARPAGÃO
Como nada? Eu não vi certos sinais?...

LUÍSA
O mano
precisava...

HARPAGÃO
De quê? (à parte) Nem chavo castelhano.

LUÍSA
E eu também precisava...

HARPAGÃO (à parte)
Um dardo. As precisões
já vêm aos pares! Bravo! esfolem-me, ladrões!

JÚLIO
Precisávamos... sim... falar-lhe...

LUÍSA
Ele queria
que fosse eu a primeira, e eu que fosse ele; eu ria,
ele teimava...

HARPAGÃO
Entendo; era o jogo do empurra.
(à parte) Temia que não fosse uma sangria à burra.
(alto) Depois falarão disso; agora é mais instante
o que eu lhes vou dizer.

JÚLIO
Isto era um só instante:
era sobre o casar...

HARPAGÃO
Ouçam-me pois atentos,
que eu não lhes vou falar senão de casamentos.

LUÍSA (muito triste)
Ah! meu pai!

HARPAGÃO
Que meu pai! nem que ah! Forte esquisita!
Mal lhe falo em casar, logo se aterra e grita.
Não percebo tal medo. As mais, quando lhes falam
em casar, vão-se aos céus, e todas se regalam.

JÚLIO
Creio que ela também; pois não é assim, Luísa?
do casar sem amor é que ela se horroriza;
com razão, que até eu, sendo homem, tremeria
de dar à braga o pé; confesso a covardia.

HARPAGÃO
Vamos devagarinho; eu sei perfeitamente
(e melhor que vocês, por mais experiente)
o que é que lhes convém; mas não atrapalhemos;
vamos por partes.

JÚLIO
Bem; pois diga; escutaremos.

HARPAGÃO (para Júlio)
Já viste uma senhora, aqui nossa vizinha,
chamada Mariana? (E muito galantinha
que ela é, benza-a Deus!)

JÚLIO
Vi, vi.

HARPAGÃO (para Luísa)
E tu?

LUÍSA
Já dela
tenho ouvido mil bens: que é boa, quanto é bela.

HARPAGÃO (para Júlio)
Que tal te pareceu?

JÚLIO
Formosa, mui formosa!

HARPAGÃO
Cara linda, e de esperta.

JÚLIO
Esperta, e mui garbosa.

HARPAGÃO
Um ar... uns modos... hein?

JÚLIO
Admiráveis.

HARPAGÃO
Então
concordas, certamente, em que era uma união
muito de apetecer.

JÚLIO
Oh! se era!

HARPAGÃO
Enfim, mulher
para bem reger casa, e ser como se quer.

JÚLIO
Sem dúvida.

HARPAGÃO
Só lhe acho um senãozinho. Creio
que tem pouco de seu; parece-me...

JÚLIO
É receio
que nem deve lembrar. Virtudes e beleza
contrapesam de sobra outra qualquer riqueza.

HARPAGÃO
Lá tanto, não direi; o que porém te digo,
é que inda que não traga imenso haver consigo,
paciência! arranjar-se-á por outra qualquer via.

JÚLIO
Claro está.

HARPAGÃO
Pois meu filho, enches-me de alegria
com esse teu pensar, que é o meu exatamente.
Muito bem! Mariana...

JÚLIO
Ah! meu bom pai!
(à parte com alvoroço, para Luísa)
Consente.

HARPAGÃO
Mariana, pelos dons que ambos achamos nela,
de econômica, parca, amável, e singela,
cativou-me, e há-de ser minha segunda esposa;
quer tenha, quer não tenha.

JÚLIO
O quê!!?

HARPAGÃO
Que é lá?

JÚLIO
Pois ousa...
ousa, meu pai?!

HARPAGÃO
O quë?

JÚLIO
Pois quer?

HARPAGÃO (depois de um breve silêncio)
Perdeste a fala?
acaba; quero o quê?

JÚLIO
Deveras desposá-la?

HARPAGÃO
Quero.

JÚLIO
Meu pai!? meu pai!?

HARPAGÃO
Eu, eu; cem vezes eu.
Que admirações! que tem?

JÚLIO
Não sei o que me deu;
um vágado, suponho.

HARPAGÃO
O pote da cozinha
há-de ter água; corre, e bebe; está fresquinha;
bebe um púcaro, ou dois, se tanto for preciso;
para vágados água; afoga-os de improviso.
(Sai Júlio pela segunda porta da direita)

CENA VI

HARPAGÃO e LUÍSA

HARPAGÃO
Rapazinhos de hoje em dia!
Não passam de uns reles nicos.
Até fanicos! fanicos!
Vistam saia.
Quando eu ia
dizer-lhe o belo casório
que lhe tenho preparado,
um vágadol! Cebolório!
(para Luísa)
Pois filha, tenho assentado:
eu caso com ela; dou
ao Júlio certa viuvinha
em que ontem se me falou,
e a ti o Anselmo, Luisinha.

LUÍSA
Anselmo!!

HARPAGÃO
Varão maduro,
de pouco mais dos sessenta;
uma burra suculenta;
gênio bom, parco, seguro...

LUÍSA (fazendo mesura)
Eu, co devido respeito,
meu pai, não quero casar.

HARPAGÃO (fazendo uma cortesia de escárnio, e arremedando Luísa)
E eu minha flor, quero-a dar
ao noivo que tenho eleito.

LUÍSA (repetindo a mesura)
Queira meu pai desculpar-me;
não pode ser.

HARPAGÃO
A menina
queira também perdoar-me;
há-de ser.

LUÍSA
A minha sina
não reza de tal. Se quer
que eu lho chame encantador,
e até bruxo, sim senhor;
mas lá ser sua mulher...
(fazendo uma mesura)
sou uma sua criada.

HARPAGÃO (fazendo uma cortesia)
E eu um seu humilde servo;
unicamente lhe observo,
que hoje mesmo a Anselmo é dada.

LUÍSA
Hoje?

HARPAGÃO
Hoje.

LUÍSA
Meu pai, não conte
com tal coisa.

HARPAGÃO
Minha filha,
repito-lhe que se apronte.

LUÍSA
Não me pilha.

HARPAGÃO
Olé se a pilha!
assim eu pilhasse agora
quatro contos.

LUÍSA
Não, não, não.

HARPAGÃO
Sim, sim, sim.

LUÍSA
Teime ele embora;
também eu teimo; verão;
ninguém me pode obrigar.

HARPAGÃO
Obrigo-te eu; tu verás.

LUÍSA
Matar-me-ei; sou mui capaz.

HARPAGÃO
Não morres, e hás-de casar.
Viu-se nunca petulante
que assim a seu pai galrasse!

LUÍSA
Nem pai que tanto abusasse
da força...

HARPAGÃO
Recalcitrante
contra um arranjo excelente,
que o não há melhor!

LUÍSA
Não gosto.

HARPAGÃO
Aposto que toda a gente
o há-de aprovar!

LUÍSA
E eu aposto
que ninguém tal aprovava.

HARPAGÃO
Não?

LUÍSA
Não.

HARPAGÃO
Que queres perder?
uma apostinha.

LUÍSA
Apostava.

HARPAGÃO
E eu também. Como há-de ser?
eu ponho doze vinténs,
e tu esses brincos de ouro.
(vendo Luisa a sorrir)
Se tanta certeza tens...

LUÍSA (à parte)
Um coelhinho por um touro.
(alto) Mesmo assim, aceito.

HARPAGÃO
Espera.

LUÍSA
Que é?

HARPAGÃO
Primeiro deposita.

LUÍSA
Não fujo.

HARPAGÃO
Bem sei; pudera!
Enfim, dás palavra? (à parte) Hesita.

LUÍSA
Dou palavra, dou.

HARPAGÃO
Vem gente.
Queres tu? seja quem for,
eis o árbitro.

LUÍSA
Excelente.
(à parte) Venço.

HARPAGÃO (à parte)
Fico vencedor.

CENA VII

Os mesmos e DUARTE (que vem da segunda porta da direita)

HARPAGÃO (continuando o à parte)
Bravo! o meu confidente! apanho as arrecadas.
(alto) Vem aqui, meu Duarte; e muito boas fadas
que te mandaram cá. Vais ser nosso juiz:
quem é que tem razão? ela, ou eu?

LUÍSA (para Duarte)
Meu pai diz...

HARPAGÃO
Ela nega.,.

LUÍSA
Eu ateimo...

HARPAGÃO
Eu sustento...

DUARTE
O patrão,
(já percebo) é que tem carradas de razão.

HARPAGÃO
Sabes de que se trata?

DUARTE
Exata, exatamente,
não sei; sei que ao senhor nunca lhe entrou na mente
coisa desarrazoada.

HARPAGÃO
E não. Aí vai o caso:

DUARTE
Venha lá.

HARPAGÃO
Digo-lhe eu que hoje, hoje mesmo, a caso
cum sujeito de bem, riquíssimo; e a mofina
põe-se em bicos de pés, e diz que não assina.
Que me dizes a esta?

DUARTE
Eu?

HARPAGÃO
Tu.

DUARTE
Hã, hã!

HARPAGÃO
Que é?

DUARTE
Digo...
(Luísa faz um gesto de enfado)
que na essência... o senhor...

HARPAGÃO
Que em suma, estás comigo.

(Durante esta e as seguintes falas de Duarte, fazem contra-cena muda Harpagão e Luísa, carregando cada um deles o semblante, ou alegrando-se, sempre em sentido contrário do outro, à proporção que os dizeres de Duarte lhes fazem feição, ou deixam de lha fazer)

DUARTE
Sim, o senhor na essência era impossível...

HARPAGÃO
E era.

DUARTE (continuando)
que resolvesse à doida.

HARPAGÃO (para Luísa)
Apanha lá, pantera.

DUARTE
Mas agora também por outro lado, entendo
que o que a menina diz não é despiciendo
de todo em todo.

LUÍSA (para Harpagão)
Aí tem; aí tem.

DUARTE
Por conseguinte,
salvo melhor juízo...

HARPAGÃO
Achas que dá no vinte
uma pobre de Cristo, e que só tem de seu
o palminho da cara, achando...

LUÍSA (à parte)
Um camafeu.

HARPAGÃO (continuando)
um marido ricaço, ilustre, já sisudo,
e não mal parecido, enfim (para ter tudo)
viuvinho sem nota, e sem filhos? pergunto:
predicados assim onde é que os viu por junto?

DUARTE
Não lhe vou contra isso. O que ela poderia
retrucar-lhe, era só...

HARPAGÃO
Que me retrucaria?

DUARTE
Eu sei! talvez dissesse: a eleição de um consorte
é coisa muito grave, e não se entrega à sorte;
deve-se em todo o caso ouvir o coração;
aliás...

HARPAGÃO
Deixa falar. Que é lá inclinação?
novelas; poesia. Ocasiões como esta,
é colhê-las no ar. E inda o melhor da festa
não no sabem vocês: é que ele se me obriga
a tomar (notem bem) sem dote a rapariga.

DUARTE
Sem dote!

HARPAGÃO
Sim senhor; sem dote.

DUARTE
Essa embatuca.
e mete os tampos dentro.

HARPAGÃO
Agora que retruca?

DUARTE
É de arriar bandeira.

HARPAGÃO
Economia imensa
para quem não é rico.

DUARTE
Olé se é diferença!
O que ela há-de objetar talvez (digo eu cá isto)
é que em se dando o nó, nem que viesse Cristo
não há mais desatá-lo; e sendo a escolha errada,
lá fica até à morte a vítima infernada.

HARPAGÃO (exclamando para si)
Sem dote!!

DUARTE
É uma razão a que se não replica;
bem vejo. Alguma gente é que há-de vir coa nica
de dizer que o casar, não sendo obrigação,
não se deve fazer sem mútua inclinação;
e que ninguém se lembra, inda que o demo o queira,
de unir estio e inverno, um cepo e uma roseira;
e que enlaces assim provam mal, de ordinário.

HARPAGÃO
Sem dote!!

DUARTE
Sim senhor, quem lhe diz o contrário?
isso é uma razão de escacha-pessegueiro;
inda que há muitos pais amigos do dinheiro,
que antes de o calcular calculam muito ao sério
onde a filha irá ter: se a céu, se a cemitério.

HARPAGÃO
Sem dote!!!

DUARTE
A coisa é essa.

HARPAGÃO (olhando para a porta do fundo, e à parte)
A modo que dei fé
de um vulto no jardim! mau! corro a ver o que é.
(alto) Não saiam, que eu já venho.
(à parte) Ai! meus dez mil cruzados!
Se alguém mos sonharia! isto é que são cuidados!...
(Vai-se apressado pela porta do fundo)

CENA VIII

LUÍSA e DUARTE (depois de darem tempo a que o pai já os não possa ouvir, e tendo estado a olhar ambos para a porta do fundo)

DUARTE
E esta!

LUÍSA (picada, e depois de pausa)
E esta! inda não creio
no que lhe ouvi. (pausa) Concordar
em tal coisa! (pausa) Não me dar
razão a mim!

DUARTE
Foi receio
de exasperá-lo inda mais,
e abrir-lhe os olhos talvez.

LUÍSA
Fê-la bonita, oh! se fez!
E agora? receios tais
num lance extremo! no lance
de nos salvar ou perder!
(em tom irônico)
Adeus! quando não me alcance,
há mais por onde escolher.

DUARTE
Quanta prudência é precisa
para escutar uma injusta,
uma zelosa!

LUÍSA
Sim; custa;
por isso a entrega.

DUARTE
Oh! Luísa!
Pois tu não vês que ir-me opor
de cara a cara ao seu plano
era matar logo em flor
o fruto por que me afano?
Gênios que à razão não saem,
não se hão atacar de frente;
põe-se-lhes cerco paciente,
mina-se, espera-se, e caem.

LUÍSA (com muita aflição)
Mas como esperar, Duarte,
se é hoje mesmo...

DUARTE
Não sei;
é procurar traça, ou arte,
de espaçá-lo. Buscarei.
E tu procura igualmente.

LUÍSA (depois de pausa longa)
Não há; não me ocorre nada.

DUARTE
Se te fingisses doente?

LUÍSA
Vinha o médico, a tratada
era logo descoberta,
via-me sã como um pêro.
Valha-me Deus! que exaspero!

DUARTE
Pois médico algum acerta
co que está dentro da gente!
pode haver males sem febre;
qualquer com ar de sapiente
te engole gato por lebre.
O mais que podem fazer,
por não desonrar o emprego,
é dar ao teu padecer...

LUÍSA
Um remédio?

DUARTE
Um nome grego.

CENA IX

Os mesmos e HARPAGÃO (que volta da porta do fundo)

HARPAGÃO (à parte)
Nada foi, Deus louvado!

DUARTE (sem haver ainda atentado em Harpagão)
Enfim, se não houver
outro modo, é fugir, e ser minha mulher.
Tens valor, minha estrela?

LUÍSA (com muita firmeza)
Eu tenho.

DUARTE (reparando em Harpagão, mas continuando como se o não tivera visto, e fazendo com os olhos sinal a Luísa para que dissimule também)
Não me sai
deste argumento: um pai é pai ou não é pai?
é pai; quem há que o negue? E a filha não é filha?
é; logo, a filha boa ao seu bom pai se humilha.
(à parte) Estou como os do grego.
(alto para Luísa, e ainda com mais intimativa)
Uma donzela (entende?)
aceita, e não escolhe; escolher quê? pretende,
sem uso algum do mundo, e só cos seus sentidos,
dar a seu pai lições acerca de maridos?
(à parte) Bom; cada vez mais grego! eu, se isto dura, espero
vir ainda a desbancar ao próprio padre Homero.
(alto para Luísa, e cada vez com mais fogo)
Pesou já bem, pesou... (senhora não me esgote
de todo a paciência) esta razão: sem dote!?
Sem dote!! uma menina esperta, e de pudor,
lança as mãos ambas logo, e, seja como for,
apanha a veniaga. Amor! essa é que é bela!
engorde coa ternura o caldo da panela.

HARPAGÃO
Bravo! isso é que é falar que nem o melhor livro.

DUARTE (fingindo-se sobressaltado com a aparição do amo, e confuso)
Tenho este mau costume, e dele não me livro:
digo sempre o que entendo, e às vezes brutamente;
perdoe-me o patrão, se passo de imprudente
em vir intrometer-me onde ninguém me chama,
e em falar tão severo aqui à minha ama;
que eu não sei se o senhor ouviu ou não.

HARPAGÃO
Ouvi.
Aprovo, e muito louvo; até delego em ti
o meu poder paterno acerca desta louca,
já que às minhas razões tem sido sempre mouca;
sê tu seu vice-pai com plena autoridade;
tens mais paciência que eu, zelo, e juízo.

LUÍSA
Eu...

HARPAGÃO
Há-de
obedecer-lhe em tudo, e não me remenique.
(para Duarte)
Faze-lhe a operação da catarata.
(para Luísa que vai retirar-se)
Fique,
e tenha-me juízo.

DUARTE
Isso há-de o ter; sossegue.
Cá está sombra fiel, que a toda a parte a segue.
(Ouve-se da banda do jardim, mas ao longe, um assobio dos que o rouxinol expede antes de repenicar a cantiga)

HARPAGÃO
Ouvi um assobio a modo... Não sentiram?
da banda do pomar?

DUARTE
Algum pássaro.
(ouve-se segundo assobio)

HARPAGÃO
Ouviram?
tão claro!

DUARTE
O rouxinol (talvez) que este ano veio
morar no laranjal.

HARPAGÃO
Que rouxinol? não creio;
antes algum sinal (sei cá?) de ratoneiro,
a convocar mais súcia ao faro de dinheiro.
Vai ver, Luísa, vai, se da tua janela
avistas novidade; é bom toda a cautela.
(Sai Luísa pela segunda porta da esquerda)

CENA X

DUARTE e HARPAGÃO

(Ouve-se cantar o rouxinol. HARPAGÃO e DUARTE ficam por algum espaço a escutar)

DUARTE
Era o rouxinol; pois que era?
não no ouve? e trina! trina!
Nada chega à primavera.

HARPAGÃO
E o verão? esse é que é mina!
noites tão claras e breves,
que até se dispensa luz.

DUARTE
E roupa na cama.

HARPAGÃO (com entusiasmo)
Deves
ser meu amigo.

DUARTE (com entusiasmo igual)
Jesus!
se o sou, senhor Harpagão!
isso é uma simpatia!...

HARPAGÃO
A gente em irmãos confia;
vou-te falar como irmão, (pausa)
Tive uma idéia famosa;
hás-de aprovar-ma.

DUARTE
Decerto.

HARPAGÃO
Vem ouvir aqui mais perto;
e segredinho!

DUARTE
Essa prosa
é que se pode escusar;
sou um cofre de segredo.
A idéia! nada de medo.

HARPAGÃO (depois de meditar um instante)
Duarte, sabes ladrar?

DUARTE
Ladrar!!

HARPAGÃO
Ladrar.

DUARTE
Imagino
que há-de ser fácil; eu sei!

HARPAGÃO
Depois examinarei
se tens bom órgão canino;
mas hás-de ter.

DUARTE
Suponhamos.

HARPAGÃO
Este grande quintalão
tão entaipado de ramos
precisa de noite um cão.

DUARTE
E precisa.

HARPAGÃO
Os cães de fila
custam caro; e comem! comem!
cada um mais do que um homem,
que é o que mais me quizila.

DUARTE
Também a mim.

HARPAGÃO
Nota-me isto:
calculei: come um cãozinho
por ano...

DUARTE
Chagas de Cristo!

HARPAGÃO
Dez moedas e um quartinho.

DUARTE
Fora! que bruto!

HARPAGÃO
É verdade.
Deixemo-nos pois de cão.

DUARTE
Acho-lhe toda a razão.

HARPAGÃO (com complacência)
Grande homem! já nesta idade!
Ladraremos no quintal,
tu uma noite, outra eu.
Não é que eu tenha de meu
enterrado nem real;
mas sempre é bom.

DUARTE
Olá se é!
Tem-se a casa mais segura.

HARPAGÃO
Aprovas?

DUARTE
E louvo até.

HARPAGÃO
Abraça-me! Que ternura
que tu me inspiras, Duarte!
és, és um homenzarrão...

DUARTE (à parte)
co’uma patente de cão.

HARPAGÃO
Dou-te neste emprego parte,
só porque me vou casar;
quando não, tomava a mim
todas as noites ladrar;
não queria outro mastim.

CENA XI

Os mesmos e LUÍSA (que vem da segunda porta da esquerda)

LUÍSA
Nada se avista; nada.

HARPAGÃO
Eu tenho de sair
a ver certa pessoa.

DUARTE (para Harpagão, confidencialmente)
Adeus colega; e é vir
depressa; entende?

HARPAGÃO (para Duarte, também confidencialmente)
Bem; tenho o primeiro dia;
amanhã serás tu. (Indicando Luisa) Fica-lhe de vigia;
e eu vou sempre outra vez correr esse quintal.
(Conserta diante do espelho o laço da gravata, e assenta com o braço o pêlo do chapéu ruçado)

DUARTE (entretanto a Luísa)
Pois agora, menina, é vida nova; em tal
escusa de pensar; quer queira quer não queira,
há-de casar.

(Aqui puxa HARPAGÃO do bolso um pente desdentado, e põe-se diante do espelho a riçar com ele a peruca)

Um pai, que sob a cabeleira
esconde cãs, miolo, e tanta experiência,
e que tão bem lhe quer, tem jus a obediência;
não há mais refilar-lhe.

HARPAGÃO (à parte)
Assim; assim.

DUARTE
E então
sem dote!

HARPAGÃO (à parte)
Justo.

DUARTE
E pensa o que é sem dote?

LUÍSA
Não?
mas hei-de pensar nisso.

HARPAGÃO (à parte)
Aposto que hoje a bela
vendo-me há-de sorrir, se estiver à janela.
Lindas flores que eu vi abertas na roseira!

DUARTE (a Luísa)
Pois aí está.

HARPAGÃO
Vou pôr uma aqui na botoeira.
(Sai pela porta do fundo)

CENA XII

DUARTE e LUÍSA

DUARTE
Que me dizes, que me dizes,
Luísa, à nossa ventura?

LUÍSA
Inda a não julgo segura.

DUARTE
E eu já nos dou por felizes.

LUÍSA
Pobre pai! quanto eu não dera
para podê-lo inda amar!
O amar a um pai deve dar
tanto gosto! (e eu sou pantera!)

DUARTE
Quando nós formos esposos,
mãe e pai de netos seus,
vingar-nos-emos ditosos
amando-o.

LUÍSA
Permita Deus!
é tudo quanto lhe peço.

DUARTE
E hás-de obtê-lo.

LUÍSA
Ou talvez não.

DUARTE
Receios em tanto excesso
não ficam mal?

LUÍSA
Ficarão;
mas tu chama-los receios,
e eu remorsos.

DUARTE
Quando vês
que tudo aos nossos anseios
corresponde, e é já talvez
para nos coroar, que o maio
se está desatando em flores,
(apontando para o jardim, onde o rouxinol está cantando)
e o rouxinol trina amores,
epitalâmio de ensaio...

LUÍSA
Ah! como o meu pobre irmão?
também poeta?
(Ouve-se ladrar no quintal)
Escutar;
que é aquilo?

DUARTE (rindo)
Um novo cão,
que anda aprendendo a ladrar.


ATO SEGUNDO

CENA I

JÚLIO e TOMÁS

JÚLIO
Por onde andaste até ’gora?
e eu à tua espera aqui
de empada há mais de uma hora!

TOMÁS
Isso logo eu discorri;
mas a culpa não foi minha;
foi do senhor Harpagão.

JÚLIO
De meu pai! ele que tinha
co esperares-me ou não?

TOMÁS
Mandou-mo esperar na rua;
bem sabe o que ele é.

JÚLIO (à parte)
Sei, sei.
(alto) O de que eu te encarreguei
faz-se? progride, ou recua?
Dei-te pressa; pois a pressa
agora é muito maior;
tenho um rival; e o pior
é que é meu pai.

TOMÁS
Ora essa!
ele! o pai! apaixonado!
seu rival o pai!!

JÚLIO
Sim, sim.
Quando ele mo disse a mim,
também eu fiquei pasmado;
quase que tive um desmaio!
custou-me a dissimular!

TOMÁS
Ele amar! amar! amar!
cantou-lhe o cuco este maio!

JÚLIO
Isto só a mim.

TOMÁS
Diz bem;
mas ouvindo-lhe esse amor,
por que motivo o senhor
lhe não disse o seu também?

JÚLIO
Pedaço d’asno! Querias
que eu descobrisse o meu jogo?!
Assim, com mais desafogo
posso ir procurando vias
por onde sem arruídos
eu vença, e o livre afinal
da idéia descomunal
de entrar no rol dos maridos.
Mas que resposta me trazes?

TOMÁS
Pedir emprestado é triste.
Por coisas passam rapazes
cos usurários!...

JÚLIO
Desiste
da pregação importuna,
que não me achas de maré.
Emprestam, ou não?

TOMÁS
O que é,
é que o tal Simão Fortuna,
o do escritório da agência
que nos foi recomendado,
sujeito de consciência,
fala mansa...

JÚLIO
Está louvado;
que fez?

TOMÁS
Disse-me que tinha
engraçado co meu amo;
que lhe achava uma carinha...

JÚLIO
Sim senhor, também o eu amo;
adiante; desempacha;
arranja os dez mil cruzados?

TOMÁS
Arranja, estão arranjados;
mas com cláusulas; se as acha
justas e a seu gosto, aceita,
e é logo o ourinho na mão;
aliás...

JÚLIO
Aliás?

TOMÁS
Se as rejeita,
fica na mesma.

JÚLIO
Um pingão!

TOMÁS
Justo.

JÚLIO
E levou-te a falar
ao que há-de dar o dinheiro?

TOMÁS
Devagar; mais devagar;
há suas nicas primeiro;
porque assim como o senhor
deseja oculto o seu vulto,
também o emprestador
quer ter o seu vulto oculto;
percebe?

JÚLIO
Eu não.

TOMÁS
São mistérios;
coisas lá da sinagoga;
cabra-cega que se joga
entre dois sujeitos sérios.
Nem diz seu nome, nem quer
que lhe fale em sua casa;
hoje a um colóquio o empraza,
mas é noutra de aluguer;
entende?

JÚLIO
Menos ainda.

TOMÁS
Toda a cautela acha pouca;
quer-lhe ouvir da própria boca
um kyrie que nunca finda:
que tem, o que espera ter,
quem é, os seus pais quem são,
e se há testamento ou não,
e como é o seu viver...
confissão geral em suma;
e depois talvez que não;
quem diz filho de Harpagão
deu mil seguranças numa.

JÚLIO
E minha mãe faleceu;
e eu tenho um quinhão na herança;
tem, tem toda a segurança
de que não arrisca o seu.

TOMÁS
Isso tem; mas se consente,
vou ler o que o mutuador
ao amigo nosso agente
neste papel mandou pôr.
São certas cláusulas prévias,
que podem quadrar-lhe ou não;
se lhe quadram, bem; subscreve-as;
se não lhe quadram...

JÚLIO
Que são?

TOMÁS (lendo)
Primeiro: exige o mutuante
quantas cauções possa haver,
para seu sossego.

JÚLIO
Avante;
dou-lhas, e cumpro um dever.

TOMÁS (lendo)
Segundo: o mutuário quer-se
que seja maior.

JÚLIO
Já sou.

TOMÁS (lendo)
que não jogue, que não verse,

JÚLIO (à parte)
Algum poeta o logrou.
(alto) Eu verso, mas não publico;
posso-o negar; fiz a vaza.

TOMÁS (lendo)
Terceiro: que seja casa
choruda e sólida.

JÚLIO
Fico
por que a nossa o satisfaça.

TOMÁS (lendo)
Quarta: quer-se obrigação
muito clara, e que se faça
por mão do tabelião
mais honrado, o qual será
da escolha do mutuante.

JÚLIO
Também não me oponho; vá.

TOMÁS (lendo)
Quinto: (falando) O quinto é que é chibante
(continuando a ler)
Declara o emprestador,
por ser bom cristão e humano,
que empresta a soma que for,
a cinco por cento ao ano.

JÚLIO (contentíssimo)
Bravo! que homem!

TOMÁS (continuando a ler)
Todavia,
como não tenha ao presente
a necessária quantia
para este empréstimo urgente,
e por isso há-de ir tomá-la
doutra mão, em que lhe pês,
a qual mão só pode dá-la
a cinco por cento ao mês,
o primeiro mutuário
(falando) isto é: vossa senhoria,
(continuando a ler)
obriga-se...

JÚLIO
Que usurário!

TOMÁS (lendo)
por uma e outra quantia;
(falando) pelos dois juros; percebe?

JÚLIO
Percebo; que ladroeira!

TOMÁS (falando)
Bebe azeite.

JÚLIO
Aqui não bebe;
não caio em tal ratoeira.

TOMÁS
Pense, e faça o que entender.
Eu também acho...

JÚLIO
Acha o quê,
grande burro? então você
não acaba de entender
que neste apuro infernal
me é forçoso estar por tudo?

TOMÁS
Isso disse eu mui sisudo
ao nosso amigo, tal qual.

JÚLIO (apontando para o papel)
Que mais propõe essa malta?
essa quadrilha? Que amigo!
Conclui.

TOMÁS
Concluo; só falta
um tudo-nada de artigo:
(lendo) Sexto enfim: o mutuante,
por míngua de numerário,
só dará ao mutuário
metade em metal sonante;
mas dá-lhe a outra metade
em trastes, móveis, e jóias
de grande valor.

JÚLIO
Tramóias!
se eu fosse adelo...

TOMÁS (falando)
É verdade;
eu logo o disse também;
mas ouça o rol do bazar.

JÚLIO
Que grande judeu!

TOMÁS
É bem,
bem da tribo de ensacar.
(procurando no papel o artigo)
Et cæt’ra, coisas e loisas,
que lhe dá o mais barato
que lhe é possível as coisas,
e inda perde no contrato...
Aqui está; ouça: (lendo) Um armário
de belo charão da China:
custou em novo a um templàrio
quinhentos mil réis.

JÚLIO (irônico)
Que mina!

TOMÁS
Só lho carrega em trezentos.
(lendo) Uma espada, que se diz
fora do Mestre d’Avis;
dezoito mil e duzentos.
Três bonecas de alabastro,
que se afirma com certeza
que estavam sobre uma mesa
na sala de Inês de Castro;
cada uma, três quartinhos.
Um viveiro de canários;
moeda. Dois relicários
com seus lavores d’anjinhos;
nove mil réis. Uma banca
de pau-santo bem lavrado;
cem mil.

JÚLIO
Tens reparado
se aí vem alguma tranca?

TOMÁS (falando)
Mas arranja-se.

JÚLIO
E que mais?

TOMÁS (lendo)
Um manicórdio bonito
do gosto mais esquisito.
Uma tina e seis missais;
trezentos mil réis por tudo;
e inda abate oito tostões.
Um leito coas armações
bordadas, e de veludo.

JÚLIO
Olha que eu já te não vejo!

TOMÁS
Paciência; mais um pouco.
(lendo) Item: mais um realejo
quase inteiro. Item: um coco
esculpido, e co seu cabo.
Um painel de autor antigo,
mas sem nome.

JÚLIO
Oh! que diabo!
e dizes tu...

TOMÁS (falando)
O que eu digo
é que atenda, (lendo) Esta pintura
foi noutro tempo magana;
mostrava a casta Susana
a entrar no banho; hoje é pura;
deu-lhe um poucochinho a traça,
e então deixou-a decente;
de modo que inda tem graça
sem fazer corar a gente,
(falando) Um ovo por um real.
(lendo) Cem mil réis; e abate um pinto.

JÚLIO
Basta; em mais já não consinto.

TOMÁS (falando)
Pouco falta, (lendo) Um animal
das Índias, ou dos Brasis,
que assusta mesmo empalhado.
Um lambique em bom estado,
cos competentes funis.
Cos preços já o não canso;
aqui os traz cada objeto.
(lendo) Um gamão quase completo;
um sino; um macaco manso.
O retrato de um penetra;
um cofrezinho vazio;
Um bom tonel, sem bafio;
um xairel, um xale, etæc’tra.
Destes valores somados
inda abate o mutuante
dois por cento...

JÚLIO
Oh! sacripante!

TOMÁS (lendo)
pela alma dos seus finados.

JÚLIO
Tudo isso que valeria
quando eu pudesse vendê-lo?
a pele desse camelo
é que eu mercava. Queria
regalar-me a espezinhá-la.
Que infâmia! como se abusa
de quem precisa, e se rala
sem poder!...

TOMÁS
Lá entra a musa
coa solfa usada dos pobres.

JÚLIO
Caí nas garras de um urso.

TOMÁS (encolhendo os ombros)
E então?

JÚLIO
Vê lá se descobres,
se inventas algum recurso.

TOMÁS
É que não há.

JÚLIO
Nada?

TOMÁS
Nada.

JÚLIO
Força-me pois o onzeneiro
a aceitar pouco em dinheiro,
e infinito em tralhoada.
(depois de pensar um pouco)
Que remédio?

TOMÁS
Aceita?

JÚLIO
Aceito.
Que fera! dou-me a partido;
que hei-de fazer? mais perdido
fico ainda, se rejeito.
E um náufrago não se aferra
a um junco podre? (à parte) Ah! Mariana!

TOMÁS
Essa estrada, se a não erra,
leva-o direito a pantana;
desculpe-me o atrevimento.

JÚLIO (à parte)
A culpa é do negro amor.

TOMÁS
Sempre assim foi; o avarento
produz o dissipador.

JÚLIO
E dizem; maus filhos!

TOMÁS
Acho
que às vezes bem sem razão.

JÚLIO
Pois não é?

TOMÁS
Como diacho
se há-de ter muita afeição
a quem nenhuma nos mostra,
devendo-a ter infinita?

JÚLIO
Quem a natureza arrostra
não acuse a quem o imita.
Ser um pai que lance a gente
neste lago dos leões!

TOMÁS
Não é por eu estar presente,
nem por ser de presunções,
mas tenho um bom natural.
Mesmo assim, sendo eu pessoa
que nunca furtei real,
tomava por obra boa
(Deus me perdoe se isto o ofende)
roubar ao senhor seu pai,
e dar a meu amo; entende?

JÚLIO
Dá cá o papel.

TOMÁS
Aí vai.

JÚLIO
Quero-o ler eu próprio.

TOMÁS
Espero?

JÚLIO
Espera.

TOMÁS
Assina?

JÚLIO
Verei.

TOMÁS
Quer ainda pensar?

JÚLIO
Quero.
Inda não sei bem; não sei.
(Vai sentar-se à mesa, que está por trás do biombo no fundo do teatro. Tomás fica em pé ao seu lado.)

CENA II

Os mesmos, HARPAGÃO e SIMÃO FORTUNA (que vêm ambos da primeira porta da direita)

SIMÃO
Sim senhor, como digo é um rapazote guapo,
bem falante, cortês...

HARPAGÃO
Isso não me enche o papo;
avante; que pretende?

SIMÃO
Está num grande apuro;
quer por força dinheiro.

HARPAGÃO
E acha que irei seguro?
Veja lá, veja lá, senhor Simão Fortuna;
há tanto menino por aí que vive à tuna!...
À sua conta o deito; e lembre-lhe que a gente
só tem dois dias cá, e inferno eternamente.

SIMÃO
Bem se sabe.

HARPAGÃO
Ora pois, torno-lhe a perguntar:
acha a coisa sem risco?

SIMÃO
Eu ia até jurar.

HARPAGÃO
E apostava?

SIMÃO
Isso não, não gosto de apostar.

HARPAGÃO
Ele que posses tem? como se chama? disse
o apelido da casa? o meu amigo ri-se?
de que se ri? de quê?

SIMÃO
Pudera não me rir!
já dez vezes ou mais, lhe estive a repetir
que o não conheço a fundo; entrou-me lá na agência
muito recomendado; aceitei-lhe a incumbência
de achar-lhe emprestador; agora o mais pertence
ao meu ilustre amigo; ouça-o, inquira-o, pense,
e faça o que entender. Lá que o julgo capaz,
isso julgo; abonou-mo o nosso André da Paz;
mas lavo as minhas mãos; caso a coisa se grude;
tenho os tantos por cento, aliás haja saúde.
O que me dão por certo é ser casão de arromba;
e a mãe já falecida.

HARPAGÃO
E ele herda?

SIMÃO
Nada! zomba!
seus cem contos ou mais.

HARPAGÃO
Bom; bom; já não é feio.

SIMÃO
O próprio André da Paz deu-me a entender (e eu creio)
que o senhor Harpagão, querendo, poderia
pôr entre as condições, que o pai lhe morreria
dentro de um mês ou dois; há tempos, num contrato
já se lembrou de o pôr.

HARPAGÃO
E o cão lambeu-me o prato
por tal sinal; enfim, senhor Simão, a gente
deve como cristã valer num caso urgente;
foi sempre a minha regra.

SIMÃO
É tal qual; eu por mim,
cá no meu fraco giro, a todos falo assim.

TOMAS (em voz baixa para Júlio)
Olhe o Simão Fortuna ali co pai!

JÚLIO (baixo para Tomás)
Dar-se-á
que me denunciasse, e que tu mesmo...

TOMÁS
Eu cá!
eu cá trair meu amo!!!

SIMÃO (reparando em Tomás)
És tu?! donde soubeste
que a tal casa era aqui?
(para Harpagão)
Eu não lho disse. Peste
me rape antes de um credo...

HARPAGÃO (baixo para Simão, e sacudindo-o colérico pela gola do vestido)
Ah! meu Simão Fortuna,
que te leva o diabo!

SIMÃO
Espere, alma gatuna;
não me empolgue; jurei, juro-lhe, e até aposto
que não o descobri.
(em tom desconfiado)
Eu disto assim não gosto;
falemos com juízo, (à parte) Abana cuma gana!...
nem que eu fora figueira.

HARPAGÃO (à parte)
Até este me engana!

SIMÃO
No nome do senhor, nem boquejei, repito;
nem falei de tal casa.

HARPAGÃO (à parte)
Arranjo tão bonito
foi-se pela água abaixo!

SIMÃO
Escusa agoniar-se,
e estar-me consumindo; acaba-lhe o disfarce
uma hora mais cedo; isso que tem? Contudo,
falasse quem falasse, eu cá por mim fui mudo.
O senhor que receia? o meu recomendado
é pessoa capaz; verá; pode a seu grado
explicar-se com ele; e nada de refolhos!
é pão pão, queijo queijo.

(Júlio, ao levantar-se arrebatadamente para aparecer, deixa cair o biombo)

HARPAGÃO
Enganam-me estes olhos,
ou sonho?!! Pois é Júlio?!!...

SIMÃO
Aqui o tem presente,
meu senhor Harpagão, o nosso pretendente.

HARPAGÃO
E és tu, filho malvado?

JÚLIO
E é meu pai?!...

HARPAGÃO (continuando a fala)
quem se liga
com estes tratos?

JÚLIO (continuando a sua)
quem a tratos tais me obriga?

(Fogem, Simão pela primeira porta da direita, Tomás pela segunda do mesmo lado)

CENA III

HARPAGÃO e JÚLIO (a sós)

HARPAGÃO
Queres deitar-me a perder,
vergonha da minha cara?

JÚLIO
Coa sua avareza rara
quer-me obrigar a morrer?

HARPAGÃO
E ousas inda apresentar-te
a um pai? (De horror me confundo).

JÚLIO
E ousará meu pai dess’arte
jamais presentar-se ao mundo?

HARPAGÃO
Não te coram essas faces
de tanta relaxação?
Como é crível que chegasses
a pôr na idéia, ladrão,
desbaratar de repente
o fruto de mil suores
dos teus honrados maiores!

JÚLIO
E meu pai? meu pai não sente
vergonha de deslustrar
seu sangue, e o nosso apelido,
com esse trato escondido?
com essa usura sem par?
com essa falta de entranhas?
com essa mesquinheria?
com má fé, burlas e manhas,
de que até Judas riria?

HARPAGÃO
Sai-te já de ante os meus olhos,
patifão! Quem tem um filho...

JÚLIO
Já sei de cor o estribilho:
tem um c’roa de abrolhos.
E quem tem pai que o imola,
tê-la-á talvez de flores?

HARPAGÃO
Que falar de mariola!

JÚLIO (ironicamente)
A um pai, que é todo ele amores!
(enérgico) Quem merece mais censura?
quem necessita dinheiro,
e a todo o custo o procura,
ou quem por gosto onzeneiro
rouba o que não necessita,
o que de nada lhe serve?

HARPAGÃO
Que raiva que me referve!
sai-te já já, monstro! Evita
que este vulcão arrebente.

(Sai Júlio pela segunda porta da esquerda)

CENA IV

HARPAGÃO só

HARPAGÃO (depois de ter estado por algum tempo cogitando)
Para a outra vez vai a pau. (pausa)
Deixá-lo. O caso presente
assim mesmo não foi mau;
deixou-me mais sobreaviso
para andar co olho alerta
sobre aquela besta esperta,
que o caso é de cão e guizo.

CENA V

O mesmo e GUIOMAR (que vem da primeira porta da direita)

GUIOMAR (toda mesureira)
Senhor Harpagão de Sousa,
meu senhor...

HARPAGÃO
Viva, Guiomar.
Já venho, (à parte) Torno ao pomar,
ver não ande por lá coisa.

(Sai Harpagão pelo fundo)

CENA VI

GUIOMAR e TOMÁS (que vem da segunda porta
da direita
)

TOMÁS (sem ver a Guiomar)
Inda me estou a rir, sem perceber nem nada.
Mas onde terá ele a imensa trapalhada
de que rezava o rol? Um armário da China
não se traz na algibeira; a casa não tem mina
(que eu saiba); e que a tivesse, o tal macaco manso
pelo menos guinchava. Em suma, não alcanço.

GUIOMAR
É você, Tomasinho? aqui!

TOMÁS
Que admiração,
tia Guiomar! Que a trouxe a esta habitação?

GUIOMAR
O meu modo de vida; esta ralada vida
de andar sempre a girar, numa contínua lida,
a servir, a arranjar coisas de toda a casta
a quanto freguês há. Bem sabes que não basta
para poder viver fiar na Providência;
é preciso ajudá-la, e fazer diligência.
Já não chove maná, que baste a boca aberta
para encher a barriga. Uma pessoa esperta
mantém-se da esperteza; arranja namorados,
alborca, empresta, vende; aí tens os meus morgados;
traz-se a carinha à mostra, e a consciência em paz.

TOMÁS
Quer falar ao patrão, já vejo.

GUIOMAR
Isso é, Tomás.
E estou à sua espera; há certo arranjozito
que ele há-de pagar bem.

TOMÁS
Quem? ele?

GUIOMAR
Ele, repito,
ele próprio.

TOMÁS
Pagar?

GUIOMAR
Pagar.

TOMÁS
Tia Guiomar,
se quiser pescaria há de ser noutro mar;
daqui, nem alforreca.

GUIOMAR
Ora verás.

TOMÁS
Grande isca
tenta pôr-lhe no anzol!

GUIOMAR
E ponho.

TOMÁS
Não a arrisca;
perde-a; protesto.

GUIOMAR
E eu sei que o tubarão, e juro,
cai.

TOMÁS
Não cai.

GUIOMAR
Se não há engodo mais seguro!
verás.

TOMÁS
Verá.

GUIOMAR
Pois sim; eu sou Guiomar dos Anjos,
a mestra examinada em seduzir marmanjos;
inda não dei com um, que é um, que me fugisse.
Bem sabes tu do amor! o amor é uma doidice;
e um doido está por tudo.

TOMÁS
O nosso é diferente;
falando-se-lhe em dar tem fúrias! come gente!
Primeiro tirarão de um tronco seco azeite,
vinho de um pedernal, de uma pescada leite,
banhas de um esqueleto, afagos de um leão,
que um único ceitil do senhor Harpagão.
Tem um horror ao dar, que nem nos dá bons dias.
Ouvindo-o, não parece; as falas são macias,
(quando o são); muita prosa; e quando se descuida
té promessas ameaça. Um que não sabe, cuida
que tudo sai de dentro; e sai; mas da algibeira
é que não sai real, por mais que se requeira.
Se se chegasse a ver na triste colisão
de apanhar pontapés ou dar meio tostão,
não se punha a hesitar; e (creia no que digo)
levava os pontapés até... até no umbigo.
Quando aí lhe morreu de fome uma jumenta,
chorou, e até pôs luto.

GUIOMAR
Era talvez parenta.

TOMÁS
E só se consolou, por ver que o sapateiro
comprava a pele.

GUIOMAR
E a carne?

TOMÁS
A carne, um chanfaneiro.
Quando este ano passado o vento co granizo
matou a uva em flor, turvou-se-lhe o juízo.

GUIOMAR
Se o tinha.

TOMÁS
Nisso tinha. E esteve decidido
a pendurar-se ali no parreiral despido.

GUIOMAR
Bom cacho!

TOMÁS
O que valeu (não houve outro embaraço)
foi achar muito caro o preço do baraço.

GUIOMAR
Pois verás mesmo assim se eu lhe não prego o calo.
Mas chitom, lá vem ele; abala.

TOMÁS
Abalo, abalo.

(Sai Tomás pela segunda porta da direita)

CENA VII

GUIOMAR e HARPAGÃO (que volta do jardim pela porta do fundo)

HARPAGÃO (à parte)
Por ora tudo está bem.
(alto) Ora salve-a Deus, Guiomar;
enfim; chegou; inda bem!

GUIOMAR
Viva.

HARPAGÃO
Mande-se assentar.

GUIOMAR
Não faz míngua; agradecida.
Este senhor Harpagão!
nunca vi na minha vida!
benza-o Deus! que rapagão!
Tomara-lhe eu a receita,
que não chegava a carcaça!
Que saúde tão perfeita!
que rostinho!

HARPAGÃO
Ora! tem graça!
não faça escárnio.

GUIOMAR
Quem? eu?
Pela minha salvação,
que nunca me pareceu
tão moço, tão guapo e são.

HARPAGÃO
Deveras?

GUIOMAR
Com dez mil veras.

HARPAGÃO
Qual! isso é brincar.

GUIOMAR
Não brinco.
Há moços de vinte e cinco
muito mais velhos.

HARPAGÃO
Quimeras.
Eu cá sinto no cachaço
a carga dos meus sessenta.

GUIOMAR
Sessenta, e mesmo setenta,
para um senhor como um maço,
que são? cá em nós, coitadas,
é que isso faz diferença.
Quem quiser ter boas fadas
há-de nascer homem.

HARPAGÃO
Pensa
que sessenta invernos...

GUIOMAR
Petas!
Sessenta, segundo eu acho,
são para um ditoso macho
o seu florir das violetas.

HARPAGÃO
Assim será; todavia,
com menos vinte este macho
por mais feliz se daria;
digo eu cá.

GUIOMAR
Também não acho;
olhe; o senhor Harpagão
(e não lhe estou com enganos)
é de uma tal compleição,
que há-de deitar aos cem anos.

HARPAGÃO
Hu!... tu!... tu!...

GUIOMAR
Ou cento e dez;
há muitos exemplos.

HARPAGÃO
Sim?

GUIOMAR
Pois não! eu entendo assim.
Para andar por balancés,
não digo: isso era demais;
mas enfim, para andar bem,
rir, comer, beber; se tem
todos todos os sinais!
Dê-me licença; desejo
observá-lo mais de perto;
não bula; aqui já lhe eu vejo
entre os olhos sinal certo.

HARPAGÃO
Que é? pois a tia Guiomar
também lê a buena-dicha?

GUIOMAR
Sou curiosa. A mão.
(pega-lhe a mão, e examina-lhe a palma)
Que bicha
esta linha a andar... a andar...
vai lá não sei até onde!

HARPAGÃO
Mostre, mostre, onde é?

GUIOMAR
Aqui;
depois toma por ali
e acolá é que se esconde.
Cento e dez dizia-lhe eu!
agora é que eu prego um trinco!
(dá um estalo com os dedos)
Figas, morte! senhor meu,
mais de cento e vinte e cinco.
E para maior certeza,
em casa o verei nas cartas.
Que idadezinhas tão fartas!
benza-o Deus! que fortaleza!

HARPAGÃO
Pois deveras sou tão forte?

GUIOMAR
O que eu de tudo isto infiro
é que se ria da morte;
só se o matarem a tiro.
Indícios dos mais seletos,
que não costumam falhar.

HARPAGÃO
Ora essa!

GUIOMAR
Há-de enterrar
bisnetos e tetranetos.

HARPAGÃO
Inda bem; dava-lhe agora...

GUIOMAR
O quê?

HARPAGÃO
Agradecimentos,
cum abraço, e um beijo.

GUIOMAR
Fora!
como é pródigo!

HARPAGÃO
Os momentos
são preciosos. Então
que há sobre os nossos arranjos?
vão bem?

GUIOMAR
Com Guiomar dos Anjos
haviam de ir mal? pois não!
Nisto de casamenteira
peço meças a qualquer.
Mau é que eu deveras queira.

HARPAGÃO
Mas vamos nós, a mulher
querer-me-á?

GUIOMAR
Devagarinho;
ouça-me; e julgue.

HARPAGÃO (dando-lhe, a rir, com dois dedos na face)
Cigana!

GUIOMAR
O nosso bendito anjinho...

HARPAGÃO
Qual?

GUIOMAR
Qual!? a Dona Mariana!
Tomou-me uma simpatia,
que nem lhe eu posso dizer.
Em me não vendo um só dia,
já perde o rir, e o comer.
Eu aproveito-me disso,
e vou quantas vezes posso.
Parece que até remoço
ao pé daquele feitiço!

HARPAGÃO
Por força.

GUIOMAR
A nossa conversa,
bem imagina o senhor
sobre que versa ou não versa.

HARPAGÃO
Sobre mim?

GUIOMAR
E sobre o amor.

HARPAGÃO
Sim?

GUIOMAR
Pois então!

HARPAGÃO
E ela! ela!

GUIOMAR
É bem curioso; em castigo,
por ora é que eu lhe não digo
o que tenho ouvido à bela.
Atenda, e tenha juízo.
Primeiramente entendi
que era decente e preciso
falar à mãe.

HARPAGÃO
Por aí,
por aí é que era a estrada;
sabe-a toda.

GUIOMAR
Nada! brinca!
pois o mais era dar cinca
logo na primeira entrada;
e às vezes, casinhos vêm,
em que reviro a mantilha,
falando primeiro à filha,
e só tarde ou nunca à mãe.

HARPAGÃO
E a mãe que disse?

GUIOMAR
Alegrou-se
que nem gato com bogalho.

HARPAGÃO
E uma notícia tão doce
não ma trazer logo!! eu ralho,
tia Guiomar.

GUIOMAR
O senhor
faz lá idéia da lida
em que ando há dias metida
por causa do negro amor?
Que azáfama! tudo casa,
e tudo cá vem bater.
Não tenho tido lazer
para vir à sua casa.
(com intenção)
E casamentos bem pagos!
Casei uma baronesa
cum almocreve de Lagos;
uma avó, com uma perna tesa;
um juiz, com um peixeira
um mono, e uma frangainha
de treze ou quatorze...

HARPAGÃO
E a minha?
que disse? que disse?

GUIOMAR
Queira
ter paciência, e já lá chego:
a mãe assim que lhe eu disse...

HARPAGÃO
Estou num desassossego!

GUIOMAR
que era bom que ela assistisse
hoje aqui às escrituras
dos outros dois casamentos,
pois eram dois anjos bentos
que lhe iam fadar venturas,
e que o senhor Harpagão
era o próprio que me tinha
para ela e Marianinha
dado esse recado...

HARPAGÃO (depois de uma pausa)
E então?
vem?

GUIOMAR (com cara alegre)
Vem, vem, cara magana.

HARPAGÃO
Ambas? Que santa Guiomar!

GUIOMAR
Ambas, não. Vem só Mariana;
a mãe já lhe custa a andar.
Fia de mim a menina
que eu sou-lhe muito obrigada;
isso é verdade.

HARPAGÃO
Ladina!

GUIOMAR
Trá-la esta sua criada;
mereço alvíssaras; hein?

HARPAGÃO (tossindo para fingir que não ouviu)
O caso é este, Guiomar;
hoje aqui há-de se dar
um beberete.

GUIOMAR
Acho bem.

HARPAGÃO
Para quem joga de fora
e não se vê nos tornilhos;
meto-me enfim nesta nora
para pôr com dono os filhos.
Quero ao meu genro futuro,
que é todo parlapatão,
fazer esta distinção.

GUIOMAR
Ele é já homem maduro;
não é?

HARPAGÃO
E podre de rico,
chama-se Anselmo.

GUIOMAR
Já sei.
um enxalmo, a penca em bico;
mora ao chafariz del-rei.

HARPAGÃO
Justo. Foi um achadão!
quintas, navios no mar!...

GUIOMAR
Quer dar-lhe então de cear?

HARPAGÃO
Deus me livre! cear, não;
bem sabe o nosso ditado;
e é certo: de largas ceias
’stão as sepulturas cheias.
Basta merenda.

GUIOMAR
Aprovado.

HARPAGÃO
Lembrou-me então, que não vindo
daí aumento à despesa,
ornar eu a minha mesa
co’aquele anjinho era lindo.

GUIOMAR
Cantou, que nem a sereia!
Pois bem; depois de jantar
cá lha trago.

HARPAGÃO
Olhe, Guiomar,
que é merenda, e não é ceia;
fale-lhe claro.

GUIOMAR
Entendi.
Pois a Dona Mariana...
a senhora Dona... (aqui
dobra-se a língua).

HARPAGÃO (lambendo-se de gosto)
Magana!

GUIOMAR
Faz tenção de vir primeiro
visitar cá a menina,
a enteadinha.

HARPAGÃO
E destina
passar a tarde?

GUIOMAR (rindo maliciosamente)
Matreiro!
destina passar a tarde
na feira, que está bonita,
e tornar.

HARPAGÃO
Então não tarde;
jantem lá qualquer coisita,
e venham cedo. De cá
para a feira (que é distância)
a nossa Mariana irá,
irão com toda a flamância
na minha sege, que faço
muito gosto em lha emprestar.

GUIOMAR
Pois tem sege!

HARPAGÃO (com um grande suspiro)
Sim, Guiomar.

GUIOMAR
Não sabia.

HARPAGÃO
É que no paço,
como eu lá tenho um emprego,
todos (e archeiros até)
riam de eu andar a pé,
e chamavam-me o galego;
vê? por isso é que eu caí
em mercar a capoeira,
e não fiz de todo asneira;
a sege está para aí
em nome de um moço, e às vezes
anda todo o dia fora
em serviço de fregueses.

GUIOMAR
Pois muito bem; vou-me embora.

HARPAGÃO
Espere: sondou a mãe
(às vezes, nem tudo acode)
sobre o que pode ou não pode
dar à filha? entende bem
que nestas ocasiões,
inda que a gente se torça,
tira da fraqueza força,
e alarga à bolsa os cordões.
Casar cuma rapariga
de todo em todo sem nada,
não é coisa que se diga,
nem é praxe costumada.

GUIOMAR
Ai! que ratão de encomenda!
Daí perca os seus cuidados;
tem mais de dez mil cruzados.

HARPAGÃO
De dote?!!

GUIOMAR
Pois não! de renda.

HARPAGÃO
Ora essa! e eu às escuras!
Explique-me isso, Guiomar.

GUIOMAR
Não tem muito que explicar;
contas claras e seguras;
senão, calcule: a primeira
é que ela in verbo comer
não é nada invencioneira.
Chego-me até a benzer
de ver o seu passadio!
uns feijões e uma sardinha;
batata e bacalhau frio;
e isto sem sumo de vinha;
aqui estão os seus jantares;
grande coisa é a criação!
Outras sem grandes manjares,
sem massas com parmesão,
pombos, perus, empadinhas,
arroz de substância, Porto,
doces, frutas...

HARPAGÃO
Que bestinhas!

GUIOMAR (continuando)
é logo focinho torto.
Prescindir de tudo aquilo,
cristais, criados de mesa,
muita prata, e cera acesa
em honra do gorgomilo,
deixa ao canto da gaveta
anualmente, pelo baixo,
oitocentos mil réis. Acho
que inda o cálculo é forreta.

HARPAGÃO
Adiante.

GUIOMAR
De catita
não tem nada; muito asseio
isso sim, mas sempre chita
ou paninho. Aqui no seio
qualquer florinha, se a há,
de graça; e outra aqui.
(apontando para o cabelo)
Diz ela
que o luxo a quem não é bela
inda mais feia a fará;
por isso aborrece as modas,
modistas, rendas, brilhantes,
vestidos de grandes rodas,
penteados coruscantes,
pós d’ouro, sinais, unturas,
aromas de toda a casta.
Fê-la Deus assim; não gasta
lá com essas imposturas.
Isto na roda do ano,
(como que calculando mentalmente)
sedas, toucados, anéis,
mete em caixa, (não me engano)
uns bons dois contos de réis.
Jogar, não joga, que o jogo
(diz ela) é o que mais arrasa;
mulher jogadora em casa
é pior que um grande fogo.
No andar por baixo do meu
mora uma, e nem dois pontos
sabe dar, a qual perdeu
no outro ano ao jogo seis contos.
Foi coisa muito falada;
por tal sinal, que o marido
endoideceu.

HARPAGÃO
Não duvido;
e deu-lhe muita pancada;
não deu?

GUIOMAR
Qual deu! atirou-se
ao poço, que é muito fundo.
Desgraças vão pelo mundo
co tal joguinho!! Eu se fosse
varão, casar não casava
(nem por um milhão que fora!)
cuma mulher jogadora;
antes cuma gata brava.
Tornando ao ponto: já quero
pôr a perda por metade;
ponho três contos; não há-de
dizer-me que lhe exagero.
Na economia co buxo
tínhamos nós oitocentos;
cos tais dois contos do luxo,
dezoito; cos acrescentos
poupados da jogatina,
é mais de dez mil cruzados;
quatorze mil bem contados,
e mais quinhentos. Que China!

HARPAGÃO
Com que a tal renda anual
era isso?

GUIOMAR
E então?

HARPAGÃO
Então?!
Pois alguém dá quitação,
não tendo visto real?
Metam-me o dedo na boca!
engana preto com gaita!
Não jogar, comida pouca,
e não andar sirigaita
isso vê-se?! isso chocalha?!!
isso encartucha-se?!!!

GUIOMAR
Bom;
se só crê no que dá som,
também há.

HARPAGÃO
Pois venha à balha;
por aí é que devia
principiar.

GUIOMAR
Pois senhor,
não sei se ao pé de Leiria,
Coimbra, ou Penamacor,
ouvi a modo que tinha
muito de seu: pinheirais,
vinhas, gados, olivais,
(se lhos deixar a madrinha).

HARPAGÃO
Pois sim, sim, depois veremos.
Agora, minha Guiomar,
um ponto mais grave temos
em que será bom falar.
Mariana é uma criança;
pois não é?

GUIOMAR
Por certo que é.

HARPAGÃO
Lé com lé e cré com cré;
sempre ouvi; esta aliança
talvez que lhe não agrade!

GUIOMAR
Agrada, fique seguro.

HARPAGÃO
Um homem da minha idade!
e se lá para o futuro...
sei cá!...

GUIOMAR
Lembrou muito bem.
E a mim que já me esquecia
falar-lhe disso também!
e mais na idéia o trazia!
Ninguém, ninguém imagina
a mania singular
que tem aquela menina
lá nesse particular.
Eu quando era rapariga
nunca tive tal aquela.
Gente moça para ela?
pois não! faz-lhe logo figa;
só gosta de velhos.

HARPAGÃO
Essa
inda eu estava para ouvir!
explique-me isso depressa:
pode ser? está-se a rir!!

GUIOMAR
Custa a crer, bem vejo, custa;
mas ouvi-lho eu mesmo a ela.
Um ancião de cara augusta,
neve a barba, o casco à vela,
val mais que uns impertinentes
torcidos, alfanadinhos,
de queixos barbiponentes,
e cabelos carapinhos!
nunca os vê sem cuspir fora;
chama-os bonecos de feira;
tem lá aquela cenreira;
vê? são gênios.

HARPAGÃO
Ora! ora!
nunca imaginei. Tem graça
o diabrete, e siso.

GUIOMAR
Olé!

HARPAGÃO
Bom.

GUIOMAR
Com ela não se faça
mais rapazinho do que é;
não queira o caldo entornado;
mostre-lhe bem ter sessenta,
e inda mais.

HARPAGÃO
Estou pasmado!

GUIOMAR
Também eu pasmei; assenta
que eu era como ela em nova?
pois não! mesmo agora (e estou
com estes pés para a cova)
prefiro os moços. Tomou
lá aquela antipatia
cos rapazes; que lhe quer?

HARPAGÃO
Alguma algum lhe faria.

GUIOMAR
Pois não! achou-a; é mulher
que infunde a todos respeito;
mas quer saber? uma vez,
pedindo-a um certo sujeito,
se bem me lembra irlandês...
irlandês? não era, não;
cuido que era italiano,
francês, ou hanoveriano;
fosse o que fosse; alemão;
alemão é que era (e isto
correu pela minha mão;
afirmo-lho, por ter visto
com estes que inda aqui estão)
ao assinar da escritura,
vemo-la a nós cor de goivo!

HARPAGÃO
A Marianinha?

GUIOMAR
A futura,
sim senhor, por ver que o noivo
só tinha cinqüenta e oito,
e lia sem pôr cangalhas;
apesar de ter biscoito,
e as barbas já bem grisalhas,
e tomar muito simonte,
roeu-lhe a corda; o infeliz
ficou, como o outro que diz,
como o esparguinho no monte.

HARPAGÃO
É célebre!

GUIOMAR
Isso é.

HARPAGÃO
Juízo
até hi.

GUIOMAR
No quarto dela
vê lá painéis de Narciso?
ou de Adônis? Uma cela
de abadessa escrupulosa
não tem maiores recatos;
os seus painéis são retratos
só de gente muito idosa;
o pai Adão já na espinha,
Matusalém, Abraão,
Noé de gatas na vinha,
e outros que tais.

HARPAGÃO
Sem questão
é tal e qual como eu sou.
Pois quem pode suportar
esses cabeças de grou,
esses focinhos no ar,
vaidosos, pintalegretes,
que por terem vinte e tantos
se julgam logo uns encantos?
Que fatos! e que topetes!
provocam-me cada engulho!
antes um velho saloio.
Cá isto é trigo sem joio;
e eles palhiço, e gorgulho.

GUIOMAR
Diz muito bem. Homem, isso.
Que figura! que vigor!
desempenado, maciço!
Passeie, faça favor.
(Harpagão passeia todo empertigado)
Vejam-me aquilo! direito
como um fuso; a cabecinha
mais alta; olhe bem a minha.

(Aqui podem fazer ad libitum o que se chama um jogo de cena, executando Guiomar com modos de homem os movimentos e posições que recomenda a Harpagão, imitando-a este, sem esquecer que se trata de namorar à antiga, olho piscado, lencinho ao nariz, etc.)

HARPAGÃO
Assim?
(continua a passear com a cabeça muito levantada)

GUIOMAR
Assim. Que perfeito!
Inda bem que a minha idade
já não é de tentações.

HARPAGÃO
Hei-de agradar-lhe?

GUIOMAR
Olé! se há-de!
eu, tendo tais perfeições,
se fosse ao senhor, havia
mandar tirar o retrato,
e dava-lho.

HARPAGÃO
É mais barato
dar-lhe o original.

GUIOMAR (à parte, mas com um suspiro, e querendo ser ouvida)
E eu tia!
Cada um para o que nasce.
Aquela é que teve dita;
não ser eu moça e bonita!

HARPAGAO
A coisa portanto faz-se;
não acha?

GUIOMAR
Ai! posso jurá-lo.
E a saudezinha?

HARPAGAO
Boa.
Não há mais cá na pessoa
que o reumático, algum calo,
e o catarro.

GUIOMAR
Bagatelas!
Isso que admira em varões?
mostre-me uma entre mil belas
que não tenha os seus senões.
(Harpagão tosse)
Catarro! catarro! eu digo
que nem quero tal ouvir.
O senhor tem no tossir
uma tal graça consigo...

HARPAGAO (continuando a tossir)
Terei, mas é pesadinha.

GUIOMAR
Lá isso é que ninguém vê.

HARPAGAO
Mas diga-me cá você,
tia Guiomar, a lindinha
terá reparado em mim
quando lhe eu passeio a rua?
conhece-me bem?

GUIOMAR
Sim, sim,
conhece; que teima a sua!
forte idear impedimentos
a uma ventura tão certa!
Tem sempre a janela aberta,
e os olhinhos muito atentos,
a ver se o bispa. É verdade;
sabe quando é que ela o viu
a vez primeira, e sentiu
render-se-lhe a liberdade?
foi uma tarde de abril;
chovia, se Deus a dava!
todo o ar era um fuzil,
trovões, pedrisco...

HARPAGÃO
E ela estava
cum tempo assim na varanda?

GUIOMAR
Sortes já predestinadas;
venturas que Deus nos manda
no meio das trovoadas!
Vinha o senhor Harpagão
rua abaixo, mui direito,
co seu corpinho bem feito,
cana da índia na mão,
e apesar da água do céu,
e do frio que era imenso,
carola ao vento, e o chapéu
embrulhadinho no lenço.
Tal rasgo de economia
fez-lhe tão viva impressão,
que ficou desde esse dia
mortinha do coração.
A cada instante mo jura,
e nunca, nunca mo diz
que não chore de ternura,
que parece um chafariz!
E eu sempre mais lenha ao lume,
que não se apague.

HARPAGÃO
Obrigado.

GUIOMAR
Ponho nisto mais cuidado
do que ela e o senhor presume.

HARPAGÃO
Deixe estar que inda algum dia
espero talvez pensar
em lhe dar provas, Guiomar,
do que eu sou em bizarria!

GUIOMAR
Quem o duvida? o pior
é que antes desse futuro
me acho hoje num tal apuro,
que nunca o tive maior.
(Harpagão tosse fingindo que é da sua asma)
Trago aí uma demanda
que, se a tempo não lhe acudo
com dinheiro (que é quem manda)
perco-a a ela, e foi-se tudo.
O senhor é que podia
valer-me nesta aflição.
(Harpagão repica mais a tosse)
Mariana inda hoje o dizia:
como o senhor Harpagão
não há outro. O regozijo
que ela há-de ter quando entrar
por hi dentro coa Guiomar!
(Harpagão alegra-se e cessa de tossir)
e o vir tão flamante e rijo,
coa sua venera ao peito,
co seu rabicho às laçadas,
seu chapéu às três pancadas,
um antiquário perfeito!

HARPAGÃO
Ouvir isso e chupar favos
tudo é um.

GUIOMAR
Não ter de meu
hoje nem sequer dois chavos!
O escrivão, que é um fariseu,
se não lhe unto as mãos já já,
há-de tocar os pausinhos;
depois açudam-lhe lá!
asno morto, adeus vizinhos!
(Harpagão escuta-a de viseira caída)
Eu não queria, senão
que pudesse haver maneira
para o senhor Harpagão
espreitar a feiticeira,
quando está lá só comigo
bordando ao seu bastidor!
O que ela diz e o que eu digo
a respeito do senhor!
Parece mesmo doidinha,
à espera da benta hora
em que há-de vir por hi fora,
que nem princesa ou rainha!
vestido de fustão novo!
c’roa de flor de laranja!
sem galas vindas da estranja,
que é isso o que eu mais lhe louvo!

HARPAGÃO
E eu também.

GUIOMAR (em tom suplicante)
Meu freguesinho!
pela boa sorte dela
que me valha!
(Harpagão torna-se a anuvear; Guiomar, que o vê, fala consigo)
Ih! que focinho!

HARPAGÃO (à parte)
É sanguessuga esta adela.
(torna a tossir sobreposse)

GUIOMAR (alto)
Salve-me da tentação
em que estou (cruzes! diacho!)
de me atirar como um cão
de alguma trapeira abaixo!
seja meu pai, seja, seja,
que bem o pode! O chupista
com duas peças à vista
tenho fé...

HARPAGÃO
Pois veja, veja
se as arranja. Estou com pressa,
que são horas do correio;
preciso obter uma peça,
e tenho a carta inda em meio.

GUIOMAR
Nunca me vi tão aflita!

HARPAGÃO
Vá, e não tardem; a feira
diz que este ano está bonita;
e contem coa capoeira.

GUIOMAR
Pelo amor de Deus lhe rogo,
meu senhor...

HARPAGÃO
Faça de conta
que em voltando é logo logo
a nossa merenda pronta.

GUIOMAR (simulando a maior aflição)
Mal sabe...

HARPAGÃO
Adeus! regalório!

GUIOMAR
Salve-me.

HARPAGÃO
Viva, Guiomar.

GUIOMAR
Não fuja...

HARPAGÃO
Estão-me a chamar.
(grita para dentro)
Eu vou! cá vou! (à parte) Que oratório!
(Sai pela porta do fundo)

CENA VIII

GUIOMAR só (voltada para a porta por onde Harpagão desapareceu)

O diabo te leve, a asma que te abafe,
um raio que te parta, um touro que te estafe,
um credor que te apanhe, um fila, mas danado,
às pernas se te aferre, esqueleto esbrugado!
pantesma! fona! vil! cainho! sem vergonha!
tolo! e queres amor com essa carantonha!?
sume-te, coisa má! eu te enguiço! eu te enguiço,
bruxo velho, socancra, imundo! má sumiço
te leve, unhas de fome! inda querias Sintra
e lua de melado? espera lá, pelintra!

CENA IX

A mesma, JÚLIO e TOMÁS (que deitam a cabeça para fora, o primeiro da primeira porta da esquerda, o segundo da segunda da direita)

TOMÁS
Sempre pescou, tiazinha?

JÚLIO
Senhora Guiomar!

GUIOMAR (para o lado de Tomás)
Que é lá?
(voltando-se para o lado de Júlio)
Quem me chama?

JÚLIO (estendendo para ela o braço, com uma peça de ouro, e entregando-lhe após a peça três cartas umas atrás das outras)
Hoje é que eu tinha
mais pressa. Esta carta já;
e mais esta; e também esta.
Não quero senão Mariana;
dou baixa às mais.

GUIOMAR
Não se engana?

JÚLIO
Servir a doidas que presta?
digo à vadiice adeus.

TOMÁS
Mas então pescou, pescou?

GUIOMAR
Pesquei um diabo; estou
mais perra que dez judeus.

TOMÁS
Não pescou.

GUIOMAR (batendo com as cartas na mão com a maior intimativa)
Arrebentada
acabe Guiomar dos Anjos,
se o rei dos velhos macanjos
ma não pagar bem pagada.

HARPAGÃO (chamando apressadamente da banda do quintal, mas ainda sem ser visto)
Ó Guiomar! Guiomar!

JÚLIO
Ai!

TOMÁS
Fujo.
(Desaparecem os dois, ao mesmo tempo que já se avista Harpagão à porta do fundo)

GUIOMAR
Lá me torna o centopéia.
(Sai arrebatadamente pela primeira porta da direita, fazendo traquinar rijo as campainhas. Quando se acha já da banda de fora exclama)
Renego do porco sujo!

HARPAGÃO (tornando a abrir a mesma porta)
Venham breve. E não é ceia.


ATO TERCEIRO

CENA I

HARPAGÃO, JÚLIO, LUÍSA, DUARTE, CLAUDINA, de vassoura de pau ao ombro; SEBASTIÃO e MEALHADA

HARPAGÃO
Vamos lá, muito sentido
nas ordens que lhes vou dar:
quer-se tudo em seu lugar;
e o bródio o mais bem servido.
(para Claudina)
Começo por ti, Claudina;
bem; já vens coa arma pronta;
deixo o asseio à tua conta;
varre, casqueia, examina
não fique algum cortinado
das aranhas. A limpeza
Deus a amou, diz o ditado
(quando não entra em despesa).
Toda a mobília esfregada,
mas com amor (está visto);
fica a teu cargo além disto
a mesa bem preparada.
Louça, talheres, garrafas,
tudo a ponto; e já to digo:
se houver quebras coas moafas,
depois te hás-de haver comigo:
desconto-to nas soldadas,
mais duro que ossos; verás.

SEBASTIÃO (à parte)
Lá disso é ele capaz;
e até de multas dobradas.

HARPAGÃO
Andar já, Claudina; à vida.
(Sai Claudina pela segunda porta da direita)

CENA II

Os precedentes menos CLAUDINA

HARPAGÃO
Mealhada, Sebastião,
vocês os dois ficarão
co encargo da bebida.

MEALHADA
De bebermos?

HARPAGÃO
Faz-se tolo!
De dar de beber à gente;
porém com modo prudente,
que não se turve o miolo.
Muitos criados de mesa
têm a maldita mania
de andar numa roda acesa
perseguindo a companhia.
Mal um pobre convidado
vazou o seu copo, bumba!
é logo outro cheio; a tumba
que lhe agradeça o cuidado.
Cá em casa é que eu não quero
desgraças dessas; se alguém
pedir de beber, mui bem;
dêem-lhe; inda assim não tolero
que seja logo à primeira;
a primeira muita vez
é engano do freguês;
esperem pela terceira.
E água bastante no vinho,
que a água é que não faz mal;
o homem e o irracional
só os dif’rença o juizinho.

MEALHADA
Tiramos o balandrau?

HARPAGÃO
Pois então? isso é decente?
mas basta em chegando gente;
por hora assim não está mau;
fato bom quer-se poupado.

SEBASTIÃO
Lembro a vossa senhoria
que o meu casaco outro dia
ficou aqui todo untado
cuma larada de azeite
daquele candeeiro roto.
(indicando o candeeiro pendente ao meio da sala)

HARPAGÃO
Que esperdício! que maroto!
não sei disso; lá se ajeite.

MEALHADA
Vossa senhoria sabe
como eu tenho as calças novas.

HARPAGÃO
É do muito que as escovas.

MEALHADA (continuando)
Rotas atrás, que lhe cabe
este meu punho fechado.

HARPAGÃO
Não sei; deita-lhe uma rede,
ou serve sempre virado
de costas contra a parede.
(Faz o mesmo que lhe recomenda para ensinar com o seu exemplo)
Já se não vê. (Para Sebastião) E tu lá!
a nódoa pode ocultar-se
co chapéu; traz-se ao disfarce;
assim.
(exemplifica-lhe comicamente o preceito)
Muda-te-me já.
(Sai Mealhada pela segunda porta da direita)

CENA III

Os mesmos menos MEALHADA

HARPAGÃO
Tu, Luísa, olhinho atento,
do princípio ao fim da festa,
fazendo de cor assento
do que resta ou que não resta;
muitas vezes cos sobejos
mantém-se uma casa dias.

LUÍSA
Tenho pejo...

HARPAGÃO
Olha que pejos!
de fazer economias!!
Há coisa que melhor fique,
e mais proveitosa seja
a quem casar se deseja?

LUÍSA
Mas...

HARPAGÃO
Já disse, e não replique.
E agora vá-se arranjar,
que tem logo uma visita;
vem aí a Marianita
com a senhora Guiomar,
para irem todas três
à feira.

LUÍSA
Pois sim, meu pai.

HARPAGÃO
Sempre é tua mãe, bem vês;
deves comprazer-lhe. Vai.

LUÍSA (à parte, sorrindo furtivamente para Júlio e Duarte, e já a caminho para sair pela segunda porta da esquerda)
A mãe da idade da filha!
pois hei-de a amar eu também,
(o mano Júlio é quem brilha
quando eu falar coa tal mãe).
(Sai pela segunda porta da esquerda)

CENA IV

Os mesmos menos LUÍSA

HARPAGÃO
Júlio, olhe cá você: enfim, sou pai, e esqueço
o agravo e a ingratidão do seu furioso excesso;
mas noutra não me caia; intimo-lhe se porte,
coa dama em quem seu pai respeita uma consorte,
cortês, obsequioso, amável, cavalheiro;
nem sombra de má cara. É pobre de dinheiro,
bem vejo; mas no mais, em tudo mais, não acho
quem lhe deite água às mãos; e tem juízo macho.

JÚLIO
Eu fazer-lhe má cara! em toda a minha vida
nunca a damas a fiz; por quê? meu pai duvida?

HARPAGÃO
Não duvido de nada; o que eu digo é que às vezes
quando um viúvo casa, há filhos tão más reses,
que o tomam em trambolho; e monstros de tal casta,
que à sua nova mãe dão nome de madrasta.

JÚLIO
Nunca lho eu chamarei.

HARPAGÃO
E ela (fia-te em mim)
nunca te há-de chamar senão seu Benjamim;
bem que em geral a anoje a muita mocidade,
há-de fazer contigo uma exceção; oh! se há-de!
Para a render de todo, o ouro sobre o azul
sei eu como era.

JÚLIO
Como?

HARPAGÃO
O andar menos taful.

JÚLIO
Isso para depois. Agora o seu preceito
de a tratar muito bem, completamente o aceito.
(Sai pela segunda porta da esquerda)

CENA V

HARPAGÃO, DUARTE e SEBASTIÃO

HARPAGÃO (baixo para Duarte)
Hás-de ajudar-me, Duarte.
(alto) Vem tu cá, Sebastião;
quis para o fim reservar-te
de propósito.

SEBASTIÃO
O patrão
a quem é que vai falar?
ao Sebastião cozinheiro,
ou ao Sebastião cocheiro?

HARPAGÃO
Aos dois Sebastiões.

SEBASTIÃO
A par
não pode ser. Um dos dois
há-de, apesar do conjunto,
ir primeiro, o outro depois;
qual o primeiro? pergunto.

HARPAGÃO
O cozinheiro.

SEBASTIÃO
Paciência,
queira esperar um momento.
(despe o sobretudo de cocheiro, e fica em traje de cozinheiro)

HARPAGÃO
Que história é essa?

SEBASTIÃO
Apresento
mestre-cuque na audiência.
Fale vossa senhoria.

HARPAGÃO
Pois, mestre Sebastião,
saberá que hoje há função
cá em casa.

SEBASTIÃO
Não sabia.

HARPAGÃO
Dou um bródio.

SEBASTIÃO
Ceia lauta?

HARPAGÃO
Merenda, apenas merenda.

SEBASTIÃO (à parte)
Já me eu admirava!

HARPAGÃO
Atenda;
risquemos bem esta pauta;
a coisa é séria.

SEBASTIÃO
E mui séria.

HARPAGÃO
Um bom festim; fá-lo-ás?

SEBASTIÃO
Sou muitíssimo capaz;
venham pintos sem miséria,
verá que mesa lhe eu ponho.

HARPAGÃO
É sempre aquilo: dinheiro!
muito dinheiro! suponho
que julga que eu sou mineiro.
Olha que grande milagre
fazer galinhas de pintos?
até eu, mestre vinagre!

DUARTE (baixo para Harpagão)
Atire esse mono aos quintos.

HARPAGÃO (baixo para Duarte)
Quando este se me acabar,
não quero mais cozinheiro.
(alto para Sebastião)
Bruto! a glória era arranjar
muito por pouco dinheiro.

SEBASTIÃO
Barato e bom?

DUARTE
Sim senhor;
bom e barato; pois quê?

SEBASTIÃO
Pois faça-o sua mercê,
se é capaz; faça favor;
tome a seu cargo a cozinha
que eu sem saudades lha largo.

DUARTE
Se eu a tomasse a meu cargo..
outro galo...

SEBASTIÃO
Adeus, vizinha;
temos conversado; estou
a modo já não sei como!
desde que aí se encaixou
este tal senhor mordomo,
é ele quem quer ser tudo,
e quer de tudo entender.

HARPAGÃO
Cale essa boca.

SEBASTIÃO
Estou mudo;
pois tinha bem que dizer!

DUARTE
Então diga-o.

SEBASTIÃO
Digo?

DUARTE
Diga;
desembuche.

SEBASTIÃO
Não me acirre;
olhe que eu falo.

DUARTE
Prossiga.

SEBASTIÃO
Deixe-me, homem, não embirre.

HARPAGÃO
Que tens tu que lhe dizer?

SEBASTIÃO
Tenho, senhor Harpagão:
que na minha obrigação
não se torne a intrometer.
Vai lá abaixo por costume
gritar que se poupe o sal,
tirar-me carvão do lume,
pôr tudo num badanal.
Já estive por duas vezes
de acha na mão, vai não vai,
que se dali me não sai
cheirava-lhe a camoeses.
Qué-lo mais claro?

HARPAGÃO
E a razão
estava da sua parte.

SEBASTIÃO
Nas coisas da minha arte
não torne ele a pôr a mão.

DUARTE (à parte para Harpagão)
Tudo, só porque abomino
ver desperdícios!

SEBASTIÃO
Já disse:
trate lá da mordomice,
e não se me faça fino.
Mas vamos nós: o brekfeste
como quer então que seja?

HARPAGÃO
Coisa barata, e que preste;
propõe tu.

SEBASTIÃO
Lembro isto; veja:

(Durante a seguinte fala de Sebastião, os três atores fazem um curioso jogo de cena, porque à proporção que o cozinheiro está de olhos no teto e unha no dente considerando a lista das iguarias, e por isso sem atentar nos outros dois, Duarte vai fazendo gestos cada vez de mais furioso, e Harpagão cada vez de mais divertido. Duarte dá mostras de querer atirar-se a Sebastião, e Harpagão segura-o pelo braço a rir.)

Primeira entrada: rabiolos,
couve-flor à provençal,
maionesa com miolos,
borrachos, frangos, e tal.
Segunda entrada: crevetes
com molho russo; lampreia,
salmão à turca, e croquetes,
um pastelão com grangeia;
uma matelota inglesa,
um gigote à prussiana,
um volovam à princesa,
um chocolate da Havana.
Sobremesa: sobremesas
temos nós (vai rol sucinto,
para fugir de despesas)
doce, passas de Corinto,
frutas, e queijo, e champanhe,
licores, café, pralinas.

DUARTE (à parte, para Harpagão)
Mato-o?

HARPAGÃO (à parte, para Duarte)
Não; se o exterminas
não sei onde igual se apanhe.
Bom doido!

DUARTE
E envenenador.

HARPAGÃO (como acima)
Matava-me os convidados.

DUARTE
Depois de morto o senhor,
e reduzido a guisados.

HARPAGÃO (alto para Sebastião)
Tudo isso é muito bonito;
merece os maiores gabos.
Mas vai-te com mil diabos
co teu menu. Meu Duartito,
que propões?

DUARTE
Temos o galo,
que aí anda a pastar na rua;
podíamos recheá-lo,
e impingi-lo por perua.

HARPAGÃO
Que mais?

DUARTE
Pois quer mais? salada.

HARPAGÃO
Que mais? vem Dona Mariana,
bem vês.

DUARTE
Lembro uma chanfana
de orelheira e feijoada;
é um prato que empanzina,
e dispensa tudo mais;
em atenção à menina,
vão lá mais esses reais.
Sobremesa, tangerinas
(que as há no quintal à farta);
são próprias para meninas,
e não carregam a carta.

HARPAGÃO
Fiquemos nisso; e de flores
na mesa a maior fartura;
tantos cheiros à mistura
e tão variadas cores
fazem que a gente se esqueça
do comer e do beber.

DUARTE
Senhor Harpagão, com essa
deu-me um quinau de tremer.
Chanfana, salada e galo
bastam portanto, e é demais;
não se arrasam cabedais,
e brilha muito o regalo.
Quantos hão-de ser à mesa?

HARPAGÃO
Oito ou dez.

DUARTE
Bem; a comida
que é para oito, bem servida
chega a dez.

HARPAGÃO
Pois com certeza.

SEBASTIÃO (à parte)
Cambalhota no rifão.

DUARTE (para Sebastião)
Que rosna você?

SEBASTIÃO
Eu nada.

DUARTE
Cuida talvez, mestre empada,
que é bom comer muito?

SEBASTIÃO
Eu não.

DUARTE
Nem ele há coisa pior:
indigestões, estupores
(tome bem isto de cor
para seu governo), dores,
cólicas, apoplexias,
mau saibo, cabeça obtusa,
pesadelos, dispepsias...

SEBASTIÃO
O que ali vai! corre a musa.

DUARTE (continuando)
Quebreira de corpo; em suma,
quanto há mau tudo origina
a maldita gulosina.

HARPAGÃO
Ai! sem dúvida nenhuma.

DUARTE
E já não falo nos gastos.

HARPAGÃO
Que isso é o que não tem cura;
fica uma casa de rastos;
até o diz a escritura.

DUARTE
Foi dito de um sábio antigo:
é comer para viver,
não viver para comer.

HARPAGÃO
Grande sábio era esse amigo.

SEBASTIÃO
E talvez fosse algum bruto
quando comia sozinho;
como os que ralham do vinho
depois do copázio enxuto.
Lá com sentenças de sábios
ninguém me embaça. Que pensa?

HARPAGÃO
Quem foi que soltou dos lábios
essa divina sentença?
Talvez Salomão.

DUARTE
Não sei;
não me lembra, mas seria.

HARPAGÃO
Com que o tal sábio dizia...

DUARTE
Tal qual o que lhe citei.

HARPAGÃO
É viver para comer.

DUARTE
Viver para comer — não.

HARPAGÃO
Enganei-me; tens razão;
é comer para viver.
Bem; na casa do jantar,
para impedir barrigadas,
hei-de o mandar entalhar
em maiúsculas d’our...adas.

(Harpagão ia dizendo por engano "maiúsculas d’ouro" e emenda a palavra no meio, e ainda a tempo)

DUARTE
Pelo que toca à merenda,
tomo eu tudo a meu cuidado.

HARPAGÃO
Assim; fico descansado.

SEBASTIÃO (à parte)
E também eu; é fazenda.

HARPAGÃO (para Sebastião)
A sege limpa.

SEBASTIÃO
Aí vou já;
isso agora é co’o cocheiro.
(Torna a vestir a libré)
Pronto; que me ordena?

HARPAGÃO
Está
bem limpa a sege?

SEBASTIÃO
E o palheiro
também.

HARPAGÃO
Cale-se. Tem de ir
levar esta tarde à feira
três damas.

SEBASTIÃO
Na capoeira?
coa parelha?! está-se a rir.
Os cavalos, coitadinhos,
não digo que estão de cama,
porque a não têm; têm só lama;
’stão ali ’stão cos anjinhos.
Podem lá sair!! só vê-los
corta os fios d’alma à gente;
são dois montinhos de pêlos
que estão para ali. (Chora)

HARPAGÃO
Doente
a minha parelha?

DUARTE (à parte para Harpagão)
Qual!
quimeras! não creia.

HARPAGÃO
E não.

SEBASTIÃO
Metam-na à sege, e verão.
Meta-a antes no hospital.
Fazer mal aos animais...

DUARTE
Bem se sabe.

SEBASTIÃO
Cá por mim,
tratar o próximo assim
repugna-me.

DUARTE
Isto é demais:
se não quer ir à boleia
não faltará quem o faça.

SEBASTIÃO
Belo. Entrego-lhe a almofaça,
e lá se avenha.

DUARTE
Não creia,
senhor Harpagão, repito,
nestas exagerações.
Tem dois soberbos frisões,
e de um vigor infinito;
podem ir daqui à Rússia.

SEBASTIÃO (sorrindo)
Podem, se for num caixão.

DUARTE
Sabe as manhas desta súcia;
de palha, de verde, e grão,
andam sempre esfomeados;
lá se entendem.

SEBASTIÃO
Meu amigo,
há criados e criados.
Não jogue dessas comigo,
se tem amizade às costas.
Já o aviso.

DUARTE
Agradecido.
Com que então, fazes-me em postas
se eu?...

SEBASTIÃO
Duvida? e eu não duvido.
Supor que eu furte aos cavalos,
eu que já tenho chegado
a arrancar para esteiá-los
da própria boca o bocado!
Não lhe estou com mais aquelas.
Eles e eu...

DUARTE
Que somam três.

SEBASTIÃO (sem fazer caso da interrupção)
parecemos (quanta vez!)
a chorar três Madanelas;
tudo coa fome! O rabão
ontem, já quase nas vascas,
fez um olhar de aflição,
só de ouvir folhas e cascas,
Não digo mais nada. Agora
se querem deles dar cabo,
que o dêem; espicham o rabo;
acabou-se; e eu vou-me embora.

DUARTE
Ih! que desgraça tamanha!
perde-se o rei dos cocheiros;

SEBASTIÃO
Mas fica o mestre da manha;
fica a flor dos lisonjeiros;
o mordomo espertalhão.

HARPAGÃO
Basta; basta; nem mais pio.

SEBASTIÃO
Tantos zelos! desconfio
de tanto zelar, patrão;
Deus me perdoe! tudo aquilo,
que o não faz pobre nem rico,
leva alguma água no bico.
Quer-lhe agradar e iludi-lo;
o para quê não sei eu;
mas que ele o tenta é de fé.
Chego-me a danar até
de ver a baixa que deu
o respeito de meu amo,
desde a entrada deste amigo;
porque eu (sem lisonja o digo)
ao senhor venero e amo;
amo e venero ao senhor,
(para si mesmo)
(apesar de andar faminto)
quase tanto como sinto
às nossas bestas amor.
Que lhe quer? são simpatias;
birrei para aqui.

DUARTE
Bem sei.

SEBASTIÃO
Não uso lisonjarias:
mas lá que birrei, birrei.
Tanto, que ouvindo a insolência
com que falam desta casa,
até perco a paciência.

HARPAGÃO
Pois que dizem?

SEBASTIÃO
Põem-no à rasa.

HARPAGÃO
Faze favor de explicar-te;
que têm que dizer de mim?
Não ouves isto, Duarte?

DUARTE
Deixe falar.

HARFAGÃO
Mas enfim...
que é que dizem? quero, mando,
que te expliques.

SEBASTIÃO
Para quê?
para se agastar?

DUARTE
Não vê
que ainda o está inventando?
dê-lhe tempo.

SEBASTIÃO (à parte)
Este maldito!
se agarro o pau da boleia
sempre leva uma tareia...
(alto) Senhor Harpagão, repito
que se lhe eu contasse tudo
quanto se diz do senhor,
danava-se.

HARPAGÃO
O falador
timbra-me agora de mudo;
por obséquio, desembucha,
desejo tudo saber.

SEBASTIÃO
Quer? (à parte) Eu vou ver uma bruxa.

HARPAGÃO
Quero, e até me dás prazer.

SEBASTIÃO
Já que o deseja, e me obriga,
e promete não zangar-se,
aí vai tudo sem disfarce.

HARPAGÃO
Era já tempo.

DUARTE
Vá, diga.

SEBASTIÃO
Pois bem: para toda a gente,
mesmo em casas mui capazes,
meu amo é continuamente
a tourinha dos rapazes.
Todos nós, os seus criados,
andamos até corridos
cos ditos desaforados
que vêm aos nossos ouvidos.
— É tal pinga — dizem uns
que em atenção à cozinha,
acrescentou na folhinha
as têmporas e os jejuns.
Outros, que em chegando o prazo
de amêndoas ou pão por Deus,
arma tais pegas cos seus,
que tudo em casa vai raso;
por modo, que a boa usança,
tão digna de se observar,
o pão por Deus e o folar,
nem passam pela lembrança.
Este afirma que uma vez,
por um carapau furtado,
foi por meu amo citado
um pobre gato maltês.
Que à missa é todo fervores,
com os olhos sempre pregados,
não nos bem-aventurados,
mas só nos seus resplendores.
Que em noites que não faz lua
o tem visto à faca sola
sozinho de rua em rua
chorando a pedir esmola.
Aquel’outros, que o senhor
de outra vez chegou até
a descer, pé ante pé,
alta noite...
(Pára, não se atrevendo a progredir)

HARPAGÃO (incitando-o a ir por diante)
Onde?

SEBASTIÃO
Que horror!
numa noite endiabrada
de trovões...
(reparando na cara de riso de Duarte)
Aquele ri-se?
desceu à cavalharice,
descalço, a empalmar cevada
da ração posta aos brutinhos,
que estavam entusiasmados
a regalar os focinhos
com quatro grãos avariados.
Por sinal, que foi sentido
pelo moço da boleia,
que levou duma correia,
e o zurziu mui bem zurzido;
tudo calado e sem luz;
sem se ouvir entre os estalos,
senão rinchar os cavalos,
e o senhor nem chus nem bus.
Para um bom servo é custoso
ouvir uns contos assim;
e os nomezinhos enfim
que lhe têm posto! eu nem ouso!...

HARPAGÃO
Dize.

SEBASTIÃO
Chamam-lhe o sovina,
o esfomeado, o lazarento,
o socancra, o alma-mofina,
o unhas-de-fome, o avarento,
o sem-barriga, o mesquinho,
o mísero, o lambe-pratos,
o perro que cita os gatos,
o porco, o fona, o cainho.

HARPAGÃO
Sim? pois a esses senhores
levarás da minha parte,
em paga desses favores,
o que eu agora vou dar-te. (Soqueia-o)
Biltre, patife, maroto,
malcriadão, atrevido,
descambado, intrometido,
comilão, bêbado, roto.

SEBASTIÃO
Eu bem dizia, o patrão,
se lhe eu dissesse a verdade,
havia arder.

DUARTE
Pois não há-de
arder!

HARPAGÃO
Ele é que arde; eu não.
(Sai Harpagão pela porta do fundo)

CENA VI

DUARTE e SEBASTIÃO

DUARTE (rindo)
Que tal, Sebastião, se o corpo te comia,
agora há-de estar bom; mesmo ótimo!

SEBASTIÃO
Não ria,
pássaro arribadiço, espertalhão, tratante,
enredador; não ria, ou neste mesmo instante
vamos ver se uma tunda em paga das tratadas
também lhe desafia as mesmas gargalhadas.

DUARTE (sempre em tom de gracejo e ironia)
Não vai a arrenegar, mestre Sebastião;
sossegue, por quem é.

SEBASTIÃO (à parte)
Já tem medo o pimpão!
Então posso galrar-lhe, e até (sei lá) sová-lo.
(alto) Você ri, e eu não rio; o seu grimpar de galo
para cá vem barrado; e acabe-me cos brincos,
se não quer que lhe troque os brincos em chorincos.

(Sebastião arregaçando as mangas vai crescendo para Duarte, e faz com que este, sem desmentir o tom e cara de brincadeira vá recuando diante dele até ao fundo da sala)

DUARTE
Devagar; devagar.

SEBASTIÃO
Qual devagar! não quero.

DUARTE
Tem mão.

SEBASTIÃO
Tenho até mãos.

DUARTE
Espera.

SEBASTIÃO
Não espero.
Torne a rir se é capaz.

DUARTE
Senhor Sebastião!

SEBASTIÃO
Não há cá nem senhor, nem Sebastião; e então
para o velhaco mor!... Ai quem me dera aqui
um bom cacete!!

DUARTE (mudando para tom sério, ameaçador, e decidido, e fazendo recuar deveras Sebastião até ao proscênio)
O que, maroto? espera aí
que eu te ensino.

SEBASTIÃO
Dispenso.

DUARTE
Olha que se até’gora
me divertiu o ouvir-te e o ver-te de ti fora,
já pus ponto na farsa; e racho-te a caveira.
Lembra-te de quem és, vasculho de cocheira,
rodilhão de cozinha. Eu se te ponho os pés,
esmago-te.

SEBASTIÃO
Bem sei.

DUARTE
Um bruto é que tu és.

SEBASTIÃO
Sou, sou!

DUARTE
Um malcriado, um tolo.

SEBASTIÃO
Isso é verdade.

DUARTE
Por isso te não mato.

SEBASTIÃO
É generosidade!
e muito agradecido.

DUARTE
O que eu te recomendo,
é que não tornes mais comigo...

SEBASTIÃO
Entendo, entendo.

DUARTE
Faltares-me ao respeito! ameaçar-me! canalha!
vá lá ser ferrabrás entre os da sua igualha.
(Sai pela segunda porta da direita)

CENA VII

SEBASTIÃO, D. MARIANA e GUIOMAR (as quais vêm da primeira porta da direita)

GUIOMAR
Saber-nos-á dizer, mestre Sebastião,
se está cá o seu amo, o senhor Harpagão?

SEBASTIÃO
Há pouco inda cá ’stava; e por sinal bem forte.
Há de andar no quintal a vigiar o corte
da ramaria seca, a fim que o podador
não sise alguma lenha.

GUIOMAR
Então faça favor
de lhe ir dizer, que tem aqui à sua espera
Guiomar, e a tal senhora.

SEBASTIÃO
Ele já vem.

GUIOMAR (à parte)
Pudera.
(Sebastião sai pela porta do fundo)

CENA VIII

D. MARIANA e GUIOMAR

D. MARIANA
Não sei que tenho, Guiomar;
sinto-me tão agitada!...
temo...

GUIOMAR
O quê? não tema nada.

D. MARIANA
Tremo de vê-lo chegar.
Imagina uma pessoa
que está sentenciada à morte,
quando a hora fatal soa,
e entra o algoz: por mais forte
que busque ostentar-se, o lance
não é para sucumbir,
Guiomar?

GUIOMAR
Decerto que o trance
não é muito para rir;
não é; mas que paridade
têm um casamento e a morte?
Sei que era outro o consorte
da sua escolha e vontade;
preferia o mocetão
de quem sempre anda a falar-me.

D. MARIANA
Tu mesma havias de dar-me,
se o visses, toda a razão.
Dois meses há, pouco mais,
nos visita dia a dia.
Ante os olhos maternais
nasceu esta simpatia.
Nele e em mim foi gradualmente
florindo em perfeito amor;
amor puro e amor fervente,
luz celeste e ameno ardor.
Minha mãe ao contemplá-lo
nos bendizia em segredo;
éramos duas a amá-lo;
mas foi sonho, acabou cedo.

GUIOMAR
E soube quem ele fosse?

D. MARIANA
Não sei; sei que tem um ar
tão grave, tão bom, tão doce,
que obriga por força a amar;
e que obtê-lo por marido
me fora a maior mercê.

GUIOMAR.
Se ele tivesse com que,
pode ser; assim... duvido.
Conheço mil puxadinhos,
dos que mais floreiam; têm
por fora brilho e carinhos;
por dentro, nem um vintém.
Então digo eu que a menina,
que não é nenhuma louca,
deve antepor esta mina
a fazer cruzes na boca.
Eu bem sei que a mocidade
não se dá bem coa velhice;
e que há-de ter, ora se há-de!
muita maré de perrice.
Mas adeus! consorte idoso
não é marido de dura;
morto ele, nasce a ventura;
vem-lhe riqueza, repouso,
liberdade; pode então,
solta do que está na cova,
co valor do caldeirão
comprar a caldeira nova.

D. MARIANA
É triste coisa a ventura
que há-de custar uma vida.

GUIOMAR
Todos morrem; desventura
é caduquez mui comprida.
Digo até que o seu dever,
para ser bom e cortês,
era obrigar-se a morrer
dentro em dois meses ou três;
e isso expresso no contrato.
Ri? tem razão, que era arranjo;
mas diga-me cá, meu anjo
se o seu rapaz lhe é tão grato,
o velho tão repugnante
e a mãezinha tão amiga,
não percebo quem na obriga
a ser deste sacripante;
não é o amor, nem sou eu;
o que é pois?

D. MARIANA
O meu dever.
Minha mãe quase a morrer,
sem mais abrigo que o meu!
tudo quanto em casa havia,
vendido já; que me resta
em situação tão funesta?
imolar-me. Pois devia
ver morrer ao desamparo
quem me dera tudo e a vida?
jamais; estou decidida;
vou salvá-la; aceito o avaro.

CENA IX

As mesmas e HARPAGÃO (que vem da porta do fundo)

GUIOMAR (em voz baixa para D. Mariana)
Chitom, que lá vem ele.

D. MARIANA (em voz baixa para Guiomar)
Oh! que figura!

HARPAGÃO (para D. Mariana)
Às plantas
de vossa senhoria, altar de graças tantas.
Não há-de reparar nos óculos; é certo
que a sua formosura é clara ao longe e ao perto,
nem adquire mais graus com óculo de aumento;
mas os astros também são sóis do firmamento,
e a sábia astronomia os óculos lhe assesta.
Digo e sustento pois, que estrela igual a esta
não há no céu; nem mesmo a estrela luzidia,
chamada Vênus, chega a vossa senhoria.
(Depois de estar por alguns minutos à espera de resposta, em voz baixa para Guiomar)
Então ela não fala?

GUIOMAR (em voz baixa)
Ai! fala o que é preciso,
mas como tem de seu muitíssimo juízo,
entende que o falar, não sendo necessário,
é despender sustância em ato perdulário.
De mais (e penso que este é o principal motivo)
bem vê que uma donzela é um ente muito esquivo,
e a qualquer expressão que cheire a requestá-la,
assusta-se, estremece, e perde logo a fala;
depois aquilo passa.

HARPAGÃO (em voz baixa)
É verdade.
(em voz alia para D. Mariana)
Aí vem
minha filha Luísa abraçar sua mãe.

CENA X

Os precedentes e D. LUÍSA (que sai da segunda porta da esquerda)

D. MARIANA (caminhando com ar prazenteiro para D. Luísa)
Senhora D. Luísa!

D. LUÍSA (idem)
Minha senhora!

D. MARIANA
Este dia...

D. LUÍSA
Os meus votos realiza.

D. MARIANA
Inunda-me de alegria!
Eu devia, e desejava
ter vindo há muito.

D. LUÍSA
O dever
da minha parte é que estava.

HARPAGÃO (à parte)
Chegaram-se enfim a ver;
e ambas se mostram gozosas;
ainda bem!
(para D. Mariana)
Acha a morgada
talvez bastante espigada?

D. MARIANA
Acho-a um palmito de rosas;
galantíssima.

HARPAGÃO
Favores!
é dos olhos com que a vê.

D. MARIANA (baixo para Guiomar)
Que tosco é sua mercê!

HARPAGÃO (para Guiomar, baixo)
Que te disse os meus amores?

GUIOMAR (baixo para Harpagão)
Que o acha admirável.

HARPAGÃO (baixo para Guiomar)
Acha?
(alto para D. Mariana)
Muito obrigado, lindinha.
(à parte) E é magnífica de facha.
Quem viu sorte igual à minha?
(alto) Juro-lho, anjinho inocente;
se me caíssem do céu
vinte peças no chapéu,
não ficava mais contente.

D. MARIANA (em voz baixa para Guiomar)
Nem o posso ouvir.

GUIOMAR (em voz baixa para D. Mariana)
Sossego.

D. MARIANA (como acima)
E dizer que este panal
tem entrada e exerce emprego,
Deus meu! na casa real!

CENA XI

Os mesmos, JÚLIO e DUARTE (que vêm da segunda porta da direita)

HARPAGÃO
Ora aí vem o meu Júlio, o meu filho, também
beijar humilde a mão da sua nova mãe.

D. MARIANA (à parte para Guiomar)
Guiomar, que raro encontro! o homem que a todo o instante
tu me ouvias louvar, é este, é o meu amante.

GUIOMAR (à parte para D, Mariana)
Coisas que arma a fortuna!

HARPAGÃO
Acho-as a modo estranhas
de lhes eu presentar crianças já tamanhas!
Isto da filharada alembra-me o escalracho;
crescem que tem demônio! embora! pouco empacho
nos hão-de já fazer; saberá que tenciono
pôr já este com dona, e Luísa com dono.

JÚLIO
Minha senhora, é este um acontecimento,
que inda me custa a crer! ser tal do pai o intento
sabíamos nós já por lho termos ouvido;
mas duvidava então, e agora inda duvido.
Não compreendo bem...

D. MARIANA
Nem eu por ora; a sorte
é quem dispõe da gente.

JÚLIO
Oh! que feliz consorte
que não vai ser meu pai! confesso que a alegria
que lhe enche o coração me encanta, me inebria!
Contudo (serei franco) um não sei quê me afasta
de lhe dar parabéns por ser minha madrasta;
é esse um parentesco... um título... (não sei....)
desagradável, feio, e nunca lho darei.
Ser madrasta é ser velha; é ter de mais dez anos;
é passar de rainha à lista dos tiranos;
é ter na alma rabuge, e ali...
(apontando-lhe para o coração)
coisa nenhuma;
é... é... o ser madrasta é ser madrasta em suma.
Alguém dirá talvez, que este falar, que exprime
o que eu sinto aqui dentro, é duro, é torpe, é crime;
mas se o seu coração me absolve, isso me basta;
e absolve-me; por ora, inda não é madrasta.
Finalmente, senhora, este consórcio fere
int’resses meus, bem sabe; e meu pai que tolere
o que lhe vou dizer. Um casamento assim
nunca se realizará, a depender de mim.

HARPAGÃO
Que belos parabéns! que alarve! é à cara dela
atirar tudo aquilo assim sem mais aquela!
(para D. Mariana)
Vá, responda-lhe, vá; confunda-me esta fera.

D. MARIANA
Se o senhor Júlio é franco, eu sou também sincera;
bem dizem que não há corações enganados.
O que sente, e o que eu sinto é o mesmo; os desagrados
que acha em lhe eu ser madrasta, encontro-os eu tais quais
em chamar-lhe enteado; e talvez que inda mais.
Creia que não sou eu (posso jurar-lho) a autora
da nossa situação.

JÚLIO
Não?

D. MARIANA
Não.

JÚLIO
Pois quem, senhora?

D. MARIANA
Uma estrela, um destino, um fado, uma potência
que a todos nos arrasta, e ri da resistência.
Se eu, sabendo a aversão que tinha a este enlace
o pudesse evitar, não crê que lho evitasse?
Supõe que por meu gosto eu punha os pés num trilho
que levava a um abismo? ódio entre um pai e um filho?

HARPAGÃO (a D. Mariana)
Muito bem! muito bem! (a Júlio) Apanha, traste, apanha.
(a D. Mariana)
Não se esteja a agastar. Inda que foi tamanha
a audácia cá do meco, há-de perdoar-lhe o excesso;
por seu bom coração, por nosso amor, lho peço.

D. MARIANA
Eu perdoar-lhe o quê? reputa-me ofendida
porque me falou claro? estou-lhe agradecida.
Em vez de me enganar e vir com fingimentos,
quis que eu soubesse bem quais são seus sentimentos.

HARPAGÃO
Desculpa-o!! que bondade!! aquela rebeldia,
meu tudo, tenha fé que há-de passar-lhe um dia.

JÚLIO
Quem? eu? mudar! jamais.
(para D. Mariana)
No que hoje est’alma sente,
juro que hei-de morrer, senhora, impenitente.

HARPAGÃO
Tem diabo no corpo: em vez de entrar em si,
acirra-se, e refina.

JÚLIO
Eu sinto o que senti,
e hei-de senti-lo sempre.

HARPAGÃO
Ateimas? não consinto
nem mais uma palavra.

JÚLIO
Enfim, como o que eu sinto
me não é dado expor, vou-lhe falar, senhora,
de um modo em tudo avesso, e tal, como se eu fora
no lugar de meu pai. Tomo esta penitência
para me castigar da pouca obediência.

HARPAGÃO
Ora graças a Deus! (à parte) Estimo que o tratante
lhe expresse o que eu não sei, pois nunca fui amante.
Para tal nunca eu tive inclinação nem ócio;
ou bem namorações, ou bem fazer negócio.

JÚLIO
Pois, senhora, é verdade: objeto mais perfeito
nunca o vi neste mundo! o empenho deste peito
seria o merecê-la; e o ser o seu esposo
me era mais que empunhar o cetro mais fastoso.

HARPAGÃO (baixo para Júlio)
Devagar, meu senhor; mais devagar.

JÚLIO (baixo para Harpagão)
Estou
a falar por meu pai; acha que exorbitou
acaso o meu dizer do que em sua alma sente?

HARPAGÃO
Eu também tenho língua, estou aqui presente,
e não o nomeei por meu procurador.
Venham cadeiras.

JÚLIO
Bem; calo-me.

HARPAGÃO
Sim senhor.
(gritando para dentro)
Cadeiras.

GUIOMAR
O melhor entendo que seria
irmos já para a feira; está tão belo o dia!
quem vai cedo vem cedo; e então conversaremos.

HARPAGÃO (chamando para a segunda porta da direita)
Sebastião! Sebastião!

SEBASTIÃO (entrando)
Cá estou, patrão; que temos?

HARPAGÃO
Os cavalos à sege.

SEBASTIÃO (à parte)
Aluguei outros. (alto) Pronto.

HARPAGÃO
Estas damas à feira; e tu, a pé.

SEBASTIÃO
Não monto?!

HARPAGÃO
Não monta não senhor; leve à rédea os cavalos;
Lembre-lhe o que me disse; escusa-me estafá-los.
(Sai Sebastião pela segunda porta da direita)

HARPAGÃO (para D. Mariana)
Peço-lhe mil perdões, noivinha idolatrada,
de a deixar ir assim sem ter comido nada;
quem anda, como eu, ébrio...

D. MARIANA
Ébrio!?

HARPAGÃO
Sim; de ventura;
não pensa em merendar; mantém-se de ternura.

JÚLIO
Pensei eu por meu pai; mandei buscar ao Mata,
cum bilhete em seu nome, uns cem pastéis de nata.
outros tantos de fruta, um bom peru trufado,
doces finos, Madeira, et caet’ra.

HARPAGÃO (baixo para Júlio)
Oh! desalmado!

JÚLIO
Acha pouco? a senhora há-de ser indulgente
de certo; um copo de água armado de repente.

D. MARIANA
Nem tanto era preciso.

JÚLIO
Está, minha senhora,
reparando, cuido eu, na jóia encantadora
que meu pai tem no dedo?

D. MARIANA
É verdade; que brilho!

JÚLIO
Pois visto mais ao pé?!
(Tira de repente o anel do dedo a Harpagão)
Perdão, meu pai.

HARPAGÃO (muito assustado e à parte)
Meu filho!

D. MARIANA (pegando no anel, e observando-o com mais individuação)
Nunca vi outro assim! Aquilo é que é diamante!
que fogo! bem lhe quadra o nome de brilhante.
É lindo; e de um valor!...

JÚLIO
De pouco mais de um conto;
mas a meu pai ficou-lhe aí, por um desconto,
nuns trezentos mil réis; não foi, meu pai?

HARPAGÃO (à parte)
Trezentos
que te levem a ti, judeu. (alto) Mais de quinhentos
me custou ele.

JÚLIO (opondo-se a que D. Mariana restitua o anel a Harpagão)
O quê, senhora? isso é brinquedo,
mas ofende a meu pai; não tire o anel do dedo.
São dignos um do outro, e iguais em formosura;
não rejeite essa prenda emblema de ternura.

HARPAGÃO (baixo para Júlio)
Tu que fazes, maroto?

JÚLIO
Ande, meu pai; bem vê
que a senhora inda hesita; implore por mercê
se digne de aceitar-lhe aquela bagatela,
que, se algum valor tem, é só no dedo dela.

D. MARIANA
Mas...

JÚLIO
Não há mas; meu pai, co seu acanhamento,
não ousa...

HARPAGÃO (baixo para Júlio)
Ah! cão!

JÚLIO
Mas eu, que à própria o represento,
e que entendo os sinais que a furto me tem feito,
em seu nome lhe rogo aceite a prenda.

D. MARIANA
Aceito,
e agradeço.

GUIOMAR
Era tempo. Os mimos de um marido
não se recusam nunca, e é ele o agradecido.

HARPAGÃO (à parte)
Pois não é! forte corja!

D. MARIANA
Em outra ocasião
restituirei o anel ao senhor Harpagão.
Fico depositária.

HARPAGÃO (para D. Mariana, alegrando-se-lhe o rosto, mas em voz baixa)
Oh! coração preclaro!

JÚLIO
Caro pai!

HARPAGÃO (olhando-o de revés)
Sim senhor, de um filho muito caro.

CENA XII

Os mesmos e SEBASTIÃO (que aparece à segunda porta da direita)

SEBASTIÃO
Um homem que procura ao senhor Harpagão.

HARPAGÃO
Agora a ninguém falo; escolha outra monção,
e volte, se quiser, daqui a meia hora.

SEBASTIÃO
Diz que lhe traz dinheiro, e quer falar-lhe agora. (Sai)

HARPAGÃO (para D. Mariana)
Com licença; eu já venho.

(Vai correndo para a segunda porta da direita por onde Sebastião saiu; mas ao chegar a ela, Sebastião, que torna correndo, esbarra nele e vira-o de pernas ao ar)

SEBASTIÃO
Ai Jesus! que o matei!
Matei-o sem querer!

HARPAGÃO (no chão)
Socorro! aqui del-rei!

(Júlio e Duarte lançam-lhe as mãos para o levantar, enquanto as senhoras aproximando-se representam susto e cuidado)

JÚLIO
Que tem?

DUARTE
O que lhe dói?

HARPAGÃO
Ai!

SEBASTIÃO
Fiz-lhe prejuízo?
quebrou?

HARPAGÃO
Isto hoje aqui é o dia de juízo!
quebrei, sim.

DUARTE
O espinhaço?

HARPAGÃO
O vidro do relógio,
que o senti estalar. Todo o martirológio!
venha mais! (indicando Sebastião)
Este monstro... aposto... (ai! ai! que dores!)
que se deixou peitar de alguns meus devedores
para me destruir.

JÚLIO (oferecendo-lhe um copo d’água)
Ficou muito pisado?

HARPAGÃO
Vejam se o fato ali me não ficou rasgado.

DUARTE (fingindo examinar)
Não lhe fez mal; não fez.

HARPAGÃO
Estimo, agradecido.

GUIOMAR
Coitadinho, há-de estar com o lombo bem moído.

HARPAGÃO
Oh se estou! (para Sebastião)
Tu, ladrão, que estás a remirar-me?
achas que inda foi pouco?

SEBASTIÃO
Eu? queira perdoar-me;
se lhe dei o boléu foi por casualidade;
vinha desenfreado, e à bruta; isso é verdade,
mas havia razão: desferrou-se um cavalo;
e a sege assim, bem vê...

HARPAGÃO
Vá mais! corre a ferrá-lo;
o ferrador é perto, e sume-te, tratante.

JÚLIO
Enquanto vai e vêm, há o tempo bastante
para se merendar. Eu, se meu pai consente,
faço as honras da casa à dama aqui presente;
sou o seu delegado. Aqui faz calma horrenda!
O arvoredo é mais fresco, (chama) Olá!
(À Mealhada, que assoma à segunda porta da direita)
Venha a merenda;
para a mesa de pedra à sombra das nogueiras.
Eu conduzo a senhora, e levem-nos cadeiras.

(Desaparece Mealhada pela porta da direita. Júlio oferece o braço a D. Mariana, e saem pela porta do fundo seguidos de D. Luísa e Guiomar.)

CENA XIII

HARPAGÃO e DUARTE

HARPAGÃO
Meu precioso Duarte,
já que em ti vejo outro eu,
e meu filho é um fariseu,
vela-os tu da minha parte.
Um não sei quê me anuncia
que este amor corre perigo.

DUARTE
Nenhum; sou eu que lho digo.

HARPAGÃO
E eu só te digo: vigia.
Vamos também para a mesa;
e olho vivo meu Duartinho.
Sobrando pastéis ou vinho,
guarda tudo.

DUARTE
Ah! com certeza.

HARPAGÃO
Os restos não babujados
deve o Mata e o confeiteiro
tomá-los como dinheiro.

DUARTE
Perca daí os cuidados.
(Vão a caminhar para o fundo, quando se ouve do quintal cantar o mesmo rouxinol do fim do primeiro ato)

DUARTE
O rouxinol no pomar!
que música tão suave!

HARPAGÃO
Não sei se é bem esta a ave
que hoje me deve cantar.


ATO QUARTO

CENA I

JÚLIO, D. MARIANA, D. LUÍSA, GUIOMAR

JÚLIO
Bom! Nesta sala agora há toda a segurança;
ninguém nos ouve; viva a quádrupla aliança!
A alma do negócio é a diplomacia.

GUIOMAR
Quem preside?

JÚLIO
Sou eu. Luísa, principia!

D. LUÍSA (para D. Mariana)
Pois sim, minha senhora. O amor de meu irmão
já mo ele tinha dito.

JÚLIO (interrompendo em tom de presidente)
À ordem!

D. LUÍSA
Minto?

JÚLIO
Não,
nem és capaz de tal. O que eu digo é que fora
melhor chamar-lhe irmã do que minha senhora;
e entre irmãs dá-se tu.

LUÍSA (para D. Mariana)
Consente?

D. MARIANA
Se consinto?!
e em já chamar-te irmã, que júbilo que eu sinto!

D. LUÍSA
Como eu te ia dizendo, o mano já me havia
contado o vosso amor.

D. MARIANA (para Júlio)
Já?

JÚLIO
Já.

D. LUÍSA
Tive alegria
em ver que ele empregava o seu amor tão bem.

D. MARIANA
E eu o meu, não, Luísa?

D. LUÍSA
E tu o teu também.

GUIOMAR
São dignos um do outro: é um raminho feito
de um cravo, uma rosinha, e muito amor-perfeito.

D. LUÍSA
O pior, Mariana, é que ao vosso desejo
há tantas objeções, tais penas vos prevejo,
que chego a esmorecer.

JÚLIO
Tem fé!

D. MARIANA
Nesse cuidado
de me veres ditosa, e Júlio afortunado,
nesse mesmo temer, em suma, se divisa
o que eu mais ambiciono: o afeto de Luísa.
Ser chorada por ti, aliviar-me-ia as dores,
se o destino afinal calcasse estes amores.
(D. Mariana beija enternecidamente a D. Luísa, que lhe corresponde do mesmo modo)

GUIOMAR
Foi mau, foi, muito mau, o não me terem posto
em pratos limpos tudo a tempo. Este desgosto
podia-se evitar. As arcas encouradas,
sem causa, muita vez dão destas trapalhadas.
Se me tivessem dito — ele que a amava a ela
— e ela quanto era dele — eu tinha mais cautela,
e não levava ao ponto em que hoje as coisas são,
este casório insulso, esta abominação.
Enfim quem mal não usa... (finge que chora)

JÚLIO
Escusas de chorar:
a culpa é do meu fado, e não de ti, Guiomar!
(para D. Mariana)
Mariana, que decide? o tudo é o seu querer.

D. MARIANA
Eu que posso? eu que sei? como? que hei-de eu fazer?
Digam-mo, e pronta o cumpro. Em tudo dependente,
de meu só tenho a prece, a muda prece ardente.

JÚLIO
A prece, e nada mais? mais nada em meu favor
posso achar em Mariana? oh fino, oh raro amor!
Nem fé, nem compaixão, nem força, ao que parece,
cabem já nesse peito? unicamente a prece!

D. MARIANA
Ponha-se em meu lugar! Ensine-me; conduza
uma fraca mulher em selva tão confusa!
Tem juízo; tem honra; e sei que é nosso amigo;
seja o meu conselheiro; o seu conselho sigo.

JÚLIO
Segue-o, se for conforme em tudo ao que essa gente
costuma chamar honra, e sendo estritamente
conforme coa decência, ou co que assim se alcunha.
Muito confia em mim! bem haja! não supunha.

D. MARIANA
Enfim, que hei-de eu fazer? Bem vê que há mil respeitos
que o mundo nos impôs, e nos tornou preceitos:
que donzela jamais impune os quebraria?
E depois minha mãe, o meu exemplo e guia,
a minha companheira... a minha mãe! não devo
imolar-me por ela? Ah! Júlio! Eu nem me atrevo,
quando a vejo num leito, e em véspera talvez
de a perder para sempre, ajuntar-lhe à viuvez
a falta de uma filha, a fome, o desamparo.
Sacrifico-me; perco o ente que me é mais caro,
e uno-me ao que detesto. É duplicado inferno,
mas não vejo refúgio. Ao seu coração terno
incumbo o procurar-mo; até, se for preciso
contar-se tudo à mãe, a tanto o autorizo.
Pode dar-lhe a saber que o doce e puro afeto
que a namorava em nós, era um vulcão secreto;
que eu morria por Júlio. E se é conveniente
que eu vá também, eu mesma, expor-lhe que impiamente
até hoje a enganei calando-lhe a verdade,
e encobrindo a paixão com o manto da amizade,
embora que me custe, embora que me exponha
à censura de ingrata, humilho-me à vergonha.
Fá-lo-ei, fá-lo-ei, fá-lo-ei: não fujo ao sacrifício.
Crê possível que, ao ver-me em tão cruel suplício,
ela se não condoa? Um coração materno
perdoa sempre e tudo. Ela... Júlio... eu... que terno!
Nessa hora de perdão, hora inefável, santa,
hora em que Deus se alegra, e o anjo mau se espanta,
sentiremos em nós alguma inspiração,
alguma luz do céu, que dentre a cerração
nos descubra um caminho.

JÚLIO
Algum milagre?!

D. MARIANA
Embora:
o amor tem feito mil, faça mais este agora!

JÚLIO
Guiomar, minha Guiomar, queres valer-nos?

GUIOMAR
Eu
se lhes quero valer? pois que outro empenho o meu?
sempre fui serviçal.

JÚLIO
Discorre! idéia! inventa,
e propõe tu!

D. MARIANA
Guiomar!

D. LUÍSA
Minha Guiomar!

D. MARIANA
Assenta
no que se há-de fazer: eu só em ti confio,
pois tens experiência, e estás a sangue-frio.

JÚLIO
Desata o nó que deste!

D. LUÍSA
E Deus há-de pagar-to!

D. MARIANA
E eu, podendo, também.

JÚLIO
Venha o ditoso parto;
e verás, se põe fim ao nosso horrendo apuro,
como eu hei-de florir, Guiomar, o teu futuro!

GUIOMAR
Realmente é custoso.
(Depois de estar pensando por algum tempo)
A mãe desta senhora
(indicando D. Mariana)
é pessoa de tino (entendo eu cá); não fora
impossível talvez resolvê-la a entregar
ao filho em vez do pai, a nossa flor. Que par!
que parzinho bendito! (para Júlio) O mau, meu cavalheiro,
é seu pai ser seu pai.

JÚLIO
Que faz isso?

GUIOMAR
Em primeiro,
era preciso impô-lo e não lhe dar motivo
para se ele ofender: é seco, é vingativo,
egoísta, e inda por cima...

JÚLIO
Explica-te!

GUIOMAR
Avarento.
Portanto, se ele vê falhar-lhe o casamento
assim sem mais nem mais, assanha-se por força,
e então não haverá poder algum que o torça
a dar consentimento ao novo matrimônio:
fecha inda mais a burra, e nem que Santo Antônio
desça dos céus à terra (e mais nem a Guiomar
excede ao bom do santo em coisas de casar),
não; nem ele, que é ele, é capaz de amansá-lo,
nem que traga consigo o próprio S. Gonçalo.

D. LUÍSA
Porém...

D. MARIANA
Visto isso...

JÚLIO
Então...

GUIOMAR
Esperem mais um pouco.
Nada de provocar o velho a algum descoco.
O melhor, quanto a mim, é vermos se se alcança
que desdê, ele próprio, o nó desta aliança.

D. MARIANA
Isso vinha do céu; mas como?

JÚLIO
Impraticável.

D. LUÍSA
Coisa mais espinhosa!

GUIOMAR
Espinhas tem o sável,
mas deixa-se comer.

JÚLIO
— "Ate-se o guizo ao gato" —
diz-se depressa e bem.

GUIOMAR
Que gente! um vil regato
afoga a todos três. (Para D. Mariana) Menina! tome tento!
Para livrar-se dele há um remédio bento.

D. LUÍSA
Ervas?

D. MARIANA
Alguma reza?

JÚLIO
Algum feitiço?

GUIOMAR
Então
se falam, calo-me eu, e lá se avenham.

D. MARIANA
Não.
Fala tu, fala tu, que és muito experiente,
e nisto hás-de saber mais que esta pobre gente.

GUIOMAR (a D. Mariana)
Quem desmama um menino, o que é que põe no peito?

D. MARIANA
Diz que azebre, não é?

GUIOMAR
É. Logo o que eu receito
(que amor naquela idade é já segunda infância)
é fazer que ele tome à noiva repugnância.

JÚLIO
Mariana repugnar-lhe!!

D. LUÍSA
Ela, inspirar-lhe tédio!

JÚLIO
Impossível.

GUIOMAR (a D. Mariana)
Menina! Use do meu remédio,
que há-de tirar proveito.

D. MARIANA
E como se prepara?
de que é? e quem o faz?

GUIOMAR
Aí ’stá, prendinha cara,
o difícil da coisa. Há-de ser preparado
pela menina mesma, e co maior cuidado.
Sei que deve custar-lhe.

D. MARIANA
Eu não percebo; explica
depressa o teu enigma!

GUIOMAR
Estamos na botica.
"Recipe: Manipule! — A sua formosura,
"o seu modo elegante, esse ar, essa frescura...
"reduza tudo a pó.

D. LUÍSA
A pó!

GUIOMAR
Ao pó mais fino!

JÚLIO
Não pode.

GUIOMAR
Pode, pode. E cale-se, mofino;
deixe-nos trabalhar em santa paz.

JÚLIO
Vá lá!

GUIOMAR (a D. Mariana)
"O seu metal de voz fascinador, fará
"pelo enferrujar bem, por modo que um eu te amo
"soe mais a ralhar que ao mimo de um reclamo.
"O que era discrição, troque-se em frioleiras,
"narcótico mortal, feito de dormideiras."
— Assim, jarreta, párvoa, e sensabor, consegue
que o homem peça a Deus que o ensurdeça e cegue,
e fuja a bom fugir.

JÚLIO
Pois tens razão.

GUIOMAR
Pudera!

D. LUÍSA (a D. Mariana)
Tem razão, tem.

GUIOMAR
Se tenho! Escute mais: — Ser fera;
soberbona ao falar; — nariz sempre torcido;
— muito quero e não quero; — o pé muito batido,
et caet’ra... é pôr em fuga, e logo de repente
ao próprio Ferrabrás, que fosse pretendente.
Por cima de tudo isto, o que eu mais lhe encomendo,
porque já claramente o efeito lhe estou vendo
(e com esta, acabei de a aperfeiçoar, senhora!)
é ostentar-lhe em tudo índole gastadora:
que não dispensa o luxo, as modas, nem o jogo,
que isso lá para ele é como em casa um fogo.

D. LUÍSA
É verdade. E que mais?

D. MARIANA (para D. Luísa, sorrindo)
Mais! nome de Jesus!

GUIOMAR
Tudo isto é já bem bom; mas o que era de truz
era, além de tudo isto, armar-se alguma idéia
com que o homem, perdida a sua Dulcineia,
com outra mais real folgasse em desforrar-se.

D. MARIANA
Que mulher se prestava...?

GUIOMAR
Ai! juro que há-de achar-se
uma, e duas, e dez, e mil, com bem o diga.
(depois de meditar)
Cáspite! Há certa dama, esperta, minha amiga,
já seu tanto madura e ainda não sorvada;
se há uma abelha mestra ao nosso empenho azada
é ela! uma finura...

JÚLIO
Igual à tua?

GUIOMAR
À minha;
pode-o dizer; e um porte, um ar, que nem rainha
em cena de tragédia. Inculco-a pois ao pai
por uma fidalgona.

JÚLIO
É laço em que não cai:
Fidalga sem real!

GUIOMAR
Sem real! quem lho disse?
Inventa-se-lhe um trem de toda a garridice;
um título, um solar na Beira ou nos Algarves;
são redes de arrastar a espertalhões e a alarves.
Cai, cai; fie-se em mim! Verá se o não convenço
de que esta viscondessa aveza um dote imenso:
vinte contos de réis.

JÚLIO
Será melhor quarenta.

GUIOMAR
Pois, quarenta. E que traz uma paixão violenta
desde que um dia o viu tão guapo e bizarraço
num dos bailes da corte, entre os moços do paço.
Desde que ela enviuvou, jamais no coração
homem nenhum lhe fez tal desatinação.
Ora se eu conseguir meter-lhe na cabeça
que esta amante infeliz, tão rica e viscondessa,
não tem dúvida alguma em pôr nas escrituras
que desde já lhe cede, alto e malo, às escuras,
tudo quanto possui, acham que ele rejeita?
Sei que Dona Mariana é muito mais perfeita,
muito mais de encantar que a minha viscondessa;
mas há-de ser vencida, e Deus a favoreça.
Os dotes mais reais, o encanto verdadeiro
para aquele amador, consistem no dinheiro.
Bem vejo que a tramóia, antes de consumada,
por força se descobre; isso que importa? nada;
quando ele conhecer que os prédios, os morgados,
os cofres de ouro, o amor, a glória, os viscondados,
era tudo fingido, e por último termo
o que só adquiria era um grande estafermo,
o essencial para nós estava conseguido:
— Tomaste outra mulher? eu tomo outro marido.

JÚLIO
Deu no vinte a Guiomar. O que se quer agora
é o plano posto em obra e já.

GUIOMAR
Num quarto de hora
tenho a mulher falada, e a farsa em movimento.

JÚLIO
Se levas esta nau a porto e salvamento,
verás como to pago. (para D. Mariana)
E nós, senhora minha...

D. LUÍSA
À ordem.

JÚLIO
Eu! por quê?

D. LUÍSA
Por quê? Se a Marianinha
é minha irmã, e eu sou a irmã de meu irmão,
somos irmãos os três; e o uso entre os que o são,
foi sempre tutear-se. (para Júlio) Apanha, presidente!

JÚLIO (para D. Mariana)
Aprova?

D. MARIANA
Muito, muito; aprovo intimamente.

JÚLIO
Mas que te ia eu dizendo?

D. MARIANA
És tu que o sabes.

JÚLIO
Eu?
O alvoroço do tu da idéia mo varreu...
Ah! sim... já me recordo. É isto... se a Guiomar,
a quem baixo a cabeça, a idéia me aprovar.

GUIOMAR
Ouvirei.

JÚLIO
Mariana, em vez de mim, será
quem disponha ao milagre a santa mãe já já.

GUIOMAR
Concordo.

D. LUÍSA
Também eu.

JÚLIO
Induze-a a todo o custo
a romper esse enlace hediondo além de injusto.
Custo, disse... enganei-me: em filha tão querida
rogar é logo obter. Emprega decidida
com ela todo o amor que o céu te pôs no olhar,
todo o meigo do riso, as graças do falar,
o tudo, o não sei quê, de que és só tu senhora,
condão que Deus te deu para triunfadora.
(Mariana indica pelo gesto que anui; Júlio beija-lhe a mão de agradecido, no momento em que, da primeira porta da esquerda, vem saindo Harpagão)

CENA II

Os mesmos e HARPAGÃO

HARPAGÃO (à parte)
Já lá vamos! O enteado
beijando a mão da madrasta,
e ela sofre-o, e não se afasta!...
creio que estou arranjado.

D. LUÍSA (que é a primeira que repara em Harpagão, em voz alta, para advertir os outros)
É meu pai.
(Júlio larga sobressaltado a mão de D. Mariana)

HARPAGÃO
Já está ferrado;
e pronta à porta a capoeira.
Vamos; se têm de ir à feira,
é descer.
(Tirando da algibeira um tostão, e examinando-o; à parte)
Ele é safado,
mas passa, (levantando a voz) Toma, Luísa!
Podes gastar.

D. LUÍSA (sorrindo e à parte)
Um tostão?!

HARPAGÃO
Emprega-o com discrição
nalguma coisa precisa.
Vão, vão!

JÚLIO
Eu as acompanho
por meu pai.

HARPAGÃO
Qual por meu pai!

JÚLIO
Depois de um boléu tamanho
como hoje aqui deu...

HARPAGÃO
Não sai.
É cá preciso, e está dito.

JÚLIO
Mas três damas irem sós
quando podia um de nós...
Não acho bom, nem bonito.

HARPAGÃO (ironicamente)
Nem eu! Por essas florestas
que daqui à feira vão
pode encontrar-se um leão,
e outras mil coisas funestas.
Ontem mesmo uma serpente
devorou lá três polícias,
se por acaso não mente
o meu Jornal das notícias.
Mas as nossas amazonas
não são medrosas, (para as senhoras) Vão, vão!
(Para Júlio)
Tu fica!

JÚLIO
Mas...

HARPAGÃO
Se me entonas
a grimpa, azedo-me.

JÚLIO
Ai, não!
(Saem as damas pela primeira porta da direita)

CENA III

HARPAGÃO e JÚLIO

HARPAGÃO
Isto assim não vai bem, meu filho; é necessário
seguirmos d’hoje avante um método contrário:
franqueza e mais franqueza. Assim é que a amizade
pode ter duração e dar felicidade.
Responde-me leal.

JÚLIO
Prometo.

HARPAGÃO
Isso me basta.
— Como achas tu Mariana? O ser ou não madrasta
é um mero acidente, e nada tem coa essência;
... e mesmo o sê-lo ou não ’stá ainda em contingência.
Como a achas, enfim?

JÚLIO
Eu! Como? em que sentido?

HARPAGÃO
Quanto a beleza, a corpo, a graça, este brunido
da casquinha de fora.

JÚLIO
A formosura; entendo.
... Receio que se ofenda.

HARPAGÃO
Ai, fala! Não me ofendo.
Cada qual tem seu gosto.

JÚLIO
Acho que em formosura
há pior e há melhor; agora de figura
pior é que não há: veste sem tom, sem graça;
e, calada, ainda vai; falando é uma desgraça.
Isto o que me parece. Agora lá se é boa,
sabe-o Deus; muita feia é ótima pessoa.
Co’o coração nas mãos, é isto; e não lho digo
co’o fim de o dissuadir. De si para consigo
acha-a linda, não acha? espose-a, se quiser:
Madrasta por madrasta, ela, ou outra qualquer.

HARPAGÃO
Pois, homem, faz-me zanga o não gostares dela.
... Mas... (se me não engano) achavas-lhe a mão bela,
mesmo aqui, há bem pouco; e nesta mesma sala
uma hora haverá que te eu vi requebrá-la,
e com bastante fogo.

JÚLIO
Ah, sim, bem sei. Tudo isso
foi querer a meu pai fazer um bom serviço.
Via-o mudo, vexado, inerte por virtude;
parecia um galucho, um novicinho rude,
um atadinho enfim, destes por quem mulheres
não queimam a alcachofra, ou deitam malmequeres.
Que devia eu fazer? Em vez de me estar quedo
junto a meu pai, penedo ao pé de outro penedo,
forcei o gênio, e disse a Dona Mariana
o que a boa razão ensina a gente urbana.
Tudo só por meu pai; que dúvida! por ela,
bem empregava eu tempo em tanta incensadela!

HARPAGÃO
Portanto, inclinação...

JÚLIO
Inclinação, nenhuma,
nem por onde ela passe.

HARPAGÃO
O teu juízo, em suma?

JÚLIO
Que pode servir mui bem para madrasta;
mas para me eu casar, desejo-as de outra casta.

HARPAGÃO
É pena.

JÚLIO
O que é que é pena?

HARPAGÃO
É pena ser tão forte
a aversão que lhe tens.

JÚLIO
Uma aversão de morte!

HARPAGÃO
Pois aí ’stá. Desse modo é renunciar o intento
que eu tinha de ceder-te a moça em casamento.

JÚLIO
Como assim?

HARPAGÃO
É verdade. Há pouco, entrando aqui,
e vendo-te beijar-lhe a mão...

JÚLIO
Não viu.

HARPAGÃO
Vi, vi.

JÚLIO
Mera civilidade...

HARPAGÃO
Estou por isso. Enfim,
civilidade ou não, vi-o e caí em mim.
— Tate, tate, Harpagão! — disse eu cos meus botões —
se não queres expor-te a trinta mil baldões,
não teimes em juntar as cãs e os desenganos
coas ilusões, o viço, a flor dos verdes anos.
Que não diria o mundo? e além do que diria
quantos motivos mais para falar teria!
Valor pois! e fugir, enquanto se não lavra
e assina uma escritura. É certo que a palavra
que eu mandei por Guiomar à mãe de Mariana
me obriga em certo modo... Histórias! a cigana
há-de, e a filha inda mais, achar melhor partido
do que o unirem-se a mim, ter Júlio por marido.

JÚLIO
Eu seu marido?

HARPAGÃO
Tu, tu mesmo.

JÚLIO
O seu desejo
era esse realmente?

HARPAGÃO
Era; mas como vejo
o teiró que lhe tens, o antojo, a antipatia
que Mariana te infunde...

JÚLIO
Eu, grande simpatia
não lha tenho; concordo; entretanto, se quer
livrar-se dela e impor-ma, aceito-a por mulher.
Sou filho obediente...

HARPAGÃO
E eu bom pai. Nada, nada.
Deus me livre! exigir-te inclinação forçada!
Só se eu fosse algum doido.

JÚLIO
Aqui não há doidice.
Para o servir... pois não! Resigno-me, já disse.

HARPAGÃO
Obrigado, obrigado. Eu é que não aceito.
Casar, não sendo a gosto! é péssimo, e sujeito
a mil tribulações.

JÚLIO
Meu pai, reúna os dois,
que é o ponto essencial; o amor virá depois.

HARPAGÃO
Bem se vê que és novato. Um homem quando casa
mal sabe a que se expõe; mete um inferno em casa.
E havia de amarrar, eu mesmo, nessa nora
o meu Júlio, o meu sangue, um filho que me adora!
Lá, se eu te descobrisse um grande fatacaz...
(bastava alguma queda) era muito capaz
de preferir-te a mim, e dar-te a rapariga;
mas assim, não senhor. Descansa! E pois me obriga
a palavra que dei, torno ao primeiro trilho.
Dê lá por onde der, esposo-a, e poupo o filho.

JÚLIO
Não há, não há remédio: é vinda a extremidade
de lhe eu dever expor, meu pai, toda a verdade.
Saiba pois, meu bom pai...

HARPAGÃO
O quê?

JÚLIO
Que eu a idolatro.

HARPAGÃO
E ela?

JÚLIO
Ela a mim também. Desde que no teatro
pela primeira vez a vi, linda e singela,
ser inveja das mais, e os olhos todos nela,
e os óculos ao longe e ao perto a devorá-la,
e um murmúrio de amor e assombro enchendo a sala,
senti-me escravizado. O seu olhar enfim,
que a ninguém procurava, acertou sobre mim.
Senti que era feliz, e que nesse momento
se me acendia um sol de amor no firmamento.
Que noite! nas ficções da cena apaixonada
coa música e poesia andou benigna fada
a levar-lhe e a trazer-me em continuados giros,
confidencias, ventura, esp’ranças e suspiros;
sorri no sorrir dela; em mim senti seu pranto.
Ninguém mais do que nós amou jamais, nem tanto.
— Era a minha intenção, conforme aos votos dela,
declarar tudo ao pai, rogando-lhe... A procela,
que há pouco sobre nós caiu inesperada,
obrigou-me a conter-me, e não lhe disse nada.
Temi desagradar-lhe, opondo intempestivo
àquele seu consórcio o nosso amor tão vivo.

HARPAGÃO
Tens-lhe ido a casa?

JÚLIO
Tenho.

HARPAGÃO
E muita vez?

JÚLIO
Bastantes,
para o tempo que isto há.

HARPAGÃO
É natural: amantes...
E recebem-te bem, pois não?

JÚLIO
Otimamente,
sem saberem quem sou; por isso é que a inocente
ind’agora pasmou de ver-me nesta casa.

HARPAGÃO
Hás-de lhe ter pintado o fogo que te abrasa?

JÚLIO
Claro está.

HARPAGÃO
E a tenção que tinhas de esposá-la?

JÚLIO
Sem dúvida, e cheguei até...

HARPAGÃO
Até quê? fala...
(à parte)
Estou na grelha a assar! (alto) Chegou (franqueza) até até quê?

JÚLIO
Por mostrar-lhe a minha boa fé,
e que um homem de bem nunca a inocência engana,
a revelar por longe à mãe de Mariana
assim confusamente esta resolução.

HARPAGÃO
E ouviu-te; não ouviu?

JÚLIO
Não lhe direi que não.

HARPAGÃO
E vamos nós; a moça, achas que está deveras
perdidinha por ti? ele há tantas quimeras
no bichinho mulher!

JÚLIO
Bem sei; mas a Mariana
(salvo se ela é um monstro, e bárbara me engana)
em quanto mostra e diz, julgo, meu pai, que posso
crer que é, de parte a parte, igual o afeto nosso.

HARPAGÃO (mudando de tom)
Ora pois, senhor meu, meu filho, e caro amigo!
Foi franco; serei franco. Escute o que lhe digo!
Ponto — e já — nesse amor! Há-de ter a bondade
de não me pôr mais pé em casa da beldade;
nem vê-la, nem falar-lhe, ou de qualquer maneira
fazer-se-lhe lembrado. A fada trapaceira
que lá viu na comédia, era uma mentirosa
e você um basbaque, e a moça uma dengosa.
Mariana é a minha esposa; a sua, não o ignora,
é a que eu lhe destino... E põe-te-me já fora!

JÚLIO
Ah! Pois ele é assim? Assim se ludibria
e se espezinha um filho, um homem que podia
ter já filhos também?! Pois juro-lhe e rejuro
que não deixo a Mariana, e estou de a obter seguro,
em que pese a meu pai. Não há, não sei, não vejo
força alguma que possa opor-se ao meu desejo.
Julga contar coa mãe, por vê-la desgraçada?
pode ser que se engane. E a minha amante amada,
dos cálculos a exclui?

HARPAGÃO
Pois tens o atrevimento,
patifão, de encarar aquela...

JÚLIO
Antes assento
que, se houve usurpação, foi de meu pai, não minha.
Tive a prioridade.

HARPAGÃO
Esqueces-te, bestinha,
que eu, teu pai, tenho jus a todo o teu respeito!

JÚLIO
Em concursos de amor faz rir um tal preceito.

HARPAGÃO
E fará rir um pau no lombo de um tratante?

JÚLIO
Escusa ameaçar-me.

HARPAGÃO
Há-de largar a amante.

JÚLIO
Nunca.

HARPAGÃO
Nunca, maroto! Um pau, uma bengala,
um fueiro.

JÚLIO
Jamais, jamais hei-de deixá-la.

CENA IV

Os mesmos e TOMÁS (acudindo a carrer da segunda porta da direita)

TOMÁS
Que tem, patrão? são ladrões?

HARPAGÃO
Pior. Tenho um peralvilho,
que eu dava oitenta dobrões
por não ser pai de tal filho.
Faltar-me ao respeito!

TOMÁS
É mau.

HARPAGÃO
Dizer-me que não!

TOMÁS
Pior.

HARPAGÃO
A um pai, que o não há melhor!
Não é de o matar a pau?

TOMÁS
Mas não se altere! A palavra
faz mais que a pancadaria.
Sempre é filho: se o escalavra
dá em si.

HARPAGÃO
Patifaria!
Eu vou-me a ele.

JÚLIO
Meu pai,
eu já não ’stou bom, confesso.
Não me obrigue a algum excesso
cos seus excessos!

TOMÁS (à parte)
Ai, ai,
que, se isto se não atalha,
temos bulha e mais que bulha.
Quero evitar à patrulha
o vir pôr termo à batalha.

HARPAGÃO
Cão! cão! eu dou-lhe...

TOMÁS (chegando-se a Harpagão em voz baixa)
Senhor!

HARPAGÃO
Derreti-o!

TOMÁS
Ouça-me!

HARPAGÃO
Nada;
dou-lhe tamanha maçada,
que o ponho em mãos do doutor.

TOMÁS
Pagando-lhe... e ao boticário.

HARPAGÃO
Lembras bem: não pode ser.
Se eu ’stou co juízo vário!

TOMÁS
Sente-se, é o que há-de fazer.
(Conduz a Harpagão para uma cadeira, junto à parede do lado esquerdo, e perto do proscênio)
Tem já o rosto assanhado,
que parece um caranguejo.
Sossegue! Isso é mau.

HARPAGÃO
Se o vejo,
ou torno a ouvir o altanado...

\\\\\\(Tomás faz sinal a Júlio para que se retire para o fundo da sala, do lado direito, onde está a mesa. Tira-lhe de diante o biombo, e vem colocá-lo no meio do teatro, interceptando mutuamente a vista do pai e do filho)

JÚLIO (entre si)
Para serenar um pouco,
vou escrever a Mariana.
Meu pai está louco; e um louco
tem privilégios. (Começa a escrever)

TOMÁS (experimentando se o biombo está firme)
Abana,
mas não cai. O essencial,
para evitarmos quezílias,
e pôr este antemural
ao filho e ao pai de famílias.

HARPAGÃO
Vem cá, Tomás! Tu entendes
de pulso? Toma este pulso.

TOMÁS
Acho-o seu tanto convulso...
Se quer, chamo o doutor Mendes.

HARPAGÃO
Não é preciso; isto passa,
se Deus quiser. É o efeito
das zangas que me tem feito
um filho, a minha desgraça.

TOMÁS
Talvez que não seja tanto.
Eu sei? ele a gente, às vezes...

HARPAGÃO
Vá lá! Dize que é um santo
e eu um diabo.

TOMÁS
Os seis meses
que eu fui criado e escrevente
de um grande juiz de paz
deram-me luzes assaz,
e não trovo de repente.
É preciso ouvir as partes,
pesar com toda a atenção,
e às vezes por boas artes
se chega à conciliação.

HARPAGÃO
Bem. Arvoro-te em juiz.
Eu e ele...

TOMÁS
Somam dois.

HARPAGÃO
Heim?

TOMÁS
Continue! E depois?
que fizeram?

HARPAGÃO
O que eu fiz,
fê-lo ele também.

TOMÁS
Bom filho:
seguiu o exemplo paterno.
Deixe-o ir sempre nesse trilho,
e tem-no livre do inferno.

HARPAGÃO
Não é isso, homem!

TOMÁS
Não!

HARPAGÃO
Ama
a mesma dama que eu amo.

TOMÁS
Para dois... uma só dama
é pouco; não é, meu amo?

HARPAGÃO
Pois aí está; e o bruto quer
que à fina força eu desista,
que lha deixe; e à minha vista
recebê-la por mulher.

TOMÁS
Lá nisso não pensa bem.

HARPAGÃO
Um filho ao progenitor...

TOMÁS
Tem razão; olé se tem!

HARPAGÃO
Fazer concurso no amor!

TOMÁS
Fique-me aqui sentadinho,
enquanto o juiz de paz
vai falar co seu rapaz,
e trazer-lho ao bom caminho.

HARPAGÃO (consigo mesmo, enquanto Tomás vai falar a Júlio)
Se mo traz a mandamento
cuido até que sou capaz
de mencionar o Tomás
nas deixas do testamento.

JÚLIO (para Tomás sem ser ouvido de Harpagão)
Meu pai fez-te árbitro; aceito...
e aceito a quem quer que for.
Decide, e breve, este pleito!

TOMÁS
Graças! que honra, meu senhor!

JÚLIO
Sabes que há uma donzela
por quem morro e por quem vivo.

TOMÁS
Não há-de ser sem motivo.

JÚLIO
Sou adorado por ela;
suspiramos pelo dia
que há-de sagrar estes laços;
vem meu pai...

TOMÁS
Que tirania!

JÚLIO
e quer-ma arrancar dos braços.
Propõe por certa emissária
à pobre mãe da menina
que rompa o que o céu destina...

TOMÁS
E ela?

JÚLIO
Não sei.

TOMÁS
Que alimária!
Mas pode estar descansado.
Prometo-lhe que o patrão,
quando eu lhe tiver falado,
há-de chegar-se à razão.
Deixe isso por minha conta.
(Volta para ao pé de Harpagão)

JÚLIO (entretanto, falando entre si)
Co meu gênio de vinagre
não se tempera o negócio.
Cum parvo manso por sócio
talvez se arranje o milagre.

TOMÁS (a Harpagão)
Sabe que mais? O seu filho
não é como se cuidava:
em vez de serpente brava,
achei cordeiro em tomilho.
Diz que está por quanto queira
o caro autor dos seus dias;
que se teve demasias,
disse ou fez alguma asneira,
de tudo pede perdão,
e promete nunca mais
falar ao melhor dos pais
senão de chapéu na mão;
que, se o quiser ver contente
lhe mostre carinha boa,
e o case enfim com pessoa
não medonha inteiramente.
Aceita?

HARPAGÃO
Aceito gostoso.
Vai-lhe dizer, em meu nome,
que, se quer mulher a tome
que o possa tornar ditoso.
Corra toda a espécie humana:
tem raparigas a rodo.
Só exceto a Mariana;
no mais dou-lhe o mundo todo.

TOMÁS
Bom. Deixe o caso comigo! (Vai para Júlio)

HARPAGÃO (entretanto, consigo mesmo)
Lá me fazia estranheza
ver num filho um inimigo.
Viva o sangue e a natureza!

JÚLIO (a Tomás)
Então?

TOMÁS
Às mil maravilhas.
Vai tudo em maré de rosas.

JÚLIO
Que disse?

TOMÁS (imitando a voz e o tom de Harpagão)
"Se mo acepilhas,
"tens alvíssaras famosas!"

JÚLIO
" Acepilhares-me! como
se entende isso?

TOMÁS
Diz que o acha
sempre com ar de mordomo;
que nunca a seu pai se abaixa;
que nunca nunca lhe fala
sem sete pedras na mão;
e a um paternal coração
é isso o que mais o rala;
que seja com ele afável
e verá o pai que tem,
manso, risonho, amorável...

JÚLIO (à parte)
Se lhe não pedir vintém.

TOMÁS
Que há-de fazer-lhe a vontade
em tudo quanto puder.

JÚLIO
Logo, dá-ma por mulher...

TOMÁS
Dá, dá; forte novidade!

JÚLIO
Então podes-lhe afirmar
que há-de encontrar sempre em mim
um José, um Benjamim;
um filhinho de invejar.

TOMÁS (caminhando de Júlio para Harpagão. Considerando entre si)
Tais conciliações são justas;
mas, meu bom juiz de paz!
não sei se não pagarás
tu mesmo afinal as custas.
Adeus! Eu já tenho casa
de menos lida e mais pão.
Mal soe aqui o trovão
nem pio dou, bato a asa.
(chegando ao pé de Harpagão)
Tudo inteiramente assina.

HARPAGÃO
Santo filho!

TOMÁS
Sai ao pai.

HARPAGÃO
Venha aos meus braços! Que mina...

TOMÁS (à parte)
que estourar-te agora vai!
(corre para Júlio)
Parece fora de si
co prazer de o recobrar.
Voe a abraçá-lo!

JÚLIO
Abraçar
te devo eu primeiro a ti (abraça-o).

TOMÁS
Não me confunda! O que eu fiz
qualquer bom moço o faria.

JÚLIO (dando-lhe dinheiro)
Toma! por ti sou feliz;
quero-te ver alegria.

TOMÁS (conduzindo-o pelo braço para o proscênio)
Aqui vem o filho pródigo.
Julgo que fui bom causídico,
e fiz a vontade ao código
sem aparato jurídico.

HARPAGÃO
Mereces recompensado.
Que dúvida!
(Mete a mão na algibeira, e depois de remexer por algum tempo, estando Tomás com a mão estendida à espera, tira o lenço para se assoar)

TOMÁS
São mercês.

HARPAGÃO
Será para outra vez.
’Stou tão encatarroado!

TOMÁS
Então que fazem, senhores?
Não entendo o acanhamento.
Em tanto contentamento
sérios como dois doutores!
Saltem-me já aos abraços,
que o manda o juiz de paz.

HARPAGÃO
Vem, meu bom filho aos meus braços!

JÚLIO
Meu bom pai!

TOMÁS
Não sou capaz
de ver estas cenas ternas
sem chorar. Oh parentesco!
(à parte) ... E portanto, oh minhas pernas,
para que vos quero? ao fresco!
(Vai-se pela primeira porta da direita)

CENA V

HARPAGÃO e JÚLIO

JÚLIO
Peço-lhe mil perdões dos arrebatamentos
que tive com meu pai. É que eu, nesses momentos,
não me sentia em mim; deveras.

HARPAGÃO
Já lá vai.

JÚLIO
Se meu pai mo perdoa, eu é que não, meu pai.
Sinto aqui um remorso...

HARPAGÃO
E eu dentro uma alegria...

JÚLIO
Que bondade! esquecer, assim, no próprio dia...

HARPAGÃO
Pais esquecem depressa.

JÚLIO
E nem um leve espinho
da minha extravagância...

HARPAGÃO
Erraras no caminho;
estás nele outra vez. A tua obediência
e sujeição filial são mais do que inocência.

JÚLIO
Prometo-lhe que até o derradeiro instante,
me há-de achar sempre o mesmo, obediente e amante.

HARPAGÃO
E eu também te prometo, e se faltar, má peste
dos devedores meus dê cabo...

JÚLIO
Não proteste;
não é preciso tal.

HARPAGÃO
Pois sim, mas asseguro
amenizar, meu filho, em tudo o teu futuro,

JÚLIO
Que posso eu mais querer, meu pai, de hoje em diante,
se em me dar Mariana...

HARPAGÃO
Em dar-te...?

JÚLIO
A minha amante.

HARPAGÃO
Quem te diz que eu ta dou?

JÚLIO
Disse-o meu pai.

HARPAGÃO
Quem? eu!

JÚLIO
Pois quem?

HARPAGÃO
Pelo contrário, ele é que prometeu
Ceder-ma.

JÚLIO
Eu! eu! ceder-lha!

HARPAGÃO
É verdade.

JÚLIO
É mentira.

HARPAGÃO
Visto isso, teima?!

JÚLIO
Teimo.

HARPAGÃO
E aspira...

JÚLIO
Aspiro.

HARPAGÃO
Aspira
a tê-la por mulher?

JÚLIO
Sem falta.

HARPAGÃO
Recomeças
a tentar-me, ladrão?

JÚLIO
Não ouço injúrias dessas.
Quer delirar, delire. Ignora o seu delírio
que um puro e santo amor sai vivo do martírio?

HARPAGÃO
Deixa! Eu te farei ver...

JÚLIO
Quanto quiser.

HARPAGÃO
Tratante,
roubador de seu pai, ingrato, petulante!...

JÚLIO (com toda a brandura)
Que mais?

HARPAGÃO
Que nunca mais me tenha a confiança
de me chamar seu pai.

JÚLIO (à parte)
’Stá órfã a criança.

HARPAGÃO
Desamparo-te.

JÚLIO
Bom.

HARPAGÃO
Renego-te de filho.

JÚLIO
Bem.

HARPAGÃO
Deserdo-te.

JÚLIO
Vá.

HARPAGÃO
Deserdo-te, e perfilho
o primeiro tunante.

JÚLIO
É ótima eleição.

HARPAGÃO
Vai-te, e dou-te...

JÚLIO
Oh prodígio!

HARPAGÃO
A minha maldição.
(Harpagão sai pela primeira porta da esquerda. Júlio fica pensativo. Da porta do fundo vem Tomás com um cofre debaixo do braço)

CENA VI

JÚLIO e TOMÁS

TOMÁS
Alvíssaras!

JÚLIO
Que é, Tomás?

TOMÁS
Venha depressa! Está salvo.

JÚLIO
Salvo! Explica-te, rapaz!

TOMÁS
Lá fora. Acertou-se o alvo.

JÚLIO
Qual alvo? Não compreendo.

TOMÁS
Era um tesouro enterrado,
que seu pai desconfiado
guardava, olhando e tremendo.
Pela cara eu bem lhe via
que era acolá no quintal.
Sigo-o; coco; espreito-o (Ria!),
acho e empalmo o cabedal.

JÚLIO
Como é possível?

TOMÁS
Fujamos!
Toda a melgueira aqui vai.
Fuja ou perdidos estamos.
Ouço gritar... É seu pai!
(Fogem ambos correndo pela primeira porta da direita)

CENA VII

HARPAGÃO (vindo a gritar desde o quintal até entrar em cena, com as feições desconcertadas, e no auge do terror)

Aqui del-rei, ladrões! Ladrões, aqui del-rei!
Querem-me assassinar. Mataram-me. Acabei.
Justiça, Deus do céu! Oh da ronda! oh da guarda!
Estou perdido e morto. Um chuço! uma espingarda!
Roubaram-me o meu sangue, os meus dez mil cruzados.
Quem seria? quem foi? persigam-me os malvados!
Quem mos trouxer co roubo, of’reço-lhe um quartinho...
meia moeda... mais, que eu nunca fui mesquinho.
Para onde fugiu? Onde está ele? aonde?
Corram, vasculhem tudo, a ver onde se esconde.
Ali não!... Aqui não!... Agarra o bandoleiro!
Vê-lo cá vai... Agarra, agarra o meu dinheiro!
(Agita-se bracejando à doida, e agarra com a mão direita o braço esquerdo)
Filei-te, mariolão! Larga o que não é teu!...
Estou perdido e doido; o que apanhei, fui eu.
E eu quem sou? onde estou? que hei-de fazer? que posso?
Ah, meus ricos dobrões, se eu era todo vosso,
como pudestes vós deixar-me só no mundo!!
Que situação! que horror! que inferno tão profundo!
Ninguém tem dó de mim; sou Lázaro; sou Job.
(Chora e soluça despropositadamente)
Perdi tudo, e ninguém, ninguém de mim tem dó.
(Na maior explosão do delírio)
Enforcar tudo a esmo, até que surda alguém
co meu cofre; aliás enforco-me eu também.
....................................
De quem me hei-de eu valer! Demônio! Eu te requeiro:
Leva-me um olho... e os dois, mas dá-me o meu dinheiro.


ATO QUINTO

CENA I

HARPAGÃO e FELISBERTO

FELISBERTO
Não me ensine o meu ofício!
Sou há muito ano escrivão.
Sei descobrir um ladrão,
até sem sombra de indício.
Tenho a experiência e o faro.
Tomara tantos milhões
como já pus de ladrões
à dependura, meu caro!

HARPAGÃO
Isso mesmo: à dependura;
e assim é que deve ser.
É o primeiro dever
de toda a magistratura.
Ora o regedor, que o manda,
recomendou-lhe decerto,
senhor... senhor...

FELISBERTO
Felisberto,
para o servir.

HARPAGÃO
Que a demanda
se apressasse o mais possível,
até se dar co dinheiro
e enforcar-se o réu. Requeiro
não façam como no cível,
onde as causas levam anos.
Aferventa! atiça! atiça!
aliás há-de a justiça
pagar-me perdas e danos.

FELISBERTO
Sossegue... senhor...

HARPAGÃO
Roubado
servo seu.

FELISBERTO
Pois, meu amigo,
lá nisso conte comigo,
que não no há mais apressado.
Entremos no labirinto;
mas dê-me primeiro o fio.

HARPAGÃO
Que fio? (à parte) Mau! Desconfio
que é já pedir-me algum pinto.

FELISBERTO
O fio é o conhecimento
do caso, das circunstâncias,
suspeitas, concomitâncias,
do roubo astuto ou violento.

HARPAGÃO
Diga os pontos separados!
Tantas perguntas de chofre...

FELISBERTO
Bem. Disse-nos que o tal cofre
continha oito mil cruzados.

HARPAGÃO
Dez, dez.

FELISBERTO
Dez.

HARPAGÃO
Dez. Quatro contos.

FELISBERTO
Roubo grande em realidade.

(Felisberto puxa para fora da parede a mesa que está do lado esquerdo; põe entre ela e a parede uma cadeira, e assenta-se; Harpagão vai buscar à mesa do fundo o tinteiro e o papel, e põe-lhos diante. Claudina vem acender as duas velas, e retira-se)

HARPAGÃO
Ponha bem nos is os pontos.
(Depois de olhar para o que o escrivão assentou)
Dez mil: a pura verdade.
Não há para um crime assim
castigo que igual lhe seja.
Roubar ao pobre de mim
é mais que roubar igreja.

FELISBERTO
Em que moeda era a soma?

HARPAGÃO
Metade, em belas loirinhas
de vários reis e rainhas
que eu posso nomear-lhe.

FELISBERTO
Toma!
que memorião! E o resto?

HARPAGÃO
Um conto em bons soberanos;
trinta dobrões mexicanos.

FELISBERTO (repetindo-lhe as últimas sílabas que escreveu)
Canos...

HARPAGÃO
Pronto?

FELISBERTO (sorrindo-se)
Pronto e lesto.

HARPAGÃO (à parte)
E inda há no mundo quem ria!

FELISBERTO
Que mais?

HARPAGÃO
O mais era tudo
em muito ourinho miúdo,
tão limpo que reluzia.

FELISBERTO
O senhor de quem suspeita?

HARPAGÃO
Não sei; suspeito de todos:
dinheiro tem tais engodos,
que todos lhe andam à espreita.

FELISBERTO
Sim, mas no caso presente,
dizer todos ou ninguém
vem a dar na mesma; alguém
o roubou, não toda a gente.
Não lhe ocorrerá pessoa,
quer de calças quer de saia,
(pense bem!) na qual recaia
alguma suspeita boa?
Se lhe ocorre, é nomeá-la:
catrafila-se, e veremos
se uns anjinhos que nós temos
a fazem ou não ter fala.
Não é preciso mais potro,
nem mais nada. Se é culpado,
declara-o; se o réu foi outro,
que o nomeie.

HARPAGÃO
É bem lembrado.

FELISBERTO
Um ou outro hão-de lhe pôr
para ali o cofrezinho.

HARPAGÃO
Bela idéia, sim senhor.
Vou ver, vou ver se adivinho.

CENA II

Os mesmos e SEBASTIÃO (que, entrando da segunda porta
da direita, se revira para trás gritando
)

SEBASTIÃO
Eu já torno. Olhem lá: matem-mo sem tardança;
enterrem-lhe o facão no peito; abram-lhe a pança;
as unhas dos pés fora; o corpo chamuscado;
escaldado; e na corda até o teto içado!

HARPAGÃO
Quem? o que me roubou?

SEBASTIÃO
É um leitão; mandou-mo
matar e preparar o senhor seu mordomo.
Verá como eu lho arranjo.

HARPAGÃO
O que me importa agora
são leitões! O senhor... (indicando o escrivão)

SEBASTIÃO
Se é coisa de demora,
não posso; logo venho.

HARPAGÃO
Espera! Este senhor,
que é o digno escrivão do nosso regedor,
precisa interrogar-te.

SEBASTIÃO
O que eu souber, direi.

FELISBERTO
Escusas de tremer. Nós cumprimos a lei,
mas não comemos gente; ergo por conseqüência...
fala desassombrado!

SEBASTIÃO (para Harpagão em voz baixa)
Este sua excelência
também cá ceia?

FELISBERTO
Aqui, meu rico amigo, deve
dizer tudo a seu amo: exato, claro e breve.

SEBASTIÃO
A respeito da ceia? ele bem sabe o homem
que em mim tem: o que faço, os serafins o comem.

HARPAGÃO
Mas não se trata disso.

SEBASTIÃO
O bródio bem podia
sair muito melhor; mas a pirangaria
do senhor seu mordomo...

HARPAGÃO
Acaba já com isso!
Dá-me novas...

SEBASTIÃO
De quê?

HARPAGÃO
Do que levou sumiço,
do meu cofre.

SEBASTIÃO
O seu cofre! e tinha lá dinheiro?

HARPAGÃO
Se mo não repões logo, enforcam-te, brejeiro!

FELISBERTO (baixo a Harpagão)
Olhe que espanta a caça. O homem não tem má cara.
Com bons modos, verá que tudo nos declara.
Como é a tua graça?

SEBASTIÃO
A alcunha que me dão
é Sebastião Pacato.

FELISBERTO
Ora, Sebastião,
um conselho de amigo, e amigo exp’rimentado,
não se há-de desprezar.

SEBASTIÃO
E não.

FELISBERTO
Caso negado,
provando-se, é pior. Vá lá. Confessa tudo,
que ninguém te faz mal. Eu sou homem sisudo:
o que prometo, cumpro; e, além da impunidade,
o patrão há-de dar-te o prêmio da verdade.
Roubaram-lhe hoje um cofre, e tu, que não és curto,
antes bastante esperto, hás-de saber do furto.

SEBASTIÃO (baixo, consigo mesmo)
Cai-me a sopa no mel. Agora é que o mordomo
paga tudo por junto; eu já lhe mostro o como.

HARPAGÃO
Que está ele a rosnar?

FELISBERTO (baixo a Harpagão)
Tape a boquinha; deixe!
Se não o amedrontar, temos no anzol o peixe.
A cara não mentia; eu bem lho tinha dito;
é pessoa capaz.

SEBASTIÃO
Ver já meu amo aflito
e vi-lo afligir mais, confesso que é custoso.
... Enfim, quem deve, paga. Esse furto horroroso
quer-me a mim parecer, que ninguém mais o fez
senão o seu mordomo. Eu falo português,
não ’stou ó tio, ó tio.

HARPAGÃO
O Duarte!

SEBASTIÃO
Sim senhor.

HARPAGÃO
Cum falar tão honrado!

SEBASTIÃO
Oui.

HARPAGÃO
Cum tamanho amor
a tudo que era meu!

SEBASTIÃO
Aí tem. Forte macaco!

HARPAGÃO
Dize: forte ladrão! ladrão pior que um Caco.
Mas por que julgas tu, já agora hás-de explicar-te,
sim, por que é que supões que o monstro foi Duarte?

SEBASTIÃO
Se põe por ele a mão no fogo, eu cá não ponho.
Suponho que foi ele... enfim... porque suponho.

FELISBERTO
Mas por que é que o supões? se há fundamento, emite-o.

HARPAGÃO
Viste acaso o Duarte andar rondando o sítio
onde eu tinha o dinheiro?

SEBASTIÃO
Ai, vi; por tal sinal...
o dinheiro onde estava?

HARPAGÃO
Ali, no meu quintal.

SEBASTIÃO
No quintal, justo, ali; nesse próprio lugar
é que eu vi muita vez o malandrim rondar.
E o dinheiro em que estava?

HARPAGÃO
Estava numa arquinha.

SEBASTIÃO
Cuma arquinha o vi eu.

HARPAGÃO
E essa como era?

SEBASTIÃO
Tinha
o feitio... sei lá? a modo assim... de arqueta
(se me apertam demais, atolo-me na peta).

FELISBERTO
Claro está, mas descreve-a.

SEBASTIÃO
Era grande bastante.

HARPAGÃO
A minha era pequena.

SEBASTIÃO
Isto é, exorbitante
também eu não na achei; o grande é no sentido
do grande dinheirão que estava lá metido.

FELISBERTO
E a cor? a cor?

SEBASTIÃO
A cor?... Era uma certa cor...
fora do uso... esquisita... (para Harpagão) O nome por favor;
veja se mo recorda... eu sei, mas não atino;...
vermelha, não?

HARPAGÃO
Cinzenta. Acabarás, mofino?

SEBASTIÃO
Cinzenta, é o que eu dizia: um certo acinzentado,
de um reflexo tirante a modo a avermelhado.

HARPAGÃO
Já se vê que era a mesma. Agora estou já certo
(para Felisberto)
Lavre este depoimento! Ah senhor...?

FELISBERTO
Felisberto,
para o servir.

HARPAGÃO
Achou-se a ponta da meada.
Quem há-de nunca mais fiar-se em gente honrada?
E ver que por aí há tanto quem suponha
que se pode viver sem forca!

FELISBERTO
É uma vergonha.

HARPAGÃO
Dizem que era melhor que os tais facinorosos
vivessem numa cela!

FELISBERTO
Olha os religiosos!

SEBASTIÃO
Lá vem ele! O que eu peço é se lhe não delate
quem lhe armou esta cama: é doido, e às vezes bate.

CENA III

Os mesmos e DUARTE

HARPAGÃO
Venha, venha, meu senhor,
que temos de ajustar contas.

DUARTE
Seja em que matéria for,
as minhas sempre estão prontas.

HARPAGÃO
Vem confessar, desgraçado,
o teu crime, a desleal
ação mais descomunal,
o mais nefando atentado
que jamais foi cometido.

DUARTE
Não percebo.

HARPAGÃO
Ih! que inocência!
Não percebe!!

DUARTE
A consciência
não me argúi.

HARPAGÃO
Mui bem fingido.
Ladravaz e comediante.

DUARTE
Por Deus, por si lho requeiro.
Que fiz eu? diga-o primeiro!
Convenca-me, e então...

HARPAGÃO
Bargante!
Faze papel d’inocente,
se te parece; mas sabe,
para que essa farsa acabe,
que eu de tudo estou ciente.
Não tem vergonha! abusar
da boa fé, do bom trato,
de tanto carinho, e ingrato
ousar lograr-me...

DUARTE
O negar,
uma vez que deu na coisa,
de nada me serviria,
senhor Harpagão de Sousa.

SEBASTIÃO (à parte)
Pois eu adivinharia?

DUARTE
Tencionava-lho dizer,
e aguardava a ocasião.
Assim cumpria um dever,
contando já co perdão.
Visto que fui descoberto,
e sabe tudo, o que peço,
imploro, e tenho por certo,
é me indulte o enorme excesso.

HARPAGÃO
Indultar-te! E em que razões
te fundas, ladrão cadimo,
para contar com perdões?

DUARTE
No muitíssimo que o estimo,
e em saber que não mereço
o título de ladrão.

HARPAGÃO (ironicamente)
Brincos de rapaz travesso;
coisas de nonada.

DUARTE
Não.
Ofendi-o gravemente,
confesso; porém foi culpa,
das que merecem desculpa.

HARPAGÃO
Desculpa, biltre, insolente,
a um assassino, a um traidor!

DUARTE
Torne em si! pense que o mal
não foi tamanho, nem tal
como o finge o seu rancor.

HARPAGÃO
Diz-me o infame que exagero!
Roubando-me ele o meu sangue,
acha injusto que me eu zangue
e não perdoe.

DUARTE
O que espero
é que abra os olhos, e veja,
que o seu sangue não caía
em mãos indignas; um dia
conhecerá quem eu seja.
Demais, eu não lhe fiz dano
que eu não possa reparar.

HARPAGÃO
E olé, se o há-de.

DUARTE
E de plano;
já já, se quer. Vou-lhe dar
à sua honra agravada
completa satisfação.

HARPAGÃO
A que vem aqui chamada
a honra? Mas que razão
(tomara que mo dissesses)
te fez perpetrar tal crime?

DUARTE
Um sentimento sublime.

HARPAGÃO
Se não és doido, pareces.
Que sublime sentimento?

DUARTE
Qué-lo saber?

HARPAGÃO
Quero.

DUARTE
O amor.

HARPAGÃO
O amor!

DUARTE
O amor mais violento.

HARPAGÃO
À minha burra?

DUARTE
Senhor!
Que me faz indigna afronta!
Do seu, nada mais cobiço
que o que já tenho.

HARPAGÃO
Só isso!
A pouco a ambição lhe monta.
Há-de com língua de palmo
largar o que chamou seu,
ou lá verá se o não calmo
nos quintos infernos.

DUARTE
Eu!
eu defraudar-me do gozo
de um bem que tenho seguro!

HARFAGÃO
Mas que é meu.

DUARTE
Meu.

HARPAGÃO
Teu!

DUARTE
Se juro
que é meu, e me faz ditoso!

HARPAGÃO
No roubo insistes?!

DUARTE
E insiste
em chamar a isto um roubo!

HARPAGÃO
E que roubo! em todo o globo,
tesouro igual onde o viste?

DUARTE
Em parte nenhuma. Achei-o
tão lindo, tão sedutor,
de ricas prendas tão cheio,
tão digno do meu amor...

HARPAGÃO
Que mo empalmaste.

DUARTE
Sossegue!
Não lho empalmei. Só lhe imploro
que à boa mente me entregue
objeto que tanto adoro.
Ajoelhado lho suplico.
Nada perde em mo ceder.
Sem a si se empobrecer,
torna-me o homem mais rico.

HARPAGÃO
Endoideceu.

DUARTE
É é verdade:
da paixão mais invencível.
Só por morte é que é possível
separar-mo-nos.

HARPAGÃO
Se se há-de
humilhar arrependido,
requinta na impenitência.

DUARTE
Já não posso, em consciência,
votos que fiz pôr no olvido.
Toda a insistência é já vã.

HARPAGÃO
E não querem ver ao cabo
que me rouba este diabo
por caridade cristã?
Vai, vai lá para a justiça,
meu salteador, galrar dessas,
que eu quero perder três peças
se escapares vivo. Atiça
cada vez mais a fogueira.
Torce melhor o baraço!

DUARTE
Puna-me embora!

HARPAGÃO
Ralaço!

DUARTE
Diga e faça quanto queira.
Recordo-lhe unicamente
que, se há réu, só eu sou réu.
Luísa está inocente;
juro-lho à face do céu.

HARPAGÃO
Pudera! Na parentela
nunca as houve dessa casta.
Mas de empalhações já basta.
Revela-me já, revela
para onde é que foi levada
a minha preciosidade?

DUARTE
Tem-na em casa.

HARPAGÃO (à parte)
Oh burra amada!
(alto) Isso é verdade?

DUARTE
É verdade.
Pode-a ver quando quiser.
Nunca em roubar-lha pensei.

HARPAGÃO
Nem lhe tocaste?

DUARTE
Honra é lei
ao homem como à mulher.
A Claudina que lhe diga
se houve jamais amor puro
como este amor que nos liga.
O testemunho é seguro.
Bem sabe: é mulher honrada,
vigilante, rigorista;
andou sempre desvelada;
jamais nos perdeu de vista.

HARPAGÃO
Quê! Pois até a Claudina
na tratada teve parte!
O demônio és tu, Duarte.

DUARTE
Sim; foi a própria menina
quem lhe impôs a obrigação
de vigiar-me e guardá-la.

HARPAGÃO
Agora, inda a escuridão
é mais profunda. Vá! fala!
Explica-te abertamente!

DUARTE
Claudina sabe-o mui bem.
Eu jurei-lhe (ela igualmente)
não pertencer a ninguém
senão eu a ela, e ela
a mim só.

HARPAGÃO
Já compreendo:
foram três os da esparrela...
Esparrela e crime horrendo!

DUARTE
Co ente mais adorável
aspirar a unir-se, é logro?
Desejar tê-lo por sogro
será crime imperdoável?

HARPAGÃO
Que é lá? pois de mais a mais
este infame farroupilha,
além dos meus cabedais
queria levar-me a filha?

SEBASTIÃO (a Felisberto)
Escreva, escreva, senhor,
tudo mui bem declarado!

HARPAGÃO
Escreva por atacado:
ladrão, sedutor, raptor.

SEBASTIÃO (baixo para Felisberto com medo de ser ouvido por Duarte)
Raptor, sedutor, ladrão.

FELISBERTO (escrevendo)
Assento e porto por fé...

DUARTE
Quem sou depois saberão.

FELISBERTO
Depois se porá quem é.

CENA IV

Os mesmos, D. MARIANA, D. LUÍSA, GUIOMAR (as quais vêm da segunda porta da esquerda)

HARPAGÃO
Filha indigna! foi essa a criação que houveste?
Não merecias ter o pai que em mim tiveste.
Amar um salteador, tramar um casamento,
desonra de ambos nós, sem meu consentimento!
Deixem lá! (para Luísa) Tu daqui já já para um mosteiro!
(a Duarte) Ele para uma forca, infame aventureiro!

DUARTE
Antes de condenado, espero ser ouvido.

D. LUÍSA
Se meu pai bem soubera o sangue esclarecido,
e as virtudes daquele a quem jurei lealdade,
não abusava assim da sua autoridade.

HARPAGÃO
É um Preste João, e ainda por cima um santo.
Vai-te ao diabo, tu, mais ele!

D. LUÍSA
Ignora quanto
meu pai lhe é devedor.

HARPAGÃO
Agora até lhe devo!

D. LUÍSA
Deve-lhe o estar eu viva.

HARPAGÃO
Oh, que grande relevo
nos méritos do herói! Vens a dizer na tua
que morrias sem ele, e vives porque és sua.

D. LUÍSA
Não lhe lembra que um dia em que eu coas mais andava
junto à beira do mar na penedia brava
a brincar e a correr, falta-me um pé, resvalo,
despenho-me no abismo... e quem ousa afrontá-lo,
roubar-me aos escarcéus, reconduzir-me à vida?
Foi ele; foi Duarte.

HARPAGÃO
Estavas submergida,
era por culpa tua, e porque Deus queria.
Escusava-se agora esta patifaria.

D. LUÍSA
Pelo amor paternal lhe rogo...

HARPAGÃO
Não me enguiça.
Quem deve, paga. O caso agora é coa justiça.

SEBASTIÃO (à parte)
A mim deve ele um par de murros bem puxados.

GUIOMAR (à parte)
Isto dá em tormenta; os céus estão nublados.

CENA V

Os mesmos e ANSELMO (vindo da primeira porta da direita)

ANSELMO
Vivam! Senhor Harpagão,
que tem? Acho-o... transtornado...
não sei como...

HARPAGÃO
A arder; danado;
com peste no coração.

ANSELMO
Mas desabafe!

HARPAGÃO
O que eu passo,
nunca ninguém o passou.
Tudo que há mau, desabou
em cima deste espinhaço.
Vinha assinar a escritura
do casamento; não vinha?
Pois diga adeus à futura!
Já não é sua nem minha.
A título de criado
meto em casa um salteador;
namora-ma, é dela amado;
rouba-me...

ANSELMO
É crível! que horror!

HARPAGÃO
Não sei se é crível, se não;
sei que é isto: assassinou-me
no meu haver, no meu nome:
— Desonrador e ladrão! —
(indicando Duarte)
Aí o tem!

DUARTE
Se não fora
ver-lhe, senhor, essas brancas,
e o ser pai desta senhora...
(indicando D. Luisa)

SEBASTIÃO (à parte)
’Stou pensando em dar às trancas.

DUARTE (para Harpagão)
Com indignação rejeito
a imputação vergonhosa;
mas a da culpa amorosa,
com que orgulho a não aceito!

HARPAGÃO (a Anselmo)
Vê? Não só confessa; até
faz do sambenito gala.
E a chança com que nos fala!
Tem, Dom Anselmo, um bom pé.

ANSELMO
Para me ir andando?

HARPAGÃO
Nada:
para tomar um desforço
de quem lhe roubou a amada.

ANSELMO
Moços têm carta de corso;
deixemo-nos disso.

HARPAGÃO
Amigo!
A afronta que ele lhe fez
não requererá talvez
a um fidalgo um bom castigo?

ANSELMO
Já não brigo.

HARPAGÃO
O que eu lhe peço
é que o persiga em juízo.
Gaste, do seu, no processo,
sem dó, quanto for preciso.

ANSELMO
Casamentos obrigados
nunca foram do meu gosto,
e não me sinto disposto
a afrontar-lhe os resultados.
Quando o senhor me dizia
(indicando D. Luísa)
que a menina, a quem Deus guarde,
era livre, e não fazia
má cara à fruta do tarde;
que era enfim tão inocente
que estava co pai de acordo,
que onde havia dote gordo
todo o esposo era excelente,
anuí ao seu desejo;
fui leviano; caí;
hoje é diverso...

HARPAGÃO
Perdi
um velho amigo, já vejo.

ANSELMO
Não perdeu: seja em que for
tem em mim auxílio certo.

HARPAGÃO (indicando o escrivão)
Bem! O... senhor... (hesitando)

FELISBERTO
Felisberto!

HARPAGÃO
Escrivão do Regedor...
pessoa de todo o porte...

FELISBERTO
Cuido que sim.

HARPAGÃO (para Felisberto)
Com certeza.
(continuando, para Anselmo)
E da maior esperteza
contra ladrões...

FELISBERTO
O meu forte
foi sempre esse.

HARPAGÃO
Está colhendo
informações por escrito
sobre este atentado horrendo,
único, atroz, inaudito.
(para Felisberto)
Carregue-mo bem... senhor...

FELISBERTO
Felisberto!

HARPAGÃO
Nunca acerto
o nome de Felisberto.
Vá lá! Com todo o rigor!
Faça-lhe a cama bem feita!
Pinte a coisa bem medonha,
por modo que o sem-vergonha
trepe aos ares desta feita.

DUARTE
Por amar a sua filha?!
Em sabendo quem eu sou...

HARPAGÃO
Com essas não me codilha!
Sem terem nem meio avô
sei de dez em cada rua
que não passando de uns pilhos
até se apregoam filhos
do sol, e netos da lua.

DUARTE
Muitos fazem disso; eu não:
somos ouro doutro cunho.
Invoco por testemunho
quanto há nobre em Aragão.

ANSELMO
Cautela, moço, cautela,
que vai de mal a pior!
Advirta que eu sei de cor
todo o Aragão e Castela.

DUARTE
Dou parabéns ao meu fado.
Conhecia um general
D. Tomás Reus Carvajal
Osuna Valdez del Prado?

ANSELMO
Se o conheci! Conheci-o
como ninguém.

HARPAGÃO
Que descoco!
Que tem todo esse gentio
co meu roubo?

ANSELMO
Espere um pouco
e veremos.
(Harpagão, vendo duas velas de cebo acesas em cima da mesa do escrivão Felisberto, assopra uma)

FELISBERTO (ironicamente)
Obrigado!

ANSELMO
Não o interrompa! (Para Duarte) Dizia...

DUARTE
Que D. Tomás el Del Prado
foi meu pai.

ANSELMO (rindo)
Seu pai?!

DUARTE
Não ria!
Foi meu pai; tenha a certeza!

ANSELMO
E eu dou-lha, por minha vida,
de que meteu a defesa
por um beco sem saída.

DUARTE
Posso provar o que digo.

ANSELMO
Que é filho de Dom Tomás?
Desafio-o, se é capaz,
e tome conta consigo.
Haverá dezesseis anos
(para ver como eu sei disto)
que o marquês de Guvilhanos
passou a cear com Cristo.
Foi Dom Tomás que em duelo
lhe fez com três estocadas
pagar palavras soltadas
contra ele em seu castelo.
Houve de esquivar-se às iras
dos parentes do defunto,
que em numeroso conjunto,
e coas mais torpes mentiras,
foram impetrar del-rei
a pena do matador.
Ei-lo em campo, ei-lo em furor
todo o exército da lei.
(Nem Hércules contra dois,
quanto mais contra quarenta)
A ocultas se embarca pois
sob outro nome que inventa,
levando a prole, a consorte,
e bom ouro.

DUARTE
Exatamente.
Ouça o resto a quem não mente.
O resto foi desta sorte:
Davam-se já por seguros
em costas de Portugal,
quando dos céus roxo-escuros
cai medonho temporal.
Baldada é toda a manobra.
Luta o vaso, e vai-se a pique;
mas quando tudo soçobra
a Deus praz que ileso fique,
em braços de um servo seu,
um menino. Rompe a alva;
vê-se perto um lenho, e os salva.
Esse menino sou eu.
O capitão generoso
julgou ser a providência
quem punha a minha inocência
no seu regaço piedoso.
Educou-me como a filho.
Depois, mal cheguei à idade,
como das armas ao brilho
eu sonhava heroicidade,
permitiu-me esse exercício,
em que assaz me avantajei.
Por um acaso enfim sei
quanto o fado me é propício:
Meu pai vive: o que eu chorara
sepulto no mar profundo
ainda pertence ao mundo.
Outro navio o salvara.
Mas onde estava ao presente?
Ninguém no sabia. Voto
buscá-lo incessantemente
té ao pólo mais remoto.
Chego aqui; vejo a beleza
que desluz a quantas vi;
roubo-a do mar à braveza:
salvo-a, salvo-a! Então daqui
não pude mais arrancar-me:
fiquei-a sempre velando.
Por mim outro eu próprio mando
que busque a meu pai; que o arme
de valor contra a ventura
que lhe vai anunciar:
que seu filho, escapo ao mar,
vive, e aguarda-o com ternura.

ANSELMO
Mas a prova? onde está ela?
a prova de que isto tudo
nos sai de um homem sisudo,
e não é simples novela?

DUARTE
A primeira que lhe eu dou
é o próprio capitão
que das vagas me salvou.
A segunda, o servo ancião
que igualmente existe ainda.
Terceira, este bracelete
coa materna imagem linda;
e neste anel de sinete
as nossas armas, e à volta
de meu pai as iniciais.

D. MARIANA
Vive Deus! que espero eu mais?
O irmão, que aos meus braços volta!

DUARTE
Minha irmã!

D. MARIANA
Sim, sim. Apenas
te ouvi a voz, arraiou-se
co sentimento mais doce
esta alma há já tanto em penas.
Vamos, vamos já levar
vida, alegria e conforto
à mãe que te cria morto
e a quem vens ressuscitar!
quanto é grande a Providência!
salvo o pai e o filho; a mãe
salva coa filha também.

DUARTE
Mas como? quem à violência
vos roubou do mar sanhudo?

D. MARIANA
O pobre de um pescador
em terra nos veio pôr.
No seu nada achámos tudo.

DUARTE
Depois?

D. MARIANA
Já que mo perguntas,
vivemos de costurar,
sozinhas, sempre a chorar...
mas a chorar sempre juntas.

ANSELMO
Filha, filho, filhos meus!
Vinde, correi, abraçai
o vosso ditoso pai.
Tornou a ajuntar-nos Deus.
Mas vossa mãe onde está?
Quero-a ver; levai-me a ela!
Filha, filha! como és bela!
Duarte, és um homem já!

HARPAGÃO (para Anselmo)
E o senhor (em santa paz
lho pergunto), o que é por fim?
D. Anselmo ou D. Tomás?
D. Pedro ou D. Serafim?

ANSELMO
Fui D. Tomás. Quando o fado
me obrigou a expatriar-me,
para melhor ocultar-me
fiz-me Anselmo; ando crismado.
Com este nome fingido,
sem deslustrar jerarquias,
tenho empregado os meus dias
no comércio e enriquecido.
Perdi muito em Aragão,
mas o que salvei do mar
permitiu-me aqui dobrar
o meu haver; e hoje então
quisera-o quadruplicado,
pois achei os meus herdeiros,
o meu sangue tão chorado,
os meus gostos derradeiros.
Deus bem viu como eu vivia
no meio desta cidade
em profunda soledade
e absorto em melancolia.
Por isso, amigo Harpagão,
é que eu lhe ouvi sem horror
propostas de uma união,
que me punha em casa amor.

HARPAGÃO
Visto isso, aquele sujeito
é seu filho?

ANSELMO
E minha glória.

HARPAGÃO
Então, quem me paga a história
há-de ser o pai.

FELISBERTO (sempre à mesa)
Direito!

ANSELMO
Que história?

HARPAGÃO
O roubo.

ANSELMO
Que roubo?

HARPAGÃO
Quatro contos bem contados.
Foi fartadela de lobo.

ANSELMO
Mas esses dez mil cruzados
quem lhos roubou? não entendo.

HARPAGÃO (indicando Duarte)
Duarte.

DUARTE
Mentiu.

ANSELMO
Duarte,
quem ousou tal assacar-te?

SEBASTIÃO (à parte)
Ao meu santo me encomendo.
São Sebastião, meu santinho,
pelas vossas bentas frechas
livrai-me de algumas brechas
nos lombos e no focinho.
(vai para se esgueirar pela segunda porta da direita)

HARPAGÃO (chamando)
Vem cá, Sebastião; declara
segunda vez o que viste.

SEBASTIÃO
Eu ’stava bêbado e triste
e não tinha a idéia clara.
Talvez cuidasse que via,
e fosse engano dos olhos,
(à parte) Pilho pauladas aos molhos.
(alto) Nem eu sei o que dizia.

HARPAGÃO
O depoimento ali ’stá
por mão do nosso escrivão.

DUARTE
E capaz me julgará
de tão vergonhosa ação?

HARPAGÃO
Ou capaz ou incapaz,
para ali o meu dinheiro!

FELISBERTO
Em que ficamos?

HARPAGÃO
Primeiro
responda-me D. Tomás!

CENA VI

Os mesmos, JÚLIO, TOMÁS (que vêm da segunda porta da direita com o cofre embrulhado num capote)

(Tomás vai para o fundo da cena, onde fica meio encoberto pelo biombo)

JÚLIO
Sossegue, e parabéns! o cofre, o seu tesouro
existe, achou-se.

HARPAGÃO
Dá-mo. Onde o tens?

JÚLIO
O seu ouro
nunca lhe foi roubado; é seu, mal que disser
que Mariana é minha.

HARPAGÃO (à parte)
O cofre sem mulher,
ou a mulher sem cofre. Eu, que não sou banana,
resolvi: (alto para Júlio) — Dá-me a burra, e leva a Mariana.
Mas tocar-lhe-ia alguém?

JÚLIO
No cofre? esteja certo
de que nunca jamais foi nem sequer aberto.
(Para D. Mariana) Nada falta, Mariana! A tua mãe consente.
De lá venho: implorei-a; amor torna eloqüente;
convenci-a, e sem custo, a permitir-te a escolha
entre mim e meu pai. Nada há que enfim nos tolha.

D. MARIANA
Não sei. De um pai também depende o meu destino.

JÚLIO
Como! Pois tens...

ANSELMO
Sou eu.

D. MARIANA
Presente repentino,
que recebi de Deus, assim como em Duarte
recobrei um irmão.

JÚLIO (cumprimentando Anselmo)
Senhor! (Para D. Mariana) Porém de que arte
se operou tal prodígio?

D. MARIANA
Eu to direi.

ANSELMO
Consente,
meu amigo Harpagão, na dita desta gente?
O meu sangue co seu já vê que se harmoniza.
Dê-se Mariana a Júlio, e Duarte a Luísa.

HARPAGÃO
Primeiro, venha o cofre; antes não dou resposta.

JÚLIO
O cofre, intato e são, vem já correndo a posta.

HARPAGÃO
Eu dinheiro não dou; não tenho. Se faz conta
casar sem dote, bem.

ANSELMO
Sem lhe fazer afronta,
doto eu os dois casais.

HARPAGÃO
E obriga-se por todas
quantas despesas traz o casamento e as bodas?

ANSELMO
Com mil vontades.

HARPAGÃO
Certo?

ANSELMO
E mais que certo.

HARPAGÃO
Bom.
(à parte) Sempre este D. Tomás merece bem o Dom.

ANSELMO
Corro a ver minha esposa. Acompanhem-me! É dia
para se me espelhar em todos a alegria.
(Põem-se todos em ato de partir, pela primeira porta da direita)

FELISBERTO (levantando-se da mesa)
Alto lá! quem me paga?

HARPAGÃO
O quê?

FELISBERTO
Toda esta escrita.

HARPAGÃO
E ela de que nos serve?

FELISBERTO
Essa agora é bonita!
Por que a mandou fazer? e em letra tão distinta?
com pena de peru, e graxa em vez de tinta?

HARPAGÃO
Bem. Não quero lesá-lo, e pago o seu trabalho.
Dou-lhe para enforcar este grande bandalho.
(indicando Sebastião)

SEBASTIÃO
Falo verdade, e apanho! Encaixo a minha peta,
e enforcam-me! Que mundo! O diabo és tu, forreta!

ANSELMO (para Harpagão)
Há de perdoar-lhe, amigo. Aquilo é um parvo.

SEBASTIÃO
Um tonto.

DUARTE
Até eu lhe perdôo.

HARPAGÃO (para Anselmo)
O amiguinho está pronto
a pagar ao escrivão?

ANSELMO
E a tudo quanto queira.
(Dá dinheiro a Felisberto, que sai pela primeira porta da direita, fazendo grandes cortesias)

JÚLIO
Vem, Tomás!

TOMÁS
Ei-la aqui.
(Tomás vem em passo grave e com ar solene; descobre a caixa e a apresenta a Harpagão)

HARPAGÃO (arremessando-se à caixa)
A minha feiticeira!
(Tira alvoroçado uma chavinha do bolso; abre de repente a caixa, e encara o ouro com a maior complacência)
(abanando) E traz o peso, traz! é isto mesmo. Agora
toca a ver se está certo, e adeus.

ANSELMO
Vamos embora.

HARPAGÃO
Olhe cá, Dom Tomás, eu é que falto à festa.

ANSELMO
Por quê?

HARPAGÃO
Tenho um chapéu que para nada presta,
e casaca não tenho.

ANSELMO
Arranje-se de tudo,
e remeta-me o rol que eu pago.

HARPAGÃO (à parte)
Ih, que lanzudo
tão bom de tosquiar!
(Sai Anselmo; atrás dele, D. Mariana pelo braço de Júlio; D. Luísa pelo de Duarte; Sebastião e Tomás de braço dado, atrás de todos, e saltitando. Harpagão senta-se no chão a contar o dinheiro)

GUIOMAR
Senhor Dom Harpagão!

HARPAGÃO (sem olhar para ela)
Nove, dez... Que lhe quer?

GUIOMAR
Sou a Guiomar.

HARPAGÃO
E então?
Vinte e dois, vinte e três... Que é que pretende?

GUIOMAR
Assento
que lá por ter falhado aquele casamento,
eu não desmereci. Eu fiz-lhe quanto pude.

HARPAGÃO
Cento e dois, cento e três...

GUIOMAR
Que diz?

HARPAGÃO
Que haja saúde.

GUIOMAR
Para se consolar, se quer a viscondessa,
pague e trago-lha já.

HARPAGÃO
Forte quebra-cabeça!
Já me perdi na conta. A viscondessa, tu
e quanta mulher há, vão-se com Belzebu.
(batendo na caixa)
A minha esposa é esta. A esta é que eu me obrigo
a ser sempre leal.

GUIOMAR (fazendo-lhe figas e correndo para a primeira porta da direita)
Vai! some-te, inimigo!
Fica-te como um cão, sozinho ao desamparo,
suicida vil! demente! infame! avaro! avaro!

 

* * *

 


Nota Editorial

Por fidelidade à fonte digitalizada, foi, na medida do possível, mantida a diagramação e o crédito, como tradutor, a António Feliciano de Castilho.

A bem da verdade, e para não induzir o leitor a erro, é necessário deixar claro que não se trata, aqui, de uma mera tradução, mas de uma auténtica recriação da obra de Molière, pelo gênio de Castilho.

O trama é toda de Molière, e quem leu ou ler o original não estranhará a história. Mas encontrará um gosto novo, uma, diríamos, adaptação, ou se preferirem, uma releitura da obra de Molière.

Para os puristas, recomenda-se a leitura do original, em francês, que pode ser facilmente localizado na web, por exemplo, no rigoroso e rico www.toutmoliere.net.

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Fevereiro 2006

 

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