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Acaso, Coincidência ou Fadário

Romero Evandro Carvalho


 

Acaso, Coincidência ou Fadário
Romero Evandro Carvalho
Fonte digital: Documento do Autor
romeroevandro@hotmail.com

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Vapor Izabel, no Rio Ribeira de Iguape, na altura do bairro Jipovura, por volta de 1909
fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Iguape

eBooksBrasil.org
© 2013 Romero Evandro Carvalho


 

Romero Evandro Carvalho

Acaso, Coincidência ou Fadário


Índice

Nota do autor
Capítulo I
Inusitada manifestação mediúnica

Capítulo II
A viagem

Capítulo III
O tratamento de saúde

Capítulo IV
O despertar de um amor

Capítulo V
O acidente

Capítulo VI
A visita médica

Capítulo VII
A cirurgia

Capítulo VIII
A declaração de amor

Capítulo IX
O retorno

Capítulo X
O reencontro familiar

Capítulo XI
O segredo revelado

Capítulo XII
O noivado

Capítulo XIII
O aconchego familiar

Comunicação dos Espíritos
Capítulo XIV
O casamento


 

 

Nota do autor

 

Este romance, ambientado no ano de 1875, teve o seu desenrolar inicial, numa cidade provinciana — Iguape — onde o Espiritismo, assentado, em O Livro dos Espíritos, editado na França, em 1857, por Léon-Hippolyte-Denizart Rivail, — Allan Kardec — ali, ainda não era conhecido.

Mas, as manifestações espirituais aconteciam, no âmbito de um grupo restrito de pessoas, que, em reunião, os Espíritos eram descritos e se comunicavam através de um participante, que tinha a possibilidade de ver e ouvir as entidades espirituais que ali compareciam. No geral, os Espíritos que nessa reunião se mostravam e falavam, eram de familiares dos que ali se compunham. Não havia, para esse grupo de pessoas, o objetivo de perscrutar sobre como tudo aquilo acontecia. As manifestações, não eram objeto de nenhum estudo, mesmo porque, como dito anteriormente, naquela localidade, ainda não havia chegado a obra codificada por Allan Kardec — O Livro dos Espíritos e nem o Livro dos Médiuns que foi editado em 1861, igualmente, por Allan Kardec.

Como espírita, almejo com a veiculação dessa novela, com modéstia, despertar a atenção e o interesse daqueles que, de boa vontade, leiam e analisem os diálogos, mais relevantes, principalmente aqueles surgidos no seio familiar, em face das intercalações dos ensinos da Doutrina Espírita, constantes em: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Obras Póstumas de Allan Kardec, e também, da Bíblia Sagrada, além de outras publicações pertinentes ao assunto. posicionadas de entremeio no texto, que na minha ótica, podem pousar luz, àqueles que me acompanham com essa leitura, conhecerem ou recapitularem os ensinamentos e conceitos que o Espiritismo congrega sobre as variadas situações.

Assim, sendo este romance pautado sob os vínculos do amor, da amizade, da solidariedade, da compreensão, da dedicação, da fraternidade, do encontro de pessoas e de idéias comuns e na união familiar, naquela quadratura do tempo — 1875 — confrontadas aos ditames do Espiritismo, enseja o autor, que o caro leitor ou leitora, possam extrair dessa ficção romanceada, algo de bom, novo e estimulante, para um posicionamento centrado no Amor, em todos os seus matizes, que é a síntese da Doutrina de Jesus, e que, uma centelha interior, possa ampliar-se e impulsioná-los aos conhecimentos mais profundos e com consistência, nas obras básicas da Doutrina Espírita.

O autor.


 

Capítulo I
Inusitada manifestação mediúnica

 

Iguape, no ano de 1875, era o principal centro econômico da região.

No seu porto, muito movimentado, atracavam paquetes de grande calado. O comércio com a cidade de Santos e Rio de Janeiro era constante e promissor, principalmente, no que dizia respeito ao arroz, do qual, Iguape era o maior produtor do Brasil, na época.

Socialmente, havia uma casta bem posicionada, abastada, com cultura e maneiras refinadas, adquiridas por professores contratados, oriundos de Santos e do Rio de Janeiro.

Era hábito, em fins de semana, que acontecessem os saraus e, vez ou outra, vinham orquestras para as grandes comemorações da cidade, ou para eventos familiares que as contratavam para as bodas.

Na cidade, quase no centro, existia e ainda existe, um local bem característico: o cruzamento de duas ruas muito estreitas, formando, quatro esquinas muito próximas, que os habitantes do lugar, denominaram de “Quatro Cantos”. Em uma dessas esquinas, residia num grande casarão de estilo colonial português, uma família abastada e bem conceituada, dado a sua retidão moral e o sucesso no trabalho, mas, de procedimentos simples, e tendo como patriarca, acolhedor e amoroso, o Sr.Bernardino, que, há época, já era viúvo e, tendo como filhos, o menor Claudino, e Bernardo, sendo este, casado com Margery, e que tinham duas filhas — gêmeas — Maria Conceição e Maria do Rosário. Residiam aí também, duas irmãs do Sr. Bernardino — Esther e Ana Rita.

Os negócios da família eram: três barcos de pesca, um engenho de beneficiamento de arroz, uma propriedade agrícola, com o cultivo da rizicultura em larga escala, e uma pequena fundição.

As gêmeas tinham dezessete anos. Maria Conceição tinha cabelos negros, lisos e longos, olhos azulados, nariz afilado, lábios delicados — uma bela moça, muito elegante, com posturas estudadas, tendo como sua preceptora, a sua tia Esther.

Em virtude da debilidade física de Margery, Maria Conceição, era a companheira do seu pai para alguns atos sociais.

Maria do Rosário, de traços idênticos aos da sua irmã, com olhos azuis, cabelos ondulados e loiros, mas, de uma beleza apagada, sem brilho, sem vivacidade. Era uma enclausurada por sua livre escolha, em decorrência do seu complexo físico. Dificilmente saia de casa, a não ser aos domingos, quando em companhia dos seus pais, ia aos ofícios religiosos. Às vezes fazia passeios de carruagem pelos campos do Largo do Rosário, do Largo São Benedito, outras vezes, na Fonte, onde aí, teria sido lavada a imagem do Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, o santo padroeiro da cidade.

Margery, muito embora pelo tempo que o mal fustigava o seu corpo, trazia escondido em seu semblante, uma linda mulher. Era loira, esbelta, notava-se que teria tido uma bela silhueta. Do seu rosto chamava a atenção, seu olhos exuberantemente azuis, realçando em sua pele rósea, mas sem o vigor da saúde.

Nascera numa aldeola denominada Ariri, nas proximidades da cidade de Nossa Senhora de Cananéia. Descendia de antiga família residente no local — os Barboza — a qual, embora não tenha havido comprovação documental, tinha ela, as suas raízes hereditárias nos piratas protegidos pela coroa britânica. Pelos traços globais e até pelo seu próprio nome, já revelavam que ela teria tido ancestrais britânicos, em grau que desconhecia.

É tido como certo, como discorre a história, que o famoso pirata Cavendich, após as suas pilhagens e assaltos em localidades litorâneas e aos navios, não raras vezes, refugiou-se com seus corsários, pelos meandros dos infinitos braços de mar e ilhas, existentes entre o litoral paulista e paranaense.

 

Os dias corriam normalmente para os residentes do casarão.

Mas numa oportunidade, quando Bernardo acompanhava um carregamento de arroz que estava sendo embarcado para a cidade do Rio de Janeiro, ele sentiu como se alguém lhe falasse muito de perto: “Por que você não leva a sua esposa e a sua filha ao Rio de Janeiro, para se submeterem a uma consulta médica?”

Assustado com aquela manifestação, olhou para um lado e para outro, e não viu ninguém ao seu redor, ficando meio assustado.

Bernardo, nunca havia experimentado esse tipo de situação, muito embora soubesse que na cidade, algumas pessoas diziam comunicarem-se com os mortos.

Mas, logo voltou a sua atenção aos seus negócios imediatos, deixando momentaneamente de preocupar-se com o ocorrido.

Após o final do carregamento, algo muito forte agiu sobre ele, e surgiu-lhe uma vontade enorme de falar com o Comandante, com o qual, já há algum tempo, tinha um bom relacionamento de amizade.

 

“Manifestação/Aconselhamento: Há na Doutrina que deveria converter os mais incrédulos, por seu encanto e por sua doçura: a dos anjos da guarda. Pensar que tendes sempre ao vosso lado seres que vos são superiores, que estão sempre ali para vos aconselhar, vos sustentar, vos ajudar a escalar a montanha escarpada do bem, que são os amigos mais firmes e mais devotados, que as mais íntimas ligações que se possam contrair na Terra, não é essa uma idéia bastante consoladora? Esses seres ali estão por ordem de Deus, que os colocou ao vosso lado; ali estão por amor, e cumprem junto a vós todos uma bela mas penosa missão. Sim, onde quer que estiverdes, vosso anjo estará convosco: nos cárceres, nos hospitais, nos antros do vício, na solidão, nada vos escapa desse amigo que não podeis ver, mas do qual vossa alma recebe os mais doces impulsos e ouve os mais sábios conselhos” — (O Livro dos Espíritos — Livro II — cap.IX)

 

— Comandante Vicente gostaria de ter consigo, uma entrevista num lugar reservado.

— Pois não senhor Bernardo. Vamos até o meu camarote.

Lá chegando, o Comandante lhe ofereceu vinho.

Após alguns goles, Bernardo contou para o Comandante o problema físico da sua filha e da debilidade da sua esposa.

Antes mesmo que Bernardo tivesse terminado a sua narrativa, mas já com o conhecimento do que realmente queria lhe contar o amigo, o Comandante com sua sensibilidade aguçada, pois sentia que aquela situação causava sofrimento ao seu interlocutor, interrompe-o dizendo: — Caro amigo Bernardo, eu estou condoído com os problemas de saúde da sua família, mas diga-me, por favor, no que posso servi-lo?

Bernardo, como se fosse numa rogativa, falou ao Comandante: — O senhor retornará amanhã para a Capital, assim sendo, eu lhe peço, por favor, com base no que lhe contei, sobre os problemas da minha esposa e filha, não medir esforços, pois que, posteriormente lhe compensarei, na procura de um facultativo, lá na Capital, para assisti-las.

O Comandante alisou a barba, acariciou o bigode e em seguida lhe respondeu: — Foi uma pena o Dr. Arthur não ter vindo conosco. Ele é o médico da companhia e iria ser utilíssimo nesse momento. Mas sossegue amigo Bernardo, que ao chegar na Capital, vou procurá-lo, e com certeza ele nos auxiliará. Fique tranqüilo que, dentro de vinte ou trinta dias, dar-lhe-ei o nome do melhor facultativo do Rio de Janeiro.

Agora, meu amigo, se desejar continuar ter a minha amizade, esqueça a compensação que me ofereceu. Está certo?

— Comandante, o que o senhor puder fazer para a felicidade das minhas queridas, ficarei eternamente agradecido.

— Amigo, irei fazer o que dita o meu coração, conforme o ensinamento que nos foi deixado por Jesus: “Amai-vos uns aos outros”, e ainda, “Tudo que quereis que os homens vos façam, fazei-os a eles” — isto está em S. Mateus. Assim, meu amigo, não farei mais do que minha obrigação de cristão. Aguarde meu amigo, que notícias lhe chegarão em breve. Caso não seja eu que retorne, o portador da minha missiva, será uma pessoa da minha inteira confiança, pela qual, o senhor poderá utilizar-se, querendo escrever-me em resposta.

 

Conversaram mais sobre vários assuntos, degustando um delicioso vinho português, mas logo despediram-se num afetuoso abraço.

 

Bernardo, cumprindo a rotina de trabalho do dia, passou na fundição, no engenho e no entreposto de pesca. Feito todo o itinerário de trabalho, e estando tudo em ordem, foi para a sua casa, com o sol já se debruçando no horizonte. Encaminhou-se então para a biblioteca, onde lá está o Sr. Bernardino saboreando o seu vinho do Porto.

— Está servido filho?

— Não papai, por hoje eu já tomei.

— Onde e com quem?

— Não se preocupe com isso papai. Eu estive com o Comandante Vicente, e ele, muito gentil ofereceu-me vinho. Tomei algumas taças. É justamente sobre esse encontro que tive, que desejo falar-lhe.

— Bernardo, então, discorreu para o seu pai, todo o ocorrido, aquela voz misteriosa, e o diálogo que teve com o Comandante, o qual, prometeu ajudá-lo no seu petitório.

 

“— Os Espíritos influem sobre os nossos pensamentos e as nossas ações?

— Nesse sentido a sua influência é maior do que supondes, porque muito frequentemente são eles que vos dirigem.” — (O Livro dos Espíritos pergunta n.459)

 

— Acho que foi muito providencial o que ocorreu com você, e muito boa a sua atitude. Margery ainda é muito jovem e minha neta é praticamente uma criança. Elas têm o direito de serem normais e saudáveis, e merecem a oportunidade de consultarem um outro bom facultativo, que talvez, possa lhes dar outro sentido em suas vidas, do que ficarem encarceradas nesse casarão imenso. Bernardo você tem todo o meu consentimento e apoio, no entanto, não esqueça, de comunicar a intenção da nossa família, ao Dr. Eustáquio. Ele sempre cuidou com desvelo de todos nós. Assim sendo merece a nossa consideração e satisfação.

— Muito obrigado, papai, pelo apoio. Farei o comunicado ao doutor, amanhã.

Bernardo ia passando pela sala de música, e lá estava Maria Conceição, “esmurrando” o piano.

— O que foi minha filha?

— Ah! Papai... Eu não consigo aprender a tocar! Todas as minhas amigas já tocam algumas músicas. Será que eu vou conseguir?

— Calma... Calma minha filha! O piano é um instrumento difícil. Só com muita dedicação é que se terá bons resultados. Vá com tranqüilidade e perseverança, que você conseguirá. Sua professora tem vindo?

— Tem!

— Então, com calma, estude — disse ele, afastando-se e dando-lhe um afago carinhoso nas costas.

 

Ele seguiu a procura de Margery e Maria do Rosário, mas não as achou no pavimento térreo, então, subiu a escada de três em três degraus, e lá, nos aposentos, encontrou as duas: Margery na cadeira de balanço ouvindo a leitura que Maria do Rosário fazia sobre uma passagem bíblica — “Pedi e se vos dará. Buscai e achareis. Batei e vos será aberto. Porque todo aquele que pede, recebe. Quem busca, acha.”

— Como passaram o dia?

— Bem Bernardo! Hoje estou um pouco animada.

— E você boneca?

— Estou bem!

— Mas a sua resposta não está muito convincente! Vem cá. Sente-se aqui no meu colo, que eu quero fazer um comunicado e espero as suas aprovações.

— Antes, escutem só o que aconteceu comigo, enquanto eu acompanhava o carregamento de uma partida de arroz para o Rio de Janeiro.

Bernardo, então, lhes contou sobre a voz misteriosa e providencial, e depois, sobre a conversa que entabulou com o Comandante Vicente, e a sua disposição para ajudá-las.

Margery, embora estivesse um pouco animada, tinha dúvidas sobre a sua cura, em virtude dos anos de sofrimento — corrimento vaginal de fluxo sanguíneo, quase constante. Poucas vezes no mês o fluxo estancava. Por essa razão, Margery, era muito debilitada e sem aquela cor saudável. Estava sempre sujeita às doenças respiratórias...

O Dr. Eustáquio recomendava sempre, para que Margery se nutrisse com alimentos de alto teor protéico e ferroso, além de, obrigatoriamente, consumir todos os dias verduras e legumes, para que não fosse surpreendida por uma doença infecciosa, como a bronquite ou tuberculose. Recomendava ainda o doutor, que ela estivesse sempre muito bem agasalhada.

Já, a notícia para Maria do Rosário, transformou o seu ânimo. Do colo do seu pai, disse ela para sua mãe: — Mamãe, já temos lido, em relatos bíblicos — hoje mesmo, pela manhã, nós lemos em Provérbios: “O coração do homem dispõe o seu caminho, mas é o Senhor que dirige seus passos”. Entendo então, que nada em nossas vidas — quero dizer — nada que não seja importante, acontece sem a permissão de Deus! Da mesma forma, entendo, que não foi por mero acaso que levou papai a escutar aquela voz que o impulsionou a conversar com o Comandante a nosso respeito. Então, mamãe, será que essa não é a oportunidade que temos de nos libertar dessas amarras doentias? Vamos mamãe... vamos que eu prometo cuidar da senhora muito bem”, o tempo todo!

Bernardo estava atônito. Não conhecia aquele ânimo positivo da sua filha. Ela estava resoluta, e com vontade firme de se submeter à consulta na Capital. Ele a apertou num grande abraço e lhe deu um beijo.

— Filha, eu acho que você tem toda razão! Jesus nos ensina sempre a sermos felizes. Constantemente, Ele nos indica os caminhos para essa conquista — disse Margery.

Ficou estabelecido então, que aguardariam as notícias do Comandante.

 

Antes de se recolher ao seu quarto, naquela noite, tomando banho, na banheira, Maria do Rosário cantarolava. Há muito tempo que isso não acontecia. Ela, então, levantava o seu pé fora da água, e falava consigo mesma: “Aleijão, os seus dias estão contados! Não estou com raiva de você, porque senão, teria que ficar com raiva de Deus; mas acho que chegou a hora de você deixar de existir!”

E ela continuava: “Aleijão, a sua existência está terminando! Se eu necessitava passar por essa dificuldade e me enclausurar, hoje, eu sou agradecida, porque, nesse tempo todo de confinamento, estou reconhecendo que realmente aprendi muitas das lições que o Nosso Bom Jesus da Cana Verde, nos ensinou”

Maria do Rosário tinha um dos pés, defeituoso. Entre o dedo maior (o dedão) e outro, do pé esquerdo, havia uma carne esponjosa unido-os. A aparência era muito feia, e o local, estava sempre dolorido, e com isso, seu andar era dificultoso. Seus sapatos eram feitos por encomenda e de tecido.

Nessa noite, Maria do Rosário dormiu como nunca havia experimentado. Sonhou até que estava enamorada de um belo rapaz.

Despertou muito feliz. Mas, sonhar que estava enamorada, se nem namorado tinha!

 

“Sonhos: Os sonhos são o produto da emancipação da alma, que se torna mais independente pela suspensão da vida ativa e de relação. Daí uma espécie de clarividência indefinida, que se estende aos lugares os mais distantes ou que jamais se viu, e algumas vezes mesmo a outros mundos. Daí também a lembrança nas existências anteriores...” — (O Livro dos Espíritos — Livro II — cap.VIII — pergunta n.402)

 

Significação dos sonhos “Podem ser, enfim, algumas vezes um pressentimento do futuro, se Deus o permite, ou a visão do que se passa no momento em outro lugar, a que a alma se transporta.” — (O Livro dos Espíritos — Livro II — cap. VIII)

 

Margery também acordou bem disposta, em comparação com os dias anteriores. Estava alegre e muita mais animada. Isso tudo, fazia com que, aquele ar pesado e quase fúnebre do casarão, se dissipasse um pouco.

Todos da casa notaram uma expressiva mudança nas duas.

O avô e sogro, muito feliz com a mudança, até concordou que no próximo fim de semana, ali se realizasse um sarau, evento esse, que nas dependências do casarão, há muito tempo não acontecia; desde o falecimento de dona Maria Izabel, esposa do Sr. Bernardino.

Desse clima feliz, Bernardo despediu-se da esposa e da filha, objetivando ir ao encontro do Dr. Eustáquio.

Chegando ao consultório, Bernardo expôs a sua vontade de levar a sua esposa e filha para a Capital, afim de que ambas, se submetessem a opinião de um outro facultativo. Para isso, ali ele estava, a pedir a permissão do doutor.

Dr. Eustáquio, sem melindres, aprovou a iniciativa, e até, prontificou-se a acompanhá-las, e ainda, caso isso não fosse possível, elaboraria um relatório do tratamento mais complexo, que era o de Margery, para ser apresentado ao colega.

Bernardo ficou satisfeito com a anuência do Doutor.

 

A vida no casarão corria tranqüila, mas sempre na expectativa, e no aguardo das notícias que viriam da Capital.

Até que. no dia 28 de julho de 1875 — data essa, assinalada no diário do Sr. Bernardino, eles ouviram os apitos do vapor que estava entrando na Barra de Icapara. Esse era o primeiro dia da novena, que culminava com o grande acontecimento religioso da cidade, que era a procissão em louvor, ao Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde.

A cidade já fervilhava de romeiros.

Bernardo, meio agitado, rumou para o porto. Muitas pessoas aguardavam a atracação. De longe, dava para se notar que o vapor trazia muitos passageiros. Lançadas as amarras e fixadas, começaram a desembarcar.

Bernardo não vê a hora de entrevistar-se com o Comandante, que estava em uma das janelas da ponte de comando.

O Comandante fez um gesto, convidando-o a vir ao seu encontro.

Ambos cumprimentaram-se efusivamente. Antes de tocar no assunto, o Comandante, mandou chamar o Dr. Arthur — o médico embarcado.

Com a chegada deste, houve as apresentações.

Com objetividade, o Dr. Arthur passou a discorrer a Bernardo o contato que teve no Rio de Janeiro com o facultativo, que no seu conceito, deveria ser o melhor para atender os casos que a ele foram narrados pelo Comandante.

— Disse-me ele, Sr. Bernardo: “Que está a sua inteira disposição, e que, vislumbra, dentro da sua experiência, muito embora, sem tê-las examinado, grandes possibilidades de cura para ambos os casos”. O nome dele é Dr. Sizenando. Ele está tendo bons resultados nos casos em que atua, e está sendo muito solicitado.

Bernardo ficou satisfeito com a notícia, que até, já reservou os camarotes. Agradeceu a gentileza do Comandante e do Doutor, e rumou diretamente para casa, para apressar os preparativos da viagem. Lá chegando, ele comunicou a sua esposa, as filhas e suas tias Esther e Anna Rita, que o vapor zarparia dentro de dois dias, e que se apressassem com as bagagens.

O Sr. Bernardino fez ver, a Bernardo, o seguinte: — Filho, vai sem ter a preocupação comigo, nem com os negócios; e nem com os gastos que lá vai ter. O que importa nessa empreitada é a saúde delas. Muito embora tenhamos que ser parcimoniosos nos nossos gastos, não devemos ser econômicos quando eles serão usados para a nossa felicidade. O tesouro da felicidade é eterno! Vão com as minhas bençãos para essa conquista.

Nesse mesmo dia, Bernardo foi ao encontro do Dr. Eustáquio, e agradeceu o seu oferecimento de acompanhá-los, visto que, à bordo, já existe um médico da própria companhia de navegação que se prontificou a assistir Margery e Maria do Rosário.

Dr. Eustáquio então, passou às mãos de Bernardo o relatório sobre o tratamento de Margery, desde o início dos sintomas.

Um dia antes da esperada viagem, Maria do Rosário manifestou ao seu pai, o seu desejo de ir à igreja, participar do primeiro ofício religioso. Convidou a sua mãe, que prontamente o aceitou. Logo às seis horas, lá estavam os três. Margery, Maria do Rosário e Bernardo. Acomodados em um dos primeiros bancos da nave da igreja, causando até admiração de outras pessoas, uma vez que, aquele ofício, não era normalmente freqüentado pela alta sociedade, e nem mesmo, eles estavam ocupando os seus lugares, que sãos reservados nos balcões.

O vigário, observando-os, raciocinou rápido, e deduziu para si: eles estão acomodados ali, em virtude do problema de saúde da dona Margery e da Maria do Rosário.

Na homilia, o vigário ressaltou a passagem evangélica: “Perdoai os vossos inimigos”, encadeando os seus raciocínios com aquela outra afirmativa de Jesus: “Se alguém lhe bater numa face, oferece também a outra”, ressaltando também, as virtudes da paciência e da resignação.

Terminado o ofício, o vigário Alfredo, vai ao encontro de Bernardo, Margery e Maria do Rosário, e todos rogaram as suas bênçãos.

Bernardo se adiantou e justificou a ausência de todos, aos próximos ofícios, em virtude de estarem de partida para o Rio de Janeiro, para que ambas, sua esposa e filha, se submetessem a uma consulta médica, e, talvez, até ficarem lá, por algum tempo, para um prolongado tratamento.

Olhando para Margery e Maria do Rosário, amorosamente, o vigário lhes disse: — “Jesus Cristo nos disse: “Seja o que for que peçais na prece, crede que obtereis e concedido vos será o que pedires”. Isso quer nos dizer que, roguem com muita fé, para que o Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, lhes restitua a saúde completa para ambas. Em seguida, ele pediu para que aguardassem um instante, e se dirigiu à sacristia, e de lá, veio com uma pequena imagem do Nosso Senhor. E, ao entregar a elas, recomendou: Este é o meu presente para vocês; rezem com fé, pedindo o seu auxílio, que Ele as ajudará na cura total, que tanto merecem. Tenham a absoluta certeza que Ele as ouvirá. Vão com Deus, e fiquem cientes, que vocês estarão sempre nas minhas orações.

Na volta para casa, Bernardo notou que as duas estavam mais animadas.

Naquela hora da manhã, exceção dos serviçais, só estava de pé, o Sr. Bernardino que ficou surpreso, perguntando: — Onde foram tão cedo?

 

— Sabe “Vô”... Como vamos viajar amanhã bem cedinho, resolvemos ir à missa em louvor a Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, fazer os nossos pedidos e agradecimentos.

— Isso é muito bom!

— Vovô, o senhor poderia vir conosco! Não seria bom rever aquele lugar que o acolheu há tantos anos?

— Ah! Minha filha, bem que eu gostaria, mas tenho que ficar gerindo os negócios.

— Então “Vô”, eu lhe prometo trazer de lá, um presente para o senhor.

— Ficarei muito grato por esse seu gesto, tão atencioso.

Após tomarem o café da manhã, Margery desejou ir a uma das sacadas, atitude que há muito tempo não tomava. Ficou lá, por horas na companhia de Maria do Rosário.

Os transeuntes, um pouco surpresos por verem Margery, faziam questão de cumprimentá-la. Esse interesse das pessoas, que chegavam até a travar diálogos, estava fazendo bem a ela.

Maria do Rosário só observava e, ficou contente com o ar de felicidade da sua mãe.

 

Enquanto isso, Maria Conceição e a tia Esther, estavam preocupadas, revendo as listas de compras que iriam fazer: vestidos, sapatos, tecidos, jóias, perfumes, diversos adereços, etc., etc.

No período da tarde, Bernardo providenciou o embarque das bagagens.

 

Aproximou-se a hora da viagem. Nos pensamentos de Margery e Maria do Rosário pululavam incertezas, apreensões, medo, mas, entremeados também, de muita certeza de que tudo iria se resolver muito bem.

Era uma manhã muito fria — inverno.

No centro da sala do casarão estava o Sr. Bernardino. Despediu-se de todos, dizendo: — Vão com Deus, que Ele os acompanhe e os proteja em tudo que fizerem. Olhando para Margery e Maria do Rosário, ternamente ele diz: Tenham fé que tudo sairá a contento!

Fez um afago no rosto de cada uma delas.

— Quanto a você Bernardo, vai tranqüilo, que os negócios estão em ordem e sob a minha vigilância.

Bernardo agradeceu e abraçou afetuosamente o seu pai.

Antes de se encaminharem para a saída, Maria do Rosário voltou-se para o seu avô, deu-lhe mais um abraço forte, um beijo, e lhe falou aos ouvidos: — Eu vou ficar com saudades!

— Eu também! — respondeu

Embarcaram e foram logo se acomodando nos camarotes a eles reservados.

Soltas as amarras, lentamente o vapor foi se distanciando do ancoradouro. Ao largo, o timoneiro aciona um dispositivo por três vezes, e os apitos ecoaram nos costados do Morro do Espia, ressoando por toda cidade, como numa despedida — Até a volta!

Regressando à sua casa, cabisbaixo, Bernardino já se encontrava com o coração saudoso. A certo momento, foi cumprimentado pelo Dr. Eustáquio.

— Como vai Sr. Bernardino?

— Vou aqui como Deus manda; irei ficar só naquele casarão, acho que por um bom tempo. Como o senhor sabe, todos os meus, foram para a capital.

— Faço votos que dona Margery e a senhorita Maria do Rosário encontrem a cura.

— Sabe doutor, eu estou com quase certeza de que elas irão conseguir. Ainda esta noite, eu sonhei com a minha esposa, e ela me dizia: “ — Bernardino, pode confiar que a nossa nora e neta ficarão boas”. Interessante doutor, que a minha Izabel, tinha uma aparência mais jovem. Quando ela faleceu, ela estava bem envelhecida; no meu sonho, ela estava muito bonita, como quando nós nos casamos.

— Sr. Bernardino, desejo lhe fazer um convite. Hoje, às vinte horas mais ou menos, na minha casa, estarei reunido com algumas pessoas; é a nossa terceira reunião. Estará conosco, um pescador de nome Belizário. Não sei se o senhor acredita, mas ele vê pessoas que já faleceram e escuta o que elas dizem. Ele tem nos relatado coisas muito interessantes. O senhor virá?

— Já ouvi conversas a esse respeito doutor, mas não sei se é a mesma pessoa. Irei sim doutor. Estou curioso!

— Fico contente pôr aceitar meu convite. Bem Sr. Bernardino, agora vou indo para a Santa Casa, que tenho pôr lá, muito serviço. Até a noite, então!

— Até pôr lá doutor!

 

Cinco pessoas estavam sentadas ao redor de uma mesa, à luz tênue de um lampião. Dr. Eustáquio, tomou a palavra, e numa oração comovente, rogou a proteção do Alto. O silêncio era reinante, até que, Belizário falou: “Doutor, hoje parece que está tudo muito mais claro, que outros dias. Tem uma mulher, que se achegou, e ela ficou ao lado do visitante; ela está mostrando alguma coisa que está presa em sua roupa, e está dizendo que foi ele que deu”

Bernardino tirou do bolso do seu colete, um camafeu, e mostrou para Belizário, perguntando: — É este?

— É sim senhor!

Bernardino ainda perguntou: — Ela se chama Izabel?

— “Se chama, sim senhor!”

— “Ela está dizendo também, que esperava muito pôr esse encontro; ela diz pra o senhor ter muita paciência, resignação, compreensão e tolerar muita coisa; fala ainda, que nessa vida, nós sempre perdemos alguma coisa de valor, ou pessoas da nossa amizade, mas que, de outro modo, com amor no coração, nós vamos conseguir ganhar de volta o afeto que parece estar indo embora; e que a saúde tornará a chegar à sua casa; e ainda diz, que foi ela mesma que esteve no seu sonho”

Outras duas manifestações ocorreram, e foi encerrada a reunião, com mais uma oração em agradecimento.

Bernardino agradecido e enlevado pela oportunidade de ali estar, solicitou, ser novamente convidado para a próxima reunião.

— Sr. Bernardino, nós fazemos uma reunião pôr mês. Logo que tivermos uma data, eu o convidarei — disse Dr. Eustáquio.

— Sabe doutor, eu tenho muitas saudades da minha Izabel. Ela nos faz muita falta!


 

Capítulo II
A viagem

 

Exceto Margery, que era uma preocupação constante para o Dr. Arthur, de resto, tudo ia bem.

O vapor navegava não muito longe da costa, assim, avistava-se a orla litorânea .

Maria do Rosário, a tia Anna Rita e Bernardo, estavam sempre atentos com referência a Margery; ela merecia cuidados.

Homem espigado, rosto expressivo, olhos penetrantes e investigadores, acostumados aos mistérios do mar, por isso mesmo, apelidado no porto de Iguape, como o “Lobo do Mar”, por uma personagem singular, contador de estórias, boêmio, poeta e cantor do cais, chamado “Miloca”. O Comandante Vicente, que do passadiço, avistou Bernardo, faz um gesto, chamando-o. E nessa oportunidade, deu algumas explicações ao amigo, sobre o que ali se fazia, na sala de comando e convidou-o, juntamente com os seus familiares, para o almoço.

De pronto, Bernardo aceitou com uma ressalva: — Comandante, se porventura a minha esposa não estiver disposta, desde já eu agradeço o convite e, me desculpe, por não comparecer, pois não poderei deixá-la sozinha. Mas, se isso acontecer, as minhas filhas e tias, comparecerão. Obrigado!

Bernardo foi ao encontro de Margery e a encontrou sentada numa espreguiçadeira, ladeada por Maria do Rosário e a Tia Anna Rita.

— Como você está?

— Bernardo, você sabe que às vezes eu melhoro, outras vezes pioro bastante. Agora, nesse momento, estou um pouco melhor. Criei até coragem de vir até aqui.

— Ótimo, é assim que tem que ser. Você não deve se abater. Tem que ter forças e se superar. Eu posso até estar enganado, mas noto que a sua aparência está mais bonita. Acho que esse cheiro de mar está lhe fazendo bem. Sabe Margery, o Comandante Vicente, nos convidou para almoçarmos com ele. Eu aceitei, desde que você concorde. Caso contrário, as meninas vão com nossas tias.

Ela olhou bem para seu esposo, com aqueles olhos azuis, ainda profundos e abatidos, respondeu: — Bernardo não se preocupe tanto comigo. Não se esqueça que tudo nessa viagem, a consulta, os gastos que não serão poucos, poderão ser em vão.

— Minha querida, para essa dúvida, há somente uma resposta: Deus é quem sabe! Há pouco você disse que criou forças e veio até aqui. Acho então, que você deverá também criar forças, e pensar firmemente, em superar o mal que lhe afeta o físico, e ter fé que tudo de bom possa lhe acontecer.

— Realmente Bernardo, esse meu desânimo não é bom! Não é?

— Tenha fé minha querida, que muitas coisas boas ainda vão acontecer em nossas vidas. Ainda há poucos dias atrás, lá em casa, eu peguei a Bíblia, abri aleatoriamente, e lá estava o ensinamento: “Seja o que for que peçais crede que obtereis e concedido será o que pedires” — Isso foi registrado por São Marcos. Nessa mesma noite, junto ao nicho de Nossa Senhora do Carmo, eu roguei para que Ela intercedesse junto ao seu filho, Jesus, e assim, proporcionasse a você e a nossa filha, a possibilidade de obterem a cura total. Então, vamos acreditar, vamos ter certeza que tudo que estamos fazendo não será em vão, mas sim, terá um final feliz. Você se lembra Margery, com o que o nosso vigário disse: “Bata à porta que ela se abrirá”?

— Você tem toda razão Bernardo! Eu tenho que povoar os meus pensamentos com imagens salutares, positivas e felizes! Vamos sim aceitar o convite do nosso Comandante!

— Ótimo mamãe, fico contente com a sua resolução! Disse Maria do Rosário.

Aproximou-se a hora do almoço e todos já estavam prontos.

O dia continuava ensolarado, e o mar, de um azul maravilhoso, prometendo que a viagem continuaria tranqüila. Estava lindo!

Quando Bernardo tomou Margery pelos braços, exclamou: — Que perfume gostoso!

-É aquela colônia que você gosta!

-Madressilva?

— É!

Bernardo apertou-a num abraço, e lhe disse: — Margery você está ótima! Eu a adoro e a amo muito!

— Bernardo querido, como é bom tê-lo sempre por perto, e também lhe dizer, que eu o amo muito, muito, muito. Realmente, agora estou bem! As náuseas, não estou sentindo, e, aquela outra preocupação, parece que me deu uma trégua.

— Ótimo, então, não vamos tocar nesse assunto! Vamos aproveitar o máximo dessa viagem, e o que de melhor ela possa nos proporcionar.

 

O Comandante, o Doutor, os oficiais, Urbano e Athayde os aguardavam, e, mais uma vez, a Bernardo e seus familiares, desejaram uma boa viagem.

Convidados a se acomodarem, o almoço foi servido. Não houve preocupação maior em torno de Margery, porque ela se manteve muito bem, e até animada.

Após a sobremesa todos foram para a sala de estar, onde foi servido, licor francês.

As conversações se desenrolaram para diversos assuntos. Corriam as horas rapidamente sem que ninguém notasse, até que Bernardo observou um certo cansaço em Margery.

— Margery, você quer descansar?

— Quero sim Bernardo. Perdoe-me... o assunto está interessante, mas...

— Não se preocupe em desculpar-se. Nessa viagem, às únicas pessoas que devemos atenção são: você e Maria do Rosário. Nós outros, somos apenas companhia.

Despediram-se, agradecendo as amabilidades, e foram para os camarotes.

 

A viagem transcorria normalmente, até que um imprevisto na sala das máquinas aconteceu. Rompeu-se uma tubulação, obrigando o Comandante a fundear o vapor numa enseada, no litoral de Itanhaém. O reparo se prolongou por muitas horas; até a entrada da noite. Com isso, o Comandante resolveu pernoitar ali, como medida de prevenção e segurança.

No dia seguinte, logo pela alvorada, com o vapor já em movimento, Maria do Rosário estava usufruindo das aragens marítimas, sentada numa das cadeiras à bombordo do convés.

Cumprindo às suas obrigações, o Oficial Urbano, fazia a sua rotina de trabalho de inspeção, quando deu de encontro com a jovem.

— Bom dia senhorita! Já está de pé, tão cedo?

— É, Oficial Urbano. Eu já estava cansada da minha cama. E como esta viagem é muito importante para mim, resolvi que não devo perder nenhum detalhe, nem dos golfinhos que constantemente nos acompanham.

— Faço votos que esses detalhes formem uma boa lembrança, e que de alguma forma possam ajudá-la nos seus objetivos, lá na Capital.

— Oficial, posso lhe fazer uma pergunta?

— Como não senhorita!

— O Comandante comentou alguma vez, entre vocês a nosso respeito? Principalmente quanto a mim e a mamãe?

— Ele, somente nos disse, ainda lá em Iguape, que um senhor, muito seu amigo e sua família, iriam voltar conosco para a Capital. Se existe algum assunto particular, cujo conhecimento se restringe somente a vocês, quero lhe dizer que o nosso Comandante, é uma pessoa muito discreta.

— Foi só uma pergunta, sem outra conotação, que não fosse curiosidade, pois eu também sinto, que ele é uma pessoa muito séria, e na qual, confio.

— Tenha absoluta certeza, senhorita!

— Mudando de assunto: a senhorita já tomou a sua refeição da manhã?

— Ainda não.

— Então, aqui está o meu convite, do qual não poderá haver recusa.

O Oficial deu o braço para Maria do Rosário, e disse: — Está convidada a acompanhar-me!

— Aonde vamos?

— Ao refeitório dos Oficiais, e tomarmos a nossa refeição matinal. Tanto você como eu, estamos em jejum.

Urbano havia notado que Maria do Rosário andava com um pouco de dificuldade — ela mancava — no entanto, nada perguntou a respeito, mas, associou isso, a observação que a jovem fez a momentos atrás, do que poderia ter dito o Comandante, a respeito dela e da sua mãe, e concluiu: elas vão para a Capital, a procura de tratamento médico.

Após tomarem um lauto café, o Oficial, convidou-a para conhecer a sala de comando, dando-lhe todas as explicações.

Nesse instante, chegou Bernardo esbaforido.

— Minha filha! Eu já estava ficando muito preocupado com você. Andei por quase todo vapor...

— Desculpe papai por não tê-lo avisado.

— Eu é que peço desculpa Sr. Bernardo. A senhorita só fez aceitar o meu convite para tomarmos juntos, o café da manhã. Depois, eu a convidei para conhecer a sala de comando.

— Não... Não... Não há necessidade das suas desculpas... Não fique desconcertado meu jovem... Está tudo muito bem. Só me preocupei com um balanço mais forte que poderia dar o vapor, e um possível desequilíbrio da minha filha.

— Quanto a isso, meu pai, se o senhor soubesse, poderia ficar tranqüilo, pois eu tive os braços fortes do Oficial.

— Ótimo minha filha. Eu já deveria ter aprendido que você sabe se cuidar muito bem. Mas, agora vamos que a sua mãe deve estar ansiosa.

Maria do Rosário despediu-se do Oficial, assim como Bernardo.

De volta, Bernardo notou, estampadas no semblante da sua filha, um ar de muita animação e felicidade.

— Você está bem filha?

— Estou ótima meu pai!

Bernardo parou, segurou-a carinhosamente nos seus ombros e falou: — É, realmente você está feliz, e isso minha filha, causa-lhe uma grande transformação; você fica mais bonita e, essa mudança, deixa-me feliz, e na certeza que tudo irá dar certo!

— Papai, eu acho que o que está ocorrendo, é a certeza, é a fé que tenho, de que, as notícias que iremos obter lá no Rio de Janeiro, serão ótimas. Cheguei até a sonhar com isso está noite.

— Que assim seja minha filha!

 

“Em teus atos de fé e esperança, não permitas que a dúvida se interponha, como sombra, em a tua necessidade e o poder do Senhor. A força coagulante de teus pensamentos, nas realizações que empreendes, procede de ti mesmo, das entranhas de tua alma, porque somente aquele que confia consegue perseverar no levantamento dos degraus que o conduzirão à altura que deseja atingir.”. — (Fonte Viva — Emmanuel — Não duvides — 165)

 

Tudo corria bem com os planos de navegação, conforme relato do Oficial Urbano. Até o vento soprava favoravelmente.

 

— Logo estaremos na baia de Santos, comentou o Comandante. Lá, teremos carga e descarga de mercadorias, desse modo, só amanhã cedo estaremos rumando para o Rio de Janeiro. Portanto Sr. Bernardo, se desejar desembarcar com os seus, estejam à vontade.

— Obrigado, Comandante.

Bernardo contando a novidade para sua esposa e Maria do Rosário, estas, não demonstram nenhum interesse.

— Papai, eu não me importo de estar desembarcando. No entanto, como teremos o dia todo, quem sabe eu possa mudar de idéia e dar um passeio pela cidade.

— Quanto a mim, Bernardo, eu sou da mesma opinião. Dependendo de como estiver me sentindo!

— E quanto ao senhor papai?

— Realmente eu tenho vontade de desembarcar para rever a cidade, pois, há muito tempo, que aqui não venho. Santos já era uma cidade bonita, quando a visitei juntamente com papai, há vinte anos atrás. Viemos para cá em lombo de burro. Foi uma viagem inesquecível. Foram dez dias de viagem, castigados por uma chuva intensa, que nos apanhou logo no segundo dia, e só estiou, quando estávamos bem perto de Santos.

Nesse momento, entrou Maria Conceição e atia Esther.

— Pai, o que estavam conversando?

— É que logo atracaremos em Santos, e lá, o vapor vai ficar ancorado por um dia.

Maria Conceição olhou para a sua tia, e as duas vibram com a notícia.

— Oba! Vamos passear e passear, visitar as lojas, ver as novidades da moda, ir a algum bom restaurante, pois estou enjoada com essa comida de bordo.

— Maria Conceição, eu não concordo com a sua afirmação sobre as nossas refeições de bordo. Acho que são ótimas. Agora, quanto a desembarcarmos, a sua mãe e sua irmã, não estão assim tão animadas.

— Não é possível! Não é possível! Vão deixar passar esta oportunidade de conhecer a cidade de Santos? Interrogou Maria Conceição.

— Não se trata de desdenharmos em conhecer a cidade, mas sim, de que nesse primeiro momento eu e a mamãe, não estamos interessadas. Mas isso não quer dizer que não mudemos de opinião mais tarde! Mas se não mudarmos, não nos faltará oportunidade de virmos a conhecer a cidade, com mais vagar.

— É, mas...Tudo pode acontecer, e a oportunidade que se apresenta é hoje, que pode não se repetir! Aduziu Maria Conceição.

 

“Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graças aos que a ouvem” — (Paulo — Efésios — 4:29 — Bíblia Sagrada)

 

— Não sei o que está por trás dessas suas palavras. Mas tenha absoluta certeza minha irmã: não nos faltará oportunidade de eu e mamãe voltarmos a esta cidade.

— Por favor, minhas filhas, parem com essa discussão; e ainda mais, sobre algo que nessa viagem não é de importância relevante. Ao chegarmos lá, resolveremos o que fazer. Por hora, por favor, deixem-me com a sua mãe.

— Desculpe-me, papai! Disse Maria do Rosário

— Sinto muito Bernardo, não ter educado as nossas filhas para que elas fossem mais unidas.

— Nada a desculpar Margery. Eu acho que as coisas acontecem, até com certa animosidade, em virtude das circunstâncias da vida que ambas tiveram e estão tendo. Maria Conceição, é uma moça formosa, linda, que no seu meio social se destaca pela sua beleza. Enquanto Maria do Rosário, embora também, igualmente bonita, mas, em conseqüência da sua dificuldade física, se encolheu, vivendo somente para nós, procurando mais outros valores da vida, como o estudo, as prendas domésticas, a constante preocupação com você, e adquirindo para a sua alma, mais religiosidade. Ela é mais crente em Deus. Isso tudo faz com que elas sejam muito diferentes.

— É verdade Bernardo. Enquanto Maria do Rosário é mais consciente, mais responsável, e mais preocupada comigo, Maria Conceição não pensa em outra coisa, senão em sapatos, vestidos, bailes, flertes. Infelizmente ela é muito fútil! Desculpe-me Bernardo, eu falhei.

— Nada disso, se alguém tem que se desculpar, esse alguém sou eu que concordei que a tia Esther fosse a sua preceptora. Pelo que observo, a tia passou à nossa filha, a sua própria futilidade. Você não vê, que quem cuida de tudo que concerne a nossa casa é a tia Anna Rita?

— É verdade!

— Quanto a Maria do Rosário, por causa do seu problema físico, ela se uniu mais a você, a mim e ao papai. E é por causa disso que ela é a neta, que ele dá maior atenção. Embora sendo gêmeas, elas no fundo, são muito diferentes.

Continuou Bernardo: — Eu acho Margery, que você passou para Maria do Rosário, muito de como você realmente é. Essa convivência diária fez com que ela adquirisse as suas virtudes de amabilidade e atenção. Eu me lembro bem, quando mamãe estava doente, você se desdobrava no atendimento, nos cuidados e no conforto que ela necessitava. Naquele tempo, Maria do Rosário era bem pequena, e, também, acompanhava as leituras que você fazia dos romances e das passagens bíblicas para mamãe. Note que hoje, ela repete, em seu favor, a mesma atitude que você tinha com a mamãe. Acho que tudo aquilo, também despertou nela a vontade de estudar, interessando-se até pelo idioma francês. Enquanto Maria Conceição, usa somente a sua vontade e a sua inteligência, para os bailes, saraus, modas, etiquetas, etc. etc., e só pensa nela.

— Bernardo, por favor, preste atenção no que vou lhe dizer: se eu não conseguir sarar, e acontecer o pior, não meça esforços, e faça com que Maria Conceição conscientize-se e encare a vida com mais responsabilidade, e que, Maria do Rosário, viva com mais alegria, e não se esconda da vida.

 

Semelhanças morais: “O Espírito dos pais não exerce influencia sobre o filho, após o nascimento?

— Exerce e muito, pois como já dissemos, os Espíritos devem concorrer para o progresso recíproco. Pois bem: O Espírito dos pais tem a missão de desenvolver o dos filhos pela educação: isso é para eles uma tarefa. Se nela falham, será culpado.” — (O Livro dos Espíritos — Livro II — cap.IV — perg.208)

 

Desembarcaram em Santos, somente Maria Conceição e a tia Esther, às quais, o Oficial Urbano se ofereceu como cicerone.

Ambas estavam radiantes. De passagem pela Praça Mauá, o Oficial comenta com as duas, que um tio seu, ali estava estabelecido com uma empresa de exportação e importação.

Urbano resolveu então, fazer uma visita rápida ao seu tio, com a aquiescência das duas.

O Oficial apresentou ao seu tio Valentim e ao seu primo Pedro Fernão, as suas acompanhantes.

Maria Conceição se empolgou com o Pedro Fernão — rapaz bem apessoado, bem vestido, e este, também, se impôs com seus galanteios. Trocaram amenidades, satisfazendo a cada um, as suas curiosidades.

Assuntos por hora esgotados, eles se despedem.

No centro comercial, visitaram as lojas, no entanto, sem nada comprarem. Somente observaram atentamente a tendência da moda, com muita atenção.

Por volta da hora do almoço, voltaram para o vapor, com a promessa do Oficial Urbano, de novamente acompanhá-las, se não houvesse afazeres no vapor, de sua responsabilidade.

 

Durante o almoço, Maria Conceição, empolgadíssima, contou a todos o que aconteceu, até com muito exagero.

Todos ouviram, mas, sem nenhum comentário.

Logo no início do período da tarde, o Oficial Urbano foi ao encontro de Maria Conceição e lhe comunicou da sua impossibilidade de acompanhá-las.

Rapidamente, Maria Conceição reflete, e solicita apenas, que o Oficial as acompanhe somente até a empresa de Pedro Fernão.

— É, isso vai ser bom, pois acho que o Pedro vai ser uma ótima companhia — disse o Oficial Urbano.

Lá chegando, encontraram Pedro Fernão, que, prontamente, se dispôs a acompanhá-las. Passearam pela orla. Nas conversações, Pedro disse que teria que ir ao Rio de Janeiro, talvez, dentro de dois dias, a negócios.

— Pedro, por que você não antecipa a sua viagem, e segue conosco?

— Não resta dúvida senhorita, que seria do meu agrado. No entanto, preciso consultar o meu pai.

Outros assuntos se desenrolaram, mas, chega a hora de regressarem ao vapor.

Ele despede-se delas ao pé da escada do vapor, deixando a dúvida se iria ou não embarcar.

Maria Conceição comentou com a sua tia Esther: — Se ele vier, será ótimo, porque assim, teremos outro assunto para conversarmos, que não doenças! Não é titia?

— É isso mesmo, minha querida!

Antes das dezoito horas, chegou Pedro Fernão, entrevistou-se com o Comandante, o qual, lhe dá boas vindas à bordo. Ambos já se conheciam de outras viagens.

Maria Conceição tomando conhecimento de que Pedro estava à bordo, ficou toda sorriso, e logo, com ele, desejou encontrar-se; e o encontra.

— Ainda bem que você veio! Assim, poderemos ter outro tipo de assunto! Estou ficando nauseada de tanto ouvir falar em doenças nesse navio.

— Senhorita Maria Conceição, posso saber da razão desta sua observação?

— É que, a minha mãe e minha irmã, vão fazer tratamentos lá no Rio de Janeiro.

— Alguma doença grave as acomete?

— Não me pergunte sobre isso Pedro. Detesto falar em doença!

— Perdoe-me, senhorita, se a incomodo com essa pergunta, mas é que, no meu modo de encarar esse assunto, qualquer tipo de doença, na minha avaliação, é muito preocupante. Acho que esse sentimento de preocupação, tanto invade o íntimo do doente, quanto das pessoas onde o vínculo de afinidade são mais estreitos. Eu posso falar dessa maneira, porque, há dez meses atrás, eu perdi a minha mãe com um acometimento que os médicos não tiveram condições de definir.

— Vamos mudar de assunto Pedro?

— Vamos sim, senhorita. Mas desejo pronto restabelecimento para a sua mãe e irmã.

Pedro Fernão ficou um pouco embaraçado e até um pouco decepcionado com a atitude da moça. Naquela hora, abateu-se sobre ele, uma enorme saudade da sua mãe. Ele a amava muito, e a viu definhar dia a dia, até que a perdeu.

Nesse instante, aproximou-se Bernardo.

— Papai, apresento-lhe, Pedro Fernão.

— Muito prazer — Bernardo.

— O prazer é meu senhor.

— Desejo-lhe uma ótima viagem!

— Da mesma forma senhor!

Bernardo continuando a sua andança, ia se afastando, quando o jovem Pedro, apressado, a ele se dirigiu: — Senhor Bernardo, quero hipotecar a minha solidariedade ao senhor e desejar a sua esposa e a sua filha, total restabelecimento. Ponho-me à sua disposição, lá no Rio de Janeiro, para qualquer eventualidade. Tenho a possibilidade de, usando o nome do meu pai, ser-lhe útil, até mesmo para a indicação de um bom médico, se ainda não o tem.

Bernardo olhou firme para Maria Conceição.

— Senhor Pedro Fernão, eu agradeço o seu interesse e sua amabilidade, mas, os contatos iniciais com o médico no Rio de Janeiro, já foram feitos, de forma que, só tenho a lhe agradecer.

Bernardo se afastou, recriminando mentalmente, a indiscrição da sua filha.

Antes do jantar, Bernardo foi até o camarote de Maria Conceição e tia Esther. Lá, ele encontrou as duas, que pareciam estar se aprontando para uma grande festividade muito importante. Observou bem, fitou seriamente a sua tia, e disse: — Maria Conceição, eu estou aqui para lhe transmitir um ensinamento, porque acho, que ninguém até hoje lhe ensinou: se você não tem assunto para prender a atenção daquele moço que você me apresentou, ou de quem quer que seja, por favor, não comente os problemas dos seus familiares. Fique com a boca fechada. Você não tinha nada que meter a língua nos dentes e falar para aquele jovem, sobre problemas de saúde dos seus familiares. Se você não se interessa pelas dificuldades da sua mãe e da sua irmã, é coerente, é lógico, é óbvio que também não comente nada sobre elas. Aprenda isso, porque essa sua atitude, depõe contra você mesma. Ninguém acha bonito, interessante ou inteligente, essa sua atitude, muito pelo contrário, e isso tem uma conseqüência: não irão fazer bom juízo, de alguém, que exponha abertamente a sua família, ainda mais, a um desconhecido. Compreendeu bem Maria Conceição?

— Compreendi!

 

Sem mais novidades, o vapor singrava com segurança, as águas do litoral norte de São Paulo.

Faltando talvez meio dia de viagem, para aportar no Rio de Janeiro, o Comandante Vicente, foi ao encontro de Bernardo e pediu uma conversa em particular.

— Amigo Bernardo, estamos chegando ao nosso destino. Eu gostaria de lhe fazer um oferecimento, do qual, na verdade, não desejaria ouvir a sua recusa: Amigo, como sabe, sou viúvo, e meus dois filhos, estão em Portugal, e por lá, ficarão até meado do ano vindouro. Dessa maneira, faço-lhe o convite para que hospedem-se em minha residência, que é bem ampla e arejada, e com muito verde, o que poderá, creio eu, ajudar numa melhor recuperação da sua esposa e filha. Além do que, o consultório do Dr. Sizenando, fica a quatro quadras. O que acha?

— Comandante, não quero incomodar mais, e nem preocupá-lo. Acho que o amigo nunca se preocupou tanto com passageiros, como nessa viagem. Eu estou preparado para enfrentar um aluguel, até por vários meses. Não quero tirar-lhe a liberdade na sua própria casa.

— Amigo Bernardo, a minha parada no Rio de Janeiro, será de apenas quatro dias. Depois, rumarei para São Salvador, e depois, para o Recife, em navio cargueiro. Assim, ficarei embarcado por uns três meses. Após, em férias, rumarei para Portugal, onde lá, ficarei por um ou dois meses. Portanto, a casa será sua. Ela é grande e bem cômoda. Eu e Mirtes pretendíamos ter muitos filhos, mas, uma febre palustre adquirida no interior, na cidade onde residiam os seus pais, ela não resistiu.

— Bem meu amigo, depois de amanhã, lá se acomodem. Hoje, vocês ficam ainda conosco, embarcados.

Bernardo não teve como recusar a gentileza, senão, aceitar o oferecimento do seu amigo Comandante, e agradecer efusivamente.

Após a atracação, descarregadas todas as mercadorias, inclusive uma partida de arroz que Bernardo trazia para ser comercializada pelo seu corretor, no dia seguinte, foram todos para a casa do Comandante, que não distava muito do centro comercial.

O Comandante já havia mandado preparar tudo, até o almoço.

 

“Cede ao próximo algo mais que o dinheiro de que possas dispor. Dá também teu interesse afetivo, tua saúde, tua alegria e teu tempo e, em verdade, entrarás na posse dos sublimes dons do amor, do equilíbrio, da felicidade e da paz, hoje e amanhã, neste mundo e na vida eterna” — (Fonte Viva — Emmanuel — psicografia de Francisco C. Xavier — cap. Possuímos o que damos — 117)

 

Bernardo e seus familiares ficaram admirados com a propriedade; era bem afastada da rua, com um belo jardim, muito bem cuidado; uma varanda ampla, que contornava toda casa; e nos fundos, a cocheira e a casa do caseiro.

Acompanha-os, o Dr. Arthur, que se prontificou a trazer o Dr. Sizenando, logo mais à tarde, para a primeira consulta.

Lá, pelas dezesseis horas, chegou o Dr. Arthur, que na sua companhia, trazia um senhor de baixa estatura, rosto rosado, olhos expressivos e bondosos, cabelos lisos, grizalhos e bem aparados — era o Dr. Sizenando.

Apresentado e mantido os primeiros contatos, o doutor já com conhecimento prévio sobre os problemas de ambas pacientes, desejou entrevistá-las.

Bernardo entregou ao doutor, o relatório do Dr. Eustáquio, a respeito de Margery.

Ele agradeceu, salientou a linda caligrafia, e acrescentou, que primeiro desejava conversar com as pacientes, e depois de examiná-las, iria se inteirar do conteúdo do relatório. E assim solicitou um cômodo reservado.

Bernardo então, levou-o à biblioteca.

Antes de iniciar as consultas, Maria do Rosário falou ao doutor: — Doutor, antes de sairmos de Iguape, o nosso amigo e padre, nos ofereceu esta imagem do Nosso Senhor. O senhor me perdoe, mas eu gostaria que antes das consultas, fizéssemos uma oração.

— Minha filha, não tenho nada que perdoar ou desculpar, senão até de agradecer por essa oportunidade de também participar desse ato de fé, visto que, pouco somos ou seremos sem a ajuda do Nosso Mestre Jesus e de Nossa Senhora. Faça como desejar, que eu também as acompanharei em oração, as suas intenções.

Na biblioteca do Comandante, havia um nicho, onde lá, estavam duas imagens: Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora dos Navegantes.

Maria do Rosário, então, ladeada por seus pais, fez uma oração emocionada: — Aqui estamos nós Mãe Maria Santíssima, a rogar-Lhe sua intercessão, junto ao seu querido Filho — o Nosso Bom Jesus — para que esses momentos sejam de plena luz, amparo e proteção dos nossos anjos da guarda. Senhor Jesus, vós dissestes: “ Pedi e obtereis”; disse também — “Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida”. Aqui estamos Senhor, humildemente, rogando, uma possibilidade para as nossas curas, se formos merecedoras. Jesus sob o seu auspício e proteção, ilumine a capacidade de observação e análise do Dr. Sizenando, propiciando a ele, visualizar o melhor tratamento para o nosso total restabelecimento, que mais uma vez salientamos,: se formos merecedoras. Amém!

— Senhorita Maria do Rosário, esclareça-me somente, sem a análise de polemizar: qual a razão de você estar vinculando as suas curas — “se forem merecedoras?”

— É simples Doutor: Jesus não curou a todos; não por Sua incapacidade, mas, talvez, por encontrar sentimentos avessos ao Amor naqueles que o solicitavam.

Como nós, no meu modo de ver, ainda somos falhos na capacidade de amar incondicionalmente, como Ele foi e é capaz, roguei em nosso favor, para que Ele na sua análise, julgasse, se temos condições de merecer as nossas curas.

— Acho esse sentimento de resignação importante, aceitando os reveses da vida; sinto isso nas minhas atividades, quando vejo que os meus esforços no sentido de curar vão se esvaindo. Mas, é igualmente importante, procurarmos e lutarmos com todas as nossas forças e aplicando todos os nossos conhecimentos, para as conquistas que podem nos trazer a alegria, felicidade e o prazer. Vocês vêm de longe, numa longa viagem que acredito tenha sido preocupante, às vezes, talvez, até desalentadora, mas, corajosas, resolutas, firmes nos seus propósitos, aqui estão rogando a Jesus uma possibilidade de restabelecimento de suas saúdes, por meus conhecimentos clínicos. Eu, se Deus me permitir, farei o possível e, se possível, farei até o impossível para que vocês sejam as mulheres mais felizes e saudáveis da cidade onde moram.

Senhorita, Maria do Rosário, confesso que fiquei e estou comovido e profundamente agradecido pela oração que fez em meu favor. Prometo-lhes, aplicar todos os meus conhecimentos acadêmicos e práticos, e também, rogando a Nossa Mãe Santíssima, da qual sou devoto, a sua ajuda, para que vocês fiquem saudáveis e felizes.

 

Em seguida, naquela atmosfera leve que se estabeleceu, o doutor começou a fazer o seu questionário com Margery e, fazendo algumas anotações. Ao final, solicitou que a paciente, na primeira hora da manhã, colhesse material para análise, num recipiente de vidro esterilizado em água fervente.

— Senhor Bernardo, leve-me esse material logo que for colhido.

— Agora, linda menina, vamos ver o que a incomoda?

Maria do Rosário estava séria e com movimentos vacilantes para descalçar a sua botinha, quando o doutor a interrompe.

— Minha querida. Fique calma! Pelo que já sei, o que tiver de anomalia em seu pé, ela já está com os seus dias contados para não mais, aí, ficar. Por favor, sente-se aqui nessa outra cadeira... Ela é um pouco mais alta, e ponha o pé nessa banqueta, que eu vou tirar a sua botinha.

Examinou o pé de Maria do Rosário, pressionou levemente aquela carne esponjosa, sem que ela sentisse qualquer dor. Mas, quando ele forçou um pouco, movimentando a articulação, a jovem acusou a dor.

O doutor calçou a meia e o botinha da jovem, e dirigindo-se para a escrivaninha, pegou um lápis e num papel, chamou para o seu lado a sua paciente, e desenhou um esboço da articulação do seu dedo foi explicando: — Qualquer parte do corpo articulada, que por inércia ou por movimentos inadequados, ou ainda, por alguma intervenção no seu meio, passam a ficar doloridas. Assim, estão, as articulações dos seus dedos — doloridas. Quanto a carne esponjosa, não teremos muita dificuldade para removê-la. Agora, quanto as articulações, elas vão ficar doloridas por algum tempo, até que tudo volte ao normal. Entendeu filha?

— Entendi doutor. Isso quer dizer que, quando eu andar, mesmo depois de operada, ainda vou mancar um pouco em virtude da dor?

— Vai, minha filha e, por uns três ou quatro meses, tomando remédio três vezes ao dia, sempre no mesmo horário. A partir daí, acho que será a primeira dama a ser convidada para dançar nos bailes que freqüentar. Fique confiante, que tudo irá dar muito certo.

Maria do Rosário riu e, agradeceu as palavras de certeza e confiança do doutor.

 

Quanto a Maria Conceição, ela não ficava totalmente alheia, mas muito pouco, ou quase nada, se importava com o que sentiam: a sua mãe e sua irmã.

Os seus assuntos estavam sempre pautados: na sociedade do Rio de Janeiro, na Corte, na moda, e na possibilidade de se envolver num flerte, preferivelmente, com alguém bem posicionado. Por várias vezes, lembrava ao seu pai, que deseja ir ao centro da cidade.

Bernardo, paciente, sempre respondia que ela aguardasse uma boa oportunidade, pois quem sabe, poderiam ir todos à passeio.

Mas, Bernardo, num certo momento, fez a seguinte observação para Maria Conceição: — Minha filha, você não se importa nem um pouco com o que realmente está acontecendo, e o que está para acontecer nessa nossa estadia aqui? Você não se interessa nem um pouco pelo estado delicado de saúde da sua mãe e da sua irmã?

— Papai, o que eu posso fazer? Não sou médica!

Não se trata de ser ou não ser médica, minha filha. A questão é de interesse, de solidariedade, de compaixão, é de estar à disposição para ajudar nas pequenas coisas que sejam; enfim, é de atenção a um importante membro da família, que é a sua mãe, que lhe deu está oportunidade de vida, e que agora atravessa essa grande dificuldade, com saúde precária, e que está necessitando do nosso carinho, do nosso apoio, de uma palavra amiga, de um abraço fraterno, de um beijo quente de filha para mãe, para reerguer o seu ânimo. E a sua irmã... Sua irmã gêmea... Que também tem problemas. Ela se mostra uma moça forte, determinada, mas no fundo, no fundo, tem um sério recalque. Você sabe disso, no entanto, não faz nada para amenizar essa situação. Minha filha, você tem tudo para ser uma moça feliz, e também fazer os outros felizes, principalmente os seus familiares. Não perca esta oportunidade, Faça um esforço. Mude um pouco o seu comportamento.

 

Solidariedade — “ Não devias tu igualmente ter compaixão do teu companheiro, como eu também tive misericórdia de ti?” — (Mateus, 18:33 — Bíblia Sagrada)

 

Maria Conceição abaixou a cabeça demonstrando estar envergonhada, e nada falou.


 

Capítulo III
O tratamento de saúde

 

No dia seguinte, muito cedo, colhido o material para análise, Bernardo foi ao encontro do Dr. Sizenando; foi a pé. Ao chegar, ficou surpreso com o enorme número de pessoas que ali estavam para serem consultadas.

Foi atendido por uma senhora muito simpática e solícita, à qual, falou-lhe da razão de estar ali. Ela pegou o frasco e solicitou que Bernardo a aguardasse e entrou numa sala ao lado.

Não demorou muito, surgiu à porta o doutor, cumprimentando-o sorridente, e logo dizendo: — Sr. Bernardo, eu vou analisar o material, e logo que tenha a conclusão, irei procurá-los.

— Doutor Sizenando, pela observação que faço, nesta oportunidade, avalio que seja conveniente eu mesmo vir ao seu encontro, porque para o senhor se afastar do seu consultório, vai ser difícil, em virtude de tantas pessoas que o procuram.

— Admiro a sua compreensão, Sr. Bernardo. Venha aqui, então, às dezessete horas.

— Está combinado.

Antes, porém, que Bernardo se retirasse, o doutor fez a seguinte recomendação: — Todo cuidado é pouco com respeito a Dona Margery. Mantenha-a sempre em descanso, e que ela não se esforce!

— Muito obrigado, doutor ! Vou ficar atento a isso.

Retornando, Bernardo encontrou Maria Conceição e a tia Esther na biblioteca, e aproveitou para lhes alertar sobre a orientação médica e os cuidados que deveriam ter com Margery.

— Mas papai, será mesmo, que mamãe necessita de tantos cuidados assim?

— Maria Conceição, minha filha... Nós já tivemos conversando sobre isso, e você ainda não compreendeu que o problema da sua mãe é preocupante?

Antes mesmo que Bernardo terminasse de falar, entrou, Maria do Rosário, e com alguma veemência interpelou a sua irmã.

— Escute aqui minha irmãzinha: será que você não consegue ter um pouco de solidariedade, de fraternidade, de compaixão, com a pessoa que lhe deu essa sua vida? Você já parou para pensar, que, se você existe, foi porque você nasceu das entranhas dela? Você está se tornando ridícula, insensata, egoísta, não pensa em outra coisa senão em si própria, em moda, vestidos, sapatos, bailes e flertes? Mamãe está doente minha irmã!

Maria Conceição esboçou falar qualquer coisa, mas foi impedida pela sua irmã, que lhe mandou calar a boca, e continuou a falar.

— Você não percebe que o problema de saúde da mamãe é sério? Delicadíssimo? Onde você está nesse mundo minha irmã? Você não nota, que não é normal alguém ter um fluxo sangüíneo, quase constante? Ponha os seus pés no chão! Quanto a mim, você não precisa se incomodar. Eu dispenso a sua atenção.

— E a senhora titia, o que estava ou está fazendo, que não incute na cabeça mole da sua protegida, uma responsabilidade e um entendimento um pouco melhor da vida? Afinal, a senhora é ou não uma preceptora?

 

“A corrigenda e sempre rude, desagradável, amargurosa; mas, naqueles que lhe aceitam a luz, resulta sempre em frutos abençoados de experiência, conhecimento, compreensão e justiça”

(Fonte Viva — Emmanuel — Psicografia de Francisco Candido Xavier — Aceita a Corrigenda — 6)

 

Bernardo, um tanto surpreso com aquela interferência, pediu para Maria do Rosário se calar. Mas interiormente, ficou satisfeito com mais essa repreensão.

Maria Conceição, à título de vingança mesquinha, respondeu: — Eu tenho sim os meus pés no chão e são perfeitos — batendo-os, enquanto falava, no assoalho, produzindo um grande barulho.

— Antes, ter problemas nos pés, do que na cabeça oca e egoísta! Respondeu Maria do Rosário, deixando o ambiente, rumando para o jardim.

 

Egoísmo — “entre os vícios, qual o que podemos considerar radical?

— Já o dissemos muitas vezes: o egoísmo. Dele deriva todo o mal.”

(O Livro dos Espíritos — Livro III — cap. 12)

 

A tia Esther, atônita, dirigiu-se a Bernardo: — Bernardo, como é que você consente uma coisa dessas?

— Titia, por favor, vamos viver em harmonia, não tente avivar mais essa discussão, senão, amanhã mesmo, vou providenciar para que a senhora e Maria Conceição voltem para Iguape. Portanto, escolham o que desejam! Eu não estou contra e nem a favor de ninguém. No entanto, exijo que nesta casa, dentro das circunstâncias atuais, reine um ambiente de respeito, educação, de atenção, de união e de fraternidade, porque, a recuperação de Margery, como de qualquer doente, tem que acontecer num clima de paz, de amor, de concórdia e de harmonia. Portanto minha tia e minha filha, eu exijo de vocês duas, uma outra postura, assim como exigirei de Maria do Rosário.

 

“A união fraternal é o sonho sublime da alma humana, entretanto, não se realizará sem que nos respeitemos uns aos outros, cultivando a harmonia, à face do ambiente que fomos chamados a servir. Somente alcançaremos semelhante realização, “procurando guardar a unidade do espírito pelo vínculo da paz”

(Fonte Viva — Emmanuel — União Fraternal — 49)

 

Bernardo foi ao encontro de Maria do Rosário e a viu sentada, sob o caramanchão, com o rosto entre suas mãos, chorando.

— Vamos conversar, minha filha?

Ela levanta a cabeça, e dos seus olhos, como gemas azuis, vertiam lágrimas abundantes escorrendo pelo seu lindo rosto.

Seu pai se comoveu, e lhe disse: — Não chore minha filha... eu sei como se sente!

— Ah! Papai, eu lhe havia prometido que não me envolveria emocionalmente com minha irmã. Desculpe! Eu vinha represando tudo que disse, há muito tempo. Mamãe não reclama e nem fala nada, mas eu sei que ela sente muito o desinteresse das duas. Ainda para completar, essa noite eu tive um sonho horrível com mamãe. Sonhei que ela não havia resistido e, ...

Nesse momento ela não se conteve, e chorou convulsivamente no ombro do seu pai.

Bernardo, compreensível e sensível com a situação, somente aconchegou a sua filha num afetuoso abraço, afagando-lhe os seus lindos cabelos de ouro.

— Papai, eu sei que estou completamente errada, e o que fiz, em admoestá-las, competia e compete ao senhor. Por favor, papai, me desculpe o transtorno que causei. Agora mesmo, vou pedir desculpas a elas.

— Faça isso minha filha. Quem sabe com esse gesto de humildade, acrescente nelas um novo despertar para a situação, e melhorem as suas atitudes.

— O senhor vem comigo?

— Certamente, minha filha!

 

Maria do Rosário, com lhaneza e humildade, desculpou-se com a sua irmã e com a tia Esther. Mas, sentiu não ter havido aceitação e receptividade. Notando o desinteresse das duas, ela voltou-se para o seu pai e disse: — Papai, eu juro que esse meu pedido de desculpas, sai do fundo do meu coração! Estou sendo sincera!

— Fique certa, minha filha que você está fazendo a sua parte. Deixe agora, que o tempo, como grande professor que é, cuidará de tudo!

 

“Importa, conseguintemente, do ponto de vista da tranqüilidade futura, que cada um repare, quanto antes, os agravos que haja causado ao seu próximo, que perdoe aos seus inimigos, a fim de que, antes que a morte lhe chegue, esteja apagado qualquer motivo de dissensão, toda causa fundada de ulterior animosidade”.

(O Evangelho Segundo o Espiritismo — cap. X — 6)

 

Às dezesseis horas, chegaram o Comandante, o Oficial Urbano e o jovem Pedro Fernão.

Bernardo os recebeu na biblioteca, onde lá, estavam Maria Conceição e a tia Esther. Conversaram por algum tempo. Bernardo pediu licença aos visitantes, e foi ao encontro de Margery e Maria do Rosário, comunicando-as que tinham visitas.

— Papai, o senhor não acha, que será mais prudente, a mamãe recebê-los aqui mesmo? O quarto é bem amplo, e está tudo muito bem arrumado. Acho que só está faltando uma cadeira.

— O que você acha, Margery?

— Por mim está bem, Bernardo.

Bernardo, então, justificou às visitas, que Margery estava em repouso, mas que desejava vê-los, e solicitou que eles o acompanhassem.

 

O Comandante se adiantou, cumprimentando a mãe e filha, osculando-lhes as mãos, sendo seguido pelo Oficial e Pedro Fernão.

Conversaram um pouco, não mais que vinte minutos, e se despediram de Margery.

— Minha filha — disse Margery — acompanhe-os. Pode ir. Não se preocupe que estou bem.

 

E, assim, Maria do Rosário, os acompanha, em direção da sala de estar. Mas, um pouco antes de ali chegar, ela tropeçou no seu próprio calcanhar; quase que caiu se não fosse o rápido apoio dado pelos jovens.

Maria Conceição e a tia Esther, não conseguiram disfarçar as suas risadas, e foram notadas pelos visitantes.

Maria do Rosário sentiu uma forte dor naquele pé. Fez um pouco de sala às visitas, e logo se despediu. Pedro Fernão, solícito, prontificou-se a acompanhá-la, oferecendo gentilmente o seu braço. Ela, num sorriso, aceitou e agradeceu, e na despedida, convidou-o, para que mais vezes, ele viesse visitá-los.

O jovem agradeceu o convite e prometeu voltar.

O Comandante comunicou a Bernardo, que veio despedir-se, pois, no dia seguinte, estaria rumando para São Salvador, e que o Oficial Urbano, também iria.

Pedro, no entanto, ficaria por mais três dias, depois voltaria para Santos.

Despediram-se.

Passado algum tempo, Bernardo conferiu a hora, e rapidamente, se pôs em direção da casa do doutor.

Antes mesmo de Bernardo vencer o primeiro quarteirão, do sentido contrário, lá vinha ele — o doutor.

— Desculpe-me doutor. Tivemos visitas, e não atinei com o horário.

— Nada a desculpar. Essa caminhada até que me faz bem. Espaireço um pouco.

O doutor elogiou a bela propriedade que ocupavam, e fez as seguinte observações: — Este lugar onde vocês estão, é propício para um bom restabelecimento. O jardim é amplo, muitas flores, belos arbustos... Tudo muito bonito e muito agradável!

— Doutor, nós estamos aqui, pela bondade do Comandante Vicente. Não sei se o senhor o conhece. Ele nos cedeu a sua casa por tempo indeterminado, e sem nos pedir qualquer remuneração. Tudo pela amizade que nos une.

— Não senhor Bernardo, não conheço o Comandante Vicente, mas posso avaliar, que deve ser uma pessoa muito boa, solidária e desapegada aos bens materiais. A amizade que os une, avalio que seja muito forte e fraternal.

A amizade, Sr. Bernardo, é um sentimento por excelência, e que nos leva a sermos desprendidos, como é o caso, das coisas materiais. E com isso, eu acho que ganhamos alguns pontos com o Mestre.

— Acho que o senhor tem razão! Mas vamos entrar que Margery e Maria do Rosário estão no quarto.

— Ótimo... Preciso mesmo, é falar com as duas juntas.

 

— Inicialmente quero falar com você, filha!

O doutor olha bem para a jovem Maria do Rosário, e faz a seguinte observação: — Como você é bonita! Seus olhos parecem duas puríssimas gemas de água marinha. São lindos!

— Obrigado doutor. Mas, me desculpe a brincadeira: acho que são os seus olhos que não estão vendo bem hoje!

O doutor, riu e, acrescentou: — Não minha filha... Você é realmente uma moça muito bonita. E por ser assim, tem que ter um pé, também bonito. O seu caso Maria do Rosário, como eu já lhe disse, será resolvido com uma pequena intervenção cirúrgica, que vai cicatrizar, e vai ficar bonitinho. Somente vai ficar uma pequena dor, da qual, também já lhe falei, mas que será suportável, e com a ajuda de um “remedinho”, ela irá com o tempo, desaparecer.

— Agora, Dona Margery, o seu tratamento será um pouco prolongado, e com muitos cuidados, mas que, ao final, a cura também será total.

— Maria do Rosário, como a solução do seu problema pode ter um adiamento, proponho primeiramente começar o tratamento da sua mãe, visto que, ela necessitará muito da colaboração de todos.

— Dona Margery, o seu tratamento será feito aqui mesmo, em casa, porque no hospital, os cuidados com a limpeza e assepsia, às vezes, não estão como deveria ser. Aqui, inicialmente, embora note que o quarto esteja limpo, quero que providenciem uma vez por mês, uma limpeza completa, desde a varrição do forro e das paredes, lavem bem o assoalho, tirem o pó das janelas, das portas e do madeiramento da cama, ponham o colchão no sol; o banheiro tem que estar bem limpo. Não quero nenhuma teia de aranha e nenhuma formiga andando pelo quarto. Quanto as roupas de cama, elas devem ser mudadas todos os dias, lavadas e fervidas, e passadas a ferro bem quente, assim como, as roupas pessoais. Acho que vão ter muito trabalho, mas tenho certeza que vai ser compensador. Agora, vou lhe falar como vamos ministrar o seu tratamento, propriamente dito. Antes dona Margery, a senhora prefere ouvir o que tenho a dizer sozinha, a respeito da sua doença, ou posso continuar?

— Doutor, aqui estão as duas criaturas que me amam, e que eu as amo também, e que por mim, têm grande interesse. Elas querem me ver curada e feliz. Portanto não há o que esconder. Pode continuar doutor.

— No exame que fiz do seu material, constatei o seguinte: além do líquido aquoso e viscoso, próprio de um ferimento, observei também, focos de pus, sangue coagulado e não coagulado. De forma que, concluo, que no seu útero, pode existir duas manifestações: que não sei se é o rompimento de um vaso sangüíneo ou uma doença. Agora, como não temos a possibilidade de fazermos uma operação, o único tratamento que acho possível, é através de um clister, para introduzir uma pomada cicatrizante e remédios via oral. Introduzindo o clister, e para que a pomada se contenha, é indispensável o uso constante de uma toalha higiênica, que será trocado sempre que a senhora fizer as suas necessidades.

— Quanto tempo doutor, o senhor acha que vai durar esse tratamento?

— Transcorrendo, sem surpresas, entre dois a quatro meses.

— Doutor o senhor pode dizer o nome dessa possível doença?

— Posso dona Margery. Na verdade podem ser três as possíveis doenças, mas nenhuma delas, com o estigma de ser uma doença muito grave. A senhora pode estar com leucorréia, que é um pequeno corrimento; pode estar com metrite, que é uma inflamação do útero, ou ainda, com metrorragia, que é um corrimento de sangue, independente da mestruação. Os sintomas de todas elas, são muito parecidos, e o tratamento são mais ou menos iguais. De forma que, vou medicá-la, cobrindo o ataque sobre todas elas, e no possível rompimento de um vaso. Tenha confiança dona Margery, e fé, que o Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, vai ajudar. É importante a senhora estar bem fortalecida interiormente e com muito bom ânimo. Deve acreditar mesmo, que realmente vai ficar boa.

— Obrigado doutor pelos esclarecimentos. O senhor me dá muita confiança realmente. E com a ajuda do Nosso Senhor, ficarei boa!

— Isso mesmo dona Margery. Com esse ânimo, só vai acelerar a sua cura total.

— Bem Sr. Bernardo, eu já estou de volta. Vou preparar a receita e as recomendações. Passe lá em casa, amanhã às quinze horas.

— Dirigindo-se a Maria do Rosário, o doutor disse: — Conto com você para que a medicação da sua mãe seja ministrada nos horários certos, para que o tratamento corra normalmente. Mas tem uma coisa filha: não assuma a responsabilidade, como a única coisa da sua vida. O Rio de Janeiro é uma linda cidade, que merece ser admirada, pelos seus lindos olhos. Tanto você, quanto dona Margery, com muito cuidado, deverão sair para alguns passeios e espairecerem um pouco. Não fiquem trancadas! Passem bem, e até um outro dia!

Antes do cair da noite, Bernardo dirigiu-se ao Sr. Antero, o caseiro, solicitando a possibilidade de usar a carruagem do Comandante, no dia seguinte.

— Senhor, o meu patrão, deixou-me ordem para que, sempre que desejasse usar o tilburi, eu estivesse pronto para servi-lo. Portanto, estou às ordens.

— Obrigado Sr. Antero! Amanhã então, às oito horas — e se despediu.

 

Durante o jantar, Bernardo comunicou a todos que iria fazer uma visita de negócios no dia seguinte, e pediu que a tia Anna Rita o acompanhasse, para que ela fizesse as compras necessárias para a dispensa da casa.

— Papai permita que eu e titia Esther, também possamos ir, assim também, poderemos ajudar nas compras — disse Maria Conceição.

 

Bernardo olha de soslaio para Margery, e esta, com um gesto de cabeça autoriza o pedido, e ele concorda.


 

Capítulo IV
O despertar de um amor

 

No dia seguinte, ao chegar no escritório do seu corretor, concluiu negócios, recebeu e fez pagamentos. Não demorou mais que uma hora e meia. Em virtude de ter deixado a carruagem com as tias e Maria Conceição, esta na rua a procura de uma, para voltar para casa.

A certo momento, teve um encontro com Pedro Fernão.

— Bom dia Sr. Bernardo. Parece que o senhor está esperando uma condução, não?

— Bom dia! Estou sim.

— Por favor, queira aceitar o meu convite. Terei prazer de levá-lo.

— Não lhe incomodo?

— De forma alguma!

Ao chegar, Bernardo convidou Pedro Fernão para entrar, e este aceitou, recomendando ao cocheiro, que o esperasse.

Na sala de estar estão Margery e Maria do Rosário. Essa visita logo pela manhã, as surpreenderam; mas Bernardo justificou.

Pedro Fernão, demorou-se muito pouco e, logo se despediu, prometendo tornar a visitá-los, antes de retornar para Santos.

Eram quase onze horas, quando as tias e a filha chegaram com as compras.

— Por que demoraram tanto? Indagou Bernardo

— Da minha parte, Bernardo — respondeu a tia Anna — fiz todas as compras sozinha e rapidamente.

— Ah! Papai... Como não tinha muita coisa a ser comprada, eu e titia resolvemos dar uma volta nas lojas.

— É minha filha, acho que não poderemos contar com vocês. Portanto, você e titia, terão dois dias para revirarem esta cidade “de cabeça para baixo”, depois, eu as embarcarei de volta para Iguape. Quero dizer a vocês, que esta é uma resolução irreversível.

Ambas se retiraram para o quarto, e já começaram a planejar o que fazer nesses dois dias.

À tarde, Bernardo foi ao consultório do doutor, e lá, além da receita, recebeu também duas laudas com diversas recomendações, com destaque para as assepsias a serem feitas praticamente em todas as dependências da casa.

Sem muita demora, para não prejudicar o atendimento de outras pessoas, Bernardo se apressou em ir embora, e desejou fazer o pagamento dos honorários médicos, mas, obtém do Doutor a recusa naquele momento.

— Dentro dez dias irei visitá-los, então conversaremos a respeito.

 

Em casa, encontrou Margery e Maria do Rosário na biblioteca. Mostrou-lhes a receita e a lista e recomendações, dizendo que, no dia seguinte, iria à cidade, na Botica do Carmo, indicada pelo doutor, solicitar o aviamento da receita.

Margery tentou ler a receita, mas não conseguiu. Passou então para as recomendações, em virtude de serem os escritos, mais legíveis. Leu tudo e observou: — Só espero Bernardo, que todos esses cuidados, não sejam em vão.

— Claro que não serão Margery! Você não ouviu, assim como, nem eu e nem a nossa filha, da boca do Doutor, que você está com uma doença grave! O que ele está recomendando, são cuidados, que todo doente deve ter para obter uma melhora mais rápida, e sem surpresas. É uma prevenção, na verdade, o que ele recomenda. Os cuidados com a assepsia dos ambientes, por exemplo, é algo normal. Afinal de contas toda casa deve estar bem limpa. Aqui no nosso caso, acho que esse cuidado tem que ser redobrado.

— Fique tranqüila mamãe, que eu e a tia Anna, cuidaremos de tudo, para que esta casa esteja sempre cheirando limpeza. Agora mamãe, é bom que não esqueçamos o que o Padre Alfredo nos disse: — “Peça com fé, que o Nosso Senhor Bom Jesus lhe restituirá a saúde”. Vamos ter certeza mamãe, que nada mais poderá nos prejudicar, e que só a saúde virá ao nosso encontro em toda a sua plenitude.

— Papai, mamãe e titia, há algo que tenciono fazer e que gostaria que me acompanhassem.

— Diga minha filha — falaram juntos os seus pais.

— Gostaria que todos os dias, às dezoito horas, aqui na biblioteca, nós nos reuníssemos e, em prece, agradecêssemos a Deus, por tudo que tem nos ajudado e que nos ajudará. Concordam?

— Assim será minha filha. Renovaremos os nossos pedidos de agradecimentos a Deus, todos os dias, por tudo que Ele nos concedeu, concede, e que ainda, irá nos conceder — disse Bernardo.

 

Prece — “Seja o que for que peçais na prece, crede que o obtereis e concedido vos será o que pedirdes”

(Mateus — cap.11 v. 24 Bíblia Sagrada)

 

Ficou estabelecido então, que no dia seguinte, uma faxina completa começaria a ser feita. Inicialmente, no quarto de Margery, e no banheiro; posteriormente em outras dependências.

Por iniciativa da tia Anna Rita, foram comprados tecidos, para serem confeccionadas novas roupas de cama,

Providenciados e recebidos os remédios, assim como, efetuadas as assepsias em todas as dependências da casa, iniciou-se o prolongado tratamento de Margery, com obediência rigorosa às recomendações médicas.

 

Conforme o prometido, Bernardo leva Maria Conceição e a tia Esther para a cidade. O Sr. Antero, ficou à disposição delas.

Deslumbradas com tantas novidades da moda feminina, elas compraram vários cortes de vestidos, roupas íntimas, sapatos, perfumes, chapéus, cintos, pinturas e várias revistas de figurinos. Jóias, Bernardo, só autorizou que cada uma delas comprasse um camafeu.

De volta para casa, Bernardo dirigiu-se a elas: — Acho que, de compras vocês estão satisfeitas, portanto, o dia de amanhã, será para passeios, e se desejarem, poderão fazer a refeição do almoço, num restaurante.

Maria Conceição estava felicíssima com as compras, exibindo tudo para a sua mãe, que observou o bom gosto da sua filha, achando tudo muito bonito. Maria do Rosário também apreciou tudo, mas não se entusiasmou, pois estava atenta no relógio, para não perder o horário de dar os remédios para sua mãe.

No dia seguinte, tendo como cicerone o Sr.Antero, elas conhecem lugares lindos do Rio de Janeiro. Após alguns passeios, vão ao encontro de Bernardo, para o almoço, no melhor restaurante da cidade. Coincidentemente, encontraram com Pedro Fernão, que os convidou para almoçar. Durante a refeição, Pedro disse que voltaria para Santos dentro de dois dias, no vapor Pirahy.

— Você sabe se ele aportará em Iguape? Indagou Bernardo.

— Não sei não senhor. Só sei que tem destino ao Rio Grande do Sul.

— Saindo daqui, irei até às docas para saber.

— Sr. Bernardo, eu posso colher essa informação.

— Não irei tomar o seu tempo?

— De forma alguma senhor. Mesmo porque, se me permite, irei à sua casa fazer as minhas despedidas.

— Está bem Pedro. Vá lá, que teremos prazer em recebê-lo para o café da tarde.

Maria Conceição percebeu no ar de Pedro, a sua intenção e ficou pensando: Qual o real desejo dele, visitar a doente ou a aleijada.

Ela tinha consciência, que Maria do Rosário só perdia para ela no andar e no trajar. Quanto a aparência, ela era também muito bonita. Mas Maria Conceição, só admitia que perdia para sua irmã, no que diz respeito a cultura de um modo geral. Maria do Rosário, falava o francês com alguma fluência.

 

Pedro Fernão, era um jovem bem apanhado, de boa cultura, com uns vinte e três para vinte e cinco anos de idade, barba bem feita, bigode aparado, cabelos lisos, brilhantes e bem cortados, vestia-se muito bem, seus sapatos eram de verniz e sobre eles, polainas alvíssimas; um belo rapaz.

Maria Conceição estava entusiasmada com Pedro, mas este, não tinha para com ela, senão cordialidade.

À tarde, chegou Pedro Fernão, com dois buquês: um de rosas amarelas e outro, brancas.

As brancas, ele ofereceu para Margery, e as amarelas, para Maria do Rosário, que ruboresceu, visto que foram acompanhadas de um cochicho: “Você é muito bonita e simpática”!

Maria Conceição olhava, e por dentro, se contorcia de inveja da mãe e da irmã.

 

Inveja — “Haverá maiores tormentos dos que os que derivam da inveja e do ciúme?

Para o invejoso e o ciumento não há repouso; estão perpetuamente febricitantes. O que não tem e os outros possuem lhes causa insônias...toda emulação, para eles, se resume em eclipsar os que lhes estão próximo...”

(O Evangelho Segundo o Espiritismo — cap.V — 23)

 

Pedro informou a Bernardo, que o vapor deverá fazer escala em Iguape, e que, zarpará, dentro de dois dias, às oito horas,

E, acrescentou, só, como informação, que também, estará a bordo, um alto funcionário do governo português.

As conversações se alongaram à mesa do café.

— Bem senhor, senhoras e senhoritas, eu tenho que ir. Já entardeceu. Dona Margery, foi um grande prazer em conhecê-la. Desejo que se restabeleça o mais breve possível. Dona Anna Rita, também foi muito bom conhecê-la, pois, faz-me lembrar, quando a senhora esta de perfil, a minha mãe. Quando ele se dirige em direção a Maria Conceição, esta lhe diz: — Até depois de amanhã. Eu e a titia Esther, também iremos embarcar com destino a Iguape.

— Ótimo! — respondeu o jovem.

Ao se despedir de Maria do Rosário, ele falou do imenso prazer que teve em conhecê-la, falou-lhe da sua beleza e da sua simpatia e, beijou as suas mãos, e pediu permissão para voltar a vê-la no mês vindouro, quando estaria de volta a negócios da sua empresa.

-Apareça quando quiser Pedro. Teremos muito prazer em recebê-lo em nossa casa... Isto é: na casa do Comandante Vicente.

 

“A perfeição da forma é, assim, a conseqüência da perfeição do Espírito; podendo-se concluir que o ideal da forma deve ser o que reveste o Espírito no estado de pureza — a que imaginam os poetas e os verdadeiros artistas, porque penetram pelo pensamento nos mundos superiores”

(Obras Póstumas — Allan Kardec — Teoria do Belo )

 

“Simpatia/atração — Das qualidades particulares de cada fluido resulta, entre eles, uma espécie de harmonia ou desacordo, uma tendência a unirem-se ou a evitarem-se,uma atração ou repulsão, em uma palavra, as simpatias ou antipatias, que se sentem sem causas conhecidas”

(Obras Póstumas — Allan Kardec — Introdução ao Estudo da Fotografia e da Telegrafia do pensamento)

 

— Pedro Fernão, desejo voltar com você. Tenho que ir à praça do cais. Concede-me esse favor?

— Será um prazer Senhor!

Durante o percurso, Pedro toma coragem, e pede permissão para cortejar Maria do Rosário.

Bernardo fitou bem o jovem e perguntou: — Você já falou com ela?

— Não senhor!

— Pedro, eu vou justificar a minha pergunta: A Maria do Rosário, além de ter assumido por sua própria vontade e também, a pedido do Dr. Sizenando, o tratamento da sua mãe, que vai ser demorado, ela, após o restabelecimento de Margery, é quem irá se submeter a uma operação no seu pé. Você deve ter notado que ela tem dificuldade para andar. Então, eu o aconselho que aguarde ou mude de idéia. No entanto, pense e fique à vontade para falar com ela. Da minha parte, eu aceito o que ela resolver.

— É... Acho que o Senhor tem razão. Esse não é o momento. Eu notei que ela se preocupa muito com Dona Margery. Preocupação essa, louvável, demonstrando admirável amor filial.

— Mas meu jovem. Por que Maria do Rosário, e não Maria Conceição, que é igualmente bonita e sem problemas de saúde?

— Não sei... Não sei. Eu também me fiz essa pergunta. Acho que é o destino!

Você acredita em destino?

— Senhor Bernardo, pela pouca experiência, e também, pela pouca observação que tenho da vida, acho que, muitos acontecimentos que nos ocorrem, por nossa própria vontade, temos condições de mudá-los, modificando-os ou até eliminando-os. Mas existem outros que calam fundo em nosso íntimo, e às vezes, o nosso desejo é afastá-los, mas uma força maior nos leva e nos aproxima das coisas, acontecimentos ou de pessoas. Acho então, que o destino, nesses casos, é uma realidade. Isso, eu aprendi com o meu pai, e, a observação que hoje faço, constato que ele tem razão.

— Concordo com você, no entanto, acrescento que quando você disse que outras forças nos levam e nos aproximam de algo, acontecimentos ou de pessoas, somam-se a elas as situações que achamos ser: acaso, coincidência ou fadário.

Pedro ficou a olhar interrogativamente para Bernardo, que em seguida aduziu:

— Acho que posso explicar melhor: acaso, é algo que surge como um imprevisto. É acidental. Coincidências, acredito eu, sejam duas ou mais coisas que se identificam e se realizam num mesmo tempo. E quanto ao fadário, é o destino traçado por uma força sobrenatural; por algo que está fora do nosso alcance de entendimento; é a sorte. Mas, acredito que isso que podemos denominar como imprevisto, de coisas, acontecimentos ou encontros com pessoas, e que não conseguimos entender, têm uma vinculação conosco. A isso, eu não tenho nenhuma explicação.

 

“(...)A sucessão das existências corpóreas estabelece entre os Espíritos liames que remontam às existências anteriores; disso decorrem frequentemente as causas de simpatia entre vós e alguns Espíritos que vos parecem estranhos” (O Livros dos Espíritos — pergunta n. 204)

 

Existe aquele ditado popular: Quem planta colhe! Se eu plantar a animosidade, eu não terei a harmonia que desejo; se eu plantar a concórdia, terei condições de ser feliz; se sofri assédios ou humilhações, um outro tempo de paz, devo usufruir; e assim por diante. Isso é o que acredito! Mas confesso a você, que tenho muitas interrogações na minha mente sobre tudo isso.

— É senhor Bernardo, se em sua mente pairam dúvidas, que fará na minha que desconhecia todas essas conceituações!


 

Capítulo V
O acidente

 

O vapor partiu, levando Maria Conceição e a tia Esther, ressentidas com a atitude de Bernardo, de praticamente expulsá-las do Rio de Janeiro, muito embora, estivessem voltando com as malas abarrotadas com muitas compras. Elas queriam usufruir mais das novidades da Capital.

Logo nas primeiras horas de viagem, veio cumprimentá-las o Oficial Athayde.

— Que surpresa Oficial, achei que você estivesse na companhia do Comandante Vicente, rumo a Salvador!

— Gostaria realmente de ter ido, mas necessito ir para o Sul, em visita aos meus pais. Há seis meses que não os vejo, e esta é a oportunidade. Mas está sendo muito bom em revê-las!

— Que bom que você está conosco! Disse Maria Conceição.

— A recíproca é verdadeira — respondeu ele, apertando levemente a mão da jovem.

Pedro Fernão que havia chegado a pouco, ouve o diálogo.

Retirando-se, o Oficial vai para cumprimento das suas obrigações, Maria Conceição, tentando brotar em Pedro algum ciúme, e comentou: — O Athayde é um ótimo Oficial e muito atencioso.

— Concordo com você. Conheço o Oficial Athayde, há algum tempo, e ele está sempre assim: muito solícito e atencioso em todo momento.

— Bem senhora e senhorita, recebam as minhas desculpas, mas em virtude de afazeres, tenho que me retirar.

 

Durante a viagem, Maria Conceição permitiu que o Oficial Athayde a cortejasse.

O jovem Oficial, era bem apanhado, porte másculo, traços finos, olhos azuis, loiro, e que se apaixonou por Maria Conceição.

Ela, não estava muito entusiasmada, mas deu trelas a essa situação.

Maria Conceição, observou e, com sua tia, comentou que o Oficial cheirava graxa. E isso a incomodava.

— Mas minha filha, o moço é Oficial da Casa de Máquinas. Não dá para ele se apresentar cheirando rosas! Disse a tia Esther, em tom de repreensão.

— É, mas eu não gosto do cheiro de graxa!

 

Em Iguape, o Oficial fez questão de acompanhar Maria Conceição até sua casa, onde aí, foi apresentado ao Sr. Bernardino.

Athayde ficou admirado com a imponência do casarão e do seu mobiliário, e, mentalmente, avaliou a abastança da família.

Trocando idéias com o Sr. Bernardino, depois de pedir permissão para namorar a sua neta, Athayde demonstrou muito interesse no projeto de navegação fluvial e marítima que lhe foi apresentado.

Bernardino, homem experimentado no trato com as pessoas, pensou: Acho que achei a pessoa certa para cuidar da parte hidráulica e de propulsão de todos os vapores que pretendo por para navegar, por essas águas, assim como, na organização dos trabalhos no estaleiro e na manutenção dos barcos. Ficou exultante, e em seguida pergunta: — Oficial Athayde, o senhor estará rumando para o Sul. Por acaso, seria possível, que na sua volta, ficasse alguns dias conosco? Desejaria fazer algumas consultas a respeito do meu projeto.

— Sr. Bernardino, vou fazer o possível. Terei muito gosto em poder ajudá-lo.

Despedindo-se, Athayde seguiu para o cais do porto, na companhia de Maria Conceição e a tia Esther, em carruagem da família.

Antes de embarcar, ele prometeu voltar em breve.

Athayde vislumbrava muitas possibilidades do projeto de navegação fluvial e marítima dar certo, e também, via muitas chances de estar usufruindo desse empreendimento. Sonhava com a sua independência econômica.

 

“Aquilo que o homem ajunta por um trabalho honesto é uma propriedade legítima, que ele tem direito de defender. Porque a propriedade que é fruto do trabalho constitui um direito natural, tão sagrado como o de trabalhar e viver”

(O Livro dos Espíritos — Considerações de Allan Kardec sobre a pergunta n.882)

 

No seu retorno, vinte dias depois, o vapor que o conduzia de volta do Sul, não fez escala em Iguape; somente em Santos.

Ao chegar no Rio de Janeiro, o jovem Oficial Athayde, foi de encontro a Bernardo, e, solicitou permissão para namorar a Maria Conceição.

Bernardo ouviu, juntamente com Margery, e com a concordância desta, ele também anuiu ao pedido do jovem, e disse: — Está bem Oficial, mas quero salientar: a nossa filha, é muito bonita, mas, é um pouco desatenta para os acontecimentos importantes ao seu redor. Quero lhe dizer que ela é um tanto egoísta e orgulhosa — pensa muito em si própria. Nós estamos nos esforçando, para que esses sentimentos, que na verdade são defeitos, possam se modificar e, que ela passe a ser mais solidaria.

 

“O egoísmo tem origem no orgulho. A supremacia d própria individualidade arrasta o homem a considerar-se acima dos demais. Julgando-se com direitos preferenciais, molesta-se por tudo o que, em seu entender, o prejudica. Naturalmente a importância que, por orgulho, se atribui, o torna naturalmente egoísta”

(Obras Póstumas — Allan Kardec — Egoísmo e Orgulho

 

Quanto ao projeto de navegação que papai lhe apresentou, espero que o senhor avalie bem, pois é de um grande investimento, e que o retorno do capital, vai ser lento.

— Vou analisar bem, e a minha contribuição será na parte técnica, da qual tenho domínio. Agora quanto o retorno de capital, eu não entendo. O que sei, é que, na companhia que trabalho, ela não opera em portos deficitários. Mas mudando de assunto, eu agradeço a sua permissão. Viajarei para Iguape, e lá ficarei por uns quinze ou vinte dias, e vou me inteirar sobre o projeto do Sr. Bernardino.

— Papai tem planos para a navegação de cabotagem. Espero que o senhor o auxilie, e que cheguem a uma conclusão plausível.

— Vou fazer o que estiver em meu alcance!

— Oficial Athayde, poderia me fazer um favor?

— Pois não, senhor!

— Eu o incomodaria, se lhe pedisse que fosse portador de uma carta que endereço a papai?

— Absolutamente, Sr. Bernardo. Estou às suas ordens!

— Quando o senhor partirá?

— Dentro de três dias — precisamente na sexta-feira pela manhã.

— Amanhã mesmo, vou entregar-lhe a carta.

 

Bernardo escreveu uma longa carta, discorrendo sobre todo tratamento de Margery, e a evolução deste. E aproveitou também, para contar, que deu permissão para o namoro, do portador, com a Maria Conceição, e pediu vigilância a respeito.

Maria do Rosário, igualmente, escreveu ao seu avô, e dentre outros assuntos, diz que está com muitas saudades, e que não esqueceu do presente por ela prometido.

 

Em Iguape, o Oficial, analisou o projeto, se entusiasmou, anteviu muitos ganhos, e prometeu ajuda para a conclusão do ideal. Com a sua anuência, ele recebeu do Sr. Bernardino, um décimo da quota do capital da sociedade, e se comprometeu em troca, dar total assistência para o final da construção de um vapor.

Assim sendo, O Oficial pediu licença de seis meses, sem remuneração, da companhia em que trabalhava, e passou a se empenhar dia e noite, na construção do vapor “Paulistano”

Athayde, jovem dinâmico, inovador e de muitas idéias, incrementou algumas modificações na parte hidráulica da caldeira e na parte mecânica dos braços propulsores que moviam a roda que impulsionadora do vapor. O objetivo era proporcionar ao vapor, maior velocidade.

O tempo passou. Chegou o dia, não da viagem inaugural, mas o dia de testá-lo numa pequena viagem. O desempenho do vapor, era perfeito. Todos os empregados empenhados na construção do vapor estavam embarcados. Já num braço de mar, a embarcação vencia fácil a correnteza, sem estar com toda pressão na caldeira. Ele era vistoso; azul e branco; os metais eram todos em cobre. Toda a parte do refeitório e dos camarotes, que ainda não estavam totalmente terminados, eram de madeira nobre.

Corria tudo bem, dentro da normalidade. O mestre Adelino, estava radiante com o desempenho do vapor.

Atento à caldeira, Athayde sorria satisfeito para os maquinistas, que estavam a elogiar as modificações incrementadas, principalmente, na parte mecânica. Tudo estava muito bem ajustado e bem engraxado, e dentro da previsão de funcionalidade.

A certa altura da viagem, um tripulante, chegou perto do Oficial, e disse: — Oficial, uma moça, que não quis se identificar, deixou esta carta em minha casa, para que fosse entregue ao senhor. Relutei comigo mesmo em entregá-la, mas depois pensando, que poderia tratar-se de coisa séria e importante, resolvi trazer, e aqui está.

O Oficial agradeceu e começou a ler. Um vermelhão toma conta de todo seu rosto. Ele dá um murro no ar e grita: “Falsa! Você me paga!”

Sofrendo o fogo da traição em seu peito, ele correu para a sala de comando, tomou o timão, e manobrou ao contrário, chegando a adernar o vapor, causando até a entrada de água pelo convés à estibordo.

 

“Há quem julgue seja a brandura ausência de firmeza no caráter, quando a realidade não é assim. Serenidade é entendimento e visão. Água branda vence a pedra rija, por outro lado, o cais parado e silencioso contém o oceano que se move, terrível, na maré alta. Em contraposição, temos a violência e a precipitação que suscitam complicações e agravam problemas.”

(Sol nas Almas — André Luiz — psicografia de Waldo Vieira — cap. 53)

 

Repentinamente, formou-se um grande temporal, com rajadas de vento muito fortes, formando ondas enormes no rio, nunca antes vistas. Athayde entregou o timão para o mestre Adelino, e saiu blasfemando na direção à casa de máquinas. O vento contrário aumentava a sua força, reduzindo a velocidade do vapor. Athayde resolveu, então, aumentar a pressão da caldeira. Com o vento forte que vinha de encontro, chuva densa, maior força propulsora foi incrementada; embarcação vibrava e rangia. Todos estavam apreensivos. Athayde, na casa das máquinas comandava todas as ordens, e acompanhava todo desempenho das modificações implementadas na caldeira. Mas, um defeito em uma das válvulas de segurança para escape do excesso de vapor, passou despercebido. O aumento demasiado da combustão, travou as válvulas, a pressão subiu repentinamente, e uma grande explosão aconteceu, naufragando o vapor quase que imediatamente. Desapareceram: o Oficial Athayde e mais dois maquinistas.

Bernardino, além de perder um grande investimento, perdeu também dois amigos e antigos colaboradores e um promissor sócio, o qual, já estimava como um parente. O investimento, foi considerado irrecuperável; o vapor afundou em águas profundas.

Em conversa com os sobreviventes, Bernardino obteve algumas informações sobre o que aconteceu antes da explosão, inclusive, o depoimento do tripulante que foi o portador da carta. Ele tentou entender o que aconteceu antes do sinistro, mas não conseguiu chegar ao fio da meada. E vem-lhe à mente, o que a sua esposa lhe disse naquela reunião, sobre perdas materiais e de amigos. Seria esse o aviso... um acidente?

Retornando a Iguape, o Comandante Vicente, é informado do acidente com o Oficial Athayde. O Sr. Bernardino passou às mãos do Comandante, todos os pertences do Oficial, inclusive, uma parte em dinheiro da sociedade, muito embora esta ainda não estivesse constituída oficialmente, juntamente com uma carta de pesar aos familiares do jovem.

Uma carta também foi endereça, a Bernardo, relatando o fato ocorrido com o vapor.

 

Estava chovendo, e fazendo frio na Capital, quando tocou a sineta . Era o Comandante Vicente. Bernardo vai de encontro ao amigo.

— Que prazer em revê-lo, amigo Comandante! Como faz frio aqui na sua terra, Comandante!

— O prazer é meu amigo Bernardo. Realmente, está bem frio, mas essa não é a temperatura normal para o Rio de Janeiro.

— Faço votos que fique bastante tempo aqui na Capital, para podermos usufruir da sua agradável companhia por mais dias.

— Esse também é o meu desejo, mas, acho que ficarei somente uns cinco dias, depois, rumarei para o Sul, numa difícil missão.

Os dois estão a sós na biblioteca.

Bernardo leu a carta do seu pai, e lastimou a perda: Era um bom moço!

— E um excelente Oficial — acrescentou o Comandante.

— Acho que vou esperar que Margery se fortaleça mais, para lhe dar essa notícia triste.

— Não resta dúvida, que essa é uma decisão acertada. Sou de opinião que se a notícia for data, só abalará o estado frágil de saúde da Dona Margery.

Conversaram um pouco mais a respeito, e daí, Bernardo resolveu chamar Margery e Maria do Rosário, para a visita que estavam tendo.

O Comandante ficou surpreso com a melhora aparente de Margery.

— Dona Margery, quero lhe dizer que estou muito feliz em vê-la com aparência mais jovial e saudável. Acho que os ares da Capital estão lhe fazendo muito bem e surtindo grande efeito para a sua completa saúde. Faço votos que a senhora tenha um rápido restabelecimento.

— Obrigado Comandante, eu também espero ficar boa rapidamente, pois, já estou com saudades de Iguape.

— E a senhorita, também está com saudades da Princesa do Litoral?

— Estou sim, principalmente do meu “Vozinho”

— Seu avô está muito bem. Estivemos conversando, e ele, também se expressou dizendo que também está sentindo a falta de todos.

Entre outros assuntos, o Comandante lhes disse que rumaria para a Europa, mais especificamente, para Portugal, dentro de mais ou menos um mês, e se dispôs a trazer alguma encomenda.

— Comandante, se não for incômodo, eu desejo algo. Posso pedir?

— Diga senhorita. Estou às ordens!

— Gostaria que me trouxesse alguns livros romanceados, e em francês, e também, um dicionário português-francês, se possível.

— Não poderia ser encomenda mais fácil, pois, eu também quero, de lá, trazer alguns livros. Não pretendo ir a Paris, mas acho que poderei encontrar o que você quer em Lisboa.

— Obrigado Comandante.

— Não por isso, senhorita.

Acabando de tomar o último gole de conhaque, o Comandante despediu-se, prometendo visitá-los, quando do seu retorno, do Sul.


 

Capítulo VI
A visita médica

 

Passaram-se alguns dias, e Bernardo foi fazer uma visita ao Dr. Sizenando. Nessa oportunidade, indagou, se seria possível antecipar o tratamento de Maria do Rosário.

O doutor respondeu que sim, mas, perguntou: — O senhor pode me dizer, do porquê, da sua indagação? E outra coisa: após a operação da sua filha, ela não poderá estar cuidando da Dona Margery!

— Tenho consciência disso, doutor. Acho que a minha tia, que já vem ajudando muito, poderá enfrentar essa responsabilidade, e eu, poderei contratar alguém para nos ajudar. Eu penso, sem que haja prejuízo para ambas, em abreviar a nossa estada aqui.

E Bernardo então, contou tudo o que ocorreu em Iguape, e a preocupação que está tendo com seu pai, com possíveis conseqüências nefastas que ele poderá estar enfrentando-as sozinho.

— Sr. Bernardo, entendo a sua preocupação, no entanto, vou avaliar o seu pedido, como o senhor mesmo disse: “sem que haja prejuízo para a sua esposa e filha”.

— Obrigado doutor pela sua atenção.

— Fique certo senhor Bernardo: o que eu puder fazer para a sua felicidade e dos seus, tenha certeza que estou solidário, e farei o possível para ajudar de muito bom grado. Saiba o senhor, que com esses meses de convivência, eu os tenho como meus diletos e verdadeiros amigos. Parece que há décadas eu os conheço!

— Muito obrigado doutor, por essa deferência. Gostaria também, que o senhor soubesse, que ainda ontem, lá em casa, comentávamos a seu respeito: falávamos da sua atenção, presteza e afabilidade para conosco, e concluímos que, sentimos pelo senhor uma afetividade muita acentuada. Como o senhor mesmo diz: “Parece que há muito tempo nós nos conhecemos e somos amigos”.

— Aí está algo que a psicologia ainda não explica! Tenho amigos, que já me afirmaram que existe uma doutrina cristã, que tem essas respostas, tais como: simpatia ou antipatia, como também, respostas para as situações que chamamos de acasos e coincidências em nossas vidas. Mas isso meu amigo Bernardo, é uma conversa de muitas horas, muito longa, que qualquer dia desses nós entabularemos. Agora, o momento requer atenção e presteza no enfrentamento das doenças que afligem as pessoas que nos solicitam.

— Vou aguardar doutor!

 

“Os encontros que se dão algumas vezes entre certas pessoas e que se atribuem ao acaso, não seriam o efeito de uma espécie de relações simpáticas?

— Há, entre os seres pensantes, ligações que ainda não conheceis. O magnetismo é a bússola desta ciência, que mais tarde compreendereis melhor”

(O Livro dos Espíritos — Pergunta n.388)

 

Dois dias após, o Dr. Sizenando fez uma visita às suas pacientes, e é recebido, na hora do café da tarde. Depois, na sala de estar, o doutor perguntou a Margery: — Dona Margery, como a senhora esta observando a evolução do seu tratamento? Tem alguma observação a fazer?

— Doutor, eu sinto que estou melhor!

— Há algo que não lhe alertei. Será agora, na entrada do terceiro mês de tratamento, que a senhora irá notar a sua melhora mais acentuada. Os remédios funcionam com gradação, assim como, o seu organismo na aceitação deles. Acho que daqui em diante, a senhora vai se ver no espelho, e se achar mais bonita, mais corada e mais disposta. A Bíblia nos ensina: “Batei e abrir-se-vos-á”, e que: “ A Fé remove montanhas”. Insista, rogando a Deus, e tenha certeza que a senhora vai ficar ótima, saudável e feliz. Tenha confiança dona Margery, como eu tenho a certeza, que o tratamento que está se submetendo, está o correto, e a senhora vai se recuperar e voltar a sorrir para a vida!

 

“Batei e abrir-se-vos-á: Ajuda-te a ti mesmo que o céu te ajudará. 5 — Do ponto de vista moral essas palavras de Jesus significam: Pedi a luz que vos clareie o caminho e ela vos será dada; pedi forças para resistirdes ao mal e as tereis; pedi a assistência dos bons Espíritos e eles virão acompanhar-vos e, como o anjo de Tobias, vos guiarão; pedi bons conselhos e eles não vos serão recusados; batei à nossa porta e ela se vos abrirá; mas, pedi sinceramente, com fé, confiança e fervor; apresentai-vos com humildade e não com arrogância, sem o que sereis abandonados às vossas próprias forças e as quedas que derdes serão castigo do vosso orgulho. Tal o sentido das palavras: buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á”

(O Evangelho Segundo o Espiritismo — cap.XXV)

 

— Obrigado por mais esse ânimo que me proporciona. O que me preocupa um pouco, não é mais a minha doença, mas sim, a minha filha que está longe de nós; ela é muito geniosa. Tenho tido alguns sonhos com ela...

— É... O amor de mãe, é algo sublime — disse o doutor.

— E você filha — disse ele dirigindo-se a Maria do Rosário — está cansada?

— Não doutor. Eu estou bem.

— Deixe-me ver... Hum...! Está um pouco anêmica.

— Sr. Bernardo, aviarei uma receita, para que seja preparado um tônico para ela. Não quero ver a minha principal auxiliar debilitada, pois “logo-logo”, cuidaremos do seu pé.

Emendou o doutor: — Dona Margery, a senhora também poderá tomar o tônico. Vai ser muito bom. Outra coisa, que desejo lhe informar: quanto a análise do último material que a senhora colheu, tenho a lhe dizer, que estou muito contente com o resultado, pois a diferença para melhor em relação ao outro, foi bastante acentuada. Tenhamos fé no Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, padroeiro da sua terra, que Ele, está nos ajudando nessa empreitada.

O doutor se despediu, prometendo voltar dentro de dez dias, mais ou menos.

 

Meado do terceiro mês de tratamento, Margery, já se mostrava bem mais disposta e corada, e até, com a voz mais forte e mais bonita. Essa transformação contagiava todos.

Disse o doutor ao visitá-la: — Eu nem vou perguntar como a senhora está passando. Porque, o seu semblante já nos revela que a saúde está novamente se reinstalando no seu corpo, para a nossa alegria. A senhora está ótima!

— Realmente doutor, eu estou passando muito bem!

— É... Mas nós não iremos parar. O tratamento continua. Agora que a senhora está mais forte, e se o tempo ajudar, gostaria que fosse mais vezes, tomar a aragem marinha mais de perto.

— Eu vou gostar doutor!

— Dirigindo-se agora, para Maria do Rosário: — Senhorita, o seu trabalho dedicado e amoroso para com a atenção do tratamento da sua mãe, foi perfeito. Assim sendo, estou a sua inteira disposição.

Maria do Rosário olha para a sua mãe, para o seu pai e para a sua tia, e em seguida, virou-se para o doutor e responde: — Dr. Sizenando, deixando de lado os cuidados médicos que mamãe ainda deverá respeitar, quanto a alimentação, não fazer esforço, manter-se calma, equilibrada, não se aborrecer, descansar bastante, ainda deverão continuar?

— Perfeitamente!

— Olha aqui mamãe, se a senhora não me obedecer, eu não conta mais historinhas!

Todos riram com a brincadeira.

— Então doutor, havendo um espaço na sua agenda eu estou pronta para a cirurgia.

— Ótimo, Maria do Rosário. Parece que já estou vendo o sucesso dessa operação — disse o Doutor.

— Papai e mamãe, eu gostaria que estivessem comigo — disse ela, tomando-lhes as mãos.

— Filha tenha certeza que estarei com você em pensamento e em oração.

— Eu entendo mamãe. Sei que a senhora não poderá ficar comigo. Mas, e o senhor, papai?

— Minha querida... Tenha absoluta certeza disso. Ficarei ao seu lado o tempo todo.

— Obrigado papai. O senhor é um anjo!

— Eu posso ficar ao lado dela doutor?

— Claro que pode Sr. Bernardo!

— Então ficamos assim: dentro em breve, voltarei para uma nova avaliação, e então, faremos mais um estudo para as nossas intervenções, e marcaremos o dia. Quando eu voltar, estarei acompanhado de um amigo. Ele é um retratista e vai me ajudar nesse caso. Vocês podem estar se perguntando: O que fará um retratista nesse caso? Eu explico: Ele vai fazer um desenho do pé da nossa menina, no tamanho natural e como hoje está se apresentando. Isso propiciará, para que eu possa fazer um estudo mais detalhado e com antecedência, assim, esquematizaremos os procedimentos da operação com anterioridade, para que na hora, não tenhamos que usar da improvisação.


 

Capítulo VII
A cirurgia

 

O tempo passava, e Maria do Rosário, experimentava dias calmos, alternados com apreensivos.

Numa manhã ensolarada, chegaram o doutor e o seu amigo pintor. São recebidos por Maria do Rosário. Logo em seguida, vieram Bernardo e Margery.

A apresentação do seu acompanhante — o pintor retratista — foi feita, e um esclarecimento, do doutor, com referência ao trabalho a ser efetuado, tornou-se obrigatório.

— Como vocês têm conhecimento, um pintor retratista, ao retratar alguém, procura captar e passar para a tela, todos os detalhes do rosto de quem se expõe; e esse quadro, pode ter qualquer medida. Se tirássemos uma fotografia do pé da nossa menina, ele não iria ter o tamanho que desejo, para facilitar o meu estudo. Assim sendo, com o trabalho do amigo — Sr. Leandro — o pé dela, vai ser retratado, no tamanho natural e, no tamanho mais ampliado da região que nos interessa, e de várias posições, de forma bem nítida.

— Dr. Sizenando, estou convencida e também pronta para que façamos isso lá na biblioteca, pois se chegar alguém de imprevisto, o trabalho não será interrompido.

— Muito bem! Mãos a obra amigo, Leandro!

Acomodaram-se. O Sr. Leandro desenrolou grandes folhas de papel em branco sobre a escrivaninha e sentou-se. O mesmo fez Maria do Rosário, descalçando-se sem nenhum constrangimento, sentando-se bem perto do retratista, e expondo o seu defeito com naturalidade.

O Sr. Leandro, previamente avisado, não se admirou e nem estranhou com o que viu.

Sob a orientação do doutor, o Sr. Leandro começou o seu trabalho. Seus traços eram firmes, e iam dando ao papel, toda aparência do pé defeituoso. Foram executados quatro desenhos, e em quatro posições diferentes. Transcorreram duas horas, mas tudo resultou perfeito.

— Perfeito amigo Leandro! Perfeito! — disse o doutor.

Maria do Rosário, com muita naturalidade e equilíbrio, olhou bem o seu pé naqueles papéis e disse: — Meu querido defeito, os seus dias de agregado ao meu corpo, que me fez experimentar algum sofrimento, dores e até tolher os meus movimentos, estão com os seus dias contados para desaparecerem. E eu lhe agradeço, pois as conseqüências que de você advieram, acrescentaram muito na minha formação moral e intelectual, e também, me deu a oportunidade de conhecer pessoas excelentes.

 

“Sofrimento — 9: Não há crer, no entanto, que todo sofrimento neste mundo denote a existência de uma determinada falta. Muitas vezes são simples provas buscadas pelo Espírito para concluir a sua depuração e ativar o seu progresso.”

(O Evangelho Segundo o Espiritismo — cap.V)

 

“O Espírito tem o direito de escolher o corpo ou somente o gênero de vida qu lhe deve servir de prova?

— Ele pode escolher também o corpo, porque as imperfeições do corpo são provas que o ajudam no seu adiantamento, se ele vencer os obstáculos encontrados, mas a escolha nem sempre depende dele, que pode pedi-la”

(O Livro dos Espíritos — Livro II — pergunta n.335)

 

— Dr. Sizenando, gostaria que após a conclusão dos seus estudos e também da operação, o senhor me desse esses desenhos. Na certeza que tudo dará certo, desejo enquadrá-los, e levá-los para Iguape, depositando-os na sala dos milagres, lá na nossa igreja. Eu sei que a operação não será obra de um milagre, mas tenho certeza, que o Nosso Bom Jesus da Cana Verde, irá nos ajudar.

 

— Minha filha — disse a tia Anna — Isso tudo não fará você sofrer com lembranças desagradáveis?

— Titia, eu não irei sofrer com essas lembranças; elas não serão desagradáveis, pois, isso tudo — apontando para o seu pé — só veio a engrandecer e fortalecer o meu interior, estreitando os laços familiares, com papai, com vovô, com a senhora, e principalmente com mamãe, visto que, estamos sempre juntas, e também, proporcionou-me mais conhecimentos dos ensinos de Jesus, além do que, trouxe-me a oportunidade de conhecer o Dr. Sizenando, e o seu, agora também nosso amigo, Sr. Leandro, o Comandante Vicente, o Dr. Arthur, o Sr. Antero e a sua esposa, o Pedro Fernão, os Oficiais Urbano e Athayde — grandes amigos. Então, não vai ser somente uma simples lembrança, vai ser uma lembrança acompanhada de bons acontecimentos e de ótimos relacionamentos com pessoas muito queridas.

— Sabe minha filha — aduziu o Doutor — isso tudo que você disse, tem lastro numa doutrina que está emergindo devagarinho no Brasil, a qual dá respostas convincentes para os vários aspectos que passamos em nossas vidas. Assim, disseram-me alguns amigos; estou curioso. Com mais tempo, conversaremos sobre isso. Por hora, estou com um pouco de pressa.

 

Levantaram-se o doutor e o Sr. Leandro e, quando iam se despedir, Bernardo solicitou que ficassem, pois era chegada a hora do almoço, e lhes ofereceu vinho. Ambos aceitaram o vinho, mas recusaram o convite, prometendo aceitar o convite para um outro dia.

Antes de saírem, Bernardo indaga para o Sr. Leandro, o quanto deveria pagar pelo seu excelente trabalho.

— Sr. Bernardo, o senhor nada me deve, e faço votos, que na pessoa do Dr. Sizenando, o meu trabalho para a ciência médica, traga bons benefícios e muita alegria e felicidade para a senhorita, que é uma linda moça, e que deverá ter, também, um pé muito bonito.

 

“Amigo, a passagem pela Terra é aprendizado sublime. O trabalho é sempre o instrutor do aperfeiçoamento. Sirvamos sem prender-nos. Em todos os lugares do vale humano, há recursos de ação e aprimoramento para quem deseja seguir adiante. Sirvamos, em qualquer parte, de boa vontade, como sendo ao Senhor e não às criaturas, e o Senhor nos conduzirá para os cimos da vida”.

(Fonte Viva — Emmanuel — 29)

 

— Obrigado Sr. Leandro, e venha nos visitar quando desejar, pois aqui estaremos de braços abertos para receber o amigo.

— Prometo voltar Sr. Bernardo, algum dia, após a cirurgia, que com a graça de Deus, terá todo êxito.

Antes de saírem, o doutor disse que voltaria dentro de alguns dias, com a notícia da marcação do dia da cirurgia.

 

— Bernardo, você já atinou, que desde o começo da nossa viagem, até mesmo antes, nós só nos deparamos com pessoas boas, atenciosas, prestativas, que fazem de tudo para nos ajudar e agradar?

— É verdade. As coisas boas vêm acontecendo desde que ouvi “aquela voz”.

— Papai e mamãe: Jesus disse: “não cai uma folha de árvore sem que Deus queira”. Portanto, eu acho que os acontecimentos e as pessoas, todas elas, que estão nesse episódio que estamos vivenciando, são realmente aquilo que deveríamos experimentar, e as pessoas certas que deveríamos encontrar.

Bernardo e Margery estavam cada vez mais convencidos da maturidade da jovem. Ela agia com naturalidade, sem afetação, e sem excesso de responsabilidade, sempre com equilíbrio nas suas atitudes e ponderações.

 

Alguns dias depois, o doutor estava de volta. Ele manteve uma longa conversa com Margery, recomendando, que não se preocupasse com a sua filha, visto que, a operação estava toda esquematizada, com todas as previsões possíveis, e que ele, teria a cooperação de dois outros médicos, seus amigos, que também estudaram o caso, se interessaram, e se prontificaram em ajudar.

Margery ficou confiante e agradeceu.

— Sr. Bernardo e Maria do Rosário, não sei se concordam, mas eu marquei a operação para depois de amanhã, às sete horas. Seremos os primeiros a usar a sala de cirurgia. E sendo assim, nós a encontraremos muito limpa. Hoje mesmo, eu irei inspecionar a limpeza e as esterilizações dos instrumentos. Recomendo que levem três lençóis de solteiro; dois irão forrar o colchão da cama, e outro, será usado para cobrir a nossa bela jovem. Filha, você não precisará pernoitar no hospital. À tarde, lá pelas dezessete horas, você voltará para casa.

 

A operação foi um sucesso. Aquela carne esponjosa foi retirada e os dedos, separados e modelados. O Dr. Sizenando, e seus amigos médicos, estavam satisfeitos com o resultado. De certa forma, antes da intervenção, todos eles estavam apreensivos, visto nunca terem atuado nesse tipo de operação. Mas como tudo, foi exaustivamente planejado, não houve surpresas.

— Sr. Bernardo, quando estávamos fazendo a separação dos dedos da menina, e retirando aquela carne esponjosa, notei que o senhor quase desfaleceu; ficou um pouco branco, mas depois, agüentou bem.

— Realmente Doutor, quase que desmaiei!

No quarto, o doutor perguntou se Maria do Rosário estava sentindo dores, e obteve como resposta, que ainda não.

 

— Ótimo! Você vai ficar aqui, até à tarde; se não houver nenhuma intercorrência, irá para casa.

— Obrigado doutor. Por enquanto estou bem!

— Eu estarei de volta às dezessete horas, mas antes, tome esses remédios: um é para relaxar, outro é um anestésico, e outro é um anti-inflamatório. Qualquer coisa, que acharem que eu deva estar presente, é só me chamar. Ainda no período da manhã, estarei por aqui; à tarde estarei no consultório.

Enquanto Maria do Rosário mergulhava num sono tranqüilo, a tia Anna Rita foi buscar o seu almoço — uma canja.

Bernardo recomendou para a sua tia, que tranqüilizasse Margery, dizendo-lhe que a operação foi um sucesso.

Era meio-dia e meia, quando Maria do Rosário despertou, e com fome.

— Papai e titia, eu quero lhes contar uma coisa interessante. Ontem, antes de deitar-me, e em oração, eu pedi para que hoje, tudo corresse bem na operação. Quando eu estava ali, recolhida, senti uma sensação de apoio no meu ombro direito, e escutei nitidamente alguém me falando: “ Esteja confiante minha filha que eu estarei lhe ajudando”. E agora, nesse sono profundo que entrei, sonhei com uma pessoa, que não sei identificar; a voz era a mesma, e de mulher, que me disse: “Sua operação foi coroada de êxito, não só pelos seus méritos, como também, dos doutores”

 

“11. Todos temos, ligado a nós, desde o nosso nascimento, um Espírito bom, que nos tomou sob a sua proteção. Desempenha junto de nós, a missão de um pai para com seu filho; a de nos conduzir pelo caminho do bem e do progresso, através das provações da vida. Sente-se feliz, quando correspondemos à sua solicitude; sofre, quando nos vê sucumbir.

(...) Além do anjo guardião, que é sempre um Espírito superior, temos Espíritos protetores que, embora menos elevados, não são menos bons e magnânimos. Contamo-los entre amigos, parentes, ou, até pessoas que não conhecemos na existência atual. Eles nos assistem com seus conselhos,e, não raro intervindo nos atos da nossa vida”

(Evangelho Segundo o Espiritismo — Cap. 28)

 

— Sabe minha filha, ontem, acho que também, algo comigo aconteceu. Sabe por que? Fiquei tranqüilo, dormi muito bem, como há muito tempo não experimentava, e Margery, também, esteve bem calma. Acho que recebemos uma graça do Nosso Senhor!

— Graças a Deus — exclamou a tia Anna Rita.

Às dezesseis horas, lá estavam de volta o Dr. Sizenando e seus colegas médicos.

— Minha jovem, aqui estamos para o primeiro curativo.

Examinaram... Examinaram... E concluíram cada um, com largos sorrisos. Estava tudo bem, muito embora o local estivesse um pouco inchado. Mas isso, era normal após qualquer incisão. A cicatrização já se iniciara, um curativo foi feito, e a autorização para ir para casa, foi dada.

— Antes, Maria do Rosário, eu tenho as recomendações: não ponha esse pé no chão; deixe-o sempre enfaixado e muito bem protegido; tome muito cuidado para não batê-lo; quando estiver deitada, mantenha-o um pouco para cima e quando estiver sentada, deixe-o apoiado, com a perna esticada. Não esqueçam que tudo ao redor, deve estar muito bem limpo. Quanto à comida: sopa de legumes, com carne de músculo de vaca e batata; frango ou peixe cozidos e com pouco tempero e arroz branco. Aqui estão os remédios que já mandei manipular. São calmantes, analgésicos, anti-inflamatórios e essa pomada cicatrizante. Amanhã, antes do almoço, irei trocar esse curativo. Vai com Deus minha filha!

— Obrigado doutor! Estaremos esperando-o para o almoço! Não aceitaremos recusa. Ah! Esse convite, também fica estendido aos senhores — disse Maria do Rosário.

— Dr. Sizenando, desejo que me apresente os honorários e os gastos com o hospital.

— Amanhã Sr. Bernardo, eu lhe comunico. Ah! Tem uma coisa importante: hoje ainda, irá à sua casa, uma pessoa da minha inteira confiança, cujo apelido é “Gepeto”, que irá levar um par de muletas. A menina vai precisar usá-la por um bom tempo.

— Despediram-se.

Ainda no hospital, Maria do Rosário recebeu a visita do senhor Leandro, que lhe desejou rápida recuperação, e que ficou radiante com o sucesso da operação.

— Senhor Leandro, notei que durante a intervenção cirúrgica o seu trabalho foi constantemente usado pelos médicos, visto que, volta e meia, estavam a consultá-lo. Muito obrigado amigo Leandro por seu excelente préstimo.

Amanhã, senhor Leandro, o Doutor irá nos visitar para um segundo curativo, e nós o convidamos, juntamente com outros médicos, para almoçarem conosco. O senhor também, está convidado; fazemos empenho no seu comparecimento.

Ele agradeceu o convite, mas não prometeu comparecer, em virtude de compromissos assumidos.


 

Capítulo VIII
A declaração de amor

 

Margery manteve-se com os mesmos cuidados. Tudo estava sendo feito como anteriormente planejado. Agora, com a impossibilidade de Maria do Rosário, Bernardo, por indicação do Doutor, contratou uma enfermeira — Dona Neila.

Não sendo possível vir todos os dias para fazer o curativo no pé da jovem, o doutor, recomendou que dona Neila o fizesse. Para isso, ele orientou-a de como fazê-lo. No entanto, pelo menos uma vez por semana, ele fazia uma visita, acompanhando assim, a evolução das curas de Margery e de Maria do Rosário.

 

No meio de certa manhã, Bernardo, Margery, Maria do Rosário e o Dr. Sizenando, conversavam animadamente, quando tocou a sineta.

— Quem será? Exclamou Margery

Bernardo foi atender, e voltou na companhia de Pedro Fernão, que como da vez anterior, trazia dois buquês.

— Se me permite Sr. Bernardo, as rosas amarelas, desejo oferecer a Dona Margey.

— Permissão concedida!

— Muito obrigado Pedro Fernão. São lindas!

— E essas vermelhas, são suas Maria do Rosário.

— O buquê é maravilhoso Pedro. Obrigado por sua atenção e afabilidade.

— Trago desejos de melhoras, do meu pai.

— Maria do Rosário, você está usando essas muletas? Porque?

— Já operei — disse, retirando a manta que cobria as suas pernas — e tudo correu muito bem, e eu vou ficar ótima até para dançar, como me disse o doutor. Pedro, você já conhecia o doutor Sizenando?

— Conhecia somente pela fama de ser um ótimo médico. Muito prazer doutor.

— Igualmente senhor Pedro.

— Papai, por favor, peça para titia nos ajudar com essas lindas flores, e acondicioná-las em dois vasos.

 

Bernardo ofereceu às visitas, vinho, que ambos aceitaram.

Durante a conversa que entabulavam, Bernardo salientou a Pedro Fernão, que o Dr. Sizenando, tinha sido o responsável pela saúde, pelo sorriso e pela felicidade que reinavam entre eles.

— Sr. Bernardo, realmente eu gostaria de ter esse dom de transformar o íntimo das pessoas. Gostaria que elas fossem mais felizes e que tivessem muita alegria de viver. Algumas pessoas que cuido, são tão fechadas e descrentes, que os remédios muitas vezes não fazem efeito ou demoram muito para fazê-lo. Nas minhas observações, quando o paciente acredita na sua cura, cumpre todo o tratamento sem reclamos, e tem fé em Deus que vai ficar curada, isso ajuda muito, e elas, ficam boas rapidamente; os remédios fazem mais efeito, atuando no organismo com mais força, proporcionando melhoras bem rápidas e acentuadas. Aqui entre vocês, não encontrei outra coisa, senão isso. No começo do tratamento, ouve até um vacilo, que reputo, tenha sido normal, mas depois, a vontade firme em ficarem sãs, se firmou verdadeiramente. Então, os méritos das curas, são de Dona Margery e de Maria do Rosário. E daí derivou: a alegria, a felicidade, o bom ânimo e, tudo que é bom, reinou dentro de uma família tão bonita como a de vocês.

Bem meus amigos, acho que é hora de ir. Vocês estão ótimas. Mas olha aqui... Cuidem-se! Ao despedir-se de Maria do Rosário, o Doutor lhe diz:

— Tenho certeza absoluta que o perfume dessas rosas, irá ser o bálsamo que estava faltando para que o seu pé fique totalmente curado o quanto antes.

E ela sorriu e respondeu: — Acho que o senhor acertou!

— Fico feliz!

Bernardo acompanhou o doutor. Ao regressar, Margery, gracejando, falou:

— Bernardo, estou me acostumando a ganhar flores. Quando estivermos em Iguape, também quero recebê-las! O que você acha?

— Você merece minha querida, não só um buquê, mas muito mais. Disse isso, afagando amorosamente o lindo rosto da sua esposa, e acrescentou: O que você acha, se nós pedirmos ao Sr. Antero, mudas das plantas que dão flores desse lindo jardim, para plantarmos em nossa casa?

— Eu acho uma boa idéia, assim, estaremos sempre recordando e com saudades dos dias que aqui passamos, com algumas apreensões, mas também, com muita fé e muita esperança de sempre estarmos almejando dias melhores e felizes.

— Mamãe, está na hora da senhora tomar um dos seus remédios! Vamos chamar a dona Neila.

— Deixe filha, que pelo menos isso, eu já posso fazer.

Margery e Bernardo deixam os dois a sós.

Pedro Fernão inteirou-se da operação, do tratamento, da recuperação e dos cuidados pós-operatório, e ficou muito feliz com o sucesso conquistado na cirurgia.

— Pedro, você fica para almoçar conosco?

— Não Maria do Rosário. Não quero incomodar.

— Incômodo nenhum Pedro. Só tem uma coisa: a comida e os temperos, são para os convalescentes.

Pedro galante e enamorado, responde: — Não tem importância. Para mim, só usufruir desses momentos em sua companhia, já me satisfaz.

E ele continuou: — Maria do Rosário, você já deve ter notado, como uma moça inteligente que é, alguns dos meus gestos e minhas intenções. Mas eu vou ser mais claro, e vou lhe fazer um pedido e uma declaração. Gostaria imensamente que aceitasse ser a minha namorada, e gostaria também, que soubesse, que desde o dia que a conheci, estou enamorado de você; acho que posso dizer, que é o amor...

— Pedro, por favor — ela o interrompe — não continue. Mas desejo que você saiba, que a sua presença me faz muito bem. Eu gosto de ter você por perto, do seu jeito, da sua atenção, do seu interesse para com as nossas dificuldades de saúde, enfim, você me é muito agradável, e realmente, estou gostando muito de você. De forma que, não cogito responder negativamente o seu pedido e aceito a sua declaração. No entanto, acho que não é o momento de firmarmos compromisso. Eu e a mamãe estamos em fase final de tratamento mais rigoroso, e não demorará muito, logo estaremos de volta a Iguape. Vá lá Pedro, fazer-nos uma visita, e conversaremos mais a respeito.

Ah! Pedro, eu acho que tem algo que você não sabe: O Oficial Athayde, está trabalhando com o Vovô e, está enamorado da minha irmã.

— O Oficial Athayde?

— É! Não se lembra dele?

— Sim. Claro que me lembro do Oficial...

— O que foi Pedro. Você está sentindo alguma coisa?

— Não. É que eu julgava que o Oficial Athayde estivesse com o Comandante, em São Salvador.

— Para você se situar melhor, quero lhe informar que o Comandante Vicente, já voltou de São Salvador, e rumará para o Sul, se é que já não foi.

Pedro refletiu, e ficou na certeza que ela não sabia do que havia ocorrido com o Oficial.

A tia Anna Rita chamou-os para tomarem os seus lugares à mesa.

— Sr. Bernardo, desejo usar a sua toalete. Acho que tenho um cisco nos olhos, e isso está me incomodando.

— Pois não Pedro. Acompanhe-me.

Quando se encaminhavam, Pedro perguntou: — Sr. Bernardo, o senhor ficou sabendo o que ocorreu com o Oficial Athayde?

— Fiquei, mas não disse nada a elas. Acho que agora, elas não devem saber.

— É...melhor assim.Concordo com o senhor. É bom preservá-las das notícias fortes e desagradáveis.

— Julgo que esteja fazendo muito bem em preservá-las — disse Bernardo

Durante a refeição, Pedro mostrou o seu desejo de ir conhecer Iguape, uma cidade falada nos meios negociais, principalmente pelo excelente arroz que produzia.

— Quando desejar, vá nos visitar. Nem precisa avisar com antecedência. Teremos muito prazer em recebê-lo — disse Bernardo.

— Muito obrigado senhor. Essa sua hospitalidade me dá a certeza de que não demorarei muito em aparecer por lá.

— Sabe Pedro Fernão, eu acho que, em virtude da tradição de nós estarmos recebendo os romeiros em grande número para as festividades no mês de agosto, em louvor a Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, nós nos tornamos mesmo, uma comunidade muito hospitaleira. Isso não decorre de um mérito nosso, mas sim, acho que é uma virtude que nos foi dada pelo Nosso Senhor, para acolhermos de braços abertos os fiéis que para lá se dirigem.

 

Pedro ficou mais um pouco, e se despediu.

— Maria do Rosário, me informe com alguma antecedência quando devem partir de volta para Iguape. Todos os vapores que partem daqui para o Sul fazem escala em Santos. Desejo esperá-los no cais.

— Pedro, esteja certo, que nós o avisaremos.

E Pedro despediu-se, mais uma vez, fazendo votos que tudo corra bem para todos.

 

O doutor, fez mais duas visitas com intervalo de dez dias, e na última, achou que o mal que afligia Margery tinha sido debelado, muito embora, os cuidados no que tange a fazer muito esforço e a preocupar-se demasiadamente, deveriam ser evitados.

Quanto a Maria do Rosário, a operação transcorreu dentro do previsto, e a cicatrização do local, estava perfeita. Ela acusava ainda um pouco de dor e muita sensibilidade, o que recomendava cuidados, evitando forçar o pé. Assim sendo, o uso das muletas ainda era necessário. Seria conveniente também, exercitar, mas sem forçar as articulações, afastando dessa maneira a atrofia do local.

Estava chegando a hora de dar alta para as suas queridas pacientes, assim, disse o Doutor: — Sr. Bernardo, Dona Margery, Senhorita Maria do Rosário e Dona Anna Rita, hoje, ainda não é o dia da nossa despedida, mas é o dia de dar alta às minhas pacientes, às quais, aprendi a gostar, não só, porque levaram os seus tratamentos com seriedade, como foi ministrado, o que é muito importante para o sucesso da cura, mas também, pelo laço afetivo que nos uniu todos esses meses, e que juntos, pudemos conviver, pela vontade Suprema, que nos proporcionou este encontro, e também, pelo Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde — apontando para a pequena imagem que estava no nicho da biblioteca.

Confesso meus amigos, que me liguei fortemente a vocês, e que essa sensação para mim, é algo inédito, mas muito prazerosa. Eu sempre me dediquei ao máximo, com relação aos meus clientes, mas no caso de vocês, além da dedicação e interesse, um laço afetivo, forte, amigo, brotou dentro de mim, e vocês passaram a ter da minha parte, uma redobrada atenção e muitos cuidados. Eu estou emocionado e feliz!

— Doutor, acho que nesse momento, em que reina um clima de robusta amizade, afetividade, de amor amigo e de agradecimento, cada um falará por si. Da minha parte sou agradecido... imensamente agradecido, por ter o senhor, se dedicado com a atenção redobrada para debelar os males das minhas queridas. O senhor trouxe a elas novos semblantes para divisarem novos horizontes; devolveu e restituiu com vigor, a alegria, a felicidade, a vontade de viver, e também, proporcionou o fortalecimento da fé em todos nós. Sou agradecido à Providência Divina, por Ela ter-me concedido a oportunidade de conhecê-lo, como excelente profissional e uma criatura boníssima.

Margery, agora, com um semblante lindo e radiante, olhos vivos e muito azuis, nariz afilado, implantado naquela face rósea e saudável, cabelos loiros, bem cuidados, com as madeixas caídas aos ombros, mostrando ser realmente uma linda mulher, sem no entanto, disso se envaidecer, com sua voz pausada e bem postada, disse: — Dr. Sizenando, gostaria que soubesse que sou duplamente agradecida: primeiro, pela minha cura, e, em segundo, por tê-lo conhecido. Pela minha cura, porque os medicamentos e outros procedimentos foram ministrados com acerto, onde o meu mal, foi se esvaindo, perdendo a sua força, até estancar. Sou agradecida por tê-lo conhecido, porque tive a dádiva de encontrar no senhor, uma criatura afável, bondosa e atenciosa, preocupada com o bem estar do seu semelhante. Realmente Doutor, entre nós, um liame muito forte se estabeleceu. Não sei de onde proveio, só sei, que sinto isso no meu íntimo. Mais uma coisa doutor: tenha a absoluta certeza, que eu o considero como o homem que devolveu-me a vida, e isso, em mim, nunca se apagará. Muito obrigado doutor!

Margery pronunciou estas últimas palavras, entrecortadas com soluços e lágrimas, rolando naquele belo rosto.

 

“A solidariedade que é o verdadeiro laço social, não é só para o presente, estende-se ao passado e ao futuro, pois que os mesmos indivíduos se encontram, e se encontrarão para juntos seguirem as vias do progresso, prestando mútuo concurso. Eis o que faz compreender o Espiritismo pela equitativa lei d reencarnação e da continuidade das relações entre os mesmos seres”

(Obras Póstumas — Allan Kardec — Espírito Clelie Duplantier)

 

— Doutor Sizenando, o que meu pai e minha mãe disseram, também faço delas as minhas palavras, que igualmente saem do meu coração. Resta-me agora, se me permite fazer-lhe um convite, que gostaria que aceitasse, muito embora, ainda não exista prazo ou data fixada, para que esse acontecimento se realize. Já ventilei com papai e mamãe, e eles, de pronto concordaram e se alegraram com o meu desejo, como também, irão fazer todo empenho para que o senhor não o recuse.

— Diga minha filha, pois, um convite partindo de você e, com a aprovação dos seus pais, eu não poderei deixar em aceitá-lo.

— Doutor, quando eu me casar, desejo que o senhor e o meu pai, conduzam-me até o altar. Quero a companhia do meu pai porque eu o adoro e, porque ele me proporcionou esta vida. E desejo a sua companhia, porque também o amo e porque, me proporciona viver esta vida com normalidade e felicidade, dando-me oportunidade para que eu possa concretizar muitos objetivos.

O doutor ficou sem saber o que responder por alguns segundos, em virtude da grande surpresa. Ele nunca esperava que fosse esse o convite.

— Minha filha, este dia, tenha a certeza, será um dos dias mais felizes de minha vida.

Maria do Rosário levantou-se, e sem as muletas, deu alguns passos e abraçou e beijou o Doutor,

Dona Anna Rita, em lágrimas, naquele ambiente de emoção gostosa e cheio de afetividade, falou: — Doutor, muito obrigado por tudo que o senhor nos proporcionou, pois, em decorrência dos seus cuidados meticulosos frente ao quadro que se apresentava de Margery e de Maria do Rosário, estamos agora experimentando esses momentos felizes e de muitas alegrias, e que com certeza, por muitos e muitos anos iremos comungar.

Uma emoção gostosa toma conta do ambiente, e não faltaram lágrimas em todos os olhos.

— Bem meus amigos, nós já nos emocionamos muito; está sendo muito gostoso estar compartilhando com vocês esses momentos! Mas vamos tocar a vida...

— Dona Margery, eu vou fazer um relatório, retribuindo a gentileza do Dr. Eustáquio. Quem sabe, com essa troca de informações, algo de útil surja não só para a medicina, como também para o próprio paciente. Agora, dona Margery, a senhora está com alta, mas, por favor, nada de ficar grávida, pelo menos por um ano à partir da data de hoje.

Todos riram com a observação do doutor.

— Quanto a você, querida afilhada, vou mandar preparar uma pomada, que servirá, não só para acentuar e firmar a cicatrização por definitivo, como também, servirá para outros problemas de pele, como feridas, contusões e traumatismos diversos. Ela vai servir também para aquela dorzinha das articulações dos seus dedos. Uma outra coisa: eu sei que camarão, lagosta, mariscos, são deliciosos, mas a senhora dona Margery, ainda não vai comer por seis meses, e a senhorita, eu só vou liberá-la após examiná-la — acho que um dia antes do seu casamento. Peixe e frango, vocês podem comer — cozidos ou assados. Sr. Bernardo, passe amanhã lá no meu consultório para pegar a pomada e o relatório. Fiquem com Deus!

Despediu-se de cada um com um grande abraço.

 

Naquela noite, eles receberam a visita do Comandante Vicente, que inteirando-se das notícias fica felicíssimo, e emendou, passando às mãos da jovem, o que ela havia encomendado para vir de Portugal, tecendo alguns comentários sobre a vida na Europa.

— Mas, realmente Sr. Bernardo, o que é mais importante, é que dona Margery e a senhorita, estão curadas! Os seus semblantes são reveladores de tanta saúde. Confesso que, quando para cá viemos, uma piora de dona Margery invadia os meus pensamentos, e a do Dr. Arthur, também, como ele próprio me revelou. Mas fico feliz por estarem completamente restabelecidas!

— Obrigado Comandante, pela gentileza, de nos oferecer a sua casa. Que Deus lhe dê, juntamente com os seus queridos, em dobro toda felicidade que nesse momento estamos sentindo.

 

“A felicidade prende-se às qualidades próprias dos indivíduos e não ao estado material do meio onde se encontrem; assim é, pois, por toda parte onde haja Espíritos capazes de serem felizes; nenhum lugar circunscrito lhes está assinalado no Universo.(...) Entretanto, a felicidade não é pessoal; se apenas a possuísse em si mesmo, se não se pudesse reparti-la com os outros, seria egoísta e triste; por isso está na comunhão dos pensamentos que une os seres simpáticos. Os Espíritos felizes atraídos uns para os outros pela semelhança de idéias, de gostos, de sentimentos, formam vastos grupos ou famílias homogêneas, no seio das quais cada individualidade irradia suas próprias qualidades (...)

(O Céu e o Inferno — cap. III — parte dos itens 15 e 16)

 

— Sabe, Sr. Bernardo, aqueles que me são queridos e que estão mais perto, são vocês. Portanto, que sejamos duplamente felizes. Eu queria lhes informar, que dentro de uma semana, à partir de hoje, está programado pela companhia, que deverei rumar para o Sul, com escala em Santos e Iguape. O senhor acha que até lá, estarão prontos para voltar? Eu sentiria muito gosto, de estar levando-os de volta para a Princesa do Litoral.

— Estaremos sim, Comandante!

— Para mim, será um grande prazer, ser o Comandante do vapor, que irá proporcionar a volta de vocês para Iguape, só que agora, num clima de muita saúde, felicidade, alegria, e de muitos planos e objetivos, que com certeza já entabularam. Amanhã mesmo, irei reservar os camarotes.

— Comandante Vicente, eu conheci muito pouco o Rio de Janeiro, mas “esse muito pouco,” achei maravilhoso. Mas, não vejo a hora de pisar na minha terra natal. Aproveito também esta oportunidade, para agradecer também, a sua hospitalidade e atenção para conosco — acrescentou Maria do Rosário.

— Senhorita, tudo que pude oferecer, foi com imenso prazer e com os melhores sentimentos do meu coração, objetivando dar condições a vocês o conforto e a segurança que merecem. A minha propriedade fica mais fechada do que em uso. Agora, sendo usada por vocês, que considero serem meus grandes amigos, para mim, foi e está sendo um grande prazer, e que, quando desejarem, ela estará sempre às suas disposições. Faço votos que voltem sempre, mas sem estarem acompanhados da sombra de alguma debilidade. Bem meus amigos, acho que posso dizer: Até breve! Aguardarei por todos, rumo a Iguape.


 

Capítulo IX
O retorno

 

Papai, então dentro de três dias iremos viajar, não é?

— Sim, minha filha. Zarparemos na segunda-feira, bem cedo.

— Acho que nossa bagagem está quase toda pronta.

— Minha filha, não fique preocupada com isso. Se alguma coisa ainda está fora das malas, deixe que a tia Anna Rita, toma conta desse assunto.

— Sabe o que é papai: é que eu combinei com o Sr. Antero, para que ele nos leve à cidade, pois quero pegar o presente que prometi ao vovô. Vamos amanhã cedo? Assim também, mamãe faz um passeio. O senhor concorda?

— Concordo filha.

 

No dia seguinte, conforme o combinado, às oito horas, o Sr. Antero, já os aguardava. Rumaram à cidade. Passaram pelo centro, e seguiram em direção a orla marítima.

— Aonde vamos filha? Perguntou Bernardo.

— Vamos pegar o presente do vovô!

— Ele e Margery se olham — ela franziu a testa; ele, comprimiu os lábios; ficaram com impressões interrogativas.

Próximo da colônia dos pescadores, o Sr. Antero parou a carruagem, desceu, e caminhou em direção a uma das casas, levando em suas mãos, duas garrafas transparentes.

Não demorou muito, lá veio ele com dois embrulhos e, em companhia de outro senhor. O Sr. Antero entregou os embrulhos para Maria do Rosário, e se afastou novamente, agora. em direção ao mar, com as garrafas, ainda na companhia do pescador.

Maria do Rosário começou a desembrulhar aqueles volumes no seu colo, às vistas dos seus pais, que estavam atentos.

— Papai e mamãe, espero que gostem! Um desses, é o presente que lhes ofereço.

Eram dois búzios enormes e lindos. Não havia esse ou aquele mais bonito. Ambos eram realmente lindos.

— Podem escolher!

— Não, Bernardo. Gostaria que a nossa filha nos desse aquele que mais lhe toca a sua sensibilidade.

Maria do Rosário olha bem para aquelas duas peças maravilhosas, obras na natureza, e escolheu.

— É este aqui, que tem uma mancha azul marinho em volta de toda essa borda.

Ela levou o búzio aos seus ouvidos e disse: — Netuno está lhes dizendo, que mais uma etapa das suas vidas, foi cumprida, e os abençoa!

Bernardo e Margery, riram gostosamente com a brincadeira da filha e, num abraço a três, agradeceram a Providência Divina por aqueles momentos felizes.

 

“Ora, se os indivíduos são de origem divina, a família também o é, pois que ela resulta da união das criaturas ligadas pela empatia, ou melhor: relações simpáticas, por afinidade de gostos e de idéias, por afeição recíproca; ou relações antipáticas, onde espíritos antagonistas e desafetos se reúnem para resgate”

(O Evangelho Segundo o Espiritismo — cap.XIV — item 8)

 

Sr. Antero, aproximando-se com as garrafas, entregou-as à jovem.

Ela segurou as duas garrafas, levantando-as até a altura dos seus olhos, e disse: — Esses, sãos presentes do vovô. Esse búzio, que também é maravilhoso, e essas duas garrafas — uma contendo a alva areia desta praia maravilhosa e a outra, água desse mar azul, lindíssimo.

— Realmente, minha filha, o papai tem saudades desta terra que o acolheu, quando ainda era muito jovem. Acho que esse presente singular, irá lhe proporcionar muitas saudades e alegria, ainda mais, partindo de você, que me parece ser a neta de sua predileção.

— O senhor acha então, que ele irá gostar?

— Não tenho a menor dúvida! Mesmo porque, o búzio, vai acompanhado da água e areia dessa bela praia. Minha filha, tenha certeza de uma coisa: se você levasse para ele, apenas um seixo, como esses que as ondas depositam na praia, ele também iria gostar e lhe agradecer muito. Filha, você é a pessoa dentro da nossa casa, que ele mais gosta e admira pelo seu discernimento. Muito embora, ele a isso, aja veladamente.

— Eu também adoro o meu avô!

 

“Formam famílias os Espíritos que a analogia dos gostos, a identidade do progresso moral e a afeição induzem a reunir-se. Esses mesmos Espíritos, em suas migrações terrenas, se buscam para se gruparem, como o fazem no espaço, originado-se daí as famílias unidas e homogêneas. Se, nas suas peregrinações, acontece ficarem temporariamente separados, mais tarde tornam a encontrar-se, venturosos pelos novos progressos que realizaram. Mas, como não lhes cumpre trabalhar apenas para si, permite Deus que Espíritos menos adiantados encarnem entre eles, a fim de receberem conselhos e bons exemplos, a bem de seu progresso.”

(O Evangelho Segundo o Espiritismo — cap.XIV)

 

— Bem, agora então, vamos para a cidade. Agora é a sua vez: o que você quer ganhar?

— Não, papai! Calculo que aqui no Rio de Janeiro, fizemos muitos gastos. Gostaria que não se incomodasse em me presentear. Eu só desejo visitar uma livraria, e quem sabe, adquirir alguns romances.

— Dentro da minha previsão, nossos gastos deveriam ser maiores. Mas não o foram. E isso tem uma razão: não tivemos que pagar aluguel. De forma que, tanto você quanto Margery, irão sim, ganhar presentes! E também a titia Anna Rita.

— É mesmo. Também a tia Anna Rita. Ela cuidou de todos nós; desde a limpeza da casa, da preparação das refeições, das nossas roupas. Enfim tudo! A tia, é uma ótima criatura. Foi muito atenciosa e prestativa; não mediu esforços para nos atender. Não é Bernardo?

— Realmente, ela foi incansável, cuidando de todos nós com muito desvelo.

— Sr. Antero, por favor. Leve-nos na cidade, à rua do Commércio.

Durante o percurso, Bernardo perguntou: — Filha, você pagou o pescador que lhe arrumou os búzios... E essas garrafas, são de cristal, não?

— Está tudo pago papai. O Sr. Antero me ajudou, entabulando com o pescador sobre os búzios, e fez as compras das garrafas. Não gastei muito.

— Mas você não me pediu dinheiro algum?

— Sabe o que é: Antes de virmos para cá, vovô me deu algum dinheiro, para os meus gastos pessoais.

— Ah! Está explicado. Queria ter tido um avô assim — disse Bernardo

— Mas não fui só eu que ganhei; minha irmã também!

— Minha filha, eu adorei o seu presente. Sempre irei me lembrar dos dias que aqui passamos, com confiança no que pretendíamos — as vezes, confesso que vacilei, mas foram em poucas oportunidades. Irei sempre por os meus ouvidos nessa abertura, e escutar esse marulhar gostoso e, com saudades, recordar esses dias maravilhosos que Deus nos ofereceu, dando-nos a certeza, que outros tantos, virão para a nossa família. Tenho a impressão que nós três, atravessamos o mar dos Sargaços, com a ajuda de várias pessoas. Estou realmente muito feliz e grata, por tudo que vocês dois fizeram por mim. Não posso deixar de agradecer também, a Maria Conceição, que muito embora nada tenha feito para dividir com vocês, a dedicação que me proporcionaram, ela me fez ver, sem nenhuma mágoa, que as pessoas são diferentes; podem ser atenciosas ou indiferentes, até mesmo, quando sejam gêmeas. Mesmo assim, devo respeitar a sua individualidade. Acredito que no seu caso, ela tenha algum tipo de recalque ou qualquer outro sofrimento... Não sei! Só sei que quando chegarmos, numa boa oportunidade, irei chamá-la para conversarmos. Acho que tenho alguma culpa nisso tudo que acontece com ela. Quanto a tia Esther, eu nunca soube o porquê, que ela fica alheia a mim. Mas eu também vou me entender com ela, dentro de um clima de muita amizade e compreensão.

— Margery...Por favor, não se sinta assim! Sua aparência até a pouco era de total felicidade! Agora, parece que se apagou.

— É mesmo Bernardo. Hoje não pode ser um dia de tristeza. Eu sou feliz, graças a Deus! — disse Margery, quase aos gritos.

— Muito bem mamãe, é assim que se fala! Vamos deixar de lado as coisas tristes e os pensamentos que não acrescentam nada para esses momentos ditosos que estamos passando, e vamos mudar de assunto. Papai, o senhor não disse nada sobre o presente que eu lhes dei!

É verdade minha filha! Queira me desculpar! Achei muito bonito; é uma linda obra que a natureza nos fornece, dando-nos um pálio entendimento do que seja a força, a inteligência, o amor e a beleza de Deus. Gostei muito. Confesso que nunca havia cogitado em ganhar um mimo assim. Sendo um búzio originário deste mar maravilhoso, ele nos trará sempre lembranças desse dia, que será inesquecível.

Dando um beijo na sua filha, ele agradeceu mais uma vez.

Margery, foi presenteada pelo seu esposo, ganhando sapatos, uma capa com capuz, vários lenços de pescoço, uma sombrinha e um lindo anel.

A Maria do Rosário escolheu uma capa, e duas mantilhas espanholas.

Escolheram para a tia Anna Rita, dois xales franceses e uma capa.

Bernardo comprou para o seu pai, uma bela bengala, com castão em prata, lindamente trabalhado, no qual mandou gravar as iniciais do nome do seu genitor.

Em reconhecimento, à gentileza do Comandante Vicente, resolveram também, presenteá-lo, com uma bela bengala.

— Papai, nós poderemos ir a uma livraria? Sobrou-me algum dinheiro. Gostaria de adquirir alguns romances; quem sabe, possa encontrar algum no idioma francês, assim eu posso praticar essa língua que tanto gosto. Não gostaria de perder essa facilidade, que talvez me seja útil algum dia.

Já na livraria, Maria do Rosário observa: — Olhe papai, quem está ali! É o doutor! Vou fazer uma brincadeira com ele.

— Não minha filha. Olhe o respeito!

— Não, papai, longe de mim, estar desrespeitando uma pessoa que me fez tanto bem. Fique só observando!

Lá vai ela, bem devagar, com a ajuda das suas muletas, e chegando bem perto e atrás do Doutor: — A sua benção padrinho!

Calmamente, o doutor sai do mergulho que estava naquela leitura, e se depara com a sua paciente muito querida, dando-lhe um forte abraço, e estampando um grande sorriso, responde: — Que Deus a abençoe!

Nesse momento, acercam-se Margery e Bernardo.

— Como é bom vê-los de novo. Que prazer!

— O prazer é nosso doutor — responderam em uníssono.

Ele, não perdeu a oportunidade de indagar como estavam as suas pacientes, muito embora, a fisionomia de cada uma, revelasse que estavam ótimas.

— Estamos aqui para adquirir alguns livros — disse Maria do Rosário.

— Eu estou dando uma olhada neste aqui. Não é um romance, mas é uma leitura que está me chamando muito a atenção — Les Livre des Esprits.

— O Livro dos Espíritos — traduziu a jovem.

— É isso mesmo filha. Pelo o que eu soube, a edição em português, está para ser editada. — completou o doutor. Estou achando essa leitura muito interessante. É um livro de perguntas e respostas. Foi uma senhora, minha conhecida, que me recomendou a leitura. Mas mudando de assunto: Quando pretendem voltar?

— Depois de amanhã, já estaremos acomodados no vapor. Zarparemos no dia seguinte, logo cedo — respondeu Bernardo, e continuou: Doutor, amanhã é sábado. Gostaríamos que o senhor e sua esposa almoçassem conosco. Tínhamos a intenção e ir a sua casa fazer esse convite.

— Está combinado. Lá estaremos com muito prazer.

Livros comprados... Despediram-se.

 

No dia seguinte, antes do almoço, eles se reuniram na biblioteca, trocaram idéias e opiniões sobre diversos assuntos — da política, viagens, comércio, pobreza, religião, etc. Quanto a religião, o doutor, observou:

— Sei que vocês são católicos e, devotos do Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde. Eu também sou católico, e sou devoto e rogo sempre a proteção de Nossa Senhora do Carmo e de Santo Antonio de Pádua. Agora, vocês se lembram quando eu lhes mostrei lá na livraria aquele livro — Les Livre des Esprits. Eu fui para casa, e li boa parte dele. Obtive várias respostas a algumas dúvidas que tinha, principalmente no que diz respeito às comunicações de pessoas que morreram . Aqui está o livro. Vocês, são pessoas as quais, tenho muito apreço e amizade. Portanto tenham a liberdade de responderem como desejarem ao que vou lhes dizer: Estou trazendo este livro para ofertar a todos, para que leiam com ânimo e espíritos desarmados... Analisando... E refletindo sobre cada pergunta e a sua conseqüente resposta. Eu não lhes digo que estou convertido ao Espiritismo, muito embora, já tenha ouvido relatos e presenciado alguns fatos que não me deixam dúvidas sobre a veracidade das manifestações espíritas. Tenho minhas raízes na fé católica, no entanto, algumas indagações a Igreja não me deu respostas convincentes. E isso, eu lhes confesso, está me levando a pensar e a ler um pouco mais sobre essa doutrina emergente aqui no Brasil. Não sei se vocês têm alguma experiência ou já ouviram falar do Espiritismo. Esta, é uma edição em francês, mas como a Maria do Rosário entende a língua, ela poderá traduzir. É uma leitura interessante, e espero que aceitem e gostem.

— Sabe Doutor, já ouvimos falar sim, e somos sabedores que algumas pessoas, lá em Iguape, têm a possibilidade de se comunicarem com outras, que já faleceram. Disso, não tenho dúvidas, pois ouvi esse relato de pessoas idôneas. No entanto, eu particularmente, ainda não me interessei pelo fato, muito embora, já tenha tido uma experiência para mim inusitada.

E Bernardo, conta o que lhe ocorreu.

Antes de passar às mãos de Bernardo o livro, leu a dedicatória: “Para o amigo Bernardo e Família. Vocês foram pessoas que conquistaram o meu coração. Em todo esse período de convívio, eu lhes dediquei o melhor dos meus conhecimentos, por força da minha obrigação de médico, mas que, à tal obrigação, somou-se uma atenção especial, com amizade, com interesse honesto, com preocupação, com muitos cuidados, por força do Amor que descobri, liga-me a todos vocês. Que Deus os abençoe sempre, e que, nessa intermediação, sempre estejam em suas mentes e em seus corações, a imagem linda e resplandecente do Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde. Rio de Janeiro — 1876.”

Todos agradeceram o presente e o tratamento especial e diferenciado que lhes foi dado, e comungaram, no mesmo sentido, que realmente um Amor Maior, os une.

— Agora, papai e mamãe, eu gostaria de fazer às vezes da nossa família, e oferecer ao doutor, nosso médico, amigo e padrinho, assim como a Dona Cleonice, esta pequena imagem do Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde. Tenho consciência, como a certeza que o senhor e a senhora também as têm, de que, Jesus, não está nesta pequena imagem, mas ela, nos facilita, em virtude da nossa pequenez, a visualizarmos e sentirmos a Sua Grandeza, Proteção, Amor e Misericórdia que Ele tem para conosco.

Tomando a imagem nas mãos, o doutor agradeceu em seu nome e em nome da sua esposa, e num gesto, estancou uma lágrima, que estava prestes a rolar. Ternamente, apreciou atentamente a pequena imagem, talhada em madeira e pintada com muito esmero, ele afirmou: — Acho que o escultor dessa linda imagem, realmente deve ter captado o imenso Amor que o Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde tem para conosco. Ele conseguiu transferir para essa peça maravilhosa, toda resplandecência de Jesus, que faz com que nos enlevemos. Muito obrigado! Mas vocês vão ficar sem?

— Não... Doutor...Lá em nossa terra, nós temos o privilégio de termos uma, e em tamanho natural, que está na nossa igreja. O senhor a conhecerá quando for nos visitar.

— Iremos sim, Maria do Rosário e, com muita satisfação conhecer no tamanho natural o padroeiro da sua cidade, e também, a própria cidade, que igualmente deve ser muito bonita e acolhedora, como vocês mesmo o são.

— Mas antes que eu me esqueça, Sr. Bernardo, talvez até pelo enlevo desse nosso encontro, quero passar às suas mãos, retribuindo a gentileza do Dr. Eustáquio, o meu relatório, no que concerne ao tratamento e os procedimentos que envidamos nos casos de Dona Margery e Maria do Rosário. Acho que poderá ser de grande valia para tratamentos iguais ou semelhantes. E quando eu for em Iguape, gostaria de conhecer o meu colega.

— O senhor vai gostar de conhecê-lo, pois, além de ser um bom profissional e dedicado, ele promove em sua casa, reuniões, com um grupo de pessoas, para obterem comunicações com aquelas que já faleceram.

— Ótimo, assim ele poderá livrar-me de algumas dúvidas.

A conversação foi interrompida, quando a tia Anna Rita anunciou que o almoço estava servido.

 

Antes de irem para o embarque, Bernardo, Margery e Maria do Rosário, e também, a tia Anna Rita, dirigiram-se para a casa do Sr. Antero — o caseiro.

— Sr. Antero, estamos aqui, para agradecer a sua atenção e gentileza que o senhor e a sua esposa tiveram para conosco. Gostaríamos que nos desculpassem por algo que tenhamos feito, que os desgostaram. Se algo fizemos, que não os agradou, mais uma vez, nos desculpem, porque, se assim aconteceu, foi contra a nossa vontade.

— Nada a desculpar, Sr. Bernardo. Nós ficamos muito envaidecidos com as suas presenças. Se desculpas devem ser pedidas, nós é que as pedimos na eventualidade de não termos servido a todos convenientemente, como merecem.

— O senhor e a sua esposa, sempre foram solícitos para conosco. Assim sendo gostaríamos, que aceitasse isso, não como uma forma de pagamento, mas como o nosso reconhecimento à sua atenção e amizade.

E Bernardo passou às mãos do Sr. Antero um envelope, contendo alguns contos de reis.

Margery, por sua vez, presenteia a Dona Neiva, com o seu mais lindo camafeu.

Eles ficaram profundamente agradecidos, respondendo, que não fizeram nada mais que suas obrigações em cuidar e atender os amigos do Comandante.

— Sr. Bernardo, como o senhor sabe, não somos os donos desta linda propriedade, mas tenho a absoluta certeza, que o Comandante aprovará o meu convite: Voltem sempre!

— Dona Margery e senhorita Maria do Rosário, queremos que saibam que estamos muito felizes, por terem vencidos os males que as afligiam.

 

Passaram a noite no vapor, pois, zarpariam logo ao alvorecer.

E assim foi. Às cinco horas, em ponto, todos despertaram com os apitos. A agitação do cais já era intensa. As amarras foram soltas. Ao largo, no convés, à estibordo, Maria do Rosário, Margery, Bernardo e a tia Anna Rita, calados, contemplavam a cidade que os acolheu e, que estava sendo beijada pelos primeiros raios do sol.

Margery, quebrou o silêncio: — Obrigado Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, por estar nos proporcionando essa grande felicidade, que é a volta ao nosso lar, e saudáveis. Obrigado por termos tido aqui, em São Sebastião do Rio de Janeiro, uma acolhida fraterna, e de termos conhecido amigos, que cuidaram de nós, com desvelo e carinho. Obrigado Senhor, por tudo que nos concedeu como a desmedida felicidade de estarmos curadas, devolvendo aos nossos íntimos e aos nossos semblantes, a alegria da vida, e também, como isso, o engrandecimento da nossa fé. Obrigado desde já Senhor, por tudo que irá nos conceder, e que, não meçamos esforços para termos sempre a nossa família unida, com os laços firmes da fraternidade e na afetividade, e que os reveses que invariavelmente teremos que enfrentar, porque assim é esta vida, que nos o façamos com muito equilíbrio; que, obstáculo algum, por maior que seja, possa abalar a nossa união; que as dificuldades que surgirem, não nos cause abalos emocionais, mas produzam efeito contrário, dando-nos a firmeza, destemor, força e perseverança às nossas atitudes, e irmanando-nos cada vez mais, sob a Sua proteção.

Margery calou-se, com o seu lindo rosto envolto em lágrimas e abraçando-se a Bernardo.

 

Na escala do vapor em Santos, haveria descarregamento e carregamento de mercadorias, e conforme informação do Comandante, a viagem teria o seu curso no dia seguinte, e, se desejassem, poderiam desembarcar.

Em virtude da tempestade do dia anterior, a viagem estava com atraso de doze horas. O Comandante foi obrigado a fazer uma escala de emergência no Porto de Paraty, pois a tempestade que visualizava à frente, poderia causar acontecimentos imprevisíveis. Mesmo fundeado na baia, o vapor, agitou-se muito.

 

Atracaram em Santos, logo depois do meio-dia.

Por solicitação de Maria do Rosário, todos foram ao encontro de Pedro Fernão.

— Que alegria em vê-los: que surpresa agradabilíssima: como é bom vê-los saudáveis e com ares renovados. Dona Margery, folgo em vê-la cheia de vida, e se me permitir Sr. Bernardo — muito bonita! E no senhor, não se nota mais aquele ar de preocupação, e nem na Dona Anna Rita. E você Maria do Rosário, está mais bonita, esbanjando saúde, para regalo dos meus olhos e do meu coração. Mas Maria do Rosário, você ficou de me avisar quando passariam por aqui! Eu gostaria de tê-los esperado lá no cais.

— Não sei o que lhe dizer sobre isso, Pedro. Mas o importante é que todos nós estamos aqui, e, saudáveis, apesar do susto que tivemos ontem, quando o Comandante Vicente foi obrigado a fundear na baia de Paraty, em virtude da forte tempestade.

— Ontem, aqui também choveu e, com ventos bem fortes, que andou pondo a pique alguns barcos menores, causando prejuízo aos pescadores. Mas por favor, acomodem-se aqui, que eu vou chamar o meu pai, que não vê a hora de conhecê-los.

E lá veio, Pedro Fernão, de braços com o seu pai, e apressados.

Fez as apresentações.

— Dona Margery e Maria do Rosário, é de muito meu agrado, constatar que estão realmente saudáveis. Por meu filho, fiquei sabendo das suas dificuldades, mas estou notando, que a tempestade já passou. Confesso que, aguçava-me a curiosidade de conhecê-los, e em especial, se me permitem, a senhorita.

Dirigindo-se ao seu filho, disse: — De fato meu filho, a senhorita Maria do Rosário, é uma beleza notável, além de ser muito simpática.

Ela ficou meio desconcertada e, agradeceu, apontando para a sua mãe e para seu pai, a hereditariedade.

— Não resta dúvida, que formam uma família muito bonita — completou Sr. Valentim.

Trocaram mais alguns assuntos numa conversa animada, mas, Bernardo observou: — Nós já vamos, porque sabemos que estão em expediente de trabalho, e não queremos incomodar. Vou levá-las para um passeio pela cidade, depois, voltaremos ao vapor. Como zarparemos amanhã cedo, convido-os a jantarem conosco à bordo . Acho que o Comandante Vicente, ficara feliz em revê-los.

— Será um prazer Sr. Bernardo. Nós iremos, não é papai?

— Iremos sim, filho.

Já de volta do passeio, Bernardo comunicou ao Comandante, que havia convidado Pedro Fernão e seu pai, para o jantar à bordo e, estendeu o convite ao Comandante, para que o mesmo fizesse parte.

— Muito obrigado Sr. Bernardo. Esse seu convite, vai de encontro ao meu. Venha ver o que tenciono oferecer no jantar para vocês. Olhe só! Já experimentou desses peixes?

— É uma pescada — cambucú e uma castanha.

— O nosso cozinheiro conhece por pescada branca e pargo.

— O nome, Comandante, pode divergir, mas que são belos exemplares, são! — aduziu Bernardo.

— Mas Comandante, gostaria que fossem separadas algumas postas, para serem servidas a Margery e Maria do Rosário, e que, fossem temperadas somente com sal, e assadas, visto que elas, conforme as recomendações do médico, ainda não devem comer alimentos muito condimentados e gordurosos. Agora, para nós, o Comandante escolhe o que achar melhor.

— Ótimo, então vai ser uma surpresa.

 

— Comandante — disse o Sr. Valentim &ndsh; o seu cozinheiro está de parabéns. O jantar está uma delícia!

Essa afirmação foi seguida por todos.

As conversações se desenrolaram sobre vários temas, até que, de uma extremidade da mesa, levantou-se o Sr. Valentim, e dirigiu-se a Bernardo.

— Sr. Bernardo, quero aproveitar esta oportunidade para oficializar a solicitação que o meu Pedro lhe fez, pedindo-lhe permissão para que ele possa cortejar a sua filha, Maria do Rosário.

— Sr. Valentim, quando o Pedro Fernão falou comigo lá no Rio de Janeiro, nós estávamos atravessando um quadrante difícil. Aconselhei-o que refletisse, pois naquela oportunidade, Maria do Rosário estava pensando e sempre preocupada com a sua mãe. Mas, se assim mesmo ele desejasse, teria a minha permissão para falar com ela e, o que ela decidisse, seria por mim e por minha esposa, aceito. Não sei se ele falou com ela ou não. Então Sr. Valentim e Pedro Fernão, muito embora eu os admire e os considere, peço vênia para não lhes responder, pois eu e Margery, achamos que o momento e o assunto é da alçada, única e exclusiva da nossa filha, em virtude dela já saber se posicionar muito bem e com discernimento frente a vida.

— Antes que você responda minha filha, gostaria de fazer um reparo: quero que me desculpe, por ter ocultado o pedido de Pedro Fernão. Achei que devia fazê-lo naquele momento. Mas, tinha a intenção de falar-lhe, ainda nessa viagem.

— Fez muito bem meu pai. Ao senhor, não tenho nada a lhe desculpar. Muito pelo contrário, só tenho é que agradecer a proteção, o carinho, a atenção, a ternura, a assistência material, e, sobretudo o amor que me dedica.

— Pedro, foi muito bom você não ter insistido no pedido que me fez, quando estávamos lá no Rio de Janeiro. Gostei da sua compreensão. Agora, a vida é outra. Nós estamos em alta médica, e nosso ânimo está revigorado, e nesse momento, o meu desejo, vai de encontro ao seu pedido que oficializa.

— Se me permitem a intromissão, gostaria de lhes falar, que estou transbordando de alegria por estar sendo testemunha desse acontecimento que se concretiza aqui nesse navio, sob o meu comando. E por essa razão, vou constar esse momento importante para mim, que os considero amigos fraternos, no meu registro de bordo.

O Comandante levantou-se, e foi cumprimentar os enamorados e seus pais.

— Comandante Vicente, o senhor esteve conosco, nos ajudando naqueles primeiros momentos, quando, para o Rio de Janeiro, fomos. Foi difícil! Esteve conosco, bem de perto, nos fornecendo o seu teto, acompanhou a evolução do nosso tratamento, e agora, quando graças ao Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, estamos bem e nesse instante, felizes. Saiba Comandante, que o senhor é o nosso amigo dileto e gostaríamos de tê-lo ao nosso lado em outras ocasiões felizes de nossas vidas, compartilhando das nossas alegrias — disse Margery.

— Fico lisonjeado Dona Margery, com o tratamento que me dão. Agradeço, e, gostaria que soubessem, acho até que já lhes disse: que o que pude proporcionar, foi somente dar-lhes a condição de usarem os meus meios materiais que estavam ociosos. Espero que tenham usufruído como se fossem seus e, fiquem à vontade para usá-la quando forem para a Capital. Para isso, eu até já deixei ordem para ao meu caseiro. Mesmo que eu não esteja no Rio de Janeiro, vocês podem usar da minha propriedade, como se fossem os proprietários.

— Muito obrigado, Comandante, e tenha a certeza, que em Iguape, a recíproca pela sua gentileza, é e será sempre verdadeira. Nós o acolheremos com muito prazer e alegria — afirmou Bernardo.

Enquanto todos estavam em conversações, o casal de enamorado, se afastou para o convés à bombordo, ficando na contemplação da lua cheia, que reinava naquele céu estrelado, refletindo seu espectro nas águas calmas da baia de Santos.

— Pedro, vou lhe dizer uma coisa que acho muito interessante: naquele momento que o seu pai estava oficializando o seu pedido, eu senti, que já tinha vivido aquele mesmo acontecimento.

— Sabe, Maria do Rosário, eu não tive essa mesma impressão, mas tenho outra, que me dá a certeza, que eu a conheço há muito tempo.

— Pedro, será que nossos sentimentos e pensamentos, fazem parte, daquilo que todos falam: são coincidências da vida? Será que esse nosso encontro é fruto da casualidade?

— Da minha parte, não sei como explicar. Só sinto que parece que eu tinha uma chama dentro de mim, e que, ao conhecê-la, ela se avivou, sem que você fizesse nada para conquistar o meu coração. Acho que não foi obra do acaso conhecê-la numa viagem. Afinal, tenho viajado tanto e encontrado com muitas moças, até muito bonitas, no entanto, nenhuma delas tocou o meu coração. Sou mais propenso em acreditar, que os acontecimentos importantes das nossas vidas, estão mais ou menos delineados a se concretizar. Quando falei com o seu pai lá no Rio de Janeiro, ele me disse: “Pedro, porque Maria do Rosário e não Maria Conceição, que é igualmente bonita e sem problemas? E eu lhe respondi: Não sei, Sr. Bernardo! Não sei! Acho que é o destino.

— Sabe Pedro, nós fomos presenteados pelo Dr. Sizenando, com um livro, intitulado: O Livro dos Espíritos. Outro dia, folheando-o rapidamente, parei numa página e li: “ que os espíritos provocam o encontro de pessoas, parecendo dar-se por acaso”. Fechei o livro, e comecei a pensar em você, no Comandante, no doutor, no senhor Leandro enfim, em todas as pessoas, com as quais nos relacionamos nesse passado recente que vivemos. Se realmente, o encontro de pessoas parece ser obra do acaso, mas, pelo ensinamento, não o são, acho que podemos dizer a mesma coisa, para as coincidências. Não sei...! É a minha opinião.

Uma lufada fria provocou em Maria do Rosário um arrepio frio.

— Pedro, muito embora o luar esteja maravilhoso e mágico, vamos entrar porque estou com frio.

Chegando ao salão, quando o Comandante os viu, solicitou para que se aproximassem.

— Há algo interessante que vou lhes falar, e que servirá para que pensem, reflitam e pesquisem, que acho, tem muito a haver sobre nossos relacionamentos, nossas amizades firmes e sinceras, nossas alegrias de estarmos juntos, enfim, sobre nossas afinidades que nos unem nesse momento e em outros que já experimentamos. Não digo que façamos reflexões individuais, mas das nossa origens, dos nossos nomes de família.

Todos ficaram atentos e curiosos para saber aonde o Comandante queria chegar e revelar.

E continuou o comandante: Não sei como dar nome a esse encontro. Se foi por acaso ou por pura coincidência da vida ou do destino. Não sei! Ou talvez, por obra do fadário! Só sei de uma coisa interessante. O senhor, apontando para o Sr. Valentim, chama-se, Valentim Fausto de Carvalho; o senhor — Bernardo da Rocha de Carvalho; a senhora — Margery Barbosa de Carvalho e eu Vicente Barbosa de Carvalho. Será que alguma “Mão”, esta por detrás desse nosso encontro? Unindo-nos, e quem sabe, com raízes em nosso nome de família e, reunindo-nos para esse momento importante e feliz?

Bernardo, num gesto rápido, pegou a sua carteira e manuseou rapidamente alguns papéis, sob a curiosidade de todos, e, achou um cartão — Pedro Fernão Fausto de Carvalho.

— Pedro, quando você me deu este cartão, realmente, eu não observei-o; o que não é normal! Acho que olhei o seu cartão, mas não li. Estou admirado!

— Que interessante Pedro. Eu também, nunca tive a curiosidade de lhe perguntar sobre o seu nome completo! — Acrescentou Maria do Rosário.

— O mesmo, digo eu — aduziu Pedro Fernão — que também nunca me preocupei em saber o seu nome de família.

Todos se olharam sem saber o que dizer.

— Proponho então, que elaboremos cada um de nós, a sua árvore genealógica, e quem sabe, nas bodas dos jovens, da qual faço muito bom gosto, nos reunamos para analisarmos e constarmos o tronco e os ramos do nosso nome de família — disse o Comandante.

— Acho interessante lhes contar, que quando estávamos lá no convés, conversávamos sobre coincidências e acaso; sobre esse momento que estamos vivendo; sobre a impressão de que já nos conhecemos de há muito tempo — disse Pedro.

A conversa seguiu animada, com algumas narrativas interessantes sobre o assunto, até que...

— Bem filho, acho que está na hora de irmos. O Comandante, deverá madrugar para esquentar as caldeiras — disse brincando o Sr. Valentim.

Despediram-se efusivamente, com Pedro, prometendo que, antes de zarparem, voltaria a vê-los.

No dia seguinte, muito cedo, para alegria de Maria do Rosário, Pedro cumpriu o prometido, e, ofertou-lhe um vaso com lindas petúnias, que disse serem do seu cultivo.

— São lindas Pedro! Vou cuidar bem delas! Obrigado!

— Faça uma ótima viagem, anjo meu! E ao despedir-se, beijou-lhe as mãos. Uma boa viagem Sr. Bernardo e Dona Margery.

No cais, vendo o vapor se afastar, Pedro grita: — Já estou com saudades!

— Eu também!

— Os acenos persistiram por bastante tempo, ao som grave dos apitos do vapor, que se afastava.


 

Capítulo X
O reencontro familiar

 

No meio da tarde, o vapor estava entrando na Barra do Icapara, fazendo eco com seus apitos nas encostas do Morro do Espia, e os trabalhadores portuários, se agitavam, assim como, os curiosos, que queriam ver a atracação, como também, ver quem estava chegando.

— Bernardo, você não calcula como estou feliz, estando de volta a esta terra que aprendi a gostar, e que a adotei como minha. Quando saímos daqui, eu vacilava interiormente, e para não atormentá-los, sofria calada. Às vezes, pensava que não mais tornaria a ver a nossa querida Iguape. Obrigado Bernardo por tudo que me você proporcionou, e a você, minha filha, também sou muito agradecida, por sua total dedicação a mim.

Os três uniram-se num abraço no convés da proa, sob o olhar e sorriso feliz e fraterno do Comandante, que os observava da sala de comando.

— Vocês não têm nada que me agradecer. Vocês são duas criaturas que eu amo muito, e que, faria e farei qualquer coisa para vê-las sempre com sorrisos nos lábios. Eu já o fiz, mas, serei eternamente repetitivo, agradecendo a Deus e a Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, que concederam a vocês a saúde completa.

Antes de desembarcarem, Bernardo dirigiu-se ao Comandante, e convidou-o para jantar, alertando-o que não aceitaria recusa.

— Às dezenove horas, lá estarei meu amigo.

Do cais, até os “Quatro Cantos”, para Bernardo, Margery, Maria do Rosário e à tia Anna Rita, foi um percurso de sentimentos vitoriosos e de saudades. A passagem pela igreja do Rosário, naquela tarde amena primaveril, deixava-os extasiados, ao passarem por aquelas fileiras de árvores — quaresmeiras — todas floridas. Os cavalos ganhavam distância nos seus trotes, e logo chegaram no casarão do patriarca Bernardino.

Ainda acomodados na carruagem, Maria do Rosário pediu: — Mamãe, papai e titia, gostaria que fossemos todos à igreja hoje à tarde.

— Iremos sim filha — responderam numa só voz.

 

O Sr. Bernardino havia saído. Estava no estaleiro, acompanhando a reforma de um pequeno vapor, conforme informes obtidos por Claudino, que os recepcionou com entusiasmo, externando que, já estava com muitas saudades de todos. Adiantou o jovem, que Maria Conceição e a tia Esther, não estavam em casa.

Toda criadagem quando viu Dona Margery bem disposta, corada, muito bonita e elegante, correram junto a ela, e demonstraram os seus contentamentos.

— Graças a Deus e ao Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, essa casa foi outra vez abençoada. Seja bem-vinda à sua casa — adiantou-se, Marica.

— Obrigada, Marica, pela recepção. Realmente, estamos de regresso para o reinicio de uma vida nova e melhor, com a graça de Deus! Agora Marica, gostaria que providenciasse o seguinte: abra todas as portas e janelas do meu quarto e do quarto de Maria do Rosário; vamos aproveitar o sol, e por os colchões para fora, assim como os travesseiros, e fazer uma boa limpeza nos quartos. Nos assoalhos, depois de bem varridos, passe um pano molhado com água de sabão.

Ela ouvia a sua patroa, e sorria.

— Por que sorri tanto Marica?

— Estou feliz Dona Margery, porque a senhora está boa, e que a “nossa menina”, ainda que esteja com essas muletas, eu acredito que deve ter operado aquele pé que a entristecia. Pela sua feição, eu tenho certeza que ela também está curada. Não é?

— Estou sim Marica. Estou com um pé “novinho”! Qualquer hora eu lhe mostro.

— Obrigado Marica, por sua atenção. Fico muito agradecida por ter você comigo, como minha colaboradora para administrar esta casa imensa. Mas vamos ao trabalho. Ah! Tem mais uma coisa: passe com ferro bem quente as roupas de cama e também nos colchões.

Virando-se para Bernardo e Maria do Rosário, ela observa: — Acho que seriam essas as ordens do Dr. Sizenando, ou eu exagerei?

— Não mamãe, inclusive eu acho que a senhora esqueceu de algo.

— O que minha filha?

— Lembra-se, que ele tinha recomendado que também fossem varridas as paredes?

— É mesmo! Então Marica, faça isso, tirando todas as teias do teto e também as que estão em baixo das camas. E limpe, ou mande limpar muito bem os banheiros. Outra coisa Marica, para o jantar, mande fazer um frango ao molho pardo, e um outro, assado, da maneira que você faz, que nós gostamos muito, completando com salada, arroz, feijão, e para sobremesa, doce de abóbora. Nós teremos um convidado muito especial, nosso amigo, que nos brindara com a sua visita para o jantar. Depois eu venho para ajudá-la.

— Não precisa patroa, eu cuido de tudo com a ajuda das outras.

— Mas eu faço questão de ajudar — disse a Tia Anna Rita.

Bernardo e Maria do Rosário, de braços dados, só observavam a desenvoltura de Margery.

— Muito bem Margery, já que está tudo ordenado, eu vou ao encontro de papai — beijou-as, e se foi.

Antes de alcançar a porta para sair, Bernardo virou nos pés e fez as seguintes recomendações: — Margery, noto com muita alegria que você está ótima, mas é bom não esquecer as recomendações do doutor. Uma parte das ordens aqui na casa você já pediu que fizessem. Agora, no que diz respeito a esforço físico, por favor, não faça. É bom se cuidar! Você sabe, esta casa é muito grande e tem uma escada avantajada. Todo cuidado é pouco! Quanto a você, filha, as recomendações são as mesmas. Não force o pé. Poupe-se! Vocês estão em convalescença! Maria do Rosário, você quer que eu fale com o sapateiro para ele vir até aqui?

— Não papai. Prefiro eu mesma ir lá. Quero dar uma volta na cidade amanhã.

— Então, vou ao encontro de papai, lá no estaleiro.

Chegando, Bernardo viu o “vaporzinho” no estaleiro, e em reforma.

— Papai... Papai!

— Venha aqui filho!

Abraçaram-se saudosos.

— Como vai essa força papai?

— Vamos aqui como Deus manda! E você?

— Estou muito bem! Assim como a Margery e Maria do Rosário.

— Ótimo! Daqui a pouco você me conta as novidades. Agora venha aqui, que quero lhe mostrar a reforma que estou fazendo nesse vaporzinho. Estou trocando todo madeiramento dos camarotes, que estão com cupim, e vou trocar também, as tábuas da roda. Vou mandar instalar tábuas um pouco mais largas; quero que o vapor ganhe mais velocidade e mais força.

— Acho que a idéia é boa!

— Mas Bernardo sente-se ai, e me conta as novidades.

E Bernardo contou tudo, e conclui: — Sabe papai, eu cheguei a uma convicção, que realmente a mão de Deus nos ampara e nos orienta sempre para os caminhos certos que deveremos seguir; se seguirmos a sua orientação, seremos sempre felizes. Desde aquela voz que me falou aos ouvidos: “Por que você não leva a sua mulher e a sua filha ao Rio de Janeiro para fazerem uma consulta médica?”. Desde esse momento, tudo foi se direcionando para a concretização do estágio atual que estamos experimentando, que é de ânimo revigorado. Tivemos pessoas certas em nossos caminhos, que nos ajudaram. Desde o seu apoio, passando pelo Comandante Vicente, cedendo a sua casa lá na Capital, da atenção do Dr. Arthur, do Dr. Sizenando que cuidou delas, juntamente com os seus auxiliares. Imagine papai, tivemos ajuda até de um pintor retratista, que desenhou o pé de Maria do Rosário, para que o doutor e outros médicos que o auxiliaram na operação, estudassem anteriormente, a melhor forma de atuação operatória. Tivemos também a ajuda do casal que toma conta da propriedade do Comandante, enfim, tudo e todos com os quais nos relacionamos, concorreram para que Margery e Maria do Rosário, hoje, sejam duas criaturas muito diferentes. Elas estão ótimas! O senhor vai notar.

— Fico muito feliz meu filho, pois elas são pessoas, as quais eu gosto muito. Agora, Bernardo, duas coisas me incomodam: a primeira, foi o naufrágio do “Paulistano”, que levou à morte dois dos meus empregados mais antigos — o Gama e o Benê — e o Oficial Athayde, e a outra, são algumas atitudes de Maria Conceição. Tenho alertado a Esther, mas essa minha neta é muito geniosa. Não obedece. Quem sabe agora, com você e Margery por perto, ela se emende. Eu soube que no dia que o vapor naufragou, por causa de uma explosão da caldeira, o Oficial, recebeu das mãos de um dos nossos empregados, uma carta. As testemunhas que viram o Oficial fazer a leitura dessa carta, me disseram, que ele entrou numa crise nervosa, ficou “vermelho feito ferro em brasa”. E em seguida, ele correu para a sala de comando, e ordenou para o mestre Torquato, que manobrasse o vapor, em direção a Iguape. Disseram também, que repentinamente, desabou uma forte tempestade; que ele dirigiu-se para a sala de máquinas, e ai, ordenou que se aumentasse a combustão, para dar maior pressão à caldeira. Ninguém sabe o que aconteceu, que deu motivo para a grande explosão. Existe somente uma hipótese para esse ocorrido: defeitos em todas válvulas de segurança; essa é a única razão para o trágico acontecido. Os empregados ainda falaram que o vento contra, era tão forte, que provocava ondas enormes, e que faziam a embarcação ranger, tremer, e vibrar, até que veio a explosão.

— Mas papai, quem entregou a carta ao Oficial?

— Foi o Otoniel que entregou essa bendita carta. Mas eu estou investigando. Pedi para ele ficar andando pela cidade, pra lá e pra cá, até achar a moça que lhe deu a carta para ser entregue ao Oficial. Acho que alguma coisa muito desagradável a ele, continha nessa carta, deixando-o transtornado, que ele teve vontade de voltar com muita urgência para Iguape, Disseram ainda, que ele rangia os dentes, e dava murros no ar.

— Papai... não sei não... mas acho que Maria Conceição tem alguma coisa a ver com isso!

— Eu também tenho essa mesma desconfiança, filho.

— Papai, por alguns dias, vamos deixar esse enorme problema de lado. Primeiramente, ainda hoje, vou contar a elas o que ocorreu, sem entrar em detalhes do falecimento do Oficial. Vamos para casa, que Margery e Maria do Rosário estão ansiosas para vê-lo, e ainda, querem ir à igreja. E logo mais à noite, o Comandante Vicente jantará conosco.

— Então, vamos que eu também estou com muitas saudades delas!

Quando o Sr. Bernardino pôs os pés dentro de casa, Maria do Rosário, com auxílio das suas muletas, vai ao seu encontro.

— Não filha, não venha. Fique ai que eu vou ao seu encontro — disse o avô, assustado e preocupado com o que estava vendo.

— Eu estou bem vovô, e com enorme saudade do senhor! Respondeu, largando-se nos braços do seu querido avô, beijando-o e deixando que caíssem ao chão as muletas.

— Eu não via a hora de ter vocês novamente aqui na nossa casa. Os dias e as noites pareciam intermináveis! Exclamou ele, admirando o semblante da sua neta querida.

— E você Margery? — dando-lhe um grande abraço.

— Posso lhe dizer meu sogro, que estou ótima!

— E é mesmo o que parece! Vocês estão vendendo saúde! Estou muito feliz por isso!

— Vovô. Vamos até a biblioteca. Temos surpresas...

— Vindo de vocês, só podem ser surpresas muito boas.

Em cima da mesa, lá estavam: duas garrafas — uma com areia e a outra, com água, e, um enorme búzio.

Adiantou-se a neta: A areia vovô, é da praia e a água, é do mar, lá do Rio de Janeiro, e o búzio, também é de lá; agora, o senhor põe os ouvidos perto dele, e escuta o marulhar daquele mar maravilhoso, e mata a saudades do tempo que esteve por lá — disse ela brincando com o seu avô.

— Agora papai, receba o nosso presente.

— Nossa... Bernardo... que linda bengala. Muito obrigado pelos presentes. Gostei muito!

— Realmente filha, eu tenho saudades daquele tempo difícil, quando era ainda muito jovem. Eu ficava, horas olhando aquele mar lindo, e com saudades de Portugal. Agora, eu tenho saudades do Rio de Janeiro.

— Margery, por favor, recomende às empregadas, que não toquem nessas garrafas e nem no meu búzio!

— Pode ficar despreocupado, que as recomendações serão dadas.

— Bem, Bernardo me disse que vocês desejam ir à igreja. Posso acompanhá-los?

— Claro vovô. Eu iria mesmo convidá-lo.

— Sr. Bernardino, Maria Conceição tem se comportado?

— Você sabe, Margery, ela é bem geniosa. Ainda bem que você está aqui, e está ótima. Alguma coisa deverá ser feita para frear as atitudes de Maria Conceição. Quanto a Esther, eu mesmo falo com ela.

Bernardo e Margery trocaram olhares, com ares de preocupação.

 

Na igreja deserta, todos estavam em frente ao altar mor, onde reinava imponente a imagem do Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde. Ajoelhados, imersos numa atmosfera tranqüila, silenciosa e de muita paz, eles oravam. Ouvia-se somente, os trinares das andorinhas, que voavam para lá e para cá, naquela atmosfera santa.

Sem eles perceberem, o padre Alfredo fica admirando-os e formando idéias: “era uma família constrita e fervorosa, que, com certeza, ali estavam para agradecer”. Lembrou-se do dia, que ali compareceram, antes da partida para submeterem-se a um tratamento de saúde na Capital. Igualmente, do lugar onde estava, ele ajoelhou-se e orou, em louvor e em agradecimento, pelas dádivas ofertadas pelo Nosso Senhor, àquela família.

— Padre Alfredo, que bom vê-lo. Viemos agradecer por tudo que nos foi concedido, e também, por tudo que Ele irá nos conceder.

— Dona Margery, fico feliz em vê-la muito bem! Confesso que naquele dia, eu a via muito debilitada. Hoje não, a sua aparência sobeja saúde.

— Graças ao Nosso Senhor — disse Margery, olhando agradecida para o topo o altar mor, onde lá estava a imagem Dele. Padre Alfredo, nós fizemos, como o senhor nos recomendou. Antes das consultas, rezamos, pedimos ajuda.

É filha, não devemos esquecer, que a fé verdadeira, remove montanhas, como Ele nos ensinou. Há uma passagem evangélica, narrada por Mateus, que diz assim: “Uma mulher atormentada por um fluxo de sangue, havia doze anos, aproximou-se Dele por trás e tocou-lhe a orla do manto. Dizia consigo: ‘Se eu somente tocar na sua vestimenta, serei curada’. Jesus virou-se, viu-a e disse-lhe: ‘Tem confiança, minha filha, tua fé te salvou. E a mulher ficou curada instantaneamente”. São Lucas também narra essa passagem muito expressiva, que demonstra que a Fé, é realmente o canal virtuoso que nos beneficia nas situações difíceis, que invariavelmente, todos nós atravessamos. Então, se a senhora não acreditasse no seu tratamento e também, desacreditasse nas forças divinas, não teria obtido a cura, e de nada valeriam os esforços do médico. A Fé, dona Margery, a senhora mesmo constatou, ela é tão importante para nós, como é importante, a bússola para o navegante, apontando o seu rumo; ela é, como uma candeia acesa a orientar-nos os movimentos através das dificuldades dos caminhos escuros das nossas vidas.

— Realmente Padre Alfredo, o nosso médico, foi muito atencioso, e acertou nos seus diagnósticos e nas receitas dos medicamentos e nos procedimentos extremamente meticulosos. A sua dedicação para conosco, foi digna de apreço; tornou-se o nosso amigo íntimo, e que num futuro, acho que não muito distante, estará conosco, e quem sabe, como nosso convidado, e também, especialmente, convidado por Maria do Rosário, estará aqui na nossa igreja.

O padre, rapidamente olhou para a jovem, e perguntou: — É verdade?

— Quem sabe Padre Alfredo. Mas o senhor, também sabe melhor que nós, que o futuro a Deus pertence! Mas, posso lhe dizer com convicção: concretizando-se a percepção que o senhor teve, ela é de todo meu gosto que se realize.

Maria do Rosário, de soslaio, notou que o seu avô, coçou o bigode, e que ficou desconfiado com aquele diálogo. Então, ela se adiantou: — Vovô, lá em casa eu lhe contarei tudo!

— Padre Alfredo como o senhor nota, estamos bem. E de hoje em diante, estaremos todos aqui, para os ofícios dominicais. Só que, sempre na primeira celebração dos domingos. Há muito tempo que não vínhamos comparecendo aos ofícios, como é do seu conhecimento. Assim, para não chamar atenção das pessoas, aqui estaremos na missa menos concorrida pela sociedade, logo pela manhã, e nesse mesmo banco — disse Margery, com a anuência de todos.

— Para mim está ótimo. É como diz o ensinamento de Jesus: “Quando quiseres orar, entra no teu quarto e ora”. Isso quer dizer: que ao comparecermos a um ofício religioso, é para orarmos, e não para nos mostrarmos a sociedade que estamos na igreja. O que interessa é que, com o coração repleto de amor, vocês estejam com o Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde. Se por ventura, aqui não estiverem alguns de vocês, ou todos, nesse primeiro banco, tenho certeza que foi por força maior, mas que estarão recolhidos em seus aposentos, naquela hora, e em oração.

— Então Padre, quanto ao balcão que nos é reservado por sua deferência, nós agradecemos a sua gentileza, e nessas circunstâncias, estamos devolvendo-o — disse o Sr. Bernardino.

— Padre Alfredo — acentuou Bernardo — o que é certo, é que Margery e Maria do Rosário, muito embora estejam bem, ainda estão sob orientações médicas, e proibidas de fazerem esforços — a escada que eleva aos balcões, é bem íngreme. Achamos então conveniente, que o senhor ceda o nosso balcão para outra família.

— Muito bem, estou convencido, e confesso que será um prazer e creio que será mais aconchegante, vê-los aqui na nave da igreja, bem pertinho, logo no nosso primeiro ofício dominical.

Todos tomaram as bênçãos do pároco e se retiraram.

— Vão com Deus e em paz!

De regresso ao casarão, lá estavam a tia Esther, que os cumprimentou friamente, fazendo algumas indagações de modo desinteressado, e Maria Conceição, que teimava em tocar piano, e que, vendo seus pais, levantou-se e fez uma mesura forçada e protocolar, dizendo: — A senhora parece estar bem mamãe, mas você, Maria do Rosário, piorou muito — veio até de muletas! E o papai, parece mais magro. Essa estada no Rio de Janeiro, não lhe fez bem, papai! A Capital, só foi boa para mamãe!

— Graças a Deus, Maria Conceição, eu e Maria do Rosário estamos nos recuperando bem. E você, como tem passado, e o que tem feito?

— Ah! Eu ocupo o meu tempo, com passeios, reuniões, chás, saraus, estudando música, e mais algumas coisas.

E ela, continuou teimando no seu piano.

Bernardo, Margery e Maria do Rosário, chamados pelo Sr. Bernardino, dirigem-se para a biblioteca.

— Filho, eu acho que chegou a hora de darmos conhecimento a elas, sobre o que ocorreu.

— O senhor acha que esse é o momento?

— É melhor que saibam por nós, do que por outras pessoas.

Margery e Maria do Rosário trocaram olhares e, ficaram com expressões interrogativas.

O Sr. Bernardino discorre sobre tudo o que aconteceu com o Oficial Athayde.

Elas ficaram chocadas.

— Papai, o senhor nos ocultou esse acontecimento ...! — disse ela em tom de censura.

— Filha. na minha avaliação, achei conveniente não lhes falar nada a respeito. Levar a vocês, um acontecimento nefasto, funesto, naqueles momentos, avaliei que poderia lhes trazer algum prejuízo às suas saúdes. Margery, seria a preocupação maior, pois estava sob tratamento rigoroso; somente tristezas, poderia acontecer no íntimo de vocês. E para essa minha atitude, eu tive a aprovação do Dr. Sizenando, e dos nossos amigos, o Comandante e Pedro Fernão.

— Todos então, estavam sabendo? Interrogou Margery.

— Sim, e todos nós, tivemos a única intenção de somente preservá-las.

— É papai, me desculpe a censura. Acho que o senhor fez muito bem. Não é mamãe?

— Realmente filha, pensando bem, o seu pai ocultou a notícia, objetivando somente o nosso bem estar.

O Sr. Bernardino, também lhes dá a conhecer, das investigações que está promovendo, para descobrir quem foi a moça que pediu a um dos seus empregados, para que esse entregasse uma carta ao Oficial, e daí, descobrir o que estava escrito naquela carta, que causou um transtorno visível no jovem Oficial.

— Bernardo, não será por essa razão que Maria Conceição está tão indiferente conosco?

O Sr. Bernardino respondeu a essa indagação: — Margery, sinto em lhe dizer, que no dia seguinte ao do acidente, ela já estava participando de um sarau, como se nada tivesse acontecido.

— Isso me preocupa Margery. Precisamos saber o que se passa com a nossa filha!

— Papai e mamãe, se eu puder ajudar a minha irmã, não medirei esforços. Procurarei, para com ela, ser mais solícita, atenciosa e amiga. Tenham a certeza, que nenhuma observação maldosa que ela possa proferir, com relação a mim, terá o meu revide. Afinal, nascemos juntas; não sei se por obra do destino ou pela Providência Divina. Mas acho que o importante, é mantermos nosso liame inicial. Farei de tudo para que nós nos unamos novamente.

 

“Não devias tu igualmente ter compaixão do teu companheiro, como eu também tive misericórdia de ti?

(Jesus. Mateus, 18:33)

 

— Você sempre demonstrou ser uma boa moça. Faça o que for possível minha filha e releve as adversidades, mas sem prejuízo para a sua vida. A sua vida minha filha, já foi tolhida demais em todos esses anos. Você merece ser feliz. — disse o seu avô.

— Eu o entendo vovô. Mas lhe digo com tranqüilidade e certeza: eu não serei totalmente feliz, sem que Maria Conceição também o seja.

— Você está certa minha neta. Faça o possível, e até o que pareça impossível para serem felizes, porque assim sendo, sobejará para todos nós, essa mesma felicidade.

— Papai, o que pensa a tia Esther de tudo isso? — perguntou Bernardo.

— Filho, eu acho que não devemos contar com a sua tia. Acho que ela também precisa de muita ajuda.

Nesse instante, entrou na biblioteca, Maria Conceição, com a seguinte indagação acintosa: — O que o clã dos Rocha Carvalho resolve nessa reunião?

— Nada, minha neta. Eles só estavam contando e detalhando os tratamentos a que se submeteram lá no Rio de Janeiro. E tem mais filha, e ouça bem, pois isso, vai sair da minha boca, mas, por força do meu entendimento e do meu coração: os Rocha Carvalho, só se reunirão com um verdadeiro clã, se você estiver conosco, ombro a ombro, enfrentando os mesmos problemas e objetivando os mesmos ideais. Saiba minha neta, que você é muito querida, e muito importante para todos nós.

E mais uma vez, ele se recordou com saudades da sua esposa.

Ela ficou um pouco desconcertada com o elogio do seu avô, e não disse mais nada.

— Bem, acho melhor nos prepararmos para recebermos o nosso convidado para o jantar.

 

Após o jantar, do qual o Comandante teceu largos elogios, todos se acomodaram na sala de estar, e os assuntos correram soltos.

Num dado momento, Maria do Rosário, pediu licença ao seu pai, para com ele, trocar de lugar, porque ela queria ficar ao lado do seu avô, para contar-lhe algo importante que havia prometido.

— Sabe vovô, na nossa estada no Rio de janeiro, nós tivemos a oportunidade de ser apresentado a um jovem, de nome Pedro Fernão.

Segurando a mão do seu avô, carinhosamente, e com aquele ar jovial e lindo, descreveu tudo o que aconteceu, culminando por dizer que estavam enamorados, e pediu também, a sua permissão para isso e, a sua autorização para convidá-lo, juntamente com o seu pai, para que ambos estivessem com eles no Natal.

O Sr. Bernardino, embevecido com a delicadeza e atenção da sua querida neta, segurou entre suas mãos, aquele lindo e jovial rosto, e lhe deu um beijo na testa.

— Fico contente com a notícia e faço votos que o senhor Pedro Fernão, lhe proporcione muitas alegrias, das quais você bem merece.

— Papai e mamãe, eu não lhes falei nada a respeito do assunto, porque tinha a certeza de suas aprovações. No entanto, solicito agora as suas concordâncias.

— Nós também temos muito prazer em recebe-los! — disse Margery.

— Vovô, papai e mamãe, certo que eu estava dessa autorização que até já havia escrito uma carta para Pedro, e que agora, solicito o especial obséquio do nosso amigo Comandante, para que ele seja o portador desse nosso convite. Concorda Comandante?

— Não só concordo senhorita, como também, faço gosto em ser o seu “pombo correio” — e embolsou a carta.

Veicularam-se outros assuntos, até que Bernardo lembrou: — Papai, algo inusitado ficamos sabendo, quando lá em Santos, nos reunimos para um jantar à bordo do vapor: o Comandante Vicente, Pedro Fernão, seu pai, o Sr. Valentim, e nós. E a certo momento o Comandante nos disse, que todos nós que ali estávamos, tínhamos o mesmo nome de família.

— Como assim Bernardo?

— É simples papai: o Comandante chama-se Vicente Barboza de Carvalho; pai de Pedro chama-se Valentim Fausto de Carvalho, e nós, Rocha Carvalho, e ainda, Margery Barboza de Carvalho.

— É realmente um acontecimento insólito. Pessoas moradoras em cidades diferentes, e até longínquas, com os mesmos nomes de família, reunirem-se, para um jantar — isso é obra do acaso!

— Então papai, nós nos comprometemos a providenciar um levantamento dos nomes e dos locais onde nasceram os nossos ancestrais, e fazermos, cada um, a sua árvore genealógica. Todos nós somos originários de Portugal. Quem sabe, sejamos todos de um só tronco familiar.

— Acho que isso não é difícil deixar de acontecer. Afirmou Sr. Bernardino.

— Sr. Bernardo, o nome comum que temos, chamou-me a atenção desde o momento, quanto tomei conhecimento do seu primeiro embarque de uma partida de arroz para a Capital. Já faz algum tempo, não me lembro quando, mas só agora, um pouco antes da minha viagem para Portugal, é que me aguçou a curiosidade. Então, lá, incumbi o meu filho Álvaro, para fazer um levantamento da minha árvore genealógica. Creio até, que deve estar concluída. Logo que eu a tenha em minhas mãos, virei até aqui para mostrá-la.

— Eu — disse Sr. Bernardino — nasci num lugarejo, junto a Serra dos Carvalhos. O meu registro, foi feito num povoado, chamado Carvalhal, onde também aí, freqüentei a escola. Não cheguei a conhecer o meu pai, que se chamava — Domingos — e minha mãe, chamava-se — Alba . Tive dois irmãos mais velhos: Fernandes e Bartolomeu. Viemos todos para o Brasil, Aqui, não demorou muito, mamãe e meus dois irmãos, adquiriram uma febre, que não houve jeito... Não resistiram. Isso aconteceu lá em São Salvador. Desgostoso e sozinho, embarquei com destino ao Rio de janeiro...

— Não quer continuar a contar papai?

— Não meu filho. Isso tudo me traz lembranças de uma vida difícil, triste e cheia de dúvidas. Qualquer dia eu contarei o resto ou deixarei por escrito.

— Pois é Comandante, se o seu filho constatar que temos o mesmo tronco familiar, ficarei muito feliz e orgulhoso por tê-lo como nosso parente — afirmou Sr. Bernardino

 

“No espaço, os Espíritos formam grupos ou famílias entrelaçados pela afeição, pela simpatia e pela semelhança das inclinações. (...) A encarnação apenas momentaneamente os separa, porquanto, ao regressarem à erraticidade, novamente se reúnem como amigos que voltam de uma viagem. Muitas vezes, até, uns seguem a outros na encarnação, vindo aqui reunir-se numa mesma família, ou num mesmo círculo, a fim de trabalharem juntos pelo mútuo adiantamento”

(O Evangelho Segundo o Espiritismo — cap.IV — 18)

 

— A recíproca é verdadeira! A vida, Sr. Bernardino, nos reserva momentos interessantes, os quais, nos leva a refletirmos muito sobre esses encontros. Será que não é a mão de Deus que está por trás disso tudo?

— Sabe Comandante, Jesus nos deixou o ensinamento: “Que não cai uma só folha de uma árvore, sem que Deus queira!” — afirmou Margery.

— É isso mesmo Dona Margery. Esse é o ensinamento; e se nele crermos, qual será a verdade que está por trás dessa união dos nossos nomes de família e também, pela afinidade que nos aproxima?

Continuando, o Comandante acrescentou: — Quando estive em Portugal, há pouco tempo, tomei conhecimento, muito superficial, através do meu filho, Joaquim Pedro, sobre a Doutrina Espírita. Ele faz parte de um grupo de estudos sobre essa doutrina. Falou-me rapidamente sobre ela e, entre outras coisas, lembro-me que me disse: “As coisas importantes em nossas vidas, como casamento, filhos, e outros acontecimentos relevantes, já foram traçados e queridos por nós para que se realizassem, antes mesmo de nascermos. E que, após a nossa morte, passando algum tempo, ou muito tempo, a nossa alma, novamente reencarna. Isto é, nós nasceremos outra vez, e em outro corpo” Então, se esse encontro de família está sendo importante, se essa nossa união nos proporciona a felicidade, seguindo o ensinamento dessa doutrina, fomos nós mesmo que pedimos, que isso se realizasse para tirarmos disso tudo, algo relevante para nosso crescimento e fortalecimento interior.

— Eu lhes garanto que, não pedi nada, e tenho opinião contrária a tudo que o senhor disse, Comandante. E faço-lhe uma pergunta: Por acaso, alguém em sã consciência, pode pedir para viver em sofrimento? Acho que cada um tem a sua vida e pronto; morreu e acabou! — disse Maria Conceição, levantando-se do seu lugar, despediu-se, e foi se recolher.

Por um tempo, o silêncio foi reinante, até que Maria do Rosário tomou a iniciativa na conversa: — Sabe Comandante, nós ganhamos um livro do Dr. Sizenando — chama-se o Livro dos Espíritos. No capítulo VII, ele trata sobre “Simpatias e Antipatias Terrenas”. Esperem um pouco que vou buscá-lo; ele está aqui na biblioteca.

De volta, ela explicou que o livro era composto de perguntas e respostas, o que facilita muito o seu entendimento.

E ela continuou: Na pergunta n. 386, está escrito — “Dois seres que se conheceram e se amaram, podem encontrar-se noutra existência corpórea e se reconhecerem?” Resposta dos Espíritos: “Reconhecerem-se não, mas serem atraídos um pelo outro, sim; e freqüentemente as ligações íntimas, fundadas numa afeição sincera, não provém de outra causa. Dois seres se aproximam um do outro por circunstâncias aparentemente fortuitas, mas que são resultado da atração de dois Espíritos que se buscam através da multidão”. Eu entendo então, que não existiu o acaso ou a coincidência, de eu e Pedro termos nos encontrado, mas sim, nós já queríamos isso, visto que, havíamos nos proposto a esse encontro, ao nascermos de novo.

Há uma outra questão nesse livro, nos esclarecendo, que os Espíritos, podem provocar um encontro entre duas pessoas, o que poderá ser considerada, ao acaso. Mas não é o acaso, pois o encontro foi provocado.

E assim, acho que poderemos levar esses ensinamentos, ajustando-o a outros encontros importantes em nossas vidas, como uma reunião de pessoas, como esta que estamos tendo agora, e outros acontecimentos marcantes.

— Senhorita, você me despertou a curiosidade. Eu tenho esse livro à bordo. O meu filho, quando estive em Portugal, me presenteou com esse livro, só que, é uma edição em francês, e eu tenho alguma dificuldade em compreender. Mas eu vou insistir, assim também, eu exercito o idioma.

— Bem Sr. Bernardino, Sr. Bernardo, Dona Margery, Senhorita Maria do Rosário e Dona Anna Rita, tenho que confessar, que tive uma noite ótima, como há muito tempo não experimentava. Muito obrigado pelo convite, o jantar estava delicioso, assim como a sobremesa! Espero vê-los mais vezes. E lá na Capital, a minha casa estará sempre às suas disposições. Vou avisar o meu caseiro, novamente.

— Muito obrigado Comandante, e também, faça dessa casa, como se fosse igualmente sua! — disse Sr. Bernardino.

A carruagem da família, aguardava o Comandante para levá-lo ao cais do porto.

Despediram-se, com o Comandante agradecendo pela condução.

Antes de se recolherem, Maria do Rosário, disse ao seu pai e a sua mãe, que gostaria de ir à igreja no dia seguinte: — Vou depositar na Sala dos Milagres, o desenho que foi feito do meu pé. Sei perfeitamente, que não houve milagre, mas sim a habilidade e os conhecimentos do Dr. Sizenando e dos seus colegas que também me operaram. Mas que eu pedi em oração, para que o Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde, os ajudasse, eu pedi! E estou sempre pensando e agradecendo ao Nosso Senhor pela possibilidade de eu ficar boa, e quero concretizar isso, depositando lá, o desenho do meu antigo pé.

— Vamos sim, minha filha, e logo pela manhã, porque depois, todos nós vamos à casa do Dr. Eustáquio. Preciso levar-lhe o relatório do Dr. Sizenando, e mais uma vez agradecer. Depois de tudo, vamos reiniciar uma vida nova nesta casa.

E assim foi feito.


 

Capítulo XI
O segredo revelado

 

Certo dia, Otoniel, chegou com a notícia, de que já sabia quem teria sido a moça que escreveu a carta para o Oficial Athayde.

O Sr. Bernardino, diante disso, estabeleceu um plano com o seu empregado.

— Otoniel, diga a ela, que você não chegou a entregar a carta ao Oficial e, que quer devolvê-la. Marque um dia, e fale para ela ir pegá-la em sua casa. Nesse dia, eu lá estarei, juntamente com Bernardo.

— Assim farei senhor.

O dia foi marcado, e Bernardino e seu filho lá estavam.

A moça chegou. Ela foi convidada a entrar, pela esposa do Otoniel. Na pequena casa, localizada num lugar chamado, “Funil de Cima”, ela se acomodou numa pequena sala, enquanto aguardava o dono da casa.

Adentram à sala, os três: Otoniel, Bernardino e Bernardo.

Ela se assustou com aquelas pessoas. Levantou-se do banco em que estava sentada, e fez menção para ir embora, mas a porta tinha sido trancada.

— Sr. Otoniel, abra essa porta, por favor, que eu quero ir embora. Não mais me interessa pegar aquilo que vim buscar.

— Senhorita, por favor, fique calma. Nós não temos outra intenção, senão apenas conversarmos sobre um assunto que nos diz respeito — disse Sr. Bernardino.

— Eu conheço os senhores.

— Nós também conhecemos bem os seus pais, nossos amigos.

— Senhorita, sem delongas, nós vamos direto ao assunto: — o que a senhorita escreveu naquela carta, endereçada ao Oficial, que o deixou muito transtornado, conforme nos disseram as pessoas que o viram, lendo-a?

— Mas como isso aconteceu, se o senhor Otoniel me disse que não entregou a carta?

— Isso foi uma pequena mentira, para que pudéssemos nos encontrar, secretamente e, dialogarmos a respeito — falou Bernardo.

A moça novamente olhou para a porta, mas desistiu de qualquer atitude. Seu desejo era sair em desabalada carreira, e ficar longe daquelas pessoas. Myrian estava ficando nervosa com aquela situação.

— Senhorita fique calma! Nós não iremos lhe fazer mal algum, e nem mesmo, falar o que aqui ocorreu aos seus pais, que como já dissemos, são nossos amigos de há muito tempo. E nem vamos contar para a polícia, visto existir um inquérito, em aberto, para averiguar o sinistro, uma vez que, morreram três pessoas. Nós não estamos aqui para apurar qualquer coisa que sirva também para amenizar o nosso enorme prejuízo material, mas sim, sabermos só uma coisa: o que a senhorita escreveu naquela carta, que deixou o Oficial Athayde fora de si, conforme o relato das testemunhas. Pode falar sem qualquer receio, que a minha palavra está empenhada no silêncio, assim como a do meu filho e do meu empregado de confiança.

Myrian ficou calada e cabisbaixa por algum tempo.

Um pouco mais calma, ela resolve falar.

— Senhor, o que eu escrevi naquela carta, a sua neta, Maria Conceição, sabe muito bem!

— Como assim, senhorita?

— É que ela mantinha compromisso com o Oficial, mas quando ele virava às costas, ela se relacionava com um outro rapaz; filho do Intendente do consulado português. Eu os surpreendi, se beijando atrás de um reposteiro, lá no clube. Então resolvi escrever para o Oficial, para que ele tomasse conhecimento da postura reprovável da moça, com a qual ele estava comprometido. E quero lhes dizer, que não foi uma carta anônima.

— Pois é, minha filha. Você viu no que deu a sua exteriorização de ciúmes? Indagou Sr. Bernardino.

— Infelizmente, eu sinto pela vida do Oficial e dos seus empregados, mas com respeito a sua filha, Sr. Bernardo, o senhor pode notar que ela está ótima, alegre e faceira. Parece que para ela, nada aconteceu.

— Senhorita desculpe o transtorno que lhe causamos. As informações que nos deu, foram importantes. Fique tranqüila, que da nossa boca, ninguém ficará sabendo o que aqui foi revelado, a respeito daquela maldita carta. Nós sairemos primeiro. Depois de meia-hora, a senhorita sai — disse Bernardo.

Reservadamente, Bernardo comunicou a Margery o resultado da investigação. E resolveram, que dali em diante, deveriam estar mais atentos a tudo que se relacionasse com Maria Conceição.

Ela, apesar de toda atenção que lhe era dada, continuava alheia à família, e a tudo no meio familiar. Só se interessava pela sua atuação na sociedade, suas roupas, seus sapatos, seu penteado, sua maquilagem, e os eventos da sociedade. Enfim, cada vez mais egoísta.

 

Alguns dias transcorreram, e Margery, perguntou a sua filha: — Maria Conceição, você pode me dizer, por que está sempre distante de nós e da nossa casa?

— Mamãe, eu não tenho porque me incomodar com vocês. Noto que vocês estão muito bem!

— E você minha filha, está bem?

— Não tenho nada que reclamar.

— Não faz muito tempo, você perdeu aquele que poderia ter sido o seu futuro esposo. Sente saudades?

— Mamãe, não há porque eu ficar me lamentando pelos cantos. Quem morre não volta mais. Esta é a vida. E eu estou viva e tenho que aproveitar.

— Você está namorando alguém?

— Sim. E alguém muito importante e bem postado na vida; tanto de família abastada, quanto bem posicionada na sociedade, até no Rio de Janeiro.

— E você pode dizer quem é esse rapaz?

— É o filho do Intendente. Não é um pobre, como aquele outro, que queria me controlar o tempo todo.

— E você pretende se casar com ele?

— Pretendo!

— Por que razão ele ainda não veio falar conosco a respeito?

— Ele disse que qualquer dia, vem nos visitar.

— Maria Conceição, não seria bom, que você e Maria do Rosário, marcassem os seus casamentos, para o mesmo dia?

— O que? Maria do Rosário vai casar? De que jeito? E com quem?

— Maria Conceição, por essas suas perguntas, é que temos certeza que realmente você está alheia a tudo que se relaciona conosco nesta casa. Você se esqueceu, ou mesmo não ouviu, ou ainda, não quis ouvir que ela está enamorada de Pedro Fernão? E tem mais, não se admire tanto, que ela é igual a você, e que também, tem o direito de casar e ser feliz.

— Como é que ela vai casar com aquelas muletas? Será que o Pedro Fernão ficou cego?

— Maria Conceição, eu não admito que você continue com essas observações maldosas! Eu não vou permitir essas suas atitudes. Quem você pensa que é para estar julgando? Por acaso você pensa que é superior a ela, e também a todos nós? Fique sabendo que o Pedro Fernão e seu pai estarão conosco nas festividades natalinas. Portanto, desde já, eu lhe aviso para que você se comporte, pois é possível que nessa oportunidade, eles marquem a data do casamento.

Maria Conceição sorria pelos cantos da boca e acrescentou: — Não, eu não quero dividir com ninguém o altar, muito menos, com Maria do Rosário.

— Mas o que você tem contra a sua irmã? Saiba mais uma coisa: apesar desse seu proceder, a sua irmã gosta e se preocupa muito com você.

— Ela me humilhou lá no Rio de Janeiro.

— Aquilo minha filha, não foi uma humilhação. Você está equivocada. Ela apenas chamou a sua atenção para as incertezas que assolavam as nossas mentes, visto que você, nem um pouco se incomodava conosco. Só queria passear, passear e passear. Filha! Preste atenção! Nós somos uma família, assim sendo, devemos ficar unidos, um ajudando o outro. Escute bem o que eu vou lhe dizer: ninguém gosta mais de você, do que nós! Se um dia, você precisar de ajuda, seja ela qual for, tenha certeza absoluta, que seremos nós que estaremos ao seu lado.

Nesse instante chegou a tia Esther, dizendo que estava na hora de fazer a prova do vestido de um dos cortes que trouxeram do Rio de Janeiro.

Saíram lépidas e faceiras, sob o olhar desolado de Margery.

 

No transcorrer dos dias, a família estava sempre atenta no que diz respeito a Maria Conceição. Mas ela continuava a mesma, muito embora, a tia Esther, tivesse tido uma pequena melhora, que com certeza, foi por causa de uma repreensão do seu irmão — Sr. Bernardino.

Uma semana antes do Natal, conforme pedido de Maria do Rosário, Pedro Fernão chegou.

Da sua sacada, Maria do Rosário via uma carruagem se aproximando, e, identificou o seu pretendente. Sem se exceder, comunicou a sua mãe, e ambas, desceram com muito cuidado a escadaria, e esperá-lo no portal.

— Não via a hora de chegar!

— Como foi a viagem Pedro?

— Foi ótima, mas como lhes disse, estava ansioso para pisar em terra firme. Maria do Rosário e Dona Margery, é um prazer enorme, vê-las que estão ótimas, saudáveis, e se me permitem e me desculparem, estão muito bonitas.

Ambas agradeceram, e Maria do Rosário perguntou: — Pedro, o seu pai não veio?

— Não. Ele, só poderá vir na véspera do Natal.

— E o Sr. Bernardo, está bem?

— Sim, Pedro Fernão. Ele está muito bem! Mas infelizmente ele não está em casa para recebê-lo, mas creio que não demorará.

— Estavam conversando, quando se aproximou Maria Conceição.

— Então você veio? Pensei que fosse desistir.

Pedro, a mirou por alguns momentos sem saber o que responder, até que contrapôs: — Muito prazer em revê-la senhorita. Desculpe-me a franqueza, sobretudo, sem tornar-me indelicado, mas, acho conveniente que a senhorita saiba, que eu viria a sua terra, que estou achando muito bonita e acolhedora, nem que fosse, em lombo de burro, enfrentando as trilhas e intempéries, para ver Maria do Rosário e a sua família. Portanto, é com muito prazer que aqui venho, e também a encontre aparentemente saudável. Digo-lhe mais, senhorita, não sei de onde você tirou essa conclusão, que nunca foi minha!

Maria Conceição nem se abalou com a resposta direta e franca.

Maria do Rosário adorou a demonstração de atenção e amor do seu pretendido.

Bernardo e seu pai, chegaram para o café da tarde.

— Como vai Sr. Bernardo?

— Eu vou bem Pedro Fernão! Apresento-lhe o meu pai.

— Muito prazer senhor!

— Igualmente.

— E o senhor seu pai não veio? — Indagou Bernardo.

— Não senhor. Mas no dia da Natividade, ele estará conosco. Afazeres urgentes não o deixaram vir comigo.

— Nós o aguardaremos — disse Bernardo.

— Dona Margery, o café está na mesa — interveio a empregada.

— Vamos então?

Antes de se acomodarem à mesa, Pedro Fernão, dirigiu-se a Maria Conceição: — Senhorita, receba os meus sentimentos, no que diz respeito a perda do Oficial Athayde. Era uma excelente pessoa e um ótimo profissional.

— Isso são coisas que fazem parte do meu passado e, que desejo esquecer. É como diz o ditado: “Águas passadas não movem moinho”

Pedro chocou-se, com tanta indiferença, e logo mudou de assunto.

— Sr. Bernardo, desejo que me indique um hotel ou uma pousada.

— Pois não Pedro, e isso eu faço já. Às suas costas, há uma porta, que dá para um curto corredor; à direita, está o seu aposento, que também acomodará o Sr. Valentim. Na porta da esquerda, fica o banheiro.

— Sr. Bernardo, não queremos incomodar...

— Incomodo nenhum Pedro! Esteja conosco, como se estivesse em sua casa.

— Em meu nome e em nome do meu pai, eu agradeço a sua hospitalidade.

A conversa se alongou, e chegou ao assunto da árvore genealógica.

— Sabe Sr. Bernardo, com referência a esse assunto, nome de família, o meu pai, andou vasculhando alguns papéis e documentos antigos que trouxe de Portugal, e valendo-se também das suas poucas lembranças, disse-me: que a nossa família, por parte do meu avô, teve origem, num lugar chamado Morro dos Quercus. Era um lugarejo com esse nome.

— Pedro, o seu sobrenome é igual ao meu?

— Sim, senhorita Maria Conceição!

— Já não basta nós, não é tia Esther? E vem mais um?

— Para mim, senhorita, terei muito orgulho, se houver essa constatação, e tivermos o mesmo tronco das nossas ascendências. — afirmou Pedro Fernão.

— Eu não ligo para isso. O que me interessa não é mais o agora, mas sim, o que virá depois. — contestou Maria Conceição.

— Uma coisa minha filha, você tem que considerar: é muito importante que apreendamos, que para termos “esse que virá depois”, há necessidade que plantemos e cuidemos muito bem “desse agora”. Quem não planta, não terá nada a colher. E tem aquele ensinamento de Jesus, quando disse: “A cada um, será dado segundo as suas obras”. E ainda, minha filha, existe aquele ditado popular: “Quem semeia vento, colhe tempestade”. Quem planta a amizade, o respeito, a concórdia, a atenção, a união, terá todas as condições de um dia, colher o amor, o carinho e o respeito — aduziu o seu avô.

Maria Conceição calou-se, com uma grande interrogação: por que será que ele disse isso tudo?

— Sr. Pedro Fernão, eu também estive no Morro dos Quercus quando era jovenzinho. Recordo que lá, nós tínhamos muitos parentes.

— É papai, acho que tudo leva a crer que somos aparentados — asseverou Bernardo.

— Vamos para a sala? — disse Margery

— Quem toca piano? Indagou Pedro

— Minha irmã está aprendendo.

— Você toca Maria Conceição?

— Não. Não toco nada — respondeu secamente.

— Posso tentar?

— Claro, esteja à vontade. Sempre que desejar, o piano está aí, quase sempre ocioso — acrescentou Margery.

Pedro sentou-se, ajeitou a banqueta, dedilhou alguns acordes e tocou: Noturno de Chopin, e um fado, que ele disse ser da sua autoria, que teve como musa inspiradora, Maria do Rosário, intitulado: A rapariga do Ribeira. Disse ainda, que a sua mãe lecionava música, e que aprendeu com ela. E para preencher a falta que ela faz em sua vida, toca todos os dias, em sua homenagem.

— Que surpresa agradabilíssima Pedro — exclamou Maria do Rosário — muito obrigado pelo fado. Gostei muito!

— Papai também gosta que eu toque. Vez ou outra, ele está lembrando dos fados antigos, da sua juventude, e fica cantarolando, até eu aprender e executar.

— Que bom Pedro, constatar as suas habilidades musicais. Amanhã, teremos um sarau na casa do Intendente do consulado, e você, poderá vir conosco, e abrilhantar o nosso entretenimento — disse Maria Conceição.

— Não senhorita. Eu vim a sua cidade, para estar com Maria do Rosário e, como conseqüência, rever a Dona Margery, Sr. Bernardo, dona Anna Rita e conhecer o Sr. Bernardino, enfim, estar com todos, o que faço com muito gosto. De forma que, não quero dividir as minhas atenções com outras pessoas, mesmo sendo na casa do Intendente.

Maria Conceição dá um “sorriso amarelo”, sentindo-se frustrada em suas intenções — fazer ciúmes ao jovem Francisco, filho do Vice-Consul.

— Noutros tempos, confesso que não perderia a oportunidade, mas agora, eu lhe digo não, porque quero ficar o maior tempo possível ao lado da minha namorada.

— Dona Margery, Sr. Bernardo e Sr. Bernardino, quero que saibam que vim a Iguape, para confirmar o meu compromisso com Maria do Rosário. Mas papai faz questão de fazer o pedido oficial, e daí, até poderemos marcar a data do nosso casamento.

Maria do Rosário estremeceu na cadeira.

— Pedro, você está bem certo disso? Não é prematura essa sua resolução? Aduziu Margery.

— Dona Margery, eu estou expondo a minha vontade, no entanto não faço imposição alguma, e deixo a palavra final para Maria do Rosário, da senhora, do Sr. Bernardo e do Sr. Bernardino.

— Pedro, eu já lhe disse certa vez, que nos confiávamos no discernimento da nossa filha. Portanto, neste momento, a ela, compete que responda a sua indagação. — aduziu Bernardo.

— Maria do Rosário, pelo seu semblante, todos nós já sabemos a sua resposta, mas gostaríamos de ouvir de viva voz. O que tem a nos dizer? — perguntou o avô.

Com um sorrizinho nos lábios, ela respondeu: — Realmente é do meu gosto estar namorando com o Pedro. Agora, quanto a marcar a data do nosso casamento, que também é do meu desejo, deveremos escolher bem uma data, juntamente com o Dr. Sizenando, o qual, o elegi para ser o meu padrinho. Acho então, como diz Pedro, aguardaremos o Sr. Valentim formalizar o pedido, que desde já está aceito. E depois Pedro, com algumas datas por nós estabelecidas, você vai ao encontro do doutor, e deixa que ele escolha, a que melhor lhe convier. Acho melhor que seja assim, pois ele é ocupadíssimo, e se programará com bastante antecedência.

— Assim vai ser Maria do Rosário — afirmou Pedro

Pedro Fernão ficou conhecendo toda cidade. Mas o que mais lhe chamou a atenção, foi, ter visto de perto a imagem de Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde. Ficou impressionado com a beleza da imagem.

Maria do Rosário narrou a Pedro, de como aquela imagem veio parar em Iguape, antigo povoado de Nossa Senhora das Neves: — Essa imagem Pedro, foi achada por pescadores no ano de 1647, numa praia próxima — praia do Una.

Uma autoridade do local, desejou que ela fosse enviada para Santos, mas, estabeleceu-se na imagem, um peso enorme, que nem muitos homens conseguiram movê-la e, nem entender como aquilo acontecia. Mas, quando resolveram trazê-la para Iguape, que antigamente, se denominava Nossa Senhora das Neves, a imagem tornou-se muito leve. Assim sendo, ela está aí.

— Maria do Rosário, guardando as devidas proporções, eu também me identifico um pouco com essa história. Aqui cheguei, e do seu lado, não mais quero me afastar.

— Então Pedro, é bom que fique, porque se embarcar, é provável que o vapor encalhe no baixio e de lá, não saia mais, de tão pesado que você vai ficar.

Ambos riram gostosamente.

Ao saírem da igreja, ela perguntou: — Pedro você está notando que ainda estou mancando?

— Notei sim!

— Posso saber qual a razão, de você não ter me perguntado nada a respeito?

— Claro que pode. Eu sou sabedor, desde praticamente o início do seu tratamento, que após a operação, a sua convalescença, seria um pouco demorada. De forma que, ver você mancar um pouco, nesse pouco tempo pós-operatório, é normal. Por essa razão eu não lhe perguntei nada. Desculpe-me Maria do Rosário, mas queira acreditar, que não foi falta de interesse, mas sim, a certeza de que você está se recuperando bem. E que, mais dia, menos dia, estará ótima, completamente.

— E se eu não ficar totalmente recuperada?

— Mesmo assim, você estará ótima em relação ao que era. Eu sou otimista, e sei que você também é, portanto, vamos acreditar no melhor que poderá acontecer.

Voltando-se para a porta principal da igreja, Pedro falou: — Vamos ter fé, que essa pequena dificuldade de hoje, seja um prenúncio para a sua total desenvoltura no amanhã.

— Obrigado Pedro!

Na véspera do Natal, chegou o Sr. Valentim, no meio da tarde.

No cais do porto, movimentavam-se pessoas na organização para facilitar a atracação, e o conseqüente desembarque de passageiros e descarregamento de mercadorias. Era um burburinho só, no qual se destacava uma voz forte: “Lá vem o “Lobo do Mar”- Comandante Vicente — e de vapor novo. Esse foi o comentário de Miloca, um personagem singular e muito querido, por toda Iguape. Era um homem cheio da sabedoria popular, contador de casos e histórias fantasiosas, adquiridos pelas “surras” que a vida lhe proporcionou, e que tinha o hábito de mascar fumo forte, de corda, e que, quando fora do trabalho da estiva, gostava de tomar a sua cachaça, e as vezes, excedia-se. Mas, havia sempre alguém que o acolhia, e pacientemente, ouvia as suas lamurias de um amor perdido por sua própria culpa.

 

Pedro Fernão e Bernardo dirigiram-se, para o porto.

Vapor atracado, passageiros descendo, e lá vem o pai de Pedro.

— Seja bem vindo Sr. Valentim. Fez boa viagem?

— Ótima viagem Sr. Bernardo. Que bom em revê-los.

Protocolarmente, cumprimentou Bernardo, e efusivamente, abraçou o seu filho, dizendo que o mesmo fez falta para a agilização dos trabalhos na empresa.

Sentindo um leve toque nas costa, Bernardo vira-se — é o Comandante Vicente.

— Que bom vê-lo Comandante, e de vapor novo!

— Estou muito bem! E os seus Sr. Bernardo?

— As minhas queridas estão cada vez mais fortes e animadas. Papai, como sempre está bem disposto.

— Folgo em saber que todos estejam saudáveis. Mas quanto ao vapor, ele não é novo, mas foi totalmente reformado, e está muito bom.

— E você Pedro, está gostando da Princesa do Litoral?

— Estou gostando sim Comandante. Iguape é uma boa cidade, e bem movimentada.

— Comandante, janta conosco?

— Muito obrigado Sr. Bernardo. Mas desta vez não poderei aceitar. A minha tripulação, a maioria carioca, me fez uma reivindicação: eles querem zarpar de volta, logo no primeiro raiar do sol. Eu concordei. Acho justo desejarem passar o natal com seus familiares. Então, teremos que nos alongar no horário para o descarregamento e carregamento. Estamos trazendo desde tijolos, até louças finas. Assim sendo, desejo-lhe um bom Natal, extensivo ao senhor seu pai, a Dona Margery, e as senhoritas Maria do Rosário e Maria Conceição. E a vocês, Pedro e Sr. Vicente, desejo-lhes igualmente um Feliz Natal e uma excelente estada na Princesa do Litoral!

— Ah! Sr. Bernardo: Lá na Capital, encontrei-me com o Dr. Sizenando. Disse a ele, que eu havia estado com todos aqui, e que estavam muito bem de saúde. Ele disse que estimava muito, e que estava com saudades do relacionamento que tiveram, e pedia que escrevessem contando sobre a evolução do tratamento. Portanto amigo, se quiser, poderei ser portador de alguma missiva; estou às ordens.

— Muito obrigado Comandante. Falarei com Margery e minha filha, para que escrevam ao doutor, e antes que caia a noite, virei trazer as cartas, e que desde já, agradeço os seus préstimos.

Despediram-se.

 

O Sr. Bernardino os aguardava em frente ao casarão.

— Seja bem vindo a esta casa!

— Obrigado senhor e, muito prazer!

— Da mesma forma, Sr. Valentim. Por favor, entre.

Lá dentro, aguardavam-no, Margery e Maria do Rosário, que tiveram da parte do visitante, largos elogios às suas belezas.

Acomodados na sala, travam diversos assuntos.

— Sr. Valentim — disse Bernardo — o senhor ficará hospedado aqui conosco. Já está tudo arrumado. Faço votos que se sinta à vontade, e goste das acomodações.

Bernardo lembrou, e disse que o Comandante mandou cumprimentos, e que o mesmo, encontrou-se com o Dr. Sizenando e, que este expressou o desejo de ter notícias de todos nós, principalmente das suas pacientes. O Comandante, ainda acrescentou que está à disposição para ser portador das nossas notícias.

— Papai, eu gostaria mesmo de escrever ao doutor, contando sobre nós e das novidades, e já alertá-lo, que Pedro irá ter com ele.

— Tem uma coisa filha: essa carta tem que ser entregue ainda hoje, pois o Comandante deverá zarpar amanhã logo ao alvorecer.

— Então, o senhor e a mamãe poderão ir comigo. Quero entregá-la pessoalmente ao Comandante, e desejar-lhe um Feliz Natal.

— Está bem filha.

— E assim foi feito. Todos foram ao encontro do Comandante, no final da tarde.


 

Capítulo XII
O noivado

 

Após terem comparecido à missa do galo, durante a ceia de Natal, o clima no casarão era de muita alegria, como há muito, os habitantes daquela casa não sentiam. Há quinze anos atrás, nessa mesma data, falecia a esposa do Sr. Bernardino, dona Izabel. Muitos anos transcorreram, para que ele se equilibrasse. Não fosse Bernardo, mesmo muito jovem, tomar a frente dos negócios, tudo estaria perdido.

Logo no inicio da ceia, o Sr. Valentim, oficialmente, em nome do seu filho, fez o pedido a Bernardo, para que concedesse a mão da sua filha, em casamento, a Pedro Fernão.

Bernardo, que já esperava por aquele momento, mas mesmo assim, olhou para a sua filha, e sentiu um impacto, divisando, que num futuro não muito distante, não teria mais, com constância ao seu lado, aquela criatura doce, afável, terna, compreensiva, linda e determinada. Seus olhos nadaram em lágrimas e se anuviaram. Ele apertou a mão da sua querida esposa e olharam-se mais uma vez, fitou com carinho a filha, e com voz, um tanto embargada, concedeu o pedido, desde que, a última palavra, fosse dada pela pessoa mais interessada na situação.

Maria do Rosário, em tom de muito amor à família, agradeceu a sua mãe, ao seu pai e ao seu avô o momento de felicidade que estava atravessando naquele instante e falou: — Gostaria de ter a promessa de todos, para que sejamos cada vez mais uma família unida, sem abdicarmos nunca do elo forte que nos une com dignidade, responsabilidade, honestidade, aconchego e amor. Sr. Valentim e Pedro Fernão, meu querido, eu aceito com todas as minhas forças interiores e com convicção o seu pedido de casamento, pois tenho a absoluta certeza, de que não só seremos muito felizes, como também, faremos os nossos familiares e amigos, igualmente felizes.

Gostaria que o Comandante Vicente, o Oficial Urbano, o Dr. Sizenando e os seus colegas que me operaram, nosso amigo, senhor Leandro, o casal, senhor Antero e dona Neiva, assim como o Oficial Athayde, que Deus o tenha em bom lugar, estivessem aqui conosco, nesse momento gostoso e feliz. Todos, foram e são muito importantes, que de alguma maneira concorreram para a concretização dessa união de família.

— Querida neta, você me conhece muito bem, e sente a afinidade que nos une, assim, é meu desejo oferecer-lhe um mimo. Quero que aceite esse camafeu, o qual trago sempre comigo. Eu presenteei à sua avó, quando Claudino nasceu. Como hoje está começando a nascer uma família, faço muito gosto que aceite e use.

— Vovô, o senhor é muito especial para mim. Muito obrigado! O Camafeu é lindo! Ele estará sempre comigo.

Maria do Rosário deu um abraço apertado no seu avô e, também um beijo, acariciando o seu rosto e enxugando uma lágrima, prestes a rolar.

Pedro Fernão presenteou a sua noiva, com um conjunto de jóias: anel, brincos e colar, todos, engastando um berilo azul.

— Pedro... Que lindo! São maravilhosas...

— Você merece toda representação de amor que posso lhe dar. E osculou-lhe o rosto.

— Pedro, o anel serve direitinho.

— A sua tia Anna Rita me ajudou. Era um segredo nosso.

— Ah! Titia... A senhora também?

— Eu só desejei ajudar. O que fiz foi dar a Pedro Fernão, um pequeno pedaço de papel, com o formato daquele seu anel de chapinha.

— Foi só uma brincadeira titia. Eu só tenho a lhe agradecer pelo que fez.

Maria Conceição roia-se de ciúmes, por todos aqueles rasgados elogios e declarações. O seu incômodo naquela mesa era visível.

Percebendo, Margery chama para si a atenção, e se dirige a ela: — Filha, aqui está o nosso presente para você. Desejamos, Maria Conceição, que você seja muito feliz e que realize todos os seus ideais.

E o Sr. Bernardino acrescentou: — É isso mesmo. E esperamos que você encontre em todos nós, uma família que está pronta para apoiá-la nos seus mais ardentes desejos, que temos a certeza, serão nobres e honestos e, se nos permitir, serão também nossos.

Era uma grossa corrente em ouro, onde pendia uma linda medalha do Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde.

Ela agradeceu com um sorriso, mas sem muito entusiasmo.

Dois dias passaram, e Pedro Fernão e seu pai, voltaram para Santos, e já com tudo mais ou menos acertado. Marcaram a data do casamento para o dia 13 de maio. No mesmo dia que casaram Bernardo e Margery. Essa data seria definitiva, se o doutor, tivesse disponibilidade. Pedro ficou com a incumbência de comunicá-lo.


 

Capítulo XIII
O aconchego familiar

 

Bernardo e seu pai voltaram às atividades normais. Além das que já tinham, elegeram mais um objetivo, que era construir uma lancha que comportasse uma boa quantidade de carga e acomodasse também, com conforto muitos passageiros.

Passaram também as festividades do fim de ano, e em seguida, veio o “Dia de Reis”.

A cidade, estava novamente em festa. No adro da igreja, o povo se agitava entre muitas barracas. Maria do Rosário e sua mãe saem para ir à igreja, mas logo voltaram. Com medo que alguém pisasse no seu pé, ela desistiu de ir, com a concordância da sua mãe.

Quanto a Maria Conceição, ao contrário, foi de barraca em barraca para ver o que estava sendo comercializado e se havia novidades. Ela tinha marcado um encontro com o jovem Francisco, em frente da igreja, às dezoito horas. E lá ficou aguardando. Eram dezenove horas, e o jovem não compareceu ao encontro. Cansada de ficar em pé, voltou para casa, furiosa.

Na porta da sua casa, ela encontrou a tia Esther, e falou quase gritando: — Que ódio titia. Ele me paga!

Entra, pisando duro, e esbravejando: — Ele me paga!...Ele me paga!

— O que foi minha filha? Alguém lhe fez alguma coisa? Venha ! Sente-se aqui, ao meu lado! Conte-me o que a perturba! Disse Margery com carinho.

— Acho que ninguém pode me ajudar...

— Fale filha, abra o seu coração, que com certeza, poderei ajudá-la.

Passado alguns instantes, ela se achegou mais perto da sua mãe, e falou com a voz embargada e entre soluços: — Sabe mamãe, aquele “portuguesinho d’uma figa”, me deixou plantada, esperando por ele, em frente a igreja, por mais de uma hora. Fiquei feito boba, tonta, idiota...Algumas pessoas passavam, olhavam para mim, e riam...

— Minha filha, vou lhe dar um conselho: você está sendo uma conquista muito fácil para ele. Valorize-se um pouco mais. Não se exponha tanto assim. Você é uma moça muito bonita. Não é conveniente que seja uma figura fácil. A nossa sociedade é muito cruel e alguns componentes dela, são maledicentes e fazem comentários desairosos e até ofensivos. Fique um pouco afastada de tudo isso, que com certeza, você readquirirá o respeito e atenção que bem merece.

— Mas se ela ficar afastada da sociedade, como ela conseguirá arrumar um bom partido? Perguntou a tia Esther.

— Titia Esther, eu não disse para ela ficar enclausurada. O que quero dizer, é para que ela não se exponha tanto, submetendo-se a essas situações vexatórias. E tem mais minha filha, acho também, que quem tem que esperar num encontro de namorados, é o homem; nunca a mulher!

— Mas se ela se acomodar, uma outra jovem toma o lugar dela.

— Titia, por favor... Não é difícil de compreender: se isso acontecer, será muito bom, pois vai mostrar para Maria Conceição que esse “portuguezinho” não gosta dela; só quer passar o tempo e se aproveitar. Muito embora ele seja filho de pessoa importante, eu sou de opinião, que devemos namorar e casar somente sob o clima intenso do amor; casamento interesseiro visando coisas materiais, ou posição de destaque na sociedade, tem vida curta. Será sempre uma união aparente, que mais dia menos dia, se desgasta e surgem as relações paralelas.

Maria Conceição encostou a sua cabeça no ombro da sua mãe e chorou. As lágrimas rolavam em abundância.

 

“Se alguém queixa-se da vida ao seu lado, responda com palavras de encorajamento. Não aumente o peso a quem já sente demasiado o que carrega.

Se alguém se lamenta da vida, procure mostrar os lados bons e belos da existência.

(Agenda Renascer — Torres Pastorinho — 2005 — editora EME)

 

Entre lágrimas e soluços, ela contou o sonho que teve a noite passada: — Mamãe, eu tive um sonho horrível!. Sonhei com o Oficial Athayde. Ele estava acompanhado de uma mulher idosa, e me falava o seguinte: “A traição que tu cometeste, dá-me o direito de vingar-me, levando-te até um prostíbulo. Mas tu tiveste sorte, e eu, mais ainda, porque estou seguindo os conselhos da minha querida avó. Eu vou te deixar, para que a própria vida cuide de ti”. E disse mais: “No futuro, em algum lugar, ainda deveremos nos encontrar”.

A senhora idosa, muito bonita, parecia até luminosa, sorriu para mim, e falou: “Minha querida, procure dar mais valor às coisas importantes da tua vida. Reconheça o grande amor que todos da tua família tem para contigo; não te amofines com pequenas coisas e nem dê importância às coisas que tem pouca representatividade para o teu engrandecimento interior. Ninguém ficará ileso de ter os contra tempos, e tendo-os, encare-os com naturalidade e com acertos. Escute um pouco a voz experiente de tua mãe, que com certeza, tu terás muitos dias felizes, como estes que está vivendo a tua irmã, que te adora. Não te impressiones muito com o que disse o meu querido neto. Ele ainda está um pouco magoado com o que tu fizeste, mas, num futuro bem próximo, quero fazer com que ele veja, se for permitido, que essa página da tua vida, já estava escrita por ele mesmo”

Eu acordei, e quando me vi, estava sentada na cama, e pude perceber os dois — ela e ele — envoltos numa névoa. Não consegui dormir mais. Aquelas palavras e seus vultos continuavam em minha mente. Até agora, parece que estou vendo-os e escutando o que falavam.

 

“Durante o sono, a alma repousa como o corpo?

— Não, o Espírito jamais fica inativo. Durante o sono, os liames que o unem ao corpo se afrouxam e o corpo não necessita do Espírito. Então ele percorre o espaço e entra em relação mais direta com outros Espíritos”

(O Livro dos Espíritos — Livro II — pergunta n.401)

 

— Minha querida, eu não sei bem o que lhe dizer sobre esse seu sonho, mas parece-me ter sido bem objetivo e aconselhador. Quanto a nós minha filha, estamos prontos ajudá-la. Saiba minha filha: a nossa vida — acho que você nunca percebeu — não é um mar de rosas; nós temos problemas de vários matizes, no entanto, vamos procurando resolvê-los com alegria e união, e estamos nos ocupando no trabalho. Acho que você poderá preencher o seu tempo ocioso, com algo útil, que reverta em coisas boas para você mesma. Se isso acontecer, nós também seremos beneficiados, pois, a felicidade batendo na sua porta, nós também entraremos por ela.

— Mas eu não sei fazer nada...

— Tenha boa vontade, que poderá fazer tudo que quiser. Veja a tia Anna Rita, por exemplo. Ela, enquanto casada, foi dona de casa. Após o falecimento do seu marido, veio morar conosco, e ajudou a cuidar de mim e da sua irmã. Mas agora, arrumou um tempo, dentro dos seus afazeres aqui em casa, e está se dedicando na enfermaria do hospital, sem ganhar um tostão. Outro exemplo, é a sua irmã. Ela se prontificou a dar aulas no instituto, também sem remuneração. Eu, minha filha, estou cuidando do enxoval da sua irmã. Veja só, todos nós estamos nos ocupando. Não devemos ficar parados, sem fazer nada, porque senão, nossos pensamentos começam a ser povoados de idéias indesejáveis, que nos levam a ter prejuízos marcantes. Você é uma moça organizada. Vá amanhã com a sua irmã e se disponha a trabalhar, talvez na secretaria; isso é apenas uma sugestão, mas se quiser fazer outra coisa, talvez..., no escritório, com o seu pai e seu avô. Acho que eles ficarão contentes; ao que sei, eles estão assoberbados. Uma pessoa de confiança no escritório, irá auxiliá-los muito. Você quer que eu a ajude nesse sentido?

Margery nesse momento recebeu um abraço afetuoso da sua filha, que há muito tempo não sentia desde os tempos que ela era menininha.

— Amanhã cedo, mamãe, eu estarei em pé, para tomar o café com a senhora, papai e vovô. Então a senhora me ajuda a convencê-los da minha vontade de mudar de vida.

— Fique certa disso, minha querida!

— Filha, uma coisa que quero lhe dizer, que me veio à mente: a sua irmã, está lendo um livro, que ganhamos do Dr. Sizenando, que cuida dentre outros assuntos, dos sonhos e das visões que você teve. Vamos falar com ela. Ela deve estar lá no quarto.

— Não mamãe. Eu estou aqui. Quero que me desculpem, mas, eu aqui na saleta, ouvi tudo que disseram; desculpem!

— Nada a desculpar minha irmã. Estou achando muito bom que tenha ouvido o que me ocorreu, e o meu desejo de mudar.

— Você não calcula o quando me rejubilo ouvindo a sua decisão. Conte comigo em tudo que necessitar. Levante-se minha querida, e dê-me um abraço.

E novamente lágrimas brotaram.

— Eu é que tenho que lhes pedir perdão, pois em todos esses anos, estive indiferente aos problemas que tiveram.

“Se contra vós pecou vosso irmão, ide fazer-lhe sentir a falta em particular, a sós com ele; se vos atender, tereis ganho o vosso irmão.”

(O Evangelho Segundo o Espiritismo — cap. X)

 

— Não vamos lembrar mais disso agora; foram acontecimentos passados, e do resultado desses acontecimentos, só nos interessa este momento, que é de transformação para melhor e que está nos unindo novamente. A respeito do seu sonho Maria Conceição, o livro nos explica de como ele se dá. Mas eu acho, se me permite avaliar, isso não é importante agora. O mais importante, é avaliar as verdades, que você acha, que nele foram reveladas, e os aconselhamentos. Pelo que ouvi, não foi um sonho horrível; foi um sonho que trouxe ensinamento; que indicou um novo rumo para a sua vida; foi um sonho, alertando-a para uma nova realidade, enfim, foi um sonho de muitos conselhos.

— É, eu acho que você tem razão. Não foi um sonho horrível. Só percebi o Oficial muito triste.

Ficaram caladas por alguns instantes, mas o silêncio foi quebrado por Maria Conceição: — Minha irmã, como você está? Eu seu pé está melhor?

— Sim minha querida. Eu estou ótima. Sente-se aí que vou lhe mostrar. Acho que você deve tê-lo visto algum dia, não?

— Nossa mamãe!!! Estão perfeitos!!! Graças a Deus! Mas por que razão você ainda manca um pouco?

— É por causa das articulações que ficaram por muito tempo sem ter os seus movimentos corretos. Mas logo, elas ficarão boas e sem dor.

— Bem, mamãe e minha irmã — beijando-as — eu vou me recolher. Boa noite!

Antes de galgar o primeiro degrau, Maria do Rosário, fala bem alto: Minha querida irmã, nós a amamos muito!

Recebeu como resposta, também em tom alto: — Eu custei a descobrir isso, mas agora, tenho a certeza e sou imensamente agradecida por isso, e sinto que vocês são realmente meus verdadeiros amores.

— Nós ficaremos um pouco mais aqui, não é mamãe?

— Sim, minha filha, o tempo que você desejar.

Percebendo que havia alguém na biblioteca, Maria do Rosário entrou, e viu o seu avô apreciando os seus presentes: a água, a areia e o búzio.

— Vô, que bom encontrá-lo aqui.

— O que foi filha?

— É algo importante, que eu gostaria que o senhor fosse decisivo, acolhedor, aconchegante e amoroso, como sempre foi comigo.

— Fale o que quer minha filha, que eu faço!

E ela contou tudo ao seu avô. Ele ficou radiante com o desejo de mudança da sua outra neta.

— Fique tranqüila, durma bem, que amanhã será o início de mais uma etapa das nossas vidas, e, para melhor.

— Obrigado vovô, e durma bem. Que Deus o abençoe!

— A você também meu anjo!

Margery, também pôs Bernardo à par dos desejos de Maria Conceição — ficou contentíssimo.

No dia seguinte, bem cedo, fingindo estarem surpresos, Bernardo e seu pai, indagaram ao mesmo tempo: — O que foi filha, não dormiu bem esta noite?

— Fiquem tranqüilos; há muito tempo que não tinha um sono tão gostoso como desta noite. Acordei mais cedo porque quero lhes falar, antes que vão para o trabalho. — olhando para sua mãe, que lhe deu um aceno afirmativo com a cabeça.

— Pode falar filha!

— Papai e vovô, os senhores têm tempo para me ouvir?

— O tempo que você precisar minha filha! Diga!

— Obrigada!

Ela então, começou a discorrer todos os seus defeitos e desejos, e ainda, pedindo desculpas por toda indiferença em relação à família. Contou também sobre o sonho que teve, não esquecendo nenhum detalhe. E ao final, pediu que eles a ajudassem, começando por um trabalho no escritório da companhia.

— Minha filha, tenha a absoluta certeza que todos nós, a queremos muito bem.; nós a amamos; queremos que você seja muito feliz, e realize todos os seus objetivos; nós sempre estaremos com você. Só lhe pedimos uma coisa: conceda-nos a oportunidade de sempre podermos estar ao seu lado; nós a amamos e é importante que nos unamos para que sejamos sempre fortes — posicionou Bernardo.

— Querida neta — acrescentou Bernardino, com brandura —, lá no fundo dos meus pensamentos, eu tinha a certeza de que a nossa corrente iria novamente se recompor; você era o elo que estava nos faltando. Assim, a felicidade e a união familiar, agora se completam. Para mim, que muitas e muitas vezes a embalei nos meus braços, hoje, você volta ao meu regaço, eu me rejubilo, e a acolho e a aconchego nos meus braços e no meu coração, e estou confiante, de que você, na nossa atividade, nos será de grande valia, além do que, irá embelezar o nosso ambiente de trabalho.

Mais uma vez, Bernardino sentiu a presença da sua esposa, como se uma mão estivesse apoiada em seu ombro, e se recordou quando ela lhe disse: “Com amor no coração, nós vamos conseguir ganhar de volta o afeto que parecia estar indo embora”.

Estava se concretizando naquela hora algo com alguma semelhança, como aquela passagem evangélica do “Filho pródigo”, que arrependido, voltava para casa, e quando o seu pai o avistou, teve compaixão dele e, correndo, o abraçou e beijou. Maria Conceição, estava voltando ao aconchego da sua família que se rejubilava; a felicidade era reinante em todos os corações dos seus familiares.

Ela levantou-se e foi beijar o seu pai, o seu avô e sua mãe, e agradeceu a todos com lágrimas rolando no seu lindo rosto.

— Você quer ir conosco agora ou vai mais tarde? Perguntou Bernardo

— Irei agora, papai!

— Então vamos!

Despediu-se da sua mãe com um grande abraço e disse: — Eu sou feliz por fazer parte de vocês!

— Esperem-me só um tempinho, que quero, eu mesma comunicar e abraçar a minha irmã, e contar-lhe o que comecei a resolver, quanto a minha vida.

 

E assim, foram passando os meses. Ela não deixou de freqüentar a sociedade, mas passou a fazê-la, somente algumas vezes.

Em sua atividade no trabalho, estava se dando muito bem na parte organizacional. A mudança ocorrida, acrescentou à família um outro ânimo, e trouxe também, uma modificação para melhor da tia Esther, que também, passou a acompanhar a sua irmã, Anna Rita, nas atividades do hospital.


 

Comunicação dos Espíritos

 

Na noite anterior ao casamento, o Dr. Eustáquio, convidou os senhores, Bernardino, Valentim, Bernardo e Dr. Sizenando, para uma reunião em sua casa. Adiantou, que também iria comparecer nessa reunião, o senhor Belizário, um pescador, que tinha a possibilidade de ver e escutar o que os espíritos falavam.

Na biblioteca do Dr. Eustáquio, todos se acomodaram. Em seguida, o anfitrião, julgou fazer algumas explicações, do que poderia ocorrer naquela reunião. Salientou, afirmando, que poderia haver alguma manifestação de espíritos ou não, uma vez que, isso não dependia do senhor Belizário, que estava ali, somente para ser um intermediário; um canal de comunicação.

Assim, sob tênue luz de um lampião, o Dr. Eustáquio, solicita de todos que o acompanhe mentalmente a oração que iria proferir: “Senhor Bom Jesus, aqui estamos, submissos à sua vontade e, rogando a sua atenção, o seu amparo e a sua proteção, para essa reunião. O nosso desejo, como iniciantes nesta prática, não se prende a banal curiosidade, mas sim, se vincula ao que podemos usufruir no aprendizado das possíveis comunicações dos espíritos que nos visitam, a fim de nos elucidar sobre a verdadeira vida, que desde já admito, como sendo a vida do Espírito. Porque, se temos a ciência de que os Espíritos que nos visitam, que se mostram e se identificam como sendo nossos entes queridos, é porque eles não morreram; são eternos. O que morreu, foi o corpo de que fizeram uso. Então Querido Mestre, ampara-nos, guia-nos, protege-nos e livra-nos de todos os males e que possamos ser merecedores da sua misericórdia. Amém”

O silêncio era absoluto naquele ambiente, até que, o senhor Belizário, com seu palavreado simples, disse: Doutor Eustáquio, a nossa sala hoje está uma coisa muito bonita. Tem a senhora sua mãe e o senhor seu pai, tem a dona Izabel e, mais duas senhoras, que é a primeira vez que vejo e mais um mocinho. Estão todos bem bonitos. O pai e a mãe do Doutor, estão dizendo, que hoje não vão falar nada, pois que vão deixar o tempo para os visitantes.

— Seu Bernardino, a dona Izabel, está lhe dizendo, que está muito feliz com o casamento da neta. Diz ainda, que vai estar lá na igreja ao seu lado, acompanhando o casamento, rezando para o Nosso Senhor, abençoar o casal. Ela fala mais, para o senhor olhar mais para Maria Conceição, que precisa de bastante ajuda. Ela está dando um abraço no senhor e no senhor Bernardo.

— Agora, é uma senhora que se diz chamar dona Alzira.

— É minha querida Alzira — disse o Comandante.

— É isso mesmo Comandante — anuiu — o senhor Belizário. Ela esta dizendo, que sempre está no seu lado e que aqui, está na companhia de uma menina muito bonitinha, que se chama Eugênia.

— Eugênia, é a minha filha que faleceu quando tinha doze aninhos.

— Elas estão no seu lado Comandante, dando um abraço.

Por alguns momentos, o senhor Belizário fica calado.

— Seu Vicente, bem ao seu lado está uma senhora que se chama dona Clarice. Ela está dizendo ao senhor, que o Pedro, escolheu o moça certa para casar. Que ela está muito feliz com esse acontecimento e que estará lá na igreja ao seu lado, para abençoar os noivos. Ela está falando ainda, para o senhor se cuidar.

— Agora, é a vez de um mocinho que quer dizer para o seu pai — Belizário aponta para o Dr. Sizenando — que não pense mais naqueles dias tristes do passado. Ele diz, que está muito bem e está sempre com o seu avô Fausto; ele fala ainda, para o senhor voltar a pescar, pois com isso, alivia um pouco a cabeça.Ele está bem perto do senhor, dando um abraço, e falando para o senhor dar um beijo na mamãe.

— Senhor Belizário, ele não disse o seu nome.

— O nome dele é Álvaro.

— É...É ele mesmo! Nós íamos pescar quase todo fim de semana.

O silêncio voltou a reinar no ambiente.

— Doutor, acho que ninguém mais quer falar mais nada. Queiram me desculpar o meu jeito de falar, pois não sou letrado. Mas acho que deu para entender. Quero dizer também, que eu gostei muito de ser o meio entre esses espíritos muito bonitos e os senhores.

— Senhor Belizário — adiantou-se o Comandante — acho que falo por todos. Nós é que ficamos imensamente agradecidos e nada temos a desculpar com a sua intermediação entre os nossos entes queridos que estão em outra vida e, nós. Muito obrigado por sua paciência.

— Então meus amigos — tomou a palavra o Dr. Eustáquio — só nos resta agradecer essa oportunidade bendita de obtermos notícias dos nossos entes queridos, e elevarmos os nossos pensamentos ao Nosso Senhor Bom Jesus e, com gratidão, orarmos: Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome...

Ao final, congratularam-se, com o Dr. Eustáquio, oferecendo aos visitantes um licor de abricó.

 

“Crês na sobrevivência da alma depois da morte?...as manifestações espíritas não são outra coisa senão os efeitos das propriedades da alma;

...Desde que admitis a sobrevivência da alma, é racional não admitirdes a sobrevivência das afeições? Uma vez que as almas estão em toda parte, não é natural pensar que a de um ser que nos amou durante a vida venha junto de nós e que deseje comunicar-se conosco, e que se sirva para isso dos meios que estão à sua disposição?”

(O Livros dos Médiuns — Primeira Parte — cap. I — itens 4 e 5)

 

“Entre os médiuns videntes, há os que veem apenas os Espíritos que evocamos e dos quais eles podem fazer a descrição com minuciosa exatidão; eles descrevem seus gestos em seus menores detalhes, a expressão de sua fisionomia, os traços do rosto, a roupa e até os sentimentos de que parecem animados.”

(O Livro dos Médiuns — cap. XIV — item 168)

 

“Médiuns auditivos — Eles ouvem a voz dos Espíritos; ...algumas vezes uma voz íntima que se faz ouvir na consciência; de outras vezes é uma voz exterior, clara e distinta como a de uma pessoa viva. Os médiuns auditivos podem assim entrar em conversação com os Espíritos.””

(O Livro dos Médiuns — cap. XIV — item 165)


 

Capítulo XIV
O casamento

 

Dia 13 de maio de 1876

Maria do Rosário estava casando. Ela estava maravilhosa; o seu porte era esguio, com uma bela silhueta, seus cabelos loiros, longos e cacheados, repousavam sobre seus ombros; seu vestido branco, com corpete todo bordado — flores de rosas; decote discreto; abaixo da cintura, ele era rodado, e igualmente bordado; na cabeça, ela ostentava uma linda tiara ornada com flores naturais de laranjeira, deixando pender para trás uma extensa cauda. Parecia um anjo que estava na porta da igreja, na companhia do seu pai e do Dr. Sizenando, aguardando o momento.

A nave e as acomodações dos balcões estavam lotadas.

À frente do altar, Pedro, também muito elegante. Trajava um fraque, luvas brancas, sapatos de verniz, encimado com polainas alvíssimas.

Ladeando o altar, sentados, o Sr. Bernardino, Margery, Maria Conceição, a tia Anna Rita, tia Esther, e dona Cleonice. Do outro lado, estavam: o Comandante Vicente, Sr. Valentim e os padrinhos do noivo.

Ao início da sonata nupcial, Maria do Rosário, de braços com os seus queridos, pai e médico, começou a percorrer aquele extenso corredor, que lhe proporcionaria uma grande mudança em sua vida. Ela calçava sapatilhas de tecido branco, que lhe davam maior comunidade aos seus pés.

A igreja está lindamente adornada. Trabalho executado por Maria Conceição.

O padre Alfredo, fez um eloqüente sermão, ressaltando a importância do casamento; a vida a dois e relacionamento com os familiares; realçando as dificuldades comuns de todos os casais; destacando que há de haver renúncias e perdões; ele ainda falou da responsabilidade de ambos na criação dos filhos.

Lágrimas brotavam dos olhos de Margery, de Bernardo e do Sr. Bernardino. Eles já estavam cientes que ficariam saudosos daquela criatura meiga, amiga, lúcida e compreensiva.

Ao final do ofício, o padre Alfredo, quebrou o protocolo cerimonial e abraçou efusivamente os noivos, dizendo: “Ide meus queridos, e que na Paz do Nosso Senhor Bom da Cana Verde, vocês construam as suas vidas com muito amor”

Beijaram-se, e após os primeiros cumprimentos, Maria do Rosário, de soslaio, viu o seu avô que pousou sobre ela um olhar terno, mesclado de tristeza, e olhos marejados. Então, ela tomou a seguinte atitude: — Pedro, desejo lhe fazer um pedido.

— Pois faça, meu amor.

Eles tinham como testemunha, nesse momento, ainda o padre Alfredo.

— Desejo que meu avô nos acompanhe quando deixarmos o altar. Eu o amo muito!

— O seu desejo é muito justo, o que prova e exemplifica que o amor e a união familiar é tudo o que somos e o que temos.

— Vovô... Vovô, por favor. Venha até aqui.

Ele se aproximou, e a sua neta querida, se enlaçou no seu braço, deu-lhe um beijo e lhe disse: — Venha conosco para a travessia desta nave; o senhor é o meu “Vozinho” querido, que eu amo muito. E como este é um momento muito feliz na minha vida, eu quero compartilhar também com o senhor.

O padre sorriu, aprovando a atitude da neta, nessa demonstração de amor e carinho familiar.

— Obrigado minha querida neta... Muito obrigado por me proporcionar mais essa alegria.

No dia seguinte, Maria do Rosário e Pedro Fernão,partiram em lua de mel, com destino ao Rio de Janeiro; e de lá, iriam para Lisboa.

No cais do porto, já saudosos, ficaram: Margery, Bernardo, Sr. Bernardino, Claudino e as tias, Anna Rita e Esther.

Embarcam também, o Dr. Sizenando e esposa, assim como, o Sr. Valentim, e os padrinhos de Pedro Fernão.

O Dr. Sizenando, antes de embarcar, dá alta para Margery liberando-a até para — como disse brincando — “Dona Margery, a senhora está de alta, e se quiser, poderá até ficar grávida”.

Margery sorriu, apertando a mão de Bernardo.

— Indo para a Capital não esqueçam de nós. Estaremos lá, e no mesmo lugar — disse o doutor.

Maria Conceição que aprendeu a admirar a sua irmã pelo seu discernimento, clareza de atitudes e de pensamentos, preferiu despedir-se dela em casa, a vê-la partindo.

O vapor, desatracando, partiu, fazendo ecoar, os seus apitos, nos contrafortes do Morro do Espia, tendo no comando, o Comandante Vicente, que registrou no seu diário de bordo, o casamento dos amigos, e a sua viagem de núpcias, com destino ao Rio de Janeiro.

 

O tempo passou... O Comandante Vicente recebeu do seu filho, uma correspondência com a sua árvore genealógica.

Depois de algum tempo, num encontro entre todos os interessados em Santos — Sr. Bernardino, Bernardo, Margery, Maria Conceição, Maria do Rosário, Pedro Fernão, Sr. Valentim, o Comandante Vicente e um dos seus filhos, constataram por documentos, papéis e lembranças, e ainda, pela árvore genealógica, que todos, tinham a mesma origem das suas famílias..

Essa constatação, no pensamento e desejo de todos, veio a confirmar o que, eles, realmente desejavam .

Junto aos documentos, estava um desenho, estampando as “Armas da Família”, e uma dissertação, sobre a sua representação:

“Um escudo azul escuro, centrado por uma estrela de ouro com oito raios, encerrada numa caderna de luas crescentes e prateadas; timbrada por um cisne com olhar arguto, membrado e armado em ouro, com uma estrela, igualmente de ouro, instalada no seu peito, e com a insígnia: “Quercus ad aeternum” .

Maria do Rosário fixou residência em Santos, mas, estava sempre em contato com os seus familiares de Iguape através de cartas. E, anualmente, sempre retornava a sua terra natal, para as festividades do mês de agosto, em homenagem ao Nosso Senhor Bom Jesus da Cana Verde.

Maria Conceição enamorou-se com o filho do Comandante Vicente, que agora, estava morando no Rio de Janeiro, após ter concluído o Curso de Ciências Jurídicas em Coimbra. Casaram, em uma cerimônia também muito bonita e concorrida em Iguape, e foram morar na Capital.

Bernardo e o pai, ambos sempre atentos nos desempenhos dos seus empreendimentos continuaram a cultivar arroz em larga escala e beneficiando-o; a fundição, embora ainda de pequeno porte, ia bem; só tinham alguma preocupação com a companhia de navegação, que estava acusando alto custo para a sua operação. O único barco que dava lucro, era a lancha “Margery”, que havia sido construída a pouco tempo.

Margery com a ajuda de Bernardo e do sogro, inaugurou uma escola primária, para acolher os filhos dos empregados do estaleiro e das famílias carentes, residentes no Canto do Morro do Espia.

Bernardo, a convite do Dr. Eustáquio, passou a freqüentar assiduamente as reuniões na casa do médico, fazendo parte de um grupo seleto de pessoas, com objetivo de obter comunicações dos Espíritos e, de estudo sobre o Livro dos Espíritos.

Casamento

“298. As almas que devem unir-se estão predestinadas a essa união, desde a sua origem, e cada um de nós tem, em alguma parte do Universo, a sua metade, à qual um dia se unirá fatalmente?

— Não; não existe união particular e fatal entre duas almas. A união existe entre todos os Espíritos, mas em graus diferentes, segundo a ordem que ocupam, a perfeição que adquiriram: quanto mais perfeitos, tanto mais unidos. Da discórdia nascem todos os males humanos; da concórdia resulta a felicidade completa.”

(O Livro dos Espíritos — Livro Segundo — cap. VI — Vida espírita —VII — Relações simpáticas e antipáticas dos espíritos. Metades eternas.)

 

Romero Evandro Carvalho — autor


 

 

©2013 — Romero Evandro Carvalho

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Novembro 2013

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